Diz-se que o 11 de Setembro mudou o mundo. É possível que isso seja verdade, quanto mais não seja porque mudou o modo como muitas pessoas veem o mundo — e uma mudança nas ideias das pessoas é uma mudança no mundo. Não devemos esperar, porém, que muitas dessas mudanças sejam para melhor, visto que a regra geral é que, quando as pessoas estão zangadas e com medo, as suas ideias e os seus atos vão para pior. Lembremo-nos de que em 1726 Voltaire veio de França exilar-se em Inglaterra, onde se espantou e deliciou com as liberdades dos ingleses. Teve sorte em não se ter exilado aqui no século XXI, e ainda mais sorte em não se ter exilado nos Estados Unidos da América. Enquanto estrangeiro, arriscar-se-ia a ser detido arbitrariamente por tempo indeterminado, a ver revogado o habeas corpus, a um interrogatório sem direito a representação legal e a ver o direito de recurso limitado apenas a um tribunal da mesma instância. Nos Estados Unidos poderia ter de enfrentar o assassínio de estado: a pena de morte decidida por maioria num tribunal militar secreto sem direito a recurso.
Mas uma modificação verificada depois de 11 de Setembro, talvez para melhor, consistiu em que mais pessoas parecem agora preparadas para pensar acerca do significado de várias coisas: o significado de uma sociedade, o significado de uma civilização, o significado da tolerância e do respeito, o significado dos padrões e dos valores. Antes de 11 de Setembro tais pensamentos podiam ter parecido fantasiosos, antibritânicos, uma recreação dos setores da sociedade que não sabem fazer mais do que falar. Desde aí, deixou de estar tão fora de moda sentarmo-nos e ouvirmos.
Infelizmente, porém, as vozes que o público tem ouvido não merecem muito crédito. Neste país, e ainda mais nos Estados Unidos, o debate é feito à volta de uma polaridade simples. Somos religiosos? Nesse caso, presume-se, há verdades reais, padrões reais, valores reais que podemos usar como guias do nosso comportamento e do dos outros. Ou será que somos ateus ou agnósticos? Nesse caso, presume-se de novo, não há verdades ou padrões ou valores reais, o que nos torna vítimas de várias doenças: o materialismo, o cinismo, o niilismo, o relativismo.
Não há quase nada que esteja correto neste modo de formular o problema, e a tradição filosófica fornece abundantes recursos para mostrar isso mesmo. Contudo, a voz dessa tradição raramente é ouvida. Não tem entrada no Pensamento do Dia, onde bispos e rabis e mulahs usufruem do seu tempo de antena diário, subsidiado pelo erário público. Mas comecemos pelo bocadinho que está correto — a associação da crença religiosa com o dogma, a intolerância e o autoritarismo, bem como a correspondente associação do ateísmo e do agnosticismo com a liberdade e a tolerância. A própria palavra “sectário” alerta-nos para isto, e uma religião é apenas uma seita com um exército de apoio. Os “padrões reais” das religiões, como Voltaire pôde verificar bastas vezes enquanto foi vivo, são os do autoritarismo e do separatismo, do conformismo dos que estão dentro e da perseguição aos que estão fora.
Seria fácil encher um livro com os horrores da ética inspirada pelo monoteísmo: a ética do Deus sádico. Mas a única acusação que farei aqui é esta: a primeira e, demasiadas vezes, a única virtude das religiões monoteístas é a fé, porque é a fé que mantém o rebanho unido, e nos define a Nós, do lado de dentro, contra Eles, do lado de fora. Mas a fé não é uma virtude. A fé é a credulidade: a condição de acreditar em coisas para as quais não há razões. É um vício, e inevitavelmente encoraja outros vícios, incluindo a hipocrisia e o fanatismo. Tem de ser dito, e em voz alta, que não faz mais sentido falar de escolas inspiradas na fé ou em ensino inspirado na fé do que em ciência baseada na superstição ou em debate baseado no terror. Houve e há, evidentemente, pessoas cultas e de espírito aberto a professar vários tipos de fé, mas a sua cultura e abertura de espírito verificaram-se apesar das suas superstições, não por causa delas. A fé é, na sua essência, inimiga da educação e da cultura, as quais ensinam as pessoas a fundamentar as suas crenças na razão e apenas na razão.
Não precisamos recuar mais do que até aos meados do séc. XIX para nos lembrarmos de que, mesmo em Inglaterra, sempre que podiam, as igrejas asfixiavam a liberdade de pensamento. Quando o grande reformador Richard Codben analisou retrospectivamente a sua campanha a favor das escolas públicas, disse:
Considerei a revogação das Leis de Corn uma brincadeira de crianças quando comparada com a difícil tarefa de convencer os sacerdotes de todas as denominações a permitirem que o povo usufruísse de educação escolar.
Mas este não é o modo como se estrutura o debate popular. Em parte isto se deve a que, numa das mais descaradas tentativas de usurpação da história do pensamento, as igrejas ocidentais fingiram assumir o papel de arautos do progresso e da tolerância, negando alegremente os seus séculos de horrendas perseguições internas e externas. É o declínio do seu poder que lhes impõe estes gestos pacíficos e ecumênicos, tal como, inversamente, o crescente poder do Islã foi acompanhado por crescentes tendências militaristas e persecutórias durante o tempo de vida do profeta. Pelo menos o Islã tenta ser coerente, de modo que quando no Sura 9.5 se ordena aos muçulmanos que “matem os infiéis onde quer que os encontrem”, existe o consenso de que desta vez, já no fim da vida de Maomé, o arcanjo Gabriel queria dizer exatamente aquilo que disse, e que versos anteriores aconselhando tolerância eram desse modo revogados. Claro que é por muito escassa margem que ainda é legal dizer em voz alta que tal doutrina é uma doutrina de ódio.
Mas a tolerância, que é muitas vezes, embora nem sempre, uma boa coisa, não é a mesma coisa que o relativismo, o qual nunca é uma boa coisa; e é essencial compreender a diferença. No mundo intelectual, a tolerância é a disposição para combater a opinião apenas com a opinião: por outras palavras, a disposição para proteger a liberdade de expressão, e para enfrentar as divergências de opinião apenas com a reflexão crítica, e não com a repressão ou com a força. O primeiro grande advogado da tolerância neste sentido do termo foi John Locke, e entre os seus sucessores incluíram-se não apenas famosos progressistas como John Stuart Mill, mas também homens com um impacto muito maior nos assuntos correntes, como Thomas Jefferson. A tolerância deu entrada na vida política com o Iluminismo. Trata-se de uma virtude caracteristicamente secular e nunca houve ou haverá uma teocracia que a possa aplaudir com sinceridade. Para o espírito religioso, muitas afirmações não são para ser avaliadas no tribunal da verdade e da falsidade, mas no da blasfêmia, e defender que alguém é blasfemo é defender que pelo menos as afirmações dessa pessoa e, de preferência, a própria pessoa, devem ser reprimidas.
A tolerância dá-nos o lema atribuído a Voltaire — aquele segundo o qual eu não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo. O relativismo, pelo contrário, destrói o nosso direito de discordar das afirmações de alguém. O termo “relativismo” designa um conjunto heterogêneo de atitudes, mas a ideia central é a de que não existem assimetrias na razão e no conhecimento, na objetividade e na verdade. Há dois mantras relativistas: “Quem decide?” (quem decide qual é a melhor opinião?) e “Isso é só a tua opinião” (a tua opinião está em pé de igualdade com qualquer outra). Tudo o que há são diferentes pontos de vista, cada um dos quais é “verdadeiro” para aqueles que os defendem. Neste sentido do termo, o relativismo vai além do conselho de que devemos tentar compreender aqueles cujas opiniões são diferentes da nossa. Não só devemos tentar compreendê-los, mas também reconhecer a existência de uma simetria de estatutos. As suas opiniões “merecem o mesmo respeito” que a nossa. Portanto, em última análise, podemos ter valores ocidentais, mas eles têm outros; nós temos uma visão ocidental do universo, eles têm a deles; nós temos a ciência ocidental, eles têm a ciência tradicional; e assim por diante.
Tem havido muitas tentativas filosóficas de refutar o relativismo, começando talvez com o confronto entre Platão e sofistas como Górgias ou com adversários como Teodoro no Teeteto. Teodoro defende a doutrina de Protágoras de que o Homem é a Medida de Todas as Coisas, a qual Sócrates considera implicar o relativismo. A tática principal que Sócrates usa é a de inquirir se a doutrina relativista se aplica a si mesma. Se não se aplicar, então parece que há pelo menos uma verdade não relativa e absoluta. Se se aplicar, então o relativismo pode muito bem ser verdadeiro para Protágoras, mas permanece falso para Sócrates e para todos os que concordamos com ele. Eis o que diz Sócrates:
[…] há uma segunda consequência, bastante sutil. Ao dizer que todos acreditam naquilo que se verifica, ele aceita a verdade das crenças opostas às suas. Por outras palavras, aceita a verdade da opinião segundo a qual ele não tem razão.
Sócrates está a sugerir que isto constitui um problema — de fato, um problema “sutil” — para Protágoras. Contudo, não é muito claro qual seja esse problema. O determinado Protágoras parece bem capaz de enfrentar o desafio, visto que está apenas a reconhecer que é verdade para Sócrates que ele, Protágoras, não tem razão, e pela teoria de Protágoras isso é perfeitamente compatível com qualquer crença que ele próprio tivesse tido. William James diz o mesmo dois milênios depois:
Mas será que pode haver contradição em qualquer caracterização de verdade? Pode a definição alguma vez contradizer o fato de ser feita? “A verdade é o que me apetece dizer” — suponhamos que era esta a definição. “Bem, apetece-me dizer isto, e quero que te apeteça a ti dizê-lo, e vou continuar a dizê-lo até concordares”. O que quer que se diga que a verdade é, será o tipo de verdade que se pode defender que a afirmação exprime. O espírito que uma afirmação possa conter é uma questão extralógica.
Por “espírito” James entende a força, o zelo ou a convicção que o relativista confere à sua posição. Platão, bem como os seus seguidores contemporâneos como Thomas Nagel, defende que a força e o zelo apenas podem coexistir com a crença de que aquilo que dizemos é absolutamente verdadeiro, verdadeiro para toda a gente, aqui e em qualquer outro lugar, agora e sempre. Platão e Nagel concordam com Hilaire Belloc quanto a não ter tempo a perder com
O deão diferente daqueles régios deões
De coração de ouro e pulmões de bronze
Que gritam, rugem e bramem
O absoluto por toda a sala.
James e Protágoras, pelo contrário, aceitam que a força, o zelo ou a convicção coexistam com a doutrina relativista.
Sendo este o debate, não é de todo óbvio quem o ganha. Mas pretendo tornar claro algo curioso acerca de ambas as posições, e portanto acerca da estrutura do debate sobre o relativismo. É como se cada participante visse a referência a conceitos como o de verdade (juntamente com a referência aos conceitos associados de razão, demonstração, indícios, probabilidade) como algo com que nos vestimos, uma roupagem extra que gostamos de usar. O absolutista pensa assim que a verdade nos dá, por assim dizer, vestes de estado. A verdade e os seus congêneres são os símbolos da autoridade. Tal como os juízes profissionais, sem os envergarmos não estaremos vestidos à altura, não poderemos falar com toda a dignidade ex cathedra de que precisamos. Pelo contrário, o relativista vê a roupagem como um disfarce. Vestimo-la para dissimular as realidades nuas e cruas do poder e da persuasão, da retórica e da ideologia, da propaganda e dos objetivos inconfessados.
Se for este o panorama, os dois lados terão uma grande tendência para participar numa conversa de surdos. No meu livro Being Good, ilustro esta ideia. Conto aí uma história acerca deste assunto da qual gosto muito, e, correndo o risco de maçar quem já tenha lido o livro, gostaria de contá-la outra vez aqui. Diz respeito a um amigo meu, que assistiu a um colóquio organizado por um importante instituto de ética, no qual havia um painel de representantes das grandes religiões. Primeiro os budistas falaram das vias para a serenidade, da subjugação do desejo, do caminho da luz, e os seus colegas de painel disseram todos “Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro”. Então o hindu falou dos ciclos de sofrimento, nascimento e renascimento, dos ensinamentos de Krishna e da via para a libertação, e todos disseram “Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro”. E assim sucessivamente, até que chegou a vez de o sacerdote católico falar da mensagem de Jesus Cristo, da promessa de salvação e do caminho para a vida eterna. Nessa altura todos disseram “Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro”. Mas ele deu um murro na mesa e gritou: “Não! Não é uma questão de eu me dar bem com isto! É a verdadeira palavra de Deus, e se não acreditarem vão todos direitos para o Inferno!” E todos disseram: “Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro”.
O que está em causa aqui é que o relativista vai ouvir os gritos e os rugidos e os bramidos do Absoluto apenas à sua maneira. Os seus ouvidos estão programados para ouvir apenas a ideologia ou o interesse político, e não a pretendida afirmação de verdade absoluta. Não vale a pena insistir na verdade, na objetividade ou na razão quando estamos perante ouvidos programados desta maneira, porque eles apenas ouvem mais do mesmo, só que mais alto. A propósito, vale a pena notar que, ao passo que nesta história os relativistas aparecem contentes e bem-dispostos, nem sempre isso é assim. Aqueles que veem as afirmações de verdade e objetividade como disfarces nem sempre adotam o pluralismo satisfeito consigo mesmo. Pode ser que achem os disfarces odiosos, e nesse caso é também provável que escolham rosnar cinicamente pelos cantos; isto é assim, em particular, quando se supõe que a invocação da objetividade e do resto disfarça pretensões de tomada do poder de caráter colonial, patriarcal, ou outras.
Mas será que deve ser este o panorama? Eu disse que, quando se fala de verdade e do resto, um lado vê vestes de estado, enquanto o outro vê apenas disfarces. E se os dois estiverem errados? A presunção comum é a de que falar de verdade e do resto é uma espécie de extra opcional, acerca do qual o absolutista não tem complexos mas acerca do qual o relativista é tímido e modesto. Mas esta presunção é falsa. Isto foi realçado quer pelo grande filósofo da linguagem alemão Frege, quer pelo filósofo de Cambridge Frank Ramsey. Com efeito, eles enfatizam que na prática comum de propor e aceitar ou rejeitar afirmações, falar de verdade não acrescenta nada. Se alguém me diz que o preço do gás está a aumentar, e eu respondo “é verdade” ou “tens razão”, estou apenas a exprimir concordância. Não estou a acrescentar nada à observação inicial. Se eu não acreditar na afirmação original, posso dizer que não é verdadeira, ou que temos de esperar para ver. Se fizer isto, temos de ir determinar se o preço do gás está a aumentar, e pode ser que sim ou que não. Não temos uma questão adicional a resolver, designadamente a de saber se é verdade que o preço do gás está a subir. O nosso único problema é determinado por aquilo que dizemos. A questão é o que está em questão, e nada mais.
De que modo é que isto afeta o relativista? Protágoras disse que o homem é a medida de todas as coisas. Bem, suponhamos que se trata de uma questão simples de medição. A que horas é a maré-cheia amanhã em Newhaven? Pode ser que eu tenha uma opinião a esse respeito. Mas, a menos que tenha feito o meu trabalho de casa, não é provável que ela seja fidedigna. O trabalho de casa, neste caso, quer dizer consultar as tabelas das marés. Ou, se eu próprio tiver por profissão produzir tabelas, pode significar algo mais direto, como fazer cálculos, ou talvez ir a Newhaven com instrumentos de medição e um relógio. Claro que um cliente mais exigente pode discordar deste processo de medição, e terá a possibilidade de argumentar a favor de outro. Como qualquer procedimento humano, até as medições simples são falíveis e podem ser feitas melhor ou pior. Mas, em qualquer caso, ou a água para de subir a uma certa hora, ou não para. As tabelas de marés têm prestígio não devido a maquinações sociais e políticas, mas devido a serem fidedignas. Se houvesse tabelas rivais competindo entre si, o sucesso acabaria por separar o trigo do joio, as que funcionam das que não funcionam. Portanto Protágoras ficou a meio do caminho. O Homem está por trás das medições, mas isso não significa que possamos fazer as medições de qualquer maneira. Se o fizermos, os nossos navios ficam encalhados, e os nossos projetos vão por água abaixo.
Quando afirmei que a questão é o que está em questão, o que queria dizer era o seguinte. Fazer uma asserção é oferecer um ponto de vista para apreciação pública, para ser aceito ou rejeitado. O espaço de apreciação pública estará repleto com normas mais ou menos bem formuladas, que é aquilo que determina as aceitações e as rejeições. No caso da altura da maré, essas normas determinam o que conta como uma resposta e como a razão para uma resposta. Não se põe a questão de se envergarem vestes de estado, ou de se verem essas vestes como nada mais do que um disfarce. Põe-se apenas a questão de quando é a maré-cheia em Newhaven, e dos nossos melhores métodos para descobrir isso.
Neste ponto dá-se uma transfiguração. Descobrimos que o relativista, à primeira vista uma pessoa tolerante, descontraída, despreocupada e pluralista, pode de repente aparecer como um monstro. Se eu digo que a maré-alta em Newhaven é esta tarde às duas horas, eu não quero que me digam, paternalistamente, que, se eu me dou bem com isso, é porreiro. Essa seria a resposta apropriada se eu tivesse acabado de dizer qualquer coisa que sugerisse fortemente que sou louco, ou se tivesse proferido a frase num espírito semelhante ao de um recital de poesia — não como algo a ser aceito ou rejeitado, mas como algo a ser apreciado e saboreado. Só que não é isso que faço quando expresso um compromisso. Nessas alturas tenho a expectativa de que a minha audiência adira ao próprio compromisso. Ouvir a minha afirmação apenas como um sintoma, talvez da minha classe, ou raça, ou história pessoal, é abster-se de fazer isto. É considerar-me um doente. É encarar-me, para usar a maravilhosa expressão de Peter Strawson, como alguém que tem de ser “gerido, manejado, tratado ou treinado”. Aqui, é o próprio relativismo que é desumanizante.
Como aparte, devo dizer que este é o motivo pelo qual as “guerras da ciência” geram tanta paixão. As guerras da ciência começaram quando os cientistas repararam que os sociólogos e historiadores da ciência pareciam empenhar-se em apagar muito do brilho da própria atividade científica. À boa maneira relativista, sociólogos, historiadores e críticos culturais puseram entre parêntesis as afirmações de objetividade e de verdade da ciência e encararam a ciência com um espírito puramente antropológico. Os cientistas tornaram-se uma tribo cujas estruturas de autoridade, de aceitação por pares, de prestígio e financiamento deviam ser investigadas no mesmo espírito que as dos curandeiros Navajos ou de Azande. Em particular, o historiador ou sociólogo foi levado a rejeitar o tratamento de qualquer questão que dissesse respeito à verdade ou à falsidade. Nas palavras do chamado Programa Forte:
A equivalência que estabelecemos postula que todas as crenças estão em pé de igualdade umas em relação às outras no que diz respeito às causas da sua credibilidade. Não é que todas as crenças sejam igualmente verdadeiras ou igualmente falsas; mas, independentemente da verdade e da falsidade, o fato da sua credibilidade deve ser visto como igualmente problemático. A posição que defenderemos é a de que a ocorrência de todas as crenças, sem exceção, exige uma investigação empírica e tem de ser explicada por meio de causas específicas e locais dessa credibilidade. Isto significa que, independentemente de o sociólogo avaliar uma crença como verdadeira ou como racional, ele tem de procurar as causas da sua credibilidade […] todas estas questões podem e devem ser respondidas sem ter em atenção o estatuto da crença tal como é julgada e avaliada pelos padrões do próprio sociólogo.
Isto poderia soar bastante inocente: apenas um ponto de vista clínico, despojado, defensor da objetividade. Mas do ponto de vista do cientista é afrontoso exatamente do mesmo modo como eu tenho descrito o relativismo como afrontoso. Do ponto de vista dos praticantes da ciência, nem todas as crenças estão em pé de igualdade no que diz respeito às causas da sua credibilidade. A razão pela qual um astrônomo acredita que Júpiter tem quatro luas é que ele viu ou calculou ou inferiu de outros dados que Júpiter tem quatro luas. A razão pela qual ele produz tabelas de marés é que certos cálculos, que séculos de experiência revelaram ser fidedignos, lhe permitiram produzi-las. Na ciência bem sucedida não há um abismo (como o proposto por Barnes e Bloor) entre as causas de uma crença e a sua verdade.
Por outras palavras, a atitude de neutralidade significa que o sociólogo aparece como o tipo de psicanalista delirante que busca as causas da minha crença de que há manteiga no frigorífico na minha infância, ou nos meus pais, ou na minha vida sexual — em todo o lado menos no frigorífico. Do meu ponto de vista, há apenas uma razão para eu acreditar que há manteiga no frigorífico: fui lá e vi que havia. Se o psicanalista “põe esse fato entre parênteses”, então nada do que ele diga pode servir para me descrever. Por outras palavras, podemos apenas pôr entre parênteses questões acerca de verdade quando aquilo que há para explicar é a ilusão e o erro, ou a notória seleção de uma verdade entre várias outras, ou então um outro aspecto do procedimento que não é explicável pelos padrões da investigação da verdade. Considerar que os próprios resultados e teorias da ciência não são explicáveis pelos padrões da investigação da verdade é ver a atividade científica como mais próxima da poesia ou de um texto de retórica política do que de uma investigação acerca de luas, marés e, já agora, do sítio onde está a manteiga.
Claro que isto não é negar que a ciência, como todas as atividades humanas, possa cometer erros. A modéstia nunca fica mal a ninguém: o cientista não é necessariamente alguém que grita, ruge ou brame. Também não é negar que a investigação e o interesse científicos sejam muitas vezes determinados por forças exteriores: o financiamento militar, o dinheiro proveniente de laboratórios farmacêuticos, ou a utilidade política. Mas, apesar destas parcerias suspeitas, a glória característica da ciência é a sua natureza autocorretiva, à qual regressarei oportunamente. Entretanto, as emoções envolvidas nas guerras da ciência são um testemunho cabal da natureza desumanizante da tarefa de explicar os nossos conteúdos mentais sem nos preocuparmos em saber as razões pelas quais temos esses e não outros.
Muitos de vós estarão a pensar que está tudo muito bem em se tratando de medições simples como a da altura ou a da hora da maré. Mas será que podemos dizer o mesmo quando entramos no domínio dos valores? É essencial que possamos. Se eu defendo que a pena capital não deve ser permitida, e outra pessoa defende que sim, então discordamos. De novo, a questão é o que está em questão: devemos ou não permitir a pena de morte? É possível que achemos a questão difícil, e que, quando a discutimos, nos enredemos em incertezas. Teremos de pensar acerca de coisas como os direitos dos membros de um estado, os direitos do estado, as consequências das ações, a vontade de vingança, e muitas outras. Isso apenas mostra que não se trata de uma questão simples. Mas, quando a discutimos, a voz relativista (Quem decide? Isso é só a tua opinião!) é, de novo, uma pura manobra de diversão. Somos nós que estamos a tentar decidir, e quando emitimos uma opinião tentamos exprimi-la de tal maneira que ela não seja “apenas” a nossa opinião, mas uma opinião com uma justificação a apoiá-la. Quando eu exprimo a minha oposição à abolição das liberdades civis, aqui e nos Estados Unidos, não se trata “apenas” da minha opinião. Trata-se pelo menos da opinião de séculos de jurisprudência e de prevalência da lei. Se quisermos, é a voz da experiência amarga que a humanidade teve com Inquisições, com interrogatórios secretos e com o poder dos dirigentes políticos. Quando eu digo estas coisas, tão claramente como quando falo da maré-alta, a minha opinião é oferecida no espaço público para aceitação, rejeição ou debate. Não exprimo o meu pensamento como se estivesse a dissertar um poema e muito menos como meio de manifestar sintomas patológicos. Exprimo-o com a intenção de que cheguemos a acordo sobre o assunto, e como aquilo em que eu gostaria que esse acordo consistisse. Sendo esta a ideia, a voz relativista pode ser vista como um mero empecilho ou uma manobra de diversão, e pode assim ser posta na sombra.
Temos ainda de refinar a nossa epistemologia. Queremos que as nossas opiniões mereçam assentimento, o que significa encontrar justificações a seu favor às quais (esperamos nós) as pessoas razoáveis tenham de aderir. Aqui, a filosofia pode também ajudar. Quero sobretudo mostrar que ela nos guia pelo meio das esperanças exageradas e do pessimismo exagerado. A esperança exagerada é a esperança de algo semelhante à demonstração matemática. Gostaríamos de ter a demonstração de que uma opinião é correta: uma demonstração a que toda a gente tem de aderir, sob pena de não fazer jus ao seu estatuto de ser racional. Na ética, foi Immanuel Kant quem buscou este Santo Graal com mais sucesso — encontrando-o na fórmula segundo a qual eu devo agir apenas de modo que possa querer que essa máxima se torne uma lei universal.
Poucos duvidam que Kant tenha descoberto algo de importante, e mesmo algo que estrutura muitos dos nossos raciocínios práticos. De fato, está implícito na própria noção de espaço público racional que as afirmações possam ser avaliadas a partir de um ponto de vista comum. Um modo eficaz de fazer alguém preocupar-se com as nossas patrióticas leis antiterroristas é perguntar-lhe se gostaria que os cidadãos britânicos ou americanos tivessem de se confrontar com a possibilidade desse tipo de tribunais especiais sempre que fossem ao estrangeiro. É mesmo precisamente porque a convicção religiosa suprime esse procedimento — uma vez que, para o verdadeiro crente, a intenção de acomodar o ponto de vista de um não crente é um pecado — que a religião permanece a maior inimiga da ética. Contudo, em última análise penso que temos de dizer que Kant falha. Não existe qualquer demonstração ou algoritmo disponível a que se possa apelar para conduzir os dissidentes — por exemplo, as pessoas religiosas ou os patriotas a quem foi feita uma lavagem ao cérebro para pensarem em termos de um Nós e de um Eles — para as fileiras dos virtuosos.
Mas isto não tem de nos remeter para nenhum tipo de ceticismo. A natureza e a necessidade humanas preenchem o hiato que a razão por si só não pode preencher. A tarefa comum do raciocínio prático dispõe de muitos dados de partida. Sabemos quando é que a vida está a correr bem e quando está a correr mal, e sabemos o que admirar e o que rejeitar. As virtudes da coragem e da inteligência, da paciência e do altruísmo são virtudes no mundo inteiro. Normalmente, não são os valores que são difíceis; o que é difícil são os problemas postos pela tentativa de os levar à prática.
Há um último aspecto do relativismo que tem de ser compreendido. Frege e Ramsey mostram-nos que concentrar a atenção na verdade não é uma boa opção. Pois perguntar se p é verdade não é mais do que perguntar se p. E é o significado de p, por si, que determina as regras da sua aceitação e da sua verificação. Se p for uma afirmação científica, será necessário usar os métodos da ciência. Se for uma afirmação da história, será preciso recorrer às bibliotecas e aos arquivos. Se estes métodos forem, eles próprios, contestados, temos de recuar e discutir metodologias de investigação, tentando adotar aquelas que condigam com a nossa noção mais apurada do que é fidedigno. Se se tratar de um assunto ético ou político, convocamos a nossa melhor compreensão do que seja a vida correr bem ou mal, admiravelmente ou desgraçadamente.
Mas tudo isto deixa espaço para que alguns se preocupem com os conceitos que podem ser usados na formulação dos problemas de uma dada área. O vocabulário com o qual formulamos os nossos problemas, dizem eles, é o nosso vocabulário. Os nossos olhos e ouvidos são olhos e ouvidos do séc. XXI. E então é possível que surja a ideia de que poderia haver outros vocabulários, outros conceitos ou modos de organizar as nossas reações mentais ao mundo, dando forma a outras perspectivas. E, dessas outras perspectivas, talvez as nossas preocupações pareçam primitivas ou lamentáveis, fáceis de ignorar, envoltas como estão na névoa que cobre o nosso tempo e o nosso lugar específicos. Talvez os nossos conceitos sejam apenas ocidentais, ou patriarcais, ou burgueses, ou comprometidos com a ciência. Talvez estejamos presos nas nossas próprias histórias, prisioneiros de forças acerca das quais não sabemos praticamente nada. Alguns filósofos contemporâneos, sobretudo Richard Rorty, acreditando dar voz a uma tradição que remonta a Dewey e a Wittgenstein, pensam que a única resposta a esta tese é uma espécie de ironia ligeira, um descomprometimento quanto a questões que, um dia, se pode vir a revelar não ter valido a pena levar a sério. Rorty toma assim o mesmo ponto de vista sobre o panorama geral que Platão ou Nagel, mas, temendo a distância em relação ao absoluto, sente-se incapaz de gritar, rugir ou bramir, ou sequer de dizer o que quer que seja — a menos que venha com um sorriso irônico anexado.
Mais uma vez, porém, a tradição permite-nos estruturar mais solidamente toda a questão. O ponto fraco deste relativismo conceitual é a sua transição de uma mera possibilidade para um conselho prático. A premissa que contém a possibilidade é interessante mas fraca. Há, temos de admitir, a possibilidade de existirem maneiras melhores de olhar para as coisas. Há a possibilidade de melhorarmos as nossas maneiras de pensar, tal como há a possibilidade de as tornarmos piores. Mas o que se segue daqui? Enquanto a melhoria não passar de uma mera possibilidade, não temos opção senão a de ficarmos com aquilo que temos. Pode ser que haja um futuro em que as pessoas não naveguem, ou em que os marinheiros não precisem de se preocupar com as marés. Mas não é esse o nosso mundo, e entretanto aqueles que navegam pelos mares precisam de uma resposta acerca da hora da maré-alta. Tratar esta pergunta, ou a resposta a ela, com ironia é tolice. Pode ser que venha um tempo em que os cientistas já não pensem em termos de mecânica quântica. Mas entretanto há lasers, scanners, câmaras e computadores para conceber, e a mecânica quântica é a única opção disponível. De igual modo, pode ser que venha aí um mundo no qual os padrões políticos tenham mudado, e os nossos modos de vida tenham deixado de ser discutidos em termos de igualdade, justiça, privação, recursos, ensino, liberdade ou opressão. Entretanto há acadêmicos condenados à morte por dizerem coisas que são verdadeiras, mulheres a quem é negado o acesso ao ensino, à segurança ou à assistência médica, atentados a vários tipos de liberdades, e desigualdades cada vez maiores no que diz respeito a recursos e a oportunidades. A ideia de que não devemos preocupar-nos com nada disto porque um dia podemos vir a pensar noutros termos seria risível se não fosse trágica.
Inicio a minha conclusão introduzindo um primo do relativismo, talvez mais associado ao próprio Voltaire, que é o ceticismo. Na concepção comum eles não estão separados com clareza, suspeito eu, visto que se supõe que o relativista, como o céptico, suspende o juízo em circunstâncias onde outras pessoas de sangue mais quente, como os deões de Belloc, querem a crença e a convicção. Mas na realidade são diametralmente opostos. Segundo o relativista, a crença e a convicção voam pela janela fora porque a verdade é, por assim dizer, demasiado pouco valiosa para nos preocuparmos com ela. Há por aí demasiadas verdades: a tua verdade, a verdade dele e a minha verdade. Para o cético a crença e a convicção voam pela janela fora porque a verdade é demasiado rara. Não podemos preocupar-nos com ela porque não somos capazes de a encontrar; nem sequer somos capazes de a procurar porque não temos a capacidade de saber quando é que nos estamos a aproximar dela.
Ao contrário da atitude mental relativista a do cético é muitas vezes merecedora de admiração. A reflexão relativista é, como vimos, desumanizante. A sua atitude típica, incluindo a ironia ligeira que a caracteriza, ilustra o ponto de vista de alguém acima da discussão, de alguém que compreendeu a verdadeira natureza dos debates e dos compromissos das pessoas que participam neles. Mas este ponto de vista é, como argumentei, aviltante e empobrecedor, uma mera manobra de diversão em relação ao assunto que está em discussão. Em contraste com isto, o cético não faz qualquer tentativa de passar ao lado do assunto em discussão. A questão é o que está em questão, e a verdade também. Acontece apenas que, de acordo com o cético, nós não somos capazes de encontrar a verdade. Temos de moderar as nossas opiniões, confessar a nossa ignorância, evitar a convicção e o dogma porque reconhecemos as insuficiências das nossas investigações e dos nossos métodos.
Os britânicos, felizmente, têm fortes inclinações céticas, razão pela qual os rugidos e os bramidos do atual governo são tão desprezados. Os americanos, pelo contrário, têm um apetite natural pela crença. De acordo com um estudo que li, não apenas cerca de 90% deles acreditam na verdade literal do cristianismo, mas também 49% acreditam que as pessoas são por vezes possuídas por demônios, e três milhões e meio acreditam terem sido eles próprios raptados por alienígenas pelo menos uma vez. Isto é perturbador, porque não há a garantia de que qualquer destas crenças permaneça quieta no seu canto, especialmente em épocas de medo: talvez nos lembremos daqueles infelizes que, há um ano ou dois, acreditando que o cometa Hale Bopp era um instrumento de reciclagem espiritual para californianos mortos, se suicidaram com o objetivo de ir lá parar. Como Voltaire também disse, aqueles que são capazes de nos fazer acreditar em coisas absurdas também são capazes de nos fazer cometer atrocidades.
Contudo, o ceticismo tem as suas limitações, e gostaria de terminar explorando uma delas. Permitam-me que comece com uma recriminação. Este ano, morreu o grande filósofo americano Willard van Orman Quine. A sua morte deu origem a um artigo ignorante e vergonhoso no Times do jornalista Simon Jenkins, lamentando que Quine tenha sido o tipo de filósofo que viveu e escreveu afastado da vida do dia-a-dia: um exemplo típico do intelectual inútil. E, de fato, ao contrário dos deões do Balliol College que conhecemos, Quine anunciou ao mundo poucos absolutos. Todavia, também não foi um cético. Então que fez ele de jeito?
Bom, Quine foi provavelmente o mais importante especialista em teoria do conhecimento da segunda metade do séc. XX. Concebeu uma teoria sutil, original e abrangente acerca do verdadeiro processo através do qual a experiência se transforma em teoria. Quine sabia que nenhum dos caminhos que levam ao conhecimento é simples, infalível ou imune a infindáveis revisões e questionamentos. Nem os sentidos, nem o testemunho indireto, nem a história, nem a teoria nem a própria razão nos proporcionam terreno firme. Para usar a sua metáfora favorita, citada do positivista Otto Neurath, somos como marinheiros condenados a reconstruir os nossos barcos no alto mar. Nenhuma das partes do barco é imune ao exame crítico, e cada uma delas pode ser substituída, mas temos de nos apoiar nas outras partes enquanto fazemos isso. A única maneira racional de proceder é descobrir aquilo que funciona, e adaptar a nossa herança científica tão cuidadosamente quanto possível para dar conta das experiências recalcitrantes que a natureza põe no nosso caminho. Este é o modo de proceder da ciência, com as suas virtudes da observação e da experimentação, da conjectura e da refutação, do debate aberto. A ciência deve ser vista como um processo darwinista através do qual uma pluralidade de teorias competem pela credibilidade e só a mais apta sobrevive, talvez apenas durante o tempo de vida de um ser humano, num interminável processo de autocorreção.
Ao dizer estas coisas, Quine estava em parte a repetir o pragmatista americano C. S. Peirce, famoso pela (muito criticada) definição de verdade como a opinião na qual o progresso da ciência está destinado a convergir em longo prazo. Mas o longo prazo é apenas um ponto de enfoque imaginário: existe a garantia de que o processo produzirá melhoramentos em cada um dos seus passos. É porque acreditava neste processo que Quine não era um cético.
Há, contudo, um lugar onde entra em ação um conjunto de processos diferente. Peirce e Quine têm talvez tendência para descrever a ciência como um tipo de atividade fechada sobre si mesma, procedendo segundo uma lógica interna e não precisando de auxílio do que está à sua volta. Mas é da maior importância perceber que isto é falso, e falso em muitos aspectos. A razão mais óbvia pela qual é falso é que a ciência institucional necessita de apoio. Necessita de tempo para a investigação, o que por sua vez exige investimento. É falso também porque todo o processo darwinista só funciona na condição de existirem as virtudes da integridade, da comunicação, da tolerância e da abertura de espírito. A ciência apenas pôde florescer quando a religião perdeu o poder de reprimir essas virtudes, e não é ainda capaz de florescer onde a religião ou outras forças mantêm esse poder. Por outras palavras, a ciência necessita de toda uma matriz cultural e política na qual possa desenvolver-se adequadamente, e nada nessa matriz pode ser dado como garantido.
Vemos pequenos exemplos disto em áreas específicas da atividade científica, sendo a este respeito a medicina a mais notória. O sábio, como nos ensinou Hume, confere uma fé apenas acadêmica a qualquer relato que seja favorável às paixões de quem relata. Poucos de nós se deixaram enganar quando a Associação Americana de Psiquiatria votou para transformar a maldade numa doença, inventando para esse efeito a disfunção resultante do déficit de atenção, e abrindo assim caminho para que se receitasse a uma em cada sete crianças do país, regularmente e gerando grandes lucros, Ritalina — uma droga dura com efeitos sedativos. Quando o governo deste país rejeitou um inquérito à epidemia da febre aftosa, nomeou em vez disso velhos amigos e colegas para darem conta da conduta virtuosa de velhos amigos e colegas, e o lema de Hume antecipa o modo como um tal “inquérito” será recebido. Casos mais insidiosos de alucinação de massas dependem provavelmente, em primeira análise, das necessidades institucionais das ciências específicas. Assim, por exemplo, o Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudança Climática tem produzido incessantemente gráficos e relatórios dando conta dos efeitos iminentes e catastróficos do aquecimento global. Para os cientistas que fazem parte do Painel, essas teses justificam mais financiamento, sem falar em mais poder institucional, recursos informáticos e viagens de avião em primeira classe para ir a conferências em locais exóticos. A paixão que nos faz receber estes relatórios (como outros acerca de outros desastres ambientais) tão avidamente é, suponho eu, a culpa. Pois de fato apenas existem escassos dados que apoiem a tese do aquecimento global, e muitos e bons dados que apoiam a tese de que não há nenhum ou quase nenhum. Tal como não há dados que comprovem a subida do nível do mar ou o aumento da agressividade climática (os escassos dados a favor disso advêm de medições feitas à superfície do globo e arbitrariamente distribuídas, ao passo que os dados substanciais contra essa ideia são proporcionados por satélites que têm um raio de ação sobre praticamente todo o planeta e por balões meteorológicos).
Não tenho aqui o objetivo de aligeirar a minha mensagem amesquinhando a ciência. Pelo contrário, os dados que referi são o resultado da ciência exercida com esforço, da ciência de alta qualidade e sem mácula. Mas uma declaração pública pode falar em nome de todo o edifício da ciência sem refletir adequadamente o caráter dessa ciência. É às declarações públicas, quer sejam da Sociedade Americana de Psiquiatria, do Governo, ou do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, que se tem de dar um grande desconto. Hume também cita aprovadoramente um dito de La Rochefoucault segundo o qual há muitas coisas acerca das quais o mundo deseja iludir-se. O impulso religioso é uma das manifestações desta verdade. Mas outra é o impacto das emoções — incluindo o medo e a culpa — sobre a crença, e este é o mecanismo que nos leva a receber mensagens de desgraça e de desastre com as nossas faculdades de análise crítica adormecidas. E isto leva-nos de volta a uma questão próxima da do relativismo, que é a questão da confiança, com a qual terminarei.
O Ocidente, diz-se com tristeza, perdeu confiança no Iluminismo. É bastante comum ver intelectuais declarar como se fosse um fato consumado que o projeto iluminista foi tentado e falhou. Isto é uma mentira. Nunca houve apenas um projeto Iluminista, e dos projetos Iluministas que houve muitos foram bem sucedidos para além das esperanças mais irrealistas dos seus proponentes. O Iluminismo proporcionou a matriz de que falei, na qual projetos científicos puderam florescer. Ora o nosso entendimento do mundo é melhor devido à física. O nosso entendimento de nós próprios é melhor devido à biologia. Vivemos mais tempo, alimentamo-nos melhor, e o “nós” inclui não apenas as pessoas dos países do primeiro mundo, mas também inúmeras pessoas no terceiro mundo. Cuidamos melhor do ambiente, e a seu tempo iremos gerir melhor o crescimento populacional. Fora das teocracias do oriente, mais pessoas usufruem de mais tipos de liberdade e de mais ensino, de mais oportunidades e talvez também de mais direitos do que alguma vez antes usufruíram. Devemos este progresso inteiramente à cultura forjada, no ocidente, por Bacon e Locke, Hume e Voltaire, Newton e Darwin. O humanismo é a crença de que a humanidade não precisa de se envergonhar de si própria, e estes são os seus grandes exemplos. Eles mostram-nos que não temos de considerar o conhecimento uma coisa ímpia, nem a ignorância desejável, e que não temos de ver a fé cega como outra coisa senão como cega.
Texto integral da “Palestra Voltaire” organizada pela Associação Humanista Britânica e proferida a 13 de Dezembro de 2001 no King’s College London. A Crítica agradece ao autor por ter acedido à sua publicação integral em português