Uma componente importante da Metafísica Ocidental Comum é a tese de que há verdades objetivas. Esta tese tem duas componentes. Primeiro, as nossas crenças e asserções ou são verdadeiras ou são falsas; cada uma das nossas crenças e asserções representa o Mundo como algo que é de certa maneira, e a crença ou asserção é verdadeira se o Mundo é dessa maneira, e falsa se o Mundo não é dessa maneira. Poderíamos dizer que compete às nossas crenças e asserções apanhar corretamente o Mundo; se não o fizerem, não estão a cumprir a sua tarefa, e a culpa é delas e não do Mundo. As nossas crenças e asserções relacionam-se assim com o Mundo como um mapa se relaciona com o território: compete ao mapa apanhar corretamente o território, e se o mapa não apanha o território corretamente, a culpa é do mapa e não do território.
A segunda componente da tese de que há verdade objetiva é esta: o Mundo existe e tem as características que tem em grande parte independentemente das nossas crenças e asserções. (Digo “em grande parte” porque as nossas crenças e asserções são em si partes — partes menores, ao que parece — do Mundo. E, é claro, as nossas crenças e asserções podem afetar outras partes do Mundo, como quando a minha crença falsa de que a luz do semáforo está verde causa um acidente. Mas mesmo a totalidade de todas as partes do universo físico afetadas pelas crenças e asserções de todos os seres humanos parece uma parte muito pequena do universo: se alguma coisa mais ficamos a saber pela astronomia e pela geologia é que se os seres humanos nunca tivessem existido, a história e futuro do universo físico seriam em grande parte os mesmos.) A verdade ou falsidade das nossas crenças e asserções é consequentemente “objetiva” no sentido em que a verdade e falsidade são conferidas às nossas crenças e asserções pelos seus objetos, pelas coisas que são visadas.
E como é que os objetos das nossas crenças e asserções lhes conferem a verdade? A ideia de que os objetos das nossas crenças e asserções têm este poder pode parecer misterioso se pensarmos nisso em termos abstratos, mas o mistério desaparece se olharmos para um ou dois exemplos concretos. Se eu asserir que a Albânia é a capital do estado de Nova Iorque, o que asseri é verdadeiro se, e só se, a Albânia é a capital do estado de Nova Iorque e é falso se, e só se, a Albânia não é a capital do estado de Nova Iorque. Se Berkeley acredita que nada existe independentemente da mente, o que ele acredita é verdadeiro se, e só se, nada existe independentemente da mente, e o que ele acredita é falso se, e só se, algo existe independentemente da mente. Se duas pessoas, o leitor e eu, por exemplo, têm a mesma crença sobre algo — talvez ambos acreditemos que a Albânia é a capital do estado de Nova Iorque — então a verdade ou falsidade é conferida à nossa crença comum pelas características desse objeto. Logo, a verdade é “una”; não há isso de uma crença ou asserção ser “verdadeira para mim” mas “falsa para si”. Se o seu amigo Alfredo responder a algo que tiver dito com as palavras “Isso pode ser verdade para ti, mas não é verdade para mim”, as suas palavras só podem ser encaradas como uma maneira muito enganadora de dizer “Isso é o que tu pensas, mas não é o que eu penso”.
Antes de avançarmos é necessário clarificar uma possível confusão. Muitas pessoas imparciais parecem objetar à noção de verdade e falsidade objetiva porque pensam que implica um tipo qualquer de dogmatismo. Pensam que se a Maria afirma que todas as nossas crenças e asserções são ou objetivamente verdadeiras ou objetivamente falsas, então ela está a insinuar-se como um árbitro dessa verdade e falsidade objetiva. “Quem estabelece o que é verdadeiro e o que é falso?”, perguntam. Mas a Maria não está comprometida pela sua crença na objetividade da verdade e da falsidade com a afirmação de que ela está em posição de fazer lei sobre o que é verdadeiro e o que é falso. Na verdade, ela não está comprometida com a tese de que alguém está em posição de fazer lei sobre o que é verdadeiro e o que é falso. Ela só está comprometida com a tese de que a verdade e a falsidade existem e são (em geral) conferidas às crenças e asserções independentemente do que acontece nas mentes das pessoas que têm tais crenças e fazem tais asserções. Um exemplo deverá ser suficiente para tornar isto claro. Considere-se a questão de saber se há vida inteligente noutros planetas. “Quem estabelece se há ou não vida inteligente noutros planetas?” Quem, de fato? Do meu ponto de vista, nenhum ser humano, neste momento histórico, está em posição de estabelecer a lei quanto a esta questão. Mas afirmar isto é perfeitamente consistente com afirmar que ou há vida inteligente noutros planetas ou não há, e que o que torna verdadeira a afirmação de que há vida inteligente noutros planetas (se for verdadeira), ou falsa (se for falsa), são os fatos sobre o modo como as coisas são em planetas distantes — fatos que são como são independentemente da nossa existência e das nossas crenças e dos nossos desejos.
A tese de que cada uma das nossas crenças e asserções é ou verdadeira ou falsa, para que seja plausível, requer duas qualificações — qualificações que os partidários da Metafísica Ocidental Comum estão, na sua maior parte, dispostos a fazer. A primeira é que pode muito bem ser que algumas nas nossas elocuções sejam destituídas de significado, apesar de não nos parecerem destituídas de significado quando as proferimos — se o parecessem, sem dúvida que não as proferiríamos. (Vimos, por exemplo, que os positivistas lógicos sustentavam que todas as elocuções metafísicas eram destituídas de significado. Mas não sustentavam que as elocuções metafísicas pareciam destituídas de significado aos metafísicos que as proferiam.) Nas obras do Idealista Absoluto americano do séc. XIX, Josiah Royce, ocorre a seguinte frase: “O mundo é uma comunidade de interpretação que se autorrealiza gradualmente.” Talvez estas palavras nada queiram dizer — talvez, como se diz, sejam “apenas palavras” — apesar de muitas pessoas terem pensado que queriam dizer algo verdadeiro e importante. Se esta frase for realmente destituída de significado, a tese de que todas as nossas crenças e asserções ou são verdadeiras ou são falsas não quer dizer, se a compreendermos corretamente, que alguém que profere esta frase diz algo que ou é verdadeiro ou é falso, pois tal pessoa nada diz realmente.
A segunda qualificação exigida pela nossa tese tem a ver com a vagueza. As palavras que usamos na vida quotidiana são, na sua maior parte, vagas. Ou seja, com respeito à maior parte das palavras haverá casos possíveis — e habitualmente efetivos — em que não é claro se essa palavra pode ser corretamente aplicada. Por exemplo, se um homem tem 1,815 metros de altura, não há talvez uma resposta definitiva à questão de saber se ele é “alto”. Logo, a palavra “alto” é vaga, e não se pode dizer que é ou verdadeira ou falsa a afirmação de que o Alfredo (que tem 1,815 metros de altura) é alto. Logo, a tese de que todas as nossas crenças e asserções são ou verdadeiras ou falsas exige esta qualificação: porque são vagas muitas das palavras e expressões que usamos ao fazer asserções e ao formular as nossas crenças, não haverá por vezes uma resposta do gênero “sim ou não” à questão de saber se estas palavras e expressões se aplicam às coisas de que estamos a falar. Consequentemente, algumas das nossas crenças e asserções não serão verdadeiras nem falsas. Chamaremos a tais crenças e asserções indeterminadas. Quem crê na verdade e falsidade objetivas não nega a existência de crenças e asserções indeterminadas. Apenas insiste que a indeterminação é um estatuto tão objetivo de certas crenças e asserções como o estatuto de “verdadeira” e “falsa” o é de outras. Se, por exemplo, o irmão de dez anos de Alfredo, que venera heróis, acredita que Alfredo é alto, são os fatos cuja existência é independente do que acontece na mente do rapaz que conferem o estatuto de “indeterminada” à sua crença. No resto deste capítulo irei simplificar a discussão, ignorando o estatuto “indeterminado”; falarei como se a tese da objetividade da verdade implicasse que todas as crenças e asserções são ou verdadeiras ou falsas. Ou seja, ignorarei a existência de vagueza, que na realidade não diz respeito às questões que iremos ter em consideração.
Antes de deixar o tema da vagueza, e as suas implicações com respeito à verdade e falsidade, contudo, quero chamar a atenção para mais um aspecto. O fato de a nossa linguagem conter palavras e expressões vagas não implica que uma dada asserção (ou crença) não pode ser verdadeira ou falsa a não ser que possa ser proferida (ou formulada) sem usar palavras vagas. Se isso fosse assim, poucas ou nenhumas das nossas asserções ou crenças seriam ou verdadeiras ou falsas, devido ao fato de que para praticamente qualquer palavra vaga há casos perfeitamente claros de coisas às quais a palavra se aplica, e as pessoas geralmente não usam uma palavra se têm qualquer dúvida quanto a saber se se aplica àquilo de que estão a falar. Apesar de haver certamente pessoas às quais não se pode aplicar claramente o termo “alta” ou “não alta”, há também muitas pessoas às quais a palavra “alta” se aplica claramente ou claramente não se aplica — por exemplo, homens com dois metros de altura, ou homens com um metro e meio de altura. Assim, quem disser que Bertram (que tem dois metros de altura) é alto diz algo verdadeiro, e quem disser que Carlos (que tem um metro e meio de altura) é alto diz algo falso.
Tendo em mente estas duas qualificações da tese de que todas as nossas asserções e crenças são ou verdadeiras ou falsas, regressemos à nossa discussão da questão da verdade objetiva.
A coisa mais interessante sobre a verdade objetiva é haver pessoas que negam a sua existência. Poder-se-á perguntar como é possível alguém negar que há verdades objetivas. Pelo menos eu poderia. Na realidade, fi-lo muitas vezes. No que respeita a algumas pessoas, tenho quase a certeza que a explicação é algo como isto: são pessoas profundamente hostis à ideia de algo que, num qualquer sentido, esteja em posição de as ajuizar. A ideia relativamente à qual são mais hostis é, evidentemente, a da existência de um Deus. Mas são quase igualmente hostis à ideia de existir um universo objetivo que não se importa com o que elas pensam e que pode fazer que as suas mais acarinhadas crenças sejam falsas, sem sequer as ouvir. (Mas isto não pode ser tudo o que há a dizer, dado haver pessoas que negam a existência de verdades objetivas e que também acreditam em Deus. Tenho de admitir, consequentemente, que a noção de um mundo desprovido de verdade objetiva tem de exercer um gênero qualquer de fascínio que me escapa.) Fica o leitor alertado: tem de ser evidente que sou incapaz de ter o mais pequeno grau de simpatia com quem nega a existência de verdades objetivas. Talvez eu não seja, por isso, um guia fidedigno das suas perspectivas. De fato, talvez eu não compreenda tais perspectivas. Gostaria de pensar que não as compreendo. Prefiro pensar que ninguém acredita realmente no que, pelo menos superficialmente, parece que algumas pessoas acreditam.
Os filósofos que negam a existência de verdades objetivas chamam-se hoje em dia geralmente “antirrealistas” — em oposição, é claro, aos “realistas”, que afirmam a existência de verdades objetivas. Isto provoca confusões porque, na nossa discussão do mundo exterior, opusemos o realismo ao idealismo, à tese de que tudo o que existe é uma mente ou uma modificação de uma mente. (E não se tratou de uma decisão arbitrária da minha parte usar o termo “realismo” deste modo. Ao opor o “realismo” ao idealismo adotei um uso comum.) Poder-se-ia argumentar que não é inteiramente enganador usar o termo “realismo” tanto para a tese que se opõe ao idealismo como para a tese que se opõe ao “antirrealismo”. Não é o idealismo essencialmente a tese de que não há um mundo independente da mente “lá fora”, um mundo que as nossas sensações possam representar correta ou incorretamente? E não é o antirrealismo a tese de que não há um mundo independente da mente “lá fora”, um mundo acerca do qual as nossas asserções possam ser verdadeiras ou falsas? Dado que as duas teses são rejeições de um mundo independente da mente, será assim tão enganador opor ambas ao “realismo”, a tese de que o chamado “mundo real” — isto é, um mundo independente da mente — existe?
Este argumento parece plausível, mas depende de confundir dois sentidos diferentes de “independente da mente”. O idealista que afirma que nada é independente da mente quer dizer que a natureza de tudo é mental: tudo é ou uma mente ou uma modificação de uma mente ou uma coleção de modificações de várias mentes. Contudo, segundo o idealista, a natureza geral da realidade, o modo como o Mundo é, o modo como as coisas são, é algo que não depende da mente. (Nem mesmo da mente de Deus, apesar de, é claro, um grande domínio de fatos particulares depender das Suas decisões — tal como domínios muito mais pequenos de fatos particulares dependerem das minhas e das suas decisões.) O antirrealista que diz que nada é independente da mente, contudo, quer na realidade dizer algo deste gênero: a atividade coletiva de todas as mentes determina de algum modo a natureza geral da realidade. O que quer exatamente o antirrealista dizer é uma questão que teremos de abordar daqui a pouco. Para já, temos simplesmente de fazer notar que apesar de tanto o idealista como o antirrealista poderem usar as palavras “nada é independente da mente”, querem dizer algo muito diferente. Logo, é enganador opor o “realismo” simultaneamente ao idealismo e ao antirrealismo.
Respeitaremos tanto a oposição tradicional entre realismo e antirrealismo como a tendência atual para usar “realismo” para a tese de que há uma verdade objetiva; podemos levar a cabo esta resolução recorrendo ao expediente simples de reter a oposição tradicional entre “realismo” e “idealismo” e chamar “Realismo”, com R maiúsculo, à tese de que há verdades objetivas. (À tese de que não há verdades objetivas, ou de que o modo como o Mundo é depende das mentes, chamaremos, é claro, anti-Realismo.)
Qual é, então, a tese do anti-Realismo? Confesso ter tido imensa dificuldade em encontrar uma formulação de anti-Realismo que eu consiga compreender. Descobri, de fato, que é muito mais fácil compreender como alguns exemplos de “verdades” ou “fatos” particulares que as pessoas, na sua maior parte, poderiam supor serem independentes da mente, dependem de fato (segundo o anti-Realista) da mente, do que compreender formulações do anti-Realismo como doutrina geral. Vejamos um exemplo de uma dessas verdades particulares para ver que luz isso pode trazer-nos. Eis um exemplo de um fato que as pessoas, na sua maior parte, dizem não depender de modo algum da existência das mentes humanas ou de qualquer atividade ou fato sobre a mente humana:
O Monte Everest tem 8.849,87 metros de altura.
Chamamos “F” a este fato. F parece um exemplo muitíssimo bom de um fato que a maior parte das pessoas pensa ser independente, em qualquer sentido razoável, da atividade mental humana. As razões subjacentes a esta convicção podem ser articuladas e apresentadas na forma de um argumento da seguinte maneira. Este argumento, apesar de poder apelar para alguns fatos científicos que não são familiares a todas as pessoas (e algumas pessoas rejeitarão o pressuposto incluso de que os seres humanos são o produto de um processo evolutivo), pode-se certamente dizer — à parte os pormenores científicos — que representa o ponto de vista metafísico das pessoas comuns:
As forças que causam a formação das montanhas nunca foram minimamente influenciadas pelos processos evolutivos que deram origem aos seres humanos. Se nenhuns seres humanos tivessem evoluído, e se nenhuns outros seres inteligentes tivessem habitado a Terra, a colisão imensa e lenta entre as placas indo-australiana e eurasiática, que causou (e ainda causa) a formação das Montanhas Himalaias, teria ocorrido exatamente como ocorreu. E, consequentemente, se nunca tivessem existido quaisquer seres inteligentes na Terra, o Monte Everest teria exatamente o tamanho e forma que de fato tem, apesar da ausência de inteligência na cena terrestre. Se pensar nisso, esta conclusão é pressuposta pelas explicações dos geólogos das características atuais da Terra, pois estas explicações pressupõem que os processos que deram forma a estas características tiveram lugar durante períodos de tempo inimaginavelmente longos nos quais não havia quaisquer seres inteligentes para os observar ou para pensar neles. Ora, dado que o Monte Everest teria exatamente os mesmos tamanho e forma que efetivamente tem mesmo que não tivesse havido quaisquer mentes, é óbvio que o fato F é inteiramente independente de toda a atividade mental humana. Se não existissem seres com mentes, não haveria ninguém para observar ou apreender ou estar ciente deste fato, mas o fato continuaria lá.
Este argumento, note-se, pressupõe que os objetos comuns podem existir independentemente da mente e portanto pressupõe a falsidade do idealismo, e os idealistas, como afirmei, não gostam do anti-Realismo. Mesmo assim, descobrimos razões para rejeitar o idealismo, e parece não haver razão para nos restringirmos ao uso de argumentos aceitáveis para os idealistas. (Sinto-me tentado a dizer: os idealistas que descubram os seus próprios argumentos contra o anti-Realismo.) Contudo, há um argumento que Berkeley usou contra este tipo de raciocínio que um anti-Realista poderá querer fazer seu, e é melhor dedicarmos algum tempo ao seu exame. É este: é impossível imaginar processos geológicos — ou qualquer outra coisa — a acontecer independentemente da mente, pois, se tentarmos fazê-lo, vemos que imaginamos que nós mesmos (ou pelo menos alguém) estava presente, observando o processo em questão a ocorrer independentemente da mente. (A maior parte dos graduandos de filosofia terá provavelmente ouvido o argumento análogo a favor da conclusão de que é impossível imaginar o nosso próprio funeral: teríamos de nos imaginar a nós mesmos lá, observando o que estava a acontecer, de modo que não estaríamos realmente a imaginar-nos mortos, e por isso não estaríamos realmente a imaginar o nosso próprio funeral.)
Este argumento, contudo, não tem força, mesmo que aceitemos a premissa de que não podemos imaginar, no sentido de “formar uma imagem mental de”, um evento que ninguém está a observar. (E a premissa é muito duvidosa. Dizer que não podemos imaginar um acontecimento que ninguém está a observar é como dizer que não podemos pintar um quadro de alguém que está sozinho — dado que qualquer tentativa de o fazer representaria a figura no quadro sendo observada por alguém que ocuparia um certo ponto de vista, o ponto de vista que o observador do quadro é convidado a partilhar imaginariamente.) O argumento anterior a favor da independência de F face a qualquer mente não exige que aqueles a quem o argumento se dirige formem uma imagem mental de processos geológicos inobservados, mas apenas que compreendam certas descrições verbais destes processos.
O que afirma o anti-Realista acerca de F? Perante o fato de que o tamanho e dimensão do Monte Everest foi determinado por processos geológicos que estavam em operação em grande parte antes dos processos biológicos que geraram vida inteligente e sempre independentemente deles, como pode o anti-Realista continuar a sustentar que o modo como o Mundo é depende da atividade mental humana? O seu argumento é aproximadamente o seguinte:
As montanhas e a altura são construções sociais humanas. Consideremos para começar as montanhas. É uma ficção humana, uma ficção que ganhou popularidade porque serve certas necessidades sociais, pensar que certas porções da topografia da Terra podem ser demarcadas e intituladas “montanhas”. Quais são os limites do Monte Everest? Se olharmos para o lugar onde estes limites supostamente estão localizados, não encontraremos qualquer linha na superfície da Terra; encontraremos apenas rocha homogênea. Se quisermos descobrir onde começa e acaba o Monte Everest, descobriremos que temos de perguntar a certas instituições — a União Geográfica Internacional ou algo do gênero. E a resposta que iremos obter não será ditada por uma qualquer “realidade” independente das atividades dos seres humanos. A União Geográfica Internacional — ou seja quem for responsável por tais decisões — poderia igualmente (“igualmente” na medida em que qualquer realidade independente da mente entra na questão) ter decidido que uma “montanha” começa na linha das árvores, e poderiam ter decidido chamar ao que chamamos a parte da montanha abaixo da linha das árvores a “base da montanha”. O fato de terem tomado a decisão que tomaram quanto aos limites da montanha e não outra decisão qualquer tem uma explicação social, como qualquer outro fato social. Talvez seja esta: algumas pessoas querem ou têm de escalar montanhas, e dá-lhes jeito estabelecer os limites das “montanhas” no lugar em que a atividade especificamente humana chamada “escalar” tem de começar. (Aves inteligentes não teriam esse propósito específico; poderiam muito bem traçar os limites das “montanhas” de maneira diferente — se realmente os chegassem a traçar.) Logo, as montanhas são construções sociais. Tal como a altura. Não podemos mandar uma corda do pico do Monte Everest até ao chão e medir depois a corda com uma régua para chamar ao resultado a altura do Monte Everest. Temos portanto de usar um instrumento especial chamado teodolito para medir a altura do Monte Everest. Mas por que razão chamamos tanto ao número relativo ao Monte Everest que nos dá um certo procedimento que envolve um teodolito como ao número que a medição de uma corda nos dá com respeito a uma certa torre a “altura” da coisa medida? A resposta é que fazemo-lo porque descobrimos que é socialmente útil estabelecer uma convenção que tem como consequência que uma certa qualidade é medida por estes dois processos tão diferentes. A altura é portanto um constructo social. (É verdade que se usássemos o teodolito para medir a “altura” da torre, daria o mesmo número que a corda. Mas isso não reflete um fato qualquer sobre uma realidade extrassocial chamada “altura”; reflete antes um certo fato social, nomeadamente o processo que usamos para calibrar teodolitos. Se o teodolito não nos desse o mesmo resultado que a corda dá, recalibraríamos o teodolito.) Tanto as montanhas como a altura são, portanto, construtos sociais, e segue-se que os “fatos” sobre a altura das montanhas são fatos sociais. Os fatos sobre a altura das montanhas antes de haver pessoas (ou fatos sobre a altura que certas montanhas teriam tido se nunca tivessem existido pessoas) não são menos fatos sociais. São apenas fatos sobre o modo como aplicamos construções sociais retrospectivamente (ou hipoteticamente). Se quiséssemos, poderíamos adotar convenções completamente diferentes sobre como se aplicam estes constructos às narrativas sobre o passado distante. Poderíamos adotar a convenção de que antes, digamos, do ano 1 000 000 a.C., todas as coisas tinham metade do tamanho que tinham depois dessa data, de acordo com o nosso sistema atual de convenções. Não fazemos isto porque tornaria as nossas teorias geológicas, da evolução e astronômicas mais difíceis de formular e de usar. Mas a facilidade de formulação e uso é uma exigência que impomos às nossas teorias por causa dos nossos interesses. Se encontrássemos marcianos que tivessem adotado tal convenção por satisfazer os seus interesses — estéticos, talvez, ou interesses que não compreenderíamos — só o chauvinismo poderia levar-nos a dizer que estavam errados. Quem somos nós para ditar os seus interesses?
Penso que isto é uma amostra fiel do modo como os anti-Realistas argumentam. (O argumento deles a favor da tese geral do anti-Realismo seria simplesmente uma aplicação do que se disse nesta passagem sobre o fato F, supostamente independente da mente, a todos os fatos supostamente independentes da mente.) Se isto é o mais longe a que pode ir a defesa do anti-Realista, não me impressiona muito, pela razão de que, na minha opinião, não estabelece que fatos como F dependem da mente.
Consideremos primeiro o caso do Monte Everest. Concedamos para efeitos de argumentação tudo o que o nosso imaginário anti-Realista disse sobre os interesses sociais servidos pelo modo como traçamos os limites das coisas a que chamamos “montanhas”. Concedamos que poderíamos ter traçado estes limites de maneira diferente se tivéssemos tido interesses diferentes. Mesmo assim, traçamos estes limites de um certo modo e — ao que parece — ao traçá-los deste modo escolhemos certos objetos como os objetos designados por nomes como “Monte Everest”, “Pico de Pikes”, “o Matterhorn”, etc., e há certas propriedades que estes objetos acabarão por ter quando os formos examinar. Acabarão por ter estas propriedades porque já as têm, pois estas propriedades pertencem a estes objetos independentemente da mente humana e das convenções humanas e dos interesses humanos e das atividades humanas. Se tivéssemos adotado convenções diferentes sobre onde traçar os limites das montanhas, então “Monte Everest”, que de fato designa o objeto x, um objeto que tem 8 849,87 metros de altura, teria designado outro objeto qualquer y, um objeto que (sem dúvida) tem outra altura qualquer. Mas isto é apenas um fato sobre os nomes que as coisas têm ou poderiam ter, e a altura de uma coisa não é afetada pelo que as pessoas lhe chamam ou pelo fato de lhe darem um nome. Independentemente de termos escolhido usar “Monte Everest”, os objetos x e y estariam lá, e x teria mesmo assim 8 849, 87 metros, e o objeto y teria mesmo assim seja qual for a altura que tem.
Mas este raciocínio não negligencia a alegação do anti-Realista de que propriedades como a altura, tal como objetos físicos como as montanhas, são “construtos sociais”? A mesma observação aplica-se a esta alegação. A altura é um “construto social” apenas no sentido de ser uma questão de convenção social que propriedade se atribui palavra “altura” como significado, se alguma o for. (Sem dúvida que o fato de uma certa propriedade ter sido escolhida como significado de um substantivo abstrato será tipicamente explicado pelo fato de que ter uma palavra cujo significado é essa propriedade serve um qualquer interesse social. O Realista irá conceder esta tese bastante óbvia, que de modo algum afeta o Realismo.)
A convenção social que atribui uma propriedade particular à palavra “altura” é simplesmente uma convenção social que estabelece que a palavra “altura” é usada como um nome do que é medido por um certo conjunto de procedimentos. A palavra “altura” poderia ter sido usada como um nome para o que é medido por um qualquer conjunto diferente de procedimentos. Por exemplo, aquilo a que chamamos a “altura” de uma montanha é medido em metros (ou qualquer outra unidade) acima do nível do mar. O nível do mar foi escolhido como a nossa cota de nível porque o sistema de medida estabelecido desse modo satisfaz certos interesses nossos. Contudo, poderíamos ter escolhido outras cotas de nível. Se tivéssemos escolhido empregar uma dessas outras cotas de nível, poderíamos não apenas ter diferentes números para as alturas de várias montanhas (talvez 8 773,12 metros, em vez de 8 849,87 metros para a altura do Monte Everest), mas também diferentes respostas a perguntas da forma “Qual das montanhas é maior, A ou B?”
Mas daqui não se segue que a altura do Monte Everest é uma questão de convenção social, nem a altura relativa entre o Monte Alfredo e o Monte Beatriz. Tudo o que se segue é um fato sobre o uso da língua portuguesa: dadas as convenções efetivamente existentes relativas ao uso da palavra “altura” (e expressões relacionadas, como “mais alto que”), a série de palavras portuguesas “O Monte Alfredo é mais alto do que o Monte Beatriz” expressa uma certa tese x; se uma dada convenção diferente regesse o uso da língua portuguesa, esta mesma série de palavras portuguesas exprimiria uma tese diferente, y. E é consistente com estes fatos sobre as convenções que regem (ou poderiam ter regido) o uso do português supor que x é verdadeiro e y é falso, sendo a respectiva verdade e falsidade destas duas teses coisas que não são determinadas pelas nossas convenções sociais, dado que dependem do modo como as massas de pedra têm sido moldadas ao longo das eternidades pelas forças geológicas — forças que operam em serena indiferença à convenção social. Eis outra maneira de exprimir o que é essencialmente a mesma observação. Suponha-se que inventávamos uma palavra para designar a propriedade que a palavra “altura” teria designado se tivéssemos adotado a cota de nível alternativa que temos estado a imaginar. Seja essa a palavra “schmaltura”. (E temos a invenção verbal relacionada: “schmalto”.) Então, todas as afirmações seguintes podem muito bem ser simultaneamente verdadeiras (objetivamente verdadeiras):
- O Monte Everest tem 8 849,87 metros de altura.
- O Monte Everest tem 8 773,12 metros de schmaltura.
- O Monte Alfredo é mais alto do que o Monte Beatriz.
- O Monte Beatriz é mais schmalto do que o Monte Alfredo.
Tudo o que a tese aparentemente impressionante de que a “altura é um construto social” quer realmente dizer, portanto, é isto: se adotássemos um conjunto diferente de convenções para usar a palavra “altura”, então a primeira frase acima quereria dizer “O Monte Everest tem 8 849,87 metros de schmaltura” e a terceira frase quereria dizer “o Monte Alfredo é mais schmalto do que o Monte Beatriz” — o que é falso se (como assere a quarta frase), o Monte Beatriz é mais schmalto do que o Monte Alfredo. Esta tese inofensiva — que é, é claro, perfeitamente aceitável para o Realista — não é uma premissa da qual o anti-Realismo se possa deduzir.
Não só o argumento do “construto social” não consegue estabelecer qualquer tese a que se possa razoavelmente chamar anti-Realismo, como a nossa aplicação deste argumento ao caso do fato F (que certamente parece um fato independente da mente) não consegue fornecer-nos qualquer pista quanto ao que é a tese do anti-Realismo. O que o proponente do argumento do “construto social” afirma sobre o fato F acaba por revelar-se, quando adequadamente compreendido, algo perfeitamente consistente com o Realismo. E, portanto, o anti-Realismo não pode ser apenas uma generalização para todos os fatos do que o proponente do argumento do “construto social” afirma acima sobre o fato F.
Sou da opinião de que podemos fazer mais do que mostrar que um certo argumento a favor do anti-Realismo não consegue estabelecer essa tese — ou qualquer tese incompatível com o Realismo. (Afinal, esse é um resultado muito fraco, pois o anti-Realista pode ter outros argumentos.) Podemos apresentar um argumento muito forte contra o anti-Realista. Ora, pode-se achar estranho que eu possa prometer um argumento forte contra uma tese quando, como eu próprio declaro, não sei realmente que tese é essa. Mas o que proponho não é misterioso. Não compreendo completamente o anti-Realismo, mas compreendo algumas das características que o anti-Realismo supostamente tem. Os anti-Realistas atribuíram várias características ao anti-Realismo, e muitas destas características são claramente tomadas pelos anti-Realistas como essenciais ao anti-Realismo: qualquer tese que não tivesse tais características não seria anti-Realismo. O argumento que irei apresentar tem esta conclusão: qualquer tese que combine essas características tem de ser incoerente.
Para ver que isto é assim, consideremos uma qualquer formulação concisa de anti-Realismo. Não fará qualquer diferença que formulação concisa escolhemos ou quão bem a compreendemos. Escolhamos a seguinte formulação, a que chamaremos AR:
Não há verdades e falsidades objetivas.
Inquiramos agora sobre o estatuto da própria AR, de acordo com AR. AR é uma afirmação sobre todas as afirmações, e é portanto uma afirmação sobre si mesma. O que afirma sobre si mesma? Bom, exatamente o mesmo que afirma sobre todas as outras afirmações: que nem é objetivamente verdadeira nem é objetivamente falsa. E, é claro, segue-se disto que não é objetivamente verdadeira. Se não é objetivamente verdadeira, se não é verdadeira em virtude de corresponder a uma realidade independente da atividade mental humana, é o quê, de acordo com os anti-Realistas? Que estatuto lhe atribuem? Os anti-Realistas dirão sem dúvida que lhe atribuem o mesmo estatuto que atribuem a afirmações como “17 + 18 = 35” e “Os leões são carnívoros” e que negam a afirmações como “14 ÷ 12 = 17” e “Os caracóis são mamíferos aquáticos”. E que estatuto é esse? “Bem”, diz o anti-Realista — pelo menos muitos anti-Realistas dizem algo como isto — “estas afirmações coadunam-se com a nossa experiência, e as suas negações vão contra a nossa experiência. Por exemplo, já vi leões a comer carne, nunca vi qualquer um deles comer vegetais, os seus dentes são obviamente adequados para a carne e não para os vegetais, todos os especialistas em leões dizem que os leões são carnívoros, e assim por diante. Os Realistas admitem que este estatuto existe. É precisamente o estatuto que nos leva a aceitar ou acreditar em certas afirmações. E vocês concedem que há afirmações que têm este estatuto e que não são contudo aquilo a que chamam “objetivamente verdadeiro”, dado que concedem que uma série enganadora de experiências poderia fazer alguém aceitar, digamos, a afirmação de que os leões são herbívoros, que vocês consideram “objetivamente falso”. Bem, nós, os anti-Realistas, não vemos pura e simplesmente qual é a necessidade destes dois estatutos a que chamam “objetivamente verdadeiro” e “objetivamente falso”. Damo-nos por satisfeitos com os estatutos “adéqua-se à nossa experiência” e “vai contra a nossa experiência”. Para responder à vossa pergunta, é o primeiro destes estatutos que atribuo a AR: adéqua-se à nossa experiência”.
Mas o que quer o anti-Realista dizer quando afirma “AR adéqua-se à nossa experiência”? O que é “adequar-se”? O modo como AR se adéqua à nossa experiência não pode ser muito parecido ao modo como “Os leões são carnívoros” se adéqua à nossa experiência. Se rejeitássemos a última afirmação e continuássemos a admitir que os leões são herbívoros, poderíamos ser comidos. Este fato, e muitos outros desse gênero, fornecem um sentido bastante robusto segundo o qual a afirmação de que os leões são carnívoros “se adéqua à” nossa experiência, e na qual a sua negação “vai contra” a nossa experiência: se não aceitarmos tal afirmação, e em especial se aceitarmos a sua negação, podemos muito bem arranjar problemas sérios, problemas que a nossa experiência se encarregará de tornar muito evidentes para nós mesmos. O mesmo se aplica a afirmações científicas muitíssimo teóricas como “Muitas das propriedades importantes da água devem-se às ligações do hidrogênio” e “A gravidade é uma função da curvatura do espaço-tempo”, apesar de, no caso de tais afirmações, os “problemas” só se revelarem tipicamente em circunstâncias muito especiais (precisamente as circunstâncias que os laboratórios foram concebidos para produzir e que os observatórios astronômicos foram concebidos para procurar nos céus). Também se pode dizer que as afirmações matemáticas se adéquam à nossa experiência, nesse sentido; se aceitarmos as afirmações matemáticas erradas, os nossos cheques ficam sem cobertura e as nossas pontes caem.
Mas em que sentido se pode dizer que uma afirmação muitíssimo abstrata como AR se adéqua à nossa experiência? Suponha-se que o André é um anti-Realista e a Raquel uma Realista. Há algumas circunstâncias possíveis nas quais a Raquel arranja problemas por rejeitar AR e nas quais o André evitará problemas por aceitar AR? É absurdo supor que o André tem menos hipóteses do que a Raquel de ser comido por um leão ou de propor uma teoria científica que seja refutada experimentalmente ou de conceber uma ponte que cai. O André pode dizer que produzirá teorias filosóficas melhores do que a Raquel, mas esta afirmação não parece consistente com a sua explicação do que há de “bom” em algumas afirmações e de “mau” noutras — afinal, as teorias são tipos especiais de afirmações — a não ser que as qualidades que as suas teorias têm que as fazem ser “melhores” do que as da Raquel se revelem de algum modo na nossa experiência. E isto — fazer previsões sobre serão as nossas experiências — é precisamente o que as teorias filosóficas, ao contrário das teorias científicas, notoriamente não fazem.
Ou, em qualquer caso, isso é o que as teorias filosóficas notoriamente não fazem se por “experiência” queremos dizer “experiência sensível”. Talvez, contudo, o anti-Realista esteja a pensar na experiência num sentido mais amplo. Se houvesse um argumento arrasador a favor de AR, esse fato poderia estabelecer a pretensão anti-Realista de que esta afirmação se adéqua à nossa experiência, pois um tipo de experiência que temos é a experiência de examinar argumentos e achá-los convincentes. Quer isto resolvesse a questão quer não, contudo, não é algo que tenhamos à nossa disposição. Como observamos, não há argumentos arrasadores em filosofia. Não há argumentos filosóficos que todos os filósofos qualificados considerem convincentes.
Se houvesse argumentos a favor de AR que à maioria dos filósofos parecessem suplantar definitivamente todos os argumentos conhecidos contra AR, o fato poderia ser suficiente para estabelecer a pretensão anti-Realista de que AR se adéqua à nossa experiência. Mas, uma vez mais, quer isto resolvesse a questão quer não, não é algo que tenhamos à nossa disposição pois, dado como as coisas são, não é isso que pensam os filósofos, na sua maioria.
Parece, consequentemente, não haver um sentido claro segundo o qual se possa dizer que AR “se adéqua à nossa experiência”. Suponha-se, então, que o anti-Realista desistia do “nós” e recuava para o “eu”; suponha-se que o anti-Realista dizia algo como “A característica ‘boa’ que atribuo a afirmações como ‘Os leões são carnívoros’ e AR, e que nego a outras, como ‘Os caracóis são mamíferos aquáticos’ e ‘A verdade e falsidade objetivas existem’, é apenas esta: adéqua-se à minha experiência”. Suponha-se que o nosso anti-Realista, André, afirma isto. O que pode a Raquel Realista responder? Eis uma possibilidade:
A. Não há verdades e falsidades objetivas.
R. Se bem compreendo a tua teoria, quando afirmas isso estás apenas a afirmar que isso se adéqua à tua experiência. Bem, tu é que sabes. Aparentemente, quando tens em consideração os argumentos a favor de AR, achá-los convincentes: tens essa experiência. Longe de mim pôr em causa a tua afirmação de que achas tais argumentos convincentes. E tu, sem dúvida, não irás pôr em causa a minha afirmação de que tenho a experiência de achar os argumentos contra AR convincentes. Logo, não podes ter qualquer objeção à minha afirmação de que há verdades e falsidades objetivas.
A. Mas essa afirmação contraria a minha experiência.
R. De acordo com a tua teoria, isso seria um fundamento para levantar objeções se tu afirmasses “há verdades e falsidades objetivas”. Mas por que razão considerarias isso um fundamento para levantar objeções quando eu faço essa afirmação? A menos que penses que estou a mentir quando te asseguro que quando tenho em consideração os argumentos filosóficos contra AR tenho a experiência de os achar convincentes. Seja o que for que se possa dizer contra o Realismo, torna pelo menos o desacordo inteligível: segundo o Realismo, quando duas pessoas discordam quanto a uma afirmação, uma delas afirma que tem a “boa” característica verdade objetiva e a outra diz que não tem. Mas, do teu ponto de vista, quando dizes “Não há verdades e falsidades objetivas” e eu digo “Há verdades e falsidades objetivas”, cada uma destas afirmações tem apenas a “boa” característica cuja existência admites: cada uma delas adéqua-se com a experiência da pessoa que a fez. Ou será que querias realmente dizer que só há uma “boa” característica que possa pertencer a qualquer afirmação, independentemente de quem a fizer — nomeadamente, adequar-se à tua experiência? Se é isso que queres dizer, receio que a tua teoria não terá muitos partidários além do partidário que já tem.
A observação da Raquel parece-me excelente. Se o André não tem qualquer “substituto” para a verdade, a não ser “adéqua-se à minha própria experiência pessoal”, então (admitindo que o André não está realmente a propor que toda a gente use “adéqua-se à experiência do André” como substituto da verdade) está a propor uma teoria de acordo com a qual o filósofo que afirma “Há verdades e falsidades objetivas” e o filósofo que diz “Não há verdades e falsidades objetivas” não discordam entre si. E isto é uma consequência absurda. Logo, a rota que estivemos a explorar, a rota aberta pela sugestão de que cada pessoa individual tem um substituto “privado” da verdade, revelou-se um beco sem saída. Suponhamos, consequentemente, que o anti-Realista tem de postular um único substituto da verdade, que seja o mesmo para toda a gente.
Nesse caso, contudo, parece que o anti-Realismo é autorrefutante: o anti-Realismo parece dizer-nos para não aceitar AR — isto é, para não aceitar o anti-Realismo. Os anti-Realistas, para argumentar persuasivamente a favor do anti-Realismo, têm de propor um substituto para a verdade objetiva; têm de especificar a característica que “boas” afirmações como “Os leões são carnívoros” têm e que as “más” afirmações, como “Os caracóis são mamíferos aquáticos” não têm. Mas é óbvio que não conseguiram descobrir um substituto da verdade que satisfaça as seguintes duas condições: a) todas as afirmações incontroversamente “boas” têm tal coisa e nenhuma afirmação incontroversamente “má” a tem, e b) o anti-Realismo tem-na.
Na nossa discussão, consideramos um desses substitutos para a verdade: adequar-se às nossas experiências e ter uma negação que vai contra as nossas experiências. Os anti-Realistas têm oferecido outros substitutos para a verdade, mas estou convencido que a minha crítica geral se mantém: parece sempre que o próprio anti-Realismo carece do substituto da verdade que o anti-Realista propõe. (Um anti-Realista famoso — ou com má fama — propôs o seguinte substituto: uma afirmação é “boa” se nos safarmos ao afirmá-la perante os nossos colegas. A sua proposta foi recebida pelos seus colegas com expressões de ultraje ou hilaridade, consoante os temperamentos, o que parece um exemplo muito claro de não deixar alguém safar-se com algo.) Os Realistas não enfrentam este problema. A sua posição é simplesmente que o Realismo é objetivamente verdadeiro e que o anti-Realismo é objetivamente falso. Sejam quais forem os outros problemas que o Realismo possa enfrentar, não diz de si mesmo que não deve ser aceito.
O nosso argumento contra o anti-Realismo é análogo em alguns aspectos ao argumento apresentado no Capítulo 1 a favor da conclusão de que há uma realidade última, uma realidade que está para lá de todas as aparências. Isto não é uma coincidência, pois uma consequência do anti-Realismo é que a distinção entre aparência e realidade só pode aplicar-se em certos contextos limitados e que, consequentemente, a noção de realidade última — uma realidade cujo estatuto como realidade seja independente do contexto — é incoerente. Se existisse tal realidade independente do contexto, existiria a verdade objetiva: seriam objetivamente verdadeiras aquelas afirmações que corretamente descrevessem a realidade última, a realidade independente do contexto. Logo, é enganador pensar que o anti-Realismo é uma metafísica, no sentido em que o idealismo ou o realismo com “r” minúsculo é uma metafísica. O anti-Realismo é, antes, uma negação da possibilidade da metafísica, dado que a tarefa da metafísica é, em si, a tentativa de descobrir a natureza da realidade última. E o Realismo é uma metafísica apenas no sentido de que é uma tese comum a todas as teorias metafísicas.
Proponho que, dado os muito plausíveis argumentos “geológicos” a favor do Realismo, e dada a natureza aparentemente autorrefutante do anti-Realismo, devemos ser realistas.
Antes de deixar o tema do Realismo e do anti-Realismo, contudo, gostaria de chamar a atenção do leitor para o maior de todos os ataques ao anti-Realismo, o romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell. Qualquer pessoa interessada no Realismo e no anti-Realismo deve mergulhar na mensagem do livro. Chamo em especial a atenção do leitor para o clímax do romance, o debate entre o Realista Winston Smith e o anti-Realista O’Brien. No fim, há apenas uma pergunta que podemos fazer ao anti-Realista. Qual é a diferença entre a tua posição e a do O’Brien?
Sugestões de leitura complementar
É muito difícil encontrar algo sobre o rebate Realismo/anti-Realismo que seja recomendável para o estudante que dá os primeiros passos na metafísica. Quase tudo o que tem sido escrito sobre este tema é ou proibitivamente técnico ou então proibitivamente obscuro (ou ambas as coisas). Duas exceções felizes são os livros The Construction of Social Reality, de John Searle, e A Última Palavra, de Thomas Nagel. Com algumas reservas, recomendo mais quatro obras. A primeira é algo técnica. As outras três, apesar de conterem muitas seções suficientemente claras, são pouquíssimo claras quanto ao que os autores acreditam de fato. O artigo “Yes, Virginia, There is a Real World”, de Alston, é uma defesa do Realismo. Razão, Verdade e História, de Putnam (em particular os três primeiros capítulos) e The Many Faces of Realism (em particular as Lectures I e II) representam o ponto de vista anti-Realista, tal como Filosofia e o Espelho da Natureza, de Rorty.