Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: ‘Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem’. Ide à igreja e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto. Arthur Schopenhauer

André Cancian

Meu nome é André Díspore Cancian. Nasci no dia dezenove de fevereiro de 1982, numa pequena cidade do interior de São Paulo chamada Catanduva.

Foi como autodidata que fiz meus estudos sobre todos os assuntos que abordo aqui. Passei a ter um contato mais profundo com a filosofia e com a ciência a partir dos dezessete anos de idade, e entre algumas das influências que foram mais marcantes em meu pensamento e minha visão de mundo estão os nomes Nietzsche, Cioran, Schopenhauer, Freud, Pessoa, Russell, Sagan e Dawkins. Por isso sempre digo, com algum toque de humor negro, que quase todos os meus amigos estão mortos, e só me deixaram seus livros; mas antes os amigos mortos que os imaginários. Em todo caso, vê-se que meus principais interesses gravitam ao redor da ciência, da filosofia e da psicologia.

Atualmente, administro dois sites na internet que abordam o livre-pensamento: Ateus.net e o Paraíso Niilista (niilismo.net). O Ateus.net representa minha defesa filosófica e científica do ateísmo, com o objetivo de que esta seja o mais imparcial possível. O Paraíso Niilista, por sua vez, é onde escrevo sem qualquer objetivo ou compromisso necessário com coisa alguma; é meu espaço individual, construído segundo meus gostos pessoais, no qual publico reflexões, textos e poemas esporadicamente.

Assumidamente, sou ateu desde os catorze anos, pois nessa idade alcancei maturidade intelectual suficiente para pensar a respeito de tais assuntos de modo crítico. Entretanto, tomando-se a definição correta de ateísmo, que é ausência de crença na existência de deus(es), então se pode dizer que sempre fui ateu, antes implícito, agora explícito. Portanto, nunca escolhi o ateísmo; nasci ateu e permaneço como tal até hoje. Permaneço ateu porque o ateísmo me parece a posição mais sensata ante a ausência de evidências para a existência de um deus; penso que pontos de interrogação não são argumentos, e ignorância não justifica coisa alguma.

Assim, no que concerne à minha visão sobre deuses e divindades, penso que não existem, mas não acredito nisso, pois não me permito nenhum tipo de certeza fixa quanto a qualquer assunto. Portanto, meu ismo adotado consiste na chamada “posição cética padrão”, ou seja, ateísmo cético.

É certo que poderia ter me limitado a defender o ateísmo, mas também desfecho críticas à religiosidade e à religião, pois as julgo como algo pernicioso, um grilhão, uma verdadeira travanca ao progresso do conhecimento humano. Fazer uma virtude da credulidade irrestrita, desse fechar-os-olhos conhecido como fé foi a mais indecente perversão já perpetrada contra a liberdade humana. Contudo, admito que todos têm direito de acreditar no que bem entenderem. O conflito apenas surge quando os indivíduos manifestam a pretensão de que suas crenças estejam acima da crítica, o que insistem em chamar de respeito.

Bem, certamente não peço esse tipo de respeito ao meu ateísmo, no sentido de “não critique, não analise, deixe em paz”. Ataquem-no tanto quanto puderem e, de preferência, refutem-no; afinal, quem não gostaria de ser o suprassumo do Universo, da criação divina? Sou ateu apenas porque sofro de uma doença chamada integridade intelectual, a qual não me permite colocar o conforto proporcionado por convicções estáticas acima da penosa e frustrante busca pela verdade. Certamente não quero parecer um sonhador com tal afirmação; leia-se guerra contra o erro ou mais provável, não verdade absoluta.

Em todo caso, deve ficar claro que estou e sempre estive aberto às evidências. Não sou ateu simplesmente porque decidi que nenhum deus existe e ponto final. Pesei as evidências disponíveis contra e em favor à existência dessa entidade e cheguei à conclusão de que não existem motivos que justifiquem a crença em sua existência. Se, por exemplo, chegasse a mim um indivíduo que pudesse demonstrar categoricamente a existência de um deus, não há qualquer dúvida quanto a isto: deixaria de ser ateu no mesmo momento. Não sou e nunca serei um ateu irrevogavelmente convicto, pois, como corretamente Nietzsche afirmou, homens convictos são prisioneiros. Deste modo, como um livre-pensador, manterei sempre minha mente aberta. Não finjo saber tudo, mas também não finjo não saber nada; apenas digo aquilo que penso. A única coisa que me nego a fazer é dar crédito a qualquer hipótese sem possuir justificativas plausíveis para tanto.

Pelo que percebi até hoje, em termos práticos, ser ateu não me torna diferente de qualquer outra pessoa. Teoricamente, parece que sermos o centro da criação ou apenas animais racionais faria muita diferença sobre como viveremos nossas vidas; mas, na realidade, não parece fazer quase nenhuma. Provavelmente porque, no dia a dia, nos preocupamos com as nossas necessidades humanas, que estão presentes tanto nos crentes quanto nos descrentes, diferindo apenas nas explicações que se dá para elas que, objetivamente, cumprem a mesma função. A personalidade individual parece ser muito mais preponderante na determinação do comportamento que a religiosidade ou sua ausência.

Quanto à moral, sou um amoralista; isso não significa que sou amoral, mas somente que defendo a inexistência de valores universais. Sinto uma profunda aversão pelas lamentáveis tentativas de se estabelecer a superioridade de um valor sobre outro de modo universal e impessoal. Ora, uma moral estática que parte de cima para baixo, do geral ao específico, só pode ser duas coisas: uma tirania ou uma utopia.

Na prática, minha moral é a simples crueza de um egoísmo racional e utilitarista. Adotei a tática que me parece mais eficiente e prática para promover meu bem-estar, que consiste nesta máxima: tudo de melhor para mim e tão somente. E para os outros? Para os outros apenas faço e desejo o bem se, em troca, me forem úteis também de algum modo; diretamente, indiretamente ou apenas potencialmente. Vejo esta atitude como algo bastante natural, não deixando nada a desejar para mim ou para os demais. São acordos justos e honestos de ajuda recíproca. Mas é claro que uma sinceridade elevada a este grau é bastante incomum, então alguns poderão vir a pensar que sou um ser repulsivo e doentio por entender este comportamento cínico como algo natural; neste caso, apenas acho que não entenderam muito bem o raciocínio, pois o fato é que praticamente todos se comportam assim; apenas não gostamos de admiti-lo. Mas, em todo caso, não tenho absolutamente nada contra aqueles que decidirem trilhar caminhos diversos, pois uma das pretensões que jamais manifestarei será a de querer dizer como alguém deve se comportar ou qual é o melhor modo de se viver.

Pessoalmente, no que concerne à minha cosmovisão, considero-me um niilista. Sou ateu e niilista, mas dizer os dois ao mesmo tempo é redundância. Um ateu pode ser só ateu, mas todo niilista é ateu. O ateísmo se resume a não ter crença em deuses; o niilismo representa uma ruptura radical com tudo, uma rejeição de tudo, uma descrença em tudo — nem mesmo que existimos, nem mesmo na matéria, nem mesmo no absoluto. Não é um ceticismo que empacou na dúvida. O niilismo sequer pergunta, pois não aceita o conceito de verdade, de conhecimento, de ignorância nem o de um objeto ao qual isso tudo poderia se referir. É como um “nada a declarar” de quem percebeu que sequer há uma parede contra a qual bater a cabeça, ou mesmo a cabeça, propriamente, enquanto pensa nisso. É uma postura puramente intelectual, naturalmente. Um niilista estritamente prático seria uma pessoa em coma. Mas ninguém age como pensa e ninguém sente como pensa; são esferas distintas. O niilismo nasce da apreensão do vazio da existência; só que o niilista não reage ao vazio com angústia, pessimismo e desespero. Não encara sua visão como algo a ser superado, nem como algo verdadeiro ou falso, mas como qualquer coisa: nada.

Podemos traduzir o niilismo em algo mais palpável como equivalente à ideia de que nossa existência — que talvez sequer seja algo efetivo — é um grande acaso absurdo sem sentido algum, que a natureza, com suas leis, é fundamentalmente irracional, que não há deuses-criadores-de-realidades nem uma essência transcendental passeando em nossos corpos, que não existe nenhuma espécie de valor em si mesmo, muito menos a possibilidade de hierarquizar valores subjetivos, que estamos aqui para nada e que, sem dúvida, todos estamos condenados à morte. Isso sempre soa extremista à maioria das pessoas, mas acho essas ideias razoavelmente óbvias; para vê-las só precisamos abrir os olhos com uma dolorosa honestidade e remover as flores e a poesia anestésica que estão mescladas ao nosso conhecimento.

Tanto quanto posso perceber, é certo que não compreendemos totalmente o que somos, mas, aos meus olhos, a vida já deixou de ser algo intrinsecamente misterioso; o que permanece um mistério é a razão pela qual relutamos em admiti-lo. No meu ponto de vista, tudo isso que estamos vivendo não passa de um resultado mecânico de fatores físicos impessoais que culminaram, através de entidades informacionais autorreplicantes — no nosso caso, o DNA —, em nossa existência enquanto máquinas, portanto sem livre-arbítrio, conscientes de si mesmas e tendo, por sua própria natureza, o objetivo da perpetuação, que por sua vez não tem objetivo algum.

É claro que temos a ilusão de que somos especiais, mas isso acontece apenas porque somos a própria vida e não podemos fugir desta ótica parcial ao pensar e julgar o valor e a importância das coisas, e isso nos torna egocêntricos; tal parcialidade nos faz supervalorizar a espécie humana com naturalidade. Somos especiais por termos uma racionalidade aguçada? Sim, tanto quanto um ornitorrinco é especial por ser um mamífero ovíparo com um bico de pato. Cada espécie nasce com suas armas de sobrevivência, e nossa principal arma é a inteligência. Portanto, o autoengano não é necessariamente ruim; nossas crenças errôneas podem não condizer com os fatos, mas é provável que encontraremos nelas algum valor se as pesarmos em função de sua utilidade à vida.

Isso, entretanto, não é pessimismo. Trata-se meramente de uma constatação objetiva. Não afirmo que a vida é uma grande desgraça ou sofrimento puro, visto que isso é subjetivo e depende inteiramente de como olhamos para a realidade. A vida ser uma bênção ou um fardo depende dos olhos e das peculiaridades de cada um. Por isso, não penso em nossa vida como uma grande maldição, mas apenas como um grande vazio onde tudo é efêmero e sem significado; mas, por isso mesmo, livre.

Não poderia negar, todavia, que minha visão pessoal a respeito da realidade é um tanto funesta; mas este é meu posicionamento individual, e não tenho a menor intenção de generalizar minhas conclusões e impressões pessoais e impô-las a outrem. Apenas me espanta que a vida seja tão insignificante, tão lúgubre, durante a qual guardamos tão poucas memórias dignas de um espontâneo sorriso solitário, entre quatro paredes. Espanta-me que vivamos à custa da miragem de aspirações e sonhos intangíveis, enquanto, de fato, no presente, ao longo da meninice, da mocidade, da virilidade e da velhice, vegetamos ao sabor do vento em nossos imensos castelos de pequenas trivialidades, envoltos por preocupações tão banais quanto necessárias para fugirmos de nós mesmos, pois é certo que, livres da preocupação de assegurar nossa existência, livres de tais futilidades cotidianas que fazem nossa vida passar despercebida, nos tornaríamos um fardo enfadado para nós mesmos; enquanto estivermos vivos, estaremos nesta posição tragicômica, da qual ninguém tem culpa. Visão que William Shakespeare exprime muito bem com esta passagem:

Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre palhaço que por uma hora se espavona e se agita no palco, sem que depois seja ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muito barulho, que nada significa.

Por outro lado, em relação à vivência, acho que esta não é digna de muita seriedade ou empenho. Afinal, viver resume-se a um mero passatempo que, predominantemente, é enfadonho e aborrecido, e o melhor que se consegue da vida é esquecê-la, visto que, a meu ver, se torna melhor e mais feliz quanto menos conscientemente a sentimos. Aliás, em termos puramente racionais, se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada — penso que Schopenhauer está coberto de razão quanto a isso, mas coberto somente de razão. Não somos seres puramente objetivos e racionais, obviamente. O fato de nos agarrarmos de um modo tão desesperadamente apaixonado à vida — apesar de suas infindáveis atribulações —, penso, não tem qualquer fundamentação lógica; assemelhamo-nos a relógios de corda que não sabem por que ainda andam. Isso tudo parece acontecer devido ao nosso instinto básico de autopreservação, um cruento legado de nosso passado evolutivo.

No que diz respeito à infamada morte, não vejo nenhum mistério. Preocupar-se com a morte em si mesma me parece uma das mais eficientes formas de perder tempo com elucubrações sem sentido, e tratá-la como um grande enigma insondável me parece uma grande tolice cujo objetivo é permitir o cultivo de esperanças infantis a respeito de uma possível vida post mortem. Por que nos custa tanto aceitar que a morte faz parte do mecanismo de funcionamento da vida? Não é preciso pensar muito para concluir isso, basta observar: somos animais que nascem, crescem, reproduzem-se e morrem, como quaisquer outros. Apenas nascemos e temos um intervalo indefinido de tempo para fazermos ou tentarmos fazer o que quisermos de nossas vidas, e depois a morte simplesmente marca o fim de nossa existência enquanto um sistema biológico maquinal. Por isso, não tenho qualquer problema em aceitá-la com naturalidade. Temer a morte seria o equivalente a temer uma boa e eterna noite de sono profundo. Na verdade, faria muito mais sentido temer a vida. De qualquer modo, quem se detém neste ponto por alguns instantes logo percebe como a noção que temos da morte afeta nosso modo de viver. Neste particular, acho que uma citação de Montaigne servirá para elucidar meu ponto de vista: Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e coação.

Enfim, devemos acreditar em hipóteses que, atualmente, não podem reivindicar para si qualquer respaldo da realidade conhecida, que fazem de nós mesmos o que não somos — mas gostaríamos de ser —, apenas porque isso conforta? Ou devemos encarar a realidade e a natureza humana com honestidade, tais quais se apresentam a nós? A escolha é de cada um, pois ninguém tem a obrigação de ser ateu, cético, materialista, livre-pensador, niilista, racional, científico ou mesmo coerente. Mas, pessoalmente, fico com a segunda opção, pois meu desejo nunca foi simplesmente acreditar, mas saber, ainda que, para mim, isso signifique admitir-me ignorante, possuidor de um conhecimento que é sempre provisório. Mesmo assim, sempre preferirei a honestidade da dúvida; é ela que insiste em pôr em questão tudo aquilo que já foi solucionado; é esse o tipo de consciência que considero de primeira importância para que haja progresso em qualquer tipo de conhecimento.