Princípios da Filosofia do Futuro

Ludwig Feuerbach

Apresentação

O núcleo essencial deste escrito de L. Feuerbach transparece, de forma sintética e acutilante, no princípio 51, sob a proposta de um novo imperativo categórico:

“Sê apenas um homem que pensa; não penses como pensador, isto é, numa faculdade arrancada à totalidade do ser humano real e para si isolada; pensa como ser vivo e real, exposto às vagas vivificantes e refrescantes do oceano do mundo; pensa na existência, no mundo como membro do mundo, e não no vazio da abstração como uma mônada isolada, como monarca absoluto, como um deus indiferente e exterior ao mundo — podes, depois, estar certo de que os teus pensamentos são unidades de ser e de pensar.”

Este parágrafo insinua os motivos teóricos ou os filosofemas em virtude dos quais Feuerbach ganhou o seu lugar na história do pensamento: a dissolução da teologia em antropologia, portanto o esboço de um ateísmo teórico e consequente, o enlace do homem com a natureza, o consórcio entre razão e sensibilidade, o significado do corpo, a implicação do eu e dos outros no conhecimento, a convicção de que a realidade exige uma nova filosofia que não pense o concreto de forma abstrata, mas o abstrato de modo concreto.

Os princípios da filosofia do futuro surgiram em 1843, logo após A essência do cristianismo (1841); distribuídos em 65 lemas, expostos com maior ou menor extensão, centram-se na denúncia do a priori teológico de quase toda a antiga filosofia, na crítica dos pressupostos do pensamento europeu desde Descartes e, acima de tudo, na dissecação do idealismo especulativo de Hegel.

O verbo incisivo de Feuerbach, curto, assertório, assaz monótono do ponto de vista literário, não se cansa, por isso, de fustigar o solipsismo gnoseológico e a “razão separada” dos modernos — é este, efetivamente, um tema interessante e, por vezes, nem sempre tão realçado como merece. Ao longo do seu caminho de análise e de acusação, vão ainda surgindo outros temas: a relação entre conhecimento e conversação na apreensão do ser, o valor da comunidade como critério da verdade e da universalidade, a captação do mundo e do objeto através da mediação do tu, a presença do não-eu (do outro) em mim, e assim por diante.

O seu ateísmo foi, e continua a ser, para muitos inspirador; persiste, no entanto, preso ao mesmo a priori da teologia, que foi objeto da sua denúncia. Feuerbach surge, assim, não só como um profundo hermeneuta da filosofia ocidental e do seu segredo ‘teológico’, mas também como um arauto inflamado, tonitruante e excepcional do processo teomórfico da modernidade que, claro nas suas motivações, confuso nos seus pretextos, se tem revelado imprevisível, ambivalente e trágico em muitas das suas consequências.

Artur Morão

Princípios da Filosofia do Futuro

(1843)

Ludwig Feuerbach

1

A tarefa dos tempos modernos foi a realização e a humanização de Deus — a transformação e a resolução da teologia na antropologia.

2

O modo religioso ou prático desta humanização foi o Protestantismo. O Deus que é o homem, portanto o Deus humano, isto é, Cristo — é apenas o Deus do Protestantismo. O Protestantismo já não se preocupa, como o Catolicismo, com o que Deus é em si mesmo, mas apenas com o que Ele é para o homem; por isso, já não tem como aquele nenhuma tendência especulativa ou contemplativa; já não é teologia — é essencialmente só cristologia, isto é, antropologia religiosa.

3

O Protestantismo, no entanto, negava o Deus em si ou Deus como Deus — pois só o Deus em si é verdadeiramente Deus — de um modo puramente prático; no plano teórico, deixava-o subsistir. Ele é; mas não é só para o homem, isto é, para o homem religioso — que Deus é um ser ultramundano, um ser que só algum dia se tornará objeto para o homem no céu. Mas o além da religião é o lado de cá da filosofia; a inexistência de objeto para a primeira constitui justamente o objeto da segunda.

4

A elaboração, a resolução racional ou teorética do Deus que para a religião é transcendente e inobjetivo é a filosofia especulativa.

5

A essência da filosofia especulativa nada mais é do que a essência de Deus racionalizada, realizada e atualizada. A filosofia especulativa é a teologia verdadeira, consequente, racional.

6

Deus enquanto Deus — como ser espiritual ou abstrato, isto é, não humano, não sensível, acessível e objetivo só para a razão ou para a inteligência, nada mais é do que a essência da própria razão; mas esta é representada pela teologia comum ou pelo teísmo mediante a imaginação como um ser autônomo, diferente, distinto da razão. É pois uma necessidade interna, sagrada, que com a razão se identifique finalmente a essência da razão distinta da razão; portanto, que se reconheça, realize e atualize o ser divino como a essência da razão. Nesta necessidade se funda o grande significado histórico da filosofia especulativa.

A prova de que o ser divino é a essência da razão ou da inteligência reside em que as determinações ou propriedades de Deus — tanto quanto naturalmente estas são racionais ou espirituais — não são determinações da sensibilidade ou da imaginação, mas propriedades da razão.

Deus é o ser infinito, o ser sem quaisquer limitações.” Mas se Deus não tem fronteiras ou limites, também a razão não tem quaisquer fronteiras. Se, por exemplo, Deus é um ser que se eleva acima das fronteiras da sensibilidade, também a razão igualmente o é. Quem não pode pensar nenhuma outra existência a não ser a sensível, quem, pois, possui uma razão limitada pela sensibilidade, possui por isso mesmo também um Deus limitado pela sensibilidade. A razão que pensa Deus como um ser ilimitado pensa em Deus apenas a sua própria ilimitação. O que para a razão é o ser divino é também para ela o ser verdadeiramente racional — isto é, a essência que corresponde perfeitamente à razão e, por isso mesmo, a satisfaz. Mas aquilo em que um ser se satisfaz nada mais é do que a sua essência objetiva. Quem se compraz num poeta é ele próprio uma natureza poética; e quem acha complacência num filósofo é ele próprio uma natureza filosófica e só esta satisfação torna objetiva a sua natureza para ele e para o outro. Mas a razão “não se detém nas coisas sensíveis, finitas; só se satisfaz no ser infinito” — por conseguinte, só neste ser é que se descortina a essência da razão.

Deus é o ser necessário.” Mas esta sua necessidade funda-se no fato de que ele é um ser racional e inteligente. O mundo, a matéria, não tem em si o fundamento de por que é que existe e é assim como é; é-lhe de todo indiferente ser ou não ser, ser assim ou de outro modo. [1]

Pressupõe, pois, necessariamente como causa um outro ser e, claro está, um ser inteligente, autoconsciente e que age segundo razões e fins. Pois se a este outro ser se negar a inteligência surge de novo a questão pelo seu fundamento. A necessidade do Ser primeiro e supremo funda-se, portanto, no pressuposto de que só o intelecto é o ser supremo e primeiro, o ser necessário e verdadeiro. Assim como em geral as determinações metafísicas ou ontoteológicas só têm verdade e realidade quando se reconduzem às determinações psicológicas ou, antes, antropológicas, assim também a necessidade do Ser divino na antiga metafísica ou ontoteologia só tem sentido e intelecto, verdade e realidade, na determinação psicológica ou antropológica de Deus como ser inteligente. O Ser necessário é o ser que necessariamente se deve pensar e absolutamente afirmar, o ser que de nenhum modo se pode negar ou eliminar; mas apenas como um ser que a si mesmo se pensa. Por conseguinte, no ser necessário, a razão prova e ostenta apenas a sua própria necessidade e realidade.

Deus é o ser incondicionado, universal — Deus não é isto e aquilo — imutável, eterno ou intemporal.” Mas a incondicionalidade, a imutabilidade, a eternidade e a universalidade são também, segundo o próprio juízo da teologia metafísica, propriedades das verdades ou leis racionais, portanto propriedades da própria razão; que são, pois, as verdades racionais, imutáveis, universais, incondicionais, sempre e em toda a parte válidas, a não ser expressões da essência da razão?

“Deus é o ser independente, autônomo, que não precisa de nenhum outro ser para a sua existência e, por conseguinte, existe a partir de si e por si mesmo.” Mas também esta determinação metafísica abstrata só tem sentido e realidade como uma definição da essência do entendimento e enuncia apenas que Deus é um ser pensante e inteligente ou, inversamente, só o ser pensante é divino. Com efeito, só um ser sensível precisa de outras coisas fora dele para a sua existência. Eu preciso de ar para respirar, de água para beber, de luz para ver, de substâncias vegetais e animais para comer; mas de nada preciso, pelo menos imediatamente, para pensar. É-me impossível pensar um ser que respira sem ar, um ser que vê sem luz, mas posso pensar isoladamente para si o ser pensante. O ser que respira refere-se necessariamente a um ser a ele exterior; tem o seu ser essencial, graças ao qual é o que é, fora de si; mas o ser pensante refere-se a si mesmo, é o seu próprio objeto, tem a sua essência em si mesmo, é o que é, graças a si próprio.

7

O que no teísmo é objeto é, na filosofia especulativa, sujeito; o que além é essência unicamente pensada e representada da razão é, aqui, a essência pensante da própria razão.

O teísta representa para si Deus como um ser pessoal existindo fora da razão, fora do homem em geral — pensa como sujeito acerca de Deus enquanto objeto. Pensa Deus como um ser que, segundo a sua representação, é um ser espiritual, não sensível, mas que, segundo a existência, isto é, segundo a verdade, é um ser sensível; pois, a característica essencial de uma existência objetiva, de uma existência fora do pensamento ou da representação, é a sensibilidade. Diferencia de si Deus no mesmo sentido em que distingue as coisas e os seres sensíveis como existindo fora dele; em suma, pensa Deus do ponto de vista da sensibilidade. O teólogo ou filósofo especulativo, pelo contrário, pensa Deus do ponto de vista do pensamento; por isso, não interpõe entre si e Deus a representação incômoda de um ser sensível; identifica assim, sem mais, o ser objetivo e pensado com o ser subjetivo e pensante.

A necessidade interna de que Deus, de um objeto do homem, se transforme em sujeito, em eu pensante do homem, deriva do que já se disse mais ou menos nestes termos: Deus é objeto do homem e só do homem, não do animal. Mas o que um ser é só se conhece a partir do seu objeto; o objeto a que necessariamente se refere um ser nada mais é do que a sua essência revelada. Assim, o objeto dos animais vegetarianos é a planta; é por este objeto que eles se distinguem essencialmente dos outros animais, os carnívoros. O objeto do olho é a luz, não o som, nem o odor. É porém no objeto do olho que se torna manifesta a sua essência. É, pois, a mesma coisa não ver ou não ter olhos. Por conseguinte, também na vida designamos as coisas e os seres apenas segundo os seus objetos. O olho é o “órgão da luz”. O que trabalha a terra é um camponês; quem tem a caça por objeto da sua atividade é um caçador; quem apanha peixes é um pescador, e assim por diante. Se, pois, Deus tal como é, necessária e essencialmente — é um objeto do homem, então na essência desse objeto exprime-se apenas a própria essência do homem. Imagina tu que, diante dos olhos de um ser pensante que vive noutro planeta ou cometa, se põem alguns parágrafos de uma dogmática cristã, que tratam do ser de Deus. Que concluiria um tal ser a partir desses parágrafos? Porventura a existência de um Deus, no sentido de dogmática cristã? Não! Concluiria apenas que existem seres pensantes na terra; descobriria nas definições que os habitantes da terra dão do seu Deus apenas definições da sua própria essência. Por exemplo, na definição — Deus é um espírito — apenas a prova e a expressão do seu próprio espírito; em suma, concluiria da essência e das propriedades do objeto para a essência e as propriedades do sujeito, e com plena razão; pois a distinção entre o que o objeto é em si mesmo e o que ele é para o homem não se enquadra nesse objeto. Essa distinção só é legítima no caso de um objeto que é dado de modo imediatamente sensível e, por isso mesmo, é também dado a outros seres exteriores ao homem. A luz não está aí só para o homem, afeta também os animais e igualmente as plantas e ainda as matérias inorgânicas: é um ser universal. Para experimentar o que é a luz, consideramos, pois, não apenas as impressões e os efeitos da mesma em nós, mas também noutros seres diferentes de nós. Por isso, aqui está necessária e objetivamente fundada a distinção entre o objeto em si mesmo e o objeto para nós, a saber, entre o objeto na realidade e o objeto no nosso pensamento e representação. Mas Deus é apenas um objeto do homem. Os animais e as estrelas glorificam Deus só na interpretação do homem. É, pois, inerente à essência do próprio Deus não ser objeto para qualquer outro ser fora do homem, ser um objeto especificamente humano, um segredo do homem. Mas, se Deus é tão-só um objeto do homem, que é que se nos revela na essência de Deus? Nada mais do que a essência do homem. Aquele para quem o Ser supremo é objeto é ele próprio o ser supremo. Quanto mais para os animais o homem for objeto, tanto mais eles se elevam, tanto mais se aproximam do homem. Um animal para o qual o objeto fosse o homem enquanto homem, o ser humano autêntico, já não seria nenhum animal, mas o próprio homem. Só seres de igual valor são objeto uns para os outros e, decerto, tais como são em si. A consciência do teísmo apreende também certamente a identidade do Ser divino e do ser humano; mas, porque ele, situando embora a essência de Deus no espírito, o representa ao mesmo tempo como um ser sensível e que existe fora do homem, também esta identidade é para ele objeto só como identidade sensível, como semelhança ou parentesco. Parentesco exprime o mesmo que identidade; mas a ele está simultaneamente associada a representação sensível de que os seres aparentados são dois seres independentes, isto é, sensíveis e exteriores um ao outro na sua existência.

8

A teologia ordinária faz do ponto de vista do homem o ponto de vista de Deus; pelo contrário, a teologia especulativa faz do ponto de vista de Deus o ponto de vista do homem, ou antes, do pensador.

Deus, para a teologia comum, é objeto e, sem dúvida, como qualquer outro objeto sensível; mas, ao mesmo tempo, é para ela sujeito e, sem dúvida, sujeito exatamente como o sujeito humano; Deus produz coisas fora de si, tem relações consigo mesmo e com os outros seres fora dele existentes. Ama e pensa-se a si mesmo e, simultaneamente, também os outros seres; em suma, o homem faz dos seus pensamentos e até dos seus afetos pensamentos e afetos de Deus; faz da sua essência e do seu ponto de vista a essência e o ponto de vista de Deus. Mas a teologia especulativa vira tudo ao contrário. Por isso, na teologia ordinária, Deus é uma contradição consigo mesmo; deve ser um ser não humano, um ser supra-humano; mas, efetivamente, é um ser humano segundo todas as suas determinações. Na teologia ou filosofia especulativas, pelo contrário, Deus é uma contradição com o homem: deve ser a essência do homem — pelo menos, da razão — e no entanto é, na verdade, um ser não humano, um ser supra-humano, ou seja, abstrato. Na teologia ordinária, o Deus supra-humano é somente uma flor de retórica edificante, uma representação, um brinquedo da fantasia; na filosofia especulativa, pelo contrário, é verdade e coisa terrivelmente séria. A contradição violenta com que a filosofia especulativa deparou deve-se apenas ao fato de ela ter feito do Deus que no teísmo é apenas um ser da fantasia, um ser longínquo, indeterminado e nebuloso, um ser presente e determinado, e ter assim destruído o encantamento ilusório que um ser longínquo possui na bruma azulada da representação. Os teístas irritaram-se, porque a lógica, segundo Hegel, é a representação de Deus na sua essência eterna, pré-mundana, e porque trata, por exemplo na doutrina da quantidade, da grandeza extensiva e intensiva das frações, das potências, das relações de medida etc. Como, clamaram eles horrorizados, é que este Deus pode ser o nosso Deus? E, contudo, o que é Ele senão apenas o Deus do teísmo tirado da névoa da representação indeterminada para a luz do pensamento determinante, o Deus do teísmo tomado, por assim dizer, à letra, que tudo criou e ordenou com medida, número e peso? Se Deus tudo ordenou e criou com número e medida, então a medida e o número, antes de se realizarem nas coisas extradivinas, já estavam contidas e ainda hoje o estão no entendimento e, por conseguinte, na essência de Deus — entre o entendimento de Deus e a sua essência não há, pois, diferença alguma — não pertencerá também a matemática aos mistérios da teologia? Sem dúvida, a aparência de um ser na imaginação e na representação é inteiramente diferente da que tem na verdade e na realidade; não admira que os que se determinam apenas pelo exterior, pela aparência, tomem o único e mesmo ser como dois seres inteiramente diferentes.

9

As propriedades ou predicados essenciais do Ser divino são as propriedades ou predicados essenciais da filosofia especulativa.

10

Deus é espírito puro, ser puro, pura atividade — actus purus — sem paixões, sem determinações a partir de fora, sem sensibilidade, sem matéria. A filosofia especulativa é este espírito puro, esta pura atividade, realizada como ato de pensar — o Ser absoluto como pensamento absoluto.

Assim como outrora a abstração de todo o sensível e material foi a condição necessária da teologia, assim ela foi também a condição necessária da filosofia especulativa; só com a diferença de que a abstração da teologia, por ter apresentado o seu objeto, embora obtido por abstração, sob a forma de um ser sensível, era uma abstração por assim dizer sensível, ao passo que a abstração da filosofia especulativa é uma abstração espiritual e pensada, e só tem um significado científico ou teorético, não prático. O começo da filosofia cartesiana, a abstração da sensibilidade e da matéria é o começo da filosofia especulativa moderna. Mas Descartes e Leibniz consideravam esta abstração apenas como uma condição subjetiva para conhecer o Ser divino imaterial; representavam para si a imaterialidade de Deus como uma propriedade objetiva, independente da abstração e do pensamento; permaneciam ainda no ponto de vista do teísmo, faziam do ser imaterial apenas objeto e não sujeito, não o princípio ativo, nem a essência real da própria filosofia. Sem dúvida, também em Descartes e em Leibniz é Deus o princípio da filosofia; mas só enquanto objeto distinto do pensamento — por isso, só o princípio em geral, apenas na representação, não na realidade e na verdade. Deus é unicamente a causa primeira e universal da matéria, do movimento e da atividade; mas os movimentos e as atividades particulares, as coisas materiais determinadas e reais consideram-se e conhecem-se independentemente de Deus. Leibniz e Descartes são idealistas só no universal, mas na ordem do particular são materialistas. Só Deus é o idealista consequente, integral e verdadeiro, pois só ele representa para si todas as coisas sem obscuridade, isto é, no sentido da filosofia leibniziana, sem o auxílio dos sentidos e da imaginação. Ele é entendimento puro, ou seja, separado de toda a sensibilidade e materialidade; por conseguinte, para ele, as coisas materiais são puros seres inteligíveis, puros pensamentos; para ele não existe, em geral, matéria alguma, pois esta baseia-se apenas em representações obscuras, isto é, sensíveis. No entanto, em Leibniz, o homem também já tem em si uma boa porção de idealismo — como seria possível representar para si um ser imaterial sem uma faculdade imaterial e, por conseguinte, sem ter representações imateriais? — porque, além dos sentidos e da imaginação, ele possuí entendimento e o entendimento é justamente um ser imaterial, puro, porque pensante; só que o entendimento do homem não é perfeitamente puro, não é puro quanto à imensidade e infinidade como o entendimento ou o Ser divino. O homem, respectivamente este homem, Leibniz, é pois um idealista parcial, mitigado, e só Deus é um idealista integral, só Deus o “sábio perfeito”, como expressamente Wolf o chamou; isto é, Deus é a ideia do idealismo acabado e levado até ao fim do seu princípio específico, a ideia do idealismo absoluto da futura filosofia especulativa. Com efeito, que é o entendimento, que é a essência de Deus em geral? Nada mais do que o entendimento e a essência do homem separado das determinações que, sejam elas reais ou imaginárias, constituem, num momento dado, os limites do homem. Quem não tem o entendimento cortado dos sentidos e não considera os sentidos como limitações também não representa para si como o entendimento mais elevado e verdadeiro o entendimento privado dos sentidos. Mas que é a ideia de uma coisa a não ser a sua essência purificada das limitações e obscuridades em que incorre na realidade efetiva, onde se encontra em relação com as outras coisas? Assim, segundo Leibniz, o limite do entendimento humano reside em ele estar afeto ao materialismo, isto é, a representações obscuras; por seu turno, as representações obscuras surgem apenas em virtude de o ser humano se encontrar em relação com os outros seres, com o mundo em geral. Mas semelhante conexão não pertence à essência do entendimento; está, antes, em contradição com o mesmo, pois em si mesmo, na ideia, ele é um ser imaterial, ou seja, existe para si mesmo, é um ser isolado. E esta ideia, portanto este entendimento purificado de todas as representações materialistas, é justamente o entendimento divino. Mas o que em Leibniz era apenas ideia tornou-se verdade e realidade efetiva na filosofia ulterior. O idealismo absoluto nada mais é do que o entendimento divino realizado do teísmo leibniziano, o entendimento puro, sistematicamente levado a efeito, que despoja todas as coisas da sua sensibilidade, as transforma em puros seres inteligíveis, em coisas imaginárias, que não se contamina com algo de estranho e apenas se ocupa de si mesmo enquanto ser dos seres.

11

Deus é um ser pensante; mas os objetos que ele pensa e em si concebe não são, tal como o seu entendimento, distintos do seu ser; por isso, ao pensar as coisas, apenas a si mesmo se pensa, permanece, pois, em unidade ininterrupta consigo mesmo. Mas esta unidade do pensante e do pensado é o segredo do pensamento especulativo.

Assim, por exemplo, na lógica hegeliana, os objetos do pensar não são diferentes da essência do pensar. O pensar está aqui numa unidade ininterrupta consigo mesmo. Os seus objetos são apenas determinações do pensar, mergulham puramente no pensamento, nada têm para si que permaneça fora do pensar. Mas o que se passa com a essência da lógica verifica-se também com a essência de Deus. Deus é um ser espiritual e abstrato; mas é ao mesmo tempo o ser dos seres, que engloba em si todos os seres e, claro, na unidade com esta sua essência abstrata. Mas o que são os seres idênticos a um ser abstrato e espiritual? Em si mesmos, apenas seres abstratos — pensamentos. As coisas tal como são em Deus não são como são fora de Deus; pelo contrário, são tão diversas das coisas reais como as coisas, enquanto objeto da lógica, se distinguem das coisas enquanto objeto da intuição real. A que se reduz, pois, a diferença entre o pensar divino e o pensar metafísico? Apenas a uma diferença de imaginação, à diferença entre o pensar apenas representado e o pensar real.

12

A diferença que existe entre o saber ou o pensar de Deus que, como arquétipo, precede as coisas e as cria e o saber do homem que, como cópia, se segue às coisas, nada mais é do que a diferença entre saber a priori ou especulativo e o saber a posteriori ou empírico.

O teísmo, embora conceba Deus como pensante ou espiritual, representa-o para si ao mesmo tempo como um ser sensível. Por conseguinte, ao pensar e à vontade de Deus associa imediatamente efeitos sensíveis, materiais — efeitos que estão em contradição com a essência do pensamento e da vontade, que nada mais exprimem do que o poder da natureza. Um tal efeito material — por conseguinte, uma simples expressão do poder sensível — é, acima de tudo, a criação ou a produção de um mundo real, material. A teologia especulativa, pelo contrário, transforma este ato sensível, que contradiz a essência do pensamento, num ato lógico ou teórico, transmuta a produção material do objeto em criação especulativa a partir do conceito. No teísmo, o mundo é um produto temporal de Deus — o mundo existe desde há alguns milhares de anos e, antes de ele ser gerado, Deus existia; pelo contrário, na teologia especulativa, o mundo ou a natureza existe depois de Deus, só segundo a ordem, segundo a importância: o acidente pressupõe a substância, a natureza pressupõe a lógica; segundo o conceito, mas não segundo a existência sensível, portanto não segundo o tempo.

No entanto, o teísmo transfere para Deus não só o saber especulativo, mas também o saber sensível e empírico e, claro está, na sua mais elevada realização. Mas assim como o saber pré-mundano, pré-objetal de Deus encontrou a sua realização, a sua verdade e realidade no saber a priori da filosofia especulativa, assim também o saber sensível de Deus encontrou a sua realização, a sua verdade e a sua realidade nas ciências empíricas da época moderna. O saber sensível mais perfeito, e portanto divino, nada mais é do que o saber plenamente sensível, o saber dos mais ínfimos pormenores e das particularidades menos perceptíveis — “Deus é Onisciente”, diz S. Tomás de Aquino, “porque conhece as mínimas coisas” — o saber que não abarca indistintamente, num tufo, os cabelos da cabeça de um homem, mas os conta e os conhece a todos um a um. Mas este saber divino que, na teologia, é apenas uma representação, uma fantasia, tornou-se um saber racional efetivo, um saber telescópico e microscópico da ciência natural. A ciência contou as estrelas do céu, os ovos nos corpos dos peixes e das borboletas, os pontos nas asas dos insetos para os distinguir uns dos outros; só na lagarta do bicho-da-seda dos salgueiros ela demonstrou anatomicamente a existência de 288 músculos na cabeça, de 1647 músculos no corpo, 2186 músculos no estômago e nos intestinos. Que mais se pretende ainda? Temos, pois, aqui um exemplo concreto da verdade de que a representação humana de Deus é a representação que um indivíduo humano para si faz do seu gênero, de que Deus, enquanto totalidade de todas as realidades ou perfeições, nada mais é do que a totalidade sinoticamente compendiada para uso do indivíduo limitado, das propriedades do gênero repartidas entre os homens e que se realizam no decurso da história mundial. O domínio das ciências naturais é, segundo o seu âmbito quantitativo, de todo inabarcável para um homem isolado. Quem pode ao mesmo tempo contar as estrelas do céu e os músculos e nervos do corpo da lagarta? Lyonet perdeu a vista à força de estudar a anatomia da lagarta do salgueiro. Quem pode ao mesmo tempo observar as diferenças que existem entre os cumes e os abismos da Lua e as diferenças que existem entre as inúmeras amonitas e terebrátulas? Mas o que o homem isolado não sabe nem pode sabem-no e conseguem-no os homens em conjunto. Assim, o saber divino que conhece ao mesmo tempo todas as singularidades tem a sua realidade no saber da espécie.

O que se passa com a onisciência divina passa-se também com a onipresença divina, que também se realizou no homem. Enquanto um determinado homem observa o que ocorre na Lua ou em Urano, outro observa Vênus ou as vísceras da lagarta, ou qualquer outro lugar onde, até então, sob o domínio do Deus onisciente e onipresente nenhum olhar humano penetrara. Sim, enquanto o homem observa esta estrela do ponto de vista da Europa, observa simultaneamente a mesma estrela do ponto de vista da América. O que é absolutamente impossível a um homem só, é possível a dois. Mas Deus está ao mesmo tempo em todos, em todos os lugares, onisciência ou onipresença só existe na representação, na imaginação e, por conseguinte, não se deve passar por alto a importante distinção já várias vezes mencionada entre a coisa apenas imaginada e a coisa real. Na imaginação podem, sem dúvida, abarcar-se com um só olhar os 4059 músculos de uma lagarta, mas na realidade em que eles existem numa exterioridade recíproca só podem ver-se um após o outro. Assim também um indivíduo limitado pode representar para si, na sua imaginação, o âmbito do saber humano como limitado; mas se quisesse realmente apropriar-se desse saber, jamais chegaria alguma vez ao seu termo. Tomemos como exemplo uma só ciência, a História, e decomponhamos pelo pensamento a história mundial na história dos países particulares, esta na história de cada província e, por seu turno, esta nas crônicas das cidades e as crônicas das cidades nas histórias das famílias, nas biografias. Como é que alguma vez um homem singular chegaria ao ponto em que pudesse clamar: eis-me aqui no termo do saber histórico da humanidade! Assim também o tempo da nossa vida, tanto o passado como o futuro possível, por mais que conseguíssemos prolongá-lo, nos aparece, à luz da imaginação, extraordinariamente curto e é por isso que, nos momentos de tal imaginação, nos sentimos forçados a completar esta brevidade evanescente aos olhos da nossa imaginação por uma vida imensa e sem fim após a morte. Mas como pode ser longo, na realidade, um só dia e até uma só hora! Donde provém esta diferença? Nasce do fato de o tempo da representação ser o tempo vazio, portanto, nada entre o ponto inicial e o ponto final do nosso cálculo; mas o tempo da vida real é o tempo cheio, onde montanhas de dificuldades de toda a espécie separam o agora do instante seguinte.

13

A absoluta ausência de pressupostos — o início da filosofia especulativa — nada mais é do que a ausência de pressupostos e de começo, a asseidade do ser divino. A teologia distingue em Deus propriedades ativas e propriedades passivas, mas a filosofia transforma também as propriedades passivas em ativas — transforma todo o ser de Deus em atividade, mas em atividade humana. Isto vale igualmente para o predicado deste parágrafo. A filosofia nada pressupõe — isto quer simplesmente dizer: abstrai de todos os objetos imediatos, isto é, fornecidos pelos sentidos, distintos do pensamento, em suma, de tudo aquilo de que se pode abstrair sem cessar de pensar e faz deste ato de abstração de toda a objetalidade o seu próprio começo. Mas que outra coisa é, então, o Ser absoluto senão o ser a que nada se pressupõe, a que nenhuma coisa é dada e necessária fora dele, o ser abstraído de todos os objetos, de todas as coisas sensíveis dele distintas e inseparáveis, portanto o ser que o homem pode tomar como objeto só mediante a abstração destas mesmas coisas? Se queres chegar a Deus deves libertar-te a ti mesmo de tudo aquilo de que Deus é livre e, por isso, só te libertas realmente quando para ti o representas. Se, pois, pensas em Deus como num ser sem a pressuposição de qualquer outro ser ou objeto, então pensas em ti mesmo sem a pressuposição de um objeto exterior; a propriedade que transferes para Deus é uma propriedade do teu pensamento. Só que, no homem, é agir o que em Deus é ser ou o que, como tal, é representado. Por conseguinte, que é o Eu de Fichte que diz — “sou simplesmente porque sou” —, que é o pensamento puro e sem pressupostos de Hegel senão o ser divino da antiga teologia e metafísica, transformado em essência atual, ativa e pensante do homem?

14

Como realização de Deus, a filosofia especulativa é simultaneamente a posição e a supressão ou negação de Deus; simultaneamente teísmo e ateísmo: pois Deus só é Deus — Deus no sentido da teologia — enquanto é representado como um ser autônomo distinto do ser do homem e da natureza. O teísmo que, enquanto posição de Deus, é ao mesmo tempo a negação de Deus ou, inversamente, enquanto negação de Deus é simultaneamente a sua afirmação, é o panteísmo. O teísmo genuíno ou teológico, porém, nada mais é do que o panteísmo imaginário, e este nada mais é do que o teísmo verdadeiro e real.

O que separa o teísmo do panteísmo é apenas a imaginação, a representação de Deus como ser pessoal. Todas as determinações de Deus — e Deus é necessariamente determinado, de outro modo é nada, e não será objeto de uma representação — são determinações da realidade, ou da natureza, ou do homem, ou dos dois conjuntamente. Por isso, determinações panteístas; pois, tudo o que não distingue Deus da natureza ou do homem é panteísmo. Portanto, só segundo a sua personalidade ou existência, mas não segundo as suas determinações, ou segundo o seu ser, é que Deus é distinto do mundo, da totalidade da natureza e da humanidade: ou seja, só é um ser diferente, enquanto representado, mas na verdade não é nenhum outro ser. O teísmo é a contradição entre a aparência e a essência, a representação e a verdade; o panteísmo é a unidade de ambos — o panteísmo é a verdade nua do teísmo. Quando se olham de frente e se tomam a sério, quando se levam até ao fim e se realizam, todas as representações do teísmo conduzem necessariamente ao panteísmo. O panteísmo é o teísmo consequente. O teísmo pensa para si Deus como a causa, mas como uma causa viva, pessoal, como o criador do mundo: Deus produziu o mundo pela sua vontade. Mas a vontade não basta. Onde existe a vontade deve também existir o entendimento: aquilo que se quer é apenas mister do entendimento. Sem entendimento, não há objeto algum. As coisas que Deus criou estavam portanto em Deus antes da sua criação, como objetos do seu entendimento, como seres inteligíveis. O entendimento de Deus é, segundo a teologia, o cúmulo de todas as coisas e essencialidades. De outro modo, donde têm surgido a não ser do nada? E é indiferente se representas autonomamente para ti este nada na tua imaginação ou se o transferes para Deus. Mas Deus contém ou é tudo só no modo ideal, no modo da representação. Este panteísmo ideal leva, porém, necessariamente ao panteísmo real ou efetivo; não é, de fato, longa a distância do entendimento de Deus à sua essência, não é longa a distância entre a sua essência e a realidade de Deus. Como haveria de separar-se em Deus o entendimento da essência e a essência da realidade ou da existência? Se as coisas estão no entendimento de Deus, como haveriam elas de ser exteriores à sua essência? E se são consequências do seu entendimento, por que não hão de ser consequências da sua essência? E se, em Deus, a sua essência é imediatamente idêntica à sua realidade efetiva, se a existência de Deus não se pode separar do conceito de Deus, como haveria então de separar-se o conceito da coisa e a coisa real no conceito que Deus tem das coisas, por conseguinte, como admitir em Deus esta distinção que unicamente constitui a natureza do entendimento finito e não divino, a distinção entre a coisa na representação e a coisa fora da representação? Se nenhumas coisas tivermos exteriores ao entendimento de Deus, também depressa nenhumas coisas teremos exteriores à sua essência e, por fim, também nenhumas exteriores à existência de Deus — todas as coisas existem em Deus e, claro, de fato e na realidade, não apenas na representação; pois, onde elas existem só na representação — tanto de Deus como do homem —, por conseguinte, onde existem tão-só no modo ideal ou, antes, imaginário em Deus, existem ao mesmo tempo fora da representação; fora de Deus. Se fora de Deus não tivermos mais coisas nem mundo, também não temos nenhum Deus exterior ao mundo — também não temos um ser apenas ideal, representado, mas um ser real; temos então, em suma, o espinosismo ou o panteísmo.

O teísmo representa para si Deus como uma essência puramente imaterial. Mas determinar Deus como imaterial nada mais significa do que determinar a matéria como um nada, como algo de inessencial: pois somente Deus é a medida do real. Só Deus é ser, verdade, essência; só é aquilo que vale para Deus e em Deus; o que é negado por Deus não é. Derivar a matéria de Deus nada mais significa do que querer fundamentar o seu ser no seu não-ser; pois deduzir é fornecer uma razão, um fundamento. Deus produziu a matéria, mas como, por que e a partir de quê? O teísmo não fornece qualquer resposta a estas perguntas. A matéria é, para ele, uma existência puramente inexplicável, ou seja, ela é o limite, o fim da teologia. Contra ela embate, tanto no pensamento como na vida. Por conseguinte, como é que eu, a partir da teologia, sem a negar, posso deduzir o fim e a negação da teologia? Como obter um princípio da explicação e uma informação onde se lhe esvai o entendimento? Como, a partir da negação da matéria ou do mundo, que constitui a essência da teologia, a partir da proposição “a matéria não existe”, extrair a afirmação da matéria, a proposição “ela existe” e, claro, pese ao Deus da teologia? Como a não ser mediante simples ficções? As coisas materiais só podem deduzir-se de Deus se o próprio Deus se determinar como um ser materialista. Só assim é que Deus, de uma causa puramente representada e imaginada, se transforma na causa efetiva do mundo. Quem não se envergonha de fazer sapatos também não se envergonha de ser e de se chamar sapateiro. Hans Sachs era ao mesmo tempo sapateiro e poeta, mas os sapatos eram obra das suas mãos e as suas poesias obra da sua cabeça. Tal efeito, tal causa. Mas a matéria não é Deus; pelo contrário, ela é o finito, o não divino, a negação de Deus — e os adoradores e adeptos incondicionais da matéria são ateus. Eis porque o panteísmo religa o ateísmo ao teísmo — a negação de Deus a Deus: Deus é um ser material ou, na linguagem de Espinosa, um ser extenso.

15

O panteísmo é o ateísmo teológico, o materialismo teológico, a negação da teologia, mas apenas do ponto de vista da teologia; pois faz da matéria, da negação de Deus, um predicado ou atributo do ser divino. Mas quem faz da matéria um atributo de Deus declara que a matéria é um ser divino. A realização de Deus tem em geral como pressuposto a divindade, isto é, a verdade e a essencialidade do real. Mas a divinização do real e do que existe materialmente — o materialismo, o empirismo, o realismo, o humanismo — a negação da teologia é a essência dos tempos modernos. Por isso, o panteísmo nada mais é do que a essência dos tempos modernos elevada à essência divina, a um princípio filosófico-religioso.

O empirismo ou realismo pelos quais se entende aqui em geral as ciências chamadas concretas, sobretudo as ciências da natureza, não nega a teologia teoricamente, mas de modo prático pela ação; com efeito, o realista faz da negação de Deus ou, pelo menos, daquilo que não é Deus a ocupação essencial da sua vida, o objeto essencial da sua atividade. Mas quem concentra o espírito e o coração apenas no material, no sensível, nega efetivamente ao supra-sensível a sua realidade; de fato, para o homem pelo menos, só é real aquilo que é um objeto da atividade real e efetiva. “O que não sei não me aquece.” Dizer que do supra-sensível nada se pode saber é apenas um subterfúgio. Só não se sabe mais de Deus e das coisas divinas se, a seu respeito, nada mais se quer saber. Quantas coisas se sabiam de Deus, quantas do Diabo e quantas dos Anjos, quando estes seres supra-sensíveis eram ainda objeto de uma fé efetiva! Se há interesse por uma coisa, há também para ela aptidão. Os místicos e os escolásticos da Idade Média não tinham nenhuma aptidão e habilidade para a ciência natural porque não tinham qualquer interesse pela natureza. Onde não falta o sentido também não estão ausentes os sentidos; os órgãos. O que é acessível ao coração também não é nenhum segredo para o entendimento. A humanidade, nos tempos modernos, perdeu os órgãos para o mundo supra-sensível e os seus mistérios unicamente porque, com a fé neles, também para eles perdeu o sentido; porque a sua tendência essencial é uma tendência anticristã, antiteológica, isto é, uma tendência antropológica, cósmica, realista, materialista. [2] Por isso, Espinosa acertou no prego com a sua proposição paradoxal: Deus é um ser extenso, isto é, material. Encontrou, pelo menos para a sua época, a verdadeira expressão filosófica da tendência materialista dos tempos modernos; legitimou-a e sancionou-a: o próprio Deus é materialista. A filosofia de Espinosa era uma religião; ele próprio era uma personalidade. Nele, como em muitos outros, o materialismo não entrava em contradição com a representação de um Deus imaterial, antimaterialista que, consequentemente, transforma em dever do homem as suas simples tendências e ocupações antimaterialistas e celestes; pois Deus nada mais é do que o arquétipo e o ideal do homem: ser como e o que Deus é, eis o que o homem deve ser, eis o que o homem quer ser ou, pelo menos, espera vir a ser um dia. Mas o caráter, a verdade e a religião só existem onde a teoria não é negada pela prática, nem a práxis pela teoria. Espinosa é o Moisés dos livres pensadores e materialistas modernos.

16

O panteísmo é a negação da teologia teorética, o empirismo a negação da teologia prática — o panteísmo nega o princípio, e o empirismo as consequências da teologia.

O panteísmo faz de Deus um ser atual e material; o empirismo, a que também pertence o racionalismo, faz de Deus um ser ausente, longínquo, irreal e negativo. O empirismo não nega a Deus a existência, mas todas as determinações positivas, porque o seu conteúdo é apenas um conteúdo finito, empírico e, por consequência, o infinito não é nenhum objeto para o homem. Quanto mais determinações nego a um ser, tanto mais o ponho fora de uma relação comigo, tanto menos poder e influência sobre mim lhe concedo, tanto mais livre me torno a seu respeito. Quanto mais qualidades tenho tanto mais existo também para os outros, tanto maior é, igualmente, o âmbito das minhas ações e da minha influência. E quanto mais um ser existe tanto mais coisas também dele se sabem.

Toda a negação de uma propriedade de Deus é, pois, um ateísmo parcial, uma esfera da irreligiosidade. Se a Deus retiro a propriedade, retiro-lhe igualmente o ser. Se, por exemplo, a simpatia e a misericórdia não são propriedades de Deus, então estou só para mim na minha dor — Deus não está aí como meu consolador. Se Deus é a negação de todo o finito, então o finito é também, logicamente, a negação de Deus. Só se Deus pensa em mim — assim conclui o religioso — é que tenho também fundamento e motivo para nele pensar; apenas no seu ser-para-mim reside o fundamento do meu ser-para-ele. Por conseguinte, para o empirismo, o ser teológico já não existe, na verdade, nada é de real; ele não transfere este não-ser para o objeto, mas unicamente para si, para o seu saber. Não recusa o ser a Deus, isto é, o ser morto, indiferente; mas recusa-lhe o ser que se demonstra como ser, o ser ativo, perceptível, que interfere na vida. Afirma Deus, mas nega todas as consequências que estão necessariamente ligadas a esta afirmação. Rejeita a teologia, abandona-a; não por razões teóricas, mas por aversão, por repugnância perante os objetos da teologia, isto é, por um sentimento obscuro da sua irrealidade. A teologia é nada, pensa para si o empirista; mas acrescenta: para mim, isto é, o seu juízo é um juízo subjetivo, patológico; com efeito, não tem a liberdade, e também não o prazer e a vocação de trazer os objetos da teologia diante do tribunal da razão. Eis a vocação da filosofia. Por conseguinte, a tarefa da filosofia moderna consistiu apenas em elevar o juízo patológico do empirismo de nada ter a ver com a teologia a um juízo teórico e objetivo — de transformar a negação indireta, inconsciente e negativa da teologia, em negação direta, positiva, consciente. Como é, pois, ridículo querer reprimir o “ateísmo” da filosofia sem, ao mesmo tempo, reprimir o empirismo da empiria! Como é ridículo perseguir a negação teórica do Cristianismo e, no entanto, deixar ao mesmo tempo subsistir as suas negações práticas, que pululam nos tempos modernos! Como é ridículo imaginar que, com a consciência, isto é, o sintoma do mal, também se suprimiu ao mesmo tempo a causa do mal! Sim, como é ridículo! E, contudo, como é rica, em tais ridicularias, a História! Repetem-se em todas as épocas críticas. Não admira; no passado, acha-se tudo bom, reconhece-se a necessidade das mudanças e revoluções ocorridas; mas, perante a aplicação ao caso presente, resiste-se sempre com as mãos e com os pés; por miopia e preguiça, faz-se do presente uma exceção à regra.

17

A elevação da matéria a uma essencialidade divina é imediatamente e ao mesmo tempo a elevação da razão a uma essencialidade divina. O que o teísta por necessidade anímica, por aspiração a uma beatitude ilimitada, por meio da imaginação, recusa a Deus, afirma-o o panteísta de Deus, por necessidade racional. A matéria é um objeto essencial para a razão. Se não existisse matéria alguma, a razão não teria nenhum estímulo e material para pensar, não teria conteúdo algum. Não é possível eliminar a matéria, sem eliminar a razão; não se pode reconhecer a matéria sem reconhecer a razão; os materialistas são racionalistas. Mas o panteísmo só indiretamente afirma a razão como uma essencialidade divina — ao transformar o ser da imaginação, que é o ser pessoal de Deus no teísmo, num objeto racional e num ser da razão; a apoteose direta da razão é o idealismo. O panteísmo leva necessariamente ao idealismo. O idealismo está para o panteísmo, tal como este está para o teísmo.

Tal objeto, tal sujeito. Segundo Descartes, a essência das coisas corpóreas, o corpo como substância, não é objeto dos sentidos, mas apenas do entendimento; justamente por isso, não são também os sentidos, mas o entendimento, segundo Descartes, a essência do sujeito perceptivo do homem. Só a essência é dada como objeto à essência. A opinião, segundo Platão, tem apenas como objeto as coisas inconsistentes, e por isso é ela própria o saber mutável e variável — precisamente apenas opinião. A essência da música é para o músico a essência suprema — portanto, o ouvido constitui o órgão supremo; ele prefere perder os olhos em vez dos ouvidos; o naturalista, pelo contrário, prefere perder os ouvidos em vez dos olhos, porque a sua essência objetiva é a luz. Se divinizo o som, divinizo o ouvido. Se, pois, digo como o panteísta: a divindade ou, o que é a mesma coisa, o ser absoluto, a verdade e a realidade absolutas, são objeto apenas para a razão, unicamente da razão, então declaro que Deus é uma coisa ou um ser racional e expresso assim indiretamente apenas a verdade e a realidade absolutas da razão. É, pois, necessário que a razão retorne a si mesma, inverta este autorreconhecimento invertido, se proclame diretamente como a verdade absoluta e se transforme de imediato, sem a interposição de um objeto, em seu próprio objeto, como verdade absoluta. O panteísta diz o mesmo que o idealista, só que aquele diz de modo objetivo ou realista o que este afirma de forma subjetiva ou idealista. O segundo tem o seu idealismo no objeto — fora da substância, fora de Deus, nada existe, todas as coisas são apenas determinações de Deus. O primeiro tem o seu panteísmo no eu — fora do eu nada há, todas as coisas existem apenas como objetos do eu. No entanto, o idealismo é a verdade do panteísmo; com efeito, Deus ou a substância é apenas o objeto da razão, do eu, do ser pensante. Se não creio em Deus e não penso em geral nenhum Deus, não possuo Deus algum; Ele existe para mim apenas por meio de mim, para a razão unicamente através da razão; — o a priori, o ser primeiro, não é pois o ser pensado, mas o ser pensante; não é o objeto, mas o sujeito. Assim como a ciência da natureza foi da luz para o olho, assim também necessariamente a filosofia se virou dos objetos do pensamento para o eu penso. Que é a luz, enquanto ser iluminante, clarificante, enquanto objeto da óptica, sem o olho? Nada. E a ciência da natureza não vai mais longe. Mas — pergunta agora a filosofia — que é o olho sem consciência? Igualmente nada — ver sem consciência ou não ver é a mesma coisa. Só a consciência do ver é a realidade do ver, ou a visão real. Mas por que é que crês que existe algo fora de ti? Porque vês, ouves, sentes alguma coisa. Por conseguinte, este alguma coisa só é algo de real, um objeto real enquanto objeto da consciência — por conseguinte, a consciência é a absoluta realidade ou efetividade, a medida de toda a existência. Tudo o que existe só existe como existente para a consciência, como consciente; com efeito, ser é primeiramente consciência. Assim se realiza no idealismo a essência da teologia; no eu, na consciência, a essência de Deus. Sem Deus, nada pode ser, nada se pode pensar; no sentido do idealismo, isto significa: tudo existe só como objeto, real ou possível, da consciência; ser significa ser objeto, portanto pressupõe a consciência. As coisas e o mundo em geral são uma obra, um produto do ser absoluto, de Deus; mas este ser absoluto é um eu, um ser consciente pensante — por conseguinte, o mundo, como Descartes magnificamente assere a partir do ponto de vista do teísmo, é um ens rationis divinae, um ser de razão, uma quimera de Deus. Mas este ser de razão é no teísmo, na teologia, também só uma vaga representação. Realizemos, pois, esta representação, executemos, por assim dizer, praticamente o que no teísmo é apenas teoria, e temos então o mundo como produto do eu (Fichte) ou — pelo menos, tal como nos aparece, como o intuímos — como uma obra ou produto da nossa intuição, do nosso entendimento (Kant). “A natureza é deduzida das leis da possibilidade da experiência em geral.” “O entendimento não tira as suas leis (a priori) da natureza, mas prescreve-lhas.” O idealismo kantiano, onde as coisas se regulam pelo entendimento e não o entendimento pelas coisas, nada mais é, pois, do que a realização da representação teológica do entendimento divino, o qual não é determinado pelas coisas, mas antes as determina. Como é, pois, insensato aceitar o idealismo no céu, o idealismo da imaginação, como uma verdade divina e rejeitar o idealismo da terra, isto é, o idealismo da razão, como um erro humano! Negais o idealismo? Então negai também Deus! Deus é apenas o criador do idealismo. Se não quereis as consequências, não queirais também o princípio! O idealismo nada passa do teísmo racional ou racionalizado. Mas o idealismo kantiano é ainda um idealismo limitado — o idealismo do ponto de vista do empirismo. Para o empirismo, Deus, segundo o esboço acima fornecido, é ainda apenas um ser na representação, na teoria — teoria no sentido corrente, no sentido mau — e não um ser na realidade e na verdade; é uma coisa em si, mas já não é uma coisa para o empirismo; com efeito, as coisas são para ele apenas as coisas empíricas, reais. A matéria é a única matéria do seu pensamento, por conseguinte, já não tem material algum para Deus; Deus existe, mas é para nós uma tabula rasa, um ser vazio, um simples pensamento. Deus — Deus tal como o representamos e pensamos é o nosso eu, o nosso entendimento, o nosso ser; mas este Deus é apenas um fenômeno de nós para nós, não Deus em si. Kant é o idealismo ainda enredado no teísmo. Muitas vezes, já há muito que, na prática, nos libertamos de uma coisa, de uma doutrina, de uma ideia, mas não estamos ainda livres dela na cabeça; ela já não é nenhuma verdade no nosso ser — talvez nunca o tenha sido — mas é ainda uma verdade teórica, isto é, um limite da nossa cabeça. Porque toma as coisas com a máxima profundeza, a cabeça é também a última a libertar-se. A liberdade teórica é, pelo menos em muitas coisas, a última das liberdades. Quantos não são republicanos de coração, de disposição anímica, mas na cabeça não conseguem ir além da monarquia; o seu coração republicano naufraga nas objeções e dificuldades que o entendimento suscita. Assim, pois, acontece também com o teísmo de Kant. Ele realizou e negou a teologia na moral, o ser divino na vontade. A vontade é, para Kant, o ser verdadeiro, originário, incondicionado, que começa em si mesmo. Kant reivindica, pois, efetivamente os predicados da divindade para a vontade; por conseguinte, o seu teísmo tem ainda só o significado de um limite teórico. O Kant liberto do limite do teísmo é Fichte — o “Messias da razão especulativa”. Fichte é o idealismo kantiano, mas do ponto de vista do idealismo. Segundo Fichte, só do ponto de vista empírico é que existe um Deus distinto de nós, existente fora de nós; mas, na verdade, do ponto de vista do idealismo, a coisa em si, Deus — Deus é efetivamente a coisa em si — é tão-só o eu em si, ou seja, o eu distinto do indivíduo, do eu empírico. Fora do eu, não há Deus algum: “a nossa religião é a razão”. Mas o idealismo fichteano é unicamente a negação e a realização do teísmo abstrato e formal, do monoteísmo; não do teísmo religioso, material, cheio de conteúdo, do teísmo trinitário, cuja realização é primeiramente o idealismo “absoluto”, o de Hegel. Ou: Fichte realizou o Deus do panteísmo só na medida em que ele é um ser pensante, mas não enquanto é um ser extenso e material. Fichte é o idealismo teísta, Hegel, o idealismo panteísta.

18

A filosofia moderna realizou e suprimiu o ser divino separado e distinto da sensibilidade, do mundo e do homem — mas só no pensamento, na razão e, claro está, numa razão igualmente separada e distinta da sensibilidade, do mundo, do homem. Isto é, a filosofia moderna demonstrou unicamente a divindade do entendimento — aceitou apenas o entendimento abstrato como o ser divino e absoluto. A definição que Descartes propõe de si como espírito — a minha essência consiste unicamente no pensamento — é a definição que de si fornece a filosofia moderna. A vontade do idealismo kantiano e fichteano é, de igual modo, puro ser do entendimento e a intuição que Schelling, em oposição a Fichte, uniu ao entendimento é pura fantasia e nenhuma verdade, portanto, não se toma em consideração.

A filosofia moderna derivou da teologia — nada mais é do que a teologia resolvida e metamorfoseada em filosofia. Por conseguinte, a essência abstrata e transcendente de Deus só podia realizar-se e suprimir-se de um modo abstrato e transcendente. Para transformar Deus em razão, importava que a própria razão revestisse a natureza do ser divino e abstrato. Os sentidos, diz Descartes, não fornecem nenhuma realidade verdadeira, nenhuma essência, nenhuma certeza — só o entendimento separado dos sentidos proporciona a verdade. Donde promana esta cisão entre o entendimento e os sentidos? Deriva apenas da teologia. Deus não é um ser sensível, é antes a negação de todas as determinações da sensibilidade, só se conhece graças à abstração a seu respeito; mas é Deus, isto é, o ser mais verdadeiro, mais real e mais certo. Donde, pois, advirá a verdade aos sentidos — aos sentidos que são ateus natos? Deus é o ser no qual a existência não se pode separar da essência e do conceito, o ser que só se pode pensar como existente. Descartes transforma este ser objetivo numa essência subjetiva, a prova ontológica numa prova psicológica; transforma o “Deus pode pensar-se, logo existe” em “penso, logo existo”. Assim como em Deus não se pode separar a existência do conceito, assim também não é possível separar em mim — enquanto espírito, que é a minha essência — o ser do pensamento; e, como além, também aqui esta indissociabilidade constitui a essência. Um ser que só existe — quer seja em si ou para mim, não importa — como pensado, como objeto da abstração de toda a sensibilidade, também se realiza e subjetiviza necessariamente apenas num ser que só existe como pensante, cuja essencialidade é apenas o pensar abstrato.

19

A consumação da filosofia moderna é a filosofia de Hegel. A necessidade e a justificação históricas da filosofia moderna religam-se, pois, sobretudo com a crítica de Hegel.

20

A nova filosofia, segundo o seu ponto de partida histórico, tem a mesma tarefa e posição perante a filosofia anterior, que esta teve em relação à teologia. A nova filosofia é a realização da filosofia hegeliana, da filosofia anterior em geral — mas uma realização que é ao mesmo tempo a sua negação e, claro está, uma negação livre de contradição.

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A contradição da filosofia moderna, sobretudo do panteísmo, de ser a negação da teologia do ponto de vista da teologia, ou a negação da teologia, que em si mesma é de novo teologia — semelhante contradição caracteriza em particular a filosofia hegeliana.

O ser imaterial, o ser enquanto puro objeto do entendimento, pura essência intelectual, é para a filosofia moderna e também para a hegeliana, unicamente o ser verdadeiro e absoluto — Deus. A própria matéria, de que Espinosa faz um atributo da substância divina, é uma coisa metafísica, um puro ser do entendimento; com efeito, a determinação essencial da matéria, que a distingue do entendimento e da atividade pensante, a determinação de ser um ser passivo, é-lhe tirada. Mas Hegel distingue-se da filosofia anterior ao determinar de um outro modo a relação que existe entre um ser material, sensível, e o ser imaterial. Os primeiros filósofos e teólogos concebiam o ser verdadeiro e divino como um ser separado e liberto da natureza, separado e liberto em si da sensibilidade ou da matéria; transferiam apenas para si mesmos o esforço e o trabalho da abstração, do desenredar-se do sensível, para chegar ao que em si mesmo dele está liberto. Neste estar-liberto é que viam a beatitude do Ser divino, e neste libertar-se a virtude do ser humano. Hegel, pelo contrário, fez da atividade subjetiva a autoatividade do Ser divino. O próprio Deus deve submeter-se a este trabalho e, como os heróis do paganismo, conquistar pela virtude a sua divindade. Só assim é que a liberdade do absoluto relativamente à matéria, a qual, além disso, é apenas pressuposto e representação, se pode tornar realidade e verdade. Mas esta autolibertação quanto à matéria só pode pôr-se em Deus se, ao mesmo tempo, nele se põe a matéria. Mas como pode ela pôr-se em Deus? De um modo apenas: que o próprio Deus a ponha. Mas em Deus só existe Deus. Por conseguinte, só pondo-se ele mesmo como matéria, como não Deus, como o seu outro. A matéria não é, pois, um contrário que preceda de modo incompreensível o eu, o espírito: é a autoalienação do espírito. Deste modo, a própria matéria recebe espírito e entendimento; é admitida no Ser absoluto como um momento da sua vida, da sua formação e do seu desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, põe-se de novo como um ser nulo, inverdadeiro, porque só o ser que se arranca a esta alienação, isto é, a matéria, a sensibilidade, se declara como o ser na sua plenitude, na sua verdadeira figura e forma. O natural, o material e o sensível — e, claro está, o sensível, não no sentido comum, moral, mas metafísico — é, pois, também aqui o que se deve negar, tal como a natureza corrompida pelo pecado original da teologia. Sem dúvida, ele é integrado na razão, no eu, no espírito; mas constituí o irracional na razão, o não eu no eu, o seu negativo: como em Schelling a natureza em Deus representa o não-divino em Deus e nele é exterior a ele; como na filosofia cartesiana o corpo, embora unido a mim, ao espírito, está todavia fora de mim, não me pertence, não pertence à minha essência, e portanto é indiferente se ele está, ou não, unido a mim. A matéria permanece em contradição com o ser pressuposto pela filosofia como o verdadeiro ser.

A matéria põe-se decerto em Deus, isto é, põe-se como Deus, e pôr a matéria como Deus equivale a dizer: não existe Deus algum; portanto, equivale a suprimir a teologia, a reconhecer a verdade do materialismo. Ao mesmo tempo, porém, pressupõe-se ainda a verdade do ser da teologia. O ateísmo, a negação da teologia, vê-se de novo negado, ou seja, a teologia é novamente restaurada pela filosofia. Deus é Deus só mediante a sua superação e negação da matéria, a qual constitui a negação de Deus. E só a negação da negação é, segundo Hegel, a verdadeira posição. Ao fim e ao cabo, eis-nos novamente no ponto de onde tínhamos partido — no seio da teologia cristã. Assim, temos já no supremo princípio da filosofia hegeliana o princípio e o resultado da sua filosofia da religião, a saber, a filosofia não suprime os dogmas da teologia, mas apenas os restabelece, unicamente os mediatiza a partir da negação do racionalismo. O segredo da dialética hegeliana consiste, em última análise, apenas em negar a teologia em nome da filosofia e, em seguida, em negar outra vez a filosofia por meio da teologia. A teologia é que constitui o começo e o fim; no meio, encontra-se a filosofia, enquanto negação da primeira posição; mas a negação da negação é a teologia. Primeiro, põe-se tudo ao contrário, mas em seguida restabelece-se tudo no seu antigo lugar, como em Descartes. A filosofia hegeliana é a última grandiosa tentativa para restaurar o Cristianismo, já perdido e morto, por meio da filosofia e, claro está, mediante a identificação, tal como em geral acontecia nos tempos modernos, da negação do Cristianismo com o próprio Cristianismo. A tão celebrada identidade especulativa do espírito e da matéria, do infinito e do finito, do divino e do humano, nada mais é do que a contradição fatal dos tempos modernos — a identidade da fé e da descrença, da teologia e da filosofia, da religião e do ateísmo, do Cristianismo e do paganismo, no seu cume mais alto, no pico da metafísica. Só assim é que esta contradição, em Hegel, se desvanece e obnubila aos olhos, porque faz da negação de Deus, do ateísmo, uma determinação objetiva de Deus — Deus determina-se como um processo e como um momento do processo do ateísmo. Mas assim como a fé restaurada a partir da descrença não constitui uma fé verdadeira, porque é sempre uma fé enredada no seu contrário, assim também o Deus restabelecido a partir da sua negação não é um Deus verdadeiro; pelo contrário, é um Deus autocontraditório, um Deus ateísta.

22

Assim como a essência divina nada mais é do que a essência do homem, libertada dos limites da natureza, assim a essência do idealismo absoluto nada mais é do que a essência do idealismo subjetivo, liberta dos limites e, decerto, racionais, da subjetividade, isto é, da sensibilidade ou da objetalidade em geral. A filosofia hegeliana pode, pois, derivar-se imediatamente do idealismo kantiano e fichteano.

Diz Kant: “Se, como é justo, consideramos os objetos dos sentidos como simples fenômenos, reconhecemos ao mesmo tempo, porém, que têm por fundamento uma coisa em si; não sabemos, todavia, como esta é em si constituída, mas apenas o seu fenômeno, isto é, o modo como os nossos sentidos podem ser afetados por este algo incógnito. Por conseguinte, o entendimento, em virtude justamente de apreender fenômenos, reconhece também a existência de coisas em si, e nesta medida podemos afirmar que a representação de tais seres, subjacentes aos fenômenos, portanto de puros seres do entendimento, não só é legítima, mas ainda inevitável.” Os objetos dos sentidos, da experiência, são, pois, para o entendimento simples fenômenos, e não verdade alguma; logo, não satisfazem o entendimento, isto é, não correspondem à sua essência. Por conseguinte, o entendimento de nenhum modo é limitado na sua essência pela sensibilidade; de outro modo não tomaria as coisas sensíveis por fenômenos, mas pela verdade nua. O que não me satisfaz, também não me limita e restringe. E, no entanto, os seres do entendimento não devem ser objetos verdadeiros para o entendimento! A filosofia kantiana é a contradição de sujeito e objeto, de essência e existência, de pensamento e ser. A essência incide aqui no entendimento, a existência nos sentidos. A existência sem essência é simples fenômeno — tais são as coisas sensíveis; a essência sem existência é simples pensamento — tais são os seres do entendimento, os noumena; são pensados, mas falta-lhes a existência — pelo menos, a existência para nós — a objetividade; são as coisas em si, as verdadeiras coisas; mas não são coisas reais; e, por conseguinte, também não são coisas para o entendimento, isto é, coisas que ele possa determinar e conhecer. Mas que contradição separar a verdade da realidade e a realidade da verdade! Se, pois, suprimirmos esta contradição, temos então a filosofia da identidade, onde os objetos do entendimento, as coisas pensadas, enquanto verdadeiras, são as coisas reais; onde a essência e a constituição do objeto do entendimento corresponde à essência e à constituição do entendimento ou do sujeito; onde, portanto, o sujeito já não mais é limitado e condicionado por uma matéria que existe fora dele e contradiz a sua essência. Mas o sujeito, que já não tem fora de si nenhuma coisa e, por conseguinte, mais nenhum limite, já não é sujeito “finito” — já não é o eu, a que se contrapõe o objeto — é o Ser absoluto, cuja expressão teológica ou popular é a palavra Deus. É, sem dúvida, o mesmo sujeito, o mesmo eu, como no idealismo subjetivo — mas sem limites; é o eu, mas que já não parece também ser eu e, portanto, também já não se chama eu.

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A filosofia hegeliana é o idealismo ao contrário — idealismo teológico, tal como a filosofia espinosista é o materialismo teológico. Pôs a essência do eu fora do eu, separada do eu, e objetivou-a como substância, como Deus; mas desse modo expressou novamente — logo, de modo indireto, inverso — a divindade do eu, fazendo do mesmo, tal como Espinosa da matéria, um atributo ou forma da substância divina: a consciência que o homem tem de Deus é a autoconsciência de Deus. Quer isto dizer: a essência pertence a Deus, o saber ao homem. Mas, em Hegel, a essência de Deus nada mais é, de fato, do que a essência do pensamento, ou o pensamento abstraído do eu, do pensante. A filosofia hegeliana fez do pensamento, portanto do ser subjetivo, mas pensado em sujeito, logo, representado como um ser dele distinto, o ser divino e absoluto.

O segredo da filosofia absoluta é, portanto, o segredo da teologia. A filosofia absoluta comporta-se tal e qual como a teologia, que fez das determinações do homem determinações divinas, privando-as da determinidade na qual são o que são. “O pensar da razão deve exigir-se de cada qual; para pensar a razão como absoluta, por conseguinte, para chegar ao ponto de vista que eu exijo, deve abstrair-se do pensar. Ao fazer-se tal abstração, a razão cessa imediatamente de ser algo de subjetivo, como ela é representada pela maioria; só pode ser pensada comi algo de objetivo, porque o objetivo ou pensado só é possível em oposição a um pensante, do qual aqui inteiramente se abstrai; por conseguinte, mediante esta abstração, ela torna-se um verdadeiro em si, que coincide justamente com o ponto de indiferença do subjetivo e do objetivo.” Assim falava Schelling. O mesmo acontece em Hegel. O pensar privado da sua determinidade, na qual ele é pensar, atividade da subjetividade, é a essência da lógica hegeliana. A terceira parte da Lógica é e chama-se mesmo expressamente a Lógica subjetiva e, no entanto, as formas da subjetividade, que são o objeto da Lógica subjetiva, não devem ser subjetivas. O conceito, o juízo, o silogismo, e até as formas particulares do silogismo e do juízo, como o juízo problemático, o juízo assertórico, não são conceitos, juízos e silogismos que procedam de nós; não! São formas objetivas que existem em si e para si, formas absolutas. É assim que a filosofia absoluta desapropria e aliena o homem da sua própria essência, da sua própria atividade! Daí a violência, a tortura, que ela inflige ao nossa espírito. O que é nosso devemos pensá-lo como não nosso, devemos abstrair da determinidade em que algo é o que é, isto é, devemos pensá-lo sem sentido, devemos tomá-lo no não sentido do absoluto. O não-sentido é o Ser supremo da teologia, tanto da comum como da especulativa.

O que Hegel censura à filosofia de Fichte, a saber, que cada um julga ter em si o eu, dele é advertido e, no entanto, não encontra em si o eu, vale também para a filosofia especulativa em geral. Ela toma quase todas as coisas num sentido em que já não se reconhecem. E a razão deste mal é justamente a teologia. O Ser divino, absoluto, deve distinguir-se do ser finito, isto é, real. Mas, para o Absoluto, não temos nenhumas determinações a não ser precisamente as determinações das coisas reais, sejam naturais ou humanas. Como é que estas determinações se tornam determinações do absoluto? Só se forem consideradas num sentido que não é o seu sentido real, isto é, num sentido totalmente invertido. Tudo o que está no finito está no absoluto; mas aqui encontra-se de uma forma inteiramente diversa da que tem além; no Absoluto imperam leis inteiramente diversas das que reinam em nós; no Absoluto é razão e sabedoria o que em nós é puro contrassenso. Daí a arbitrariedade ilimitada da especulação em utilizar o nome de uma coisa sem, no entanto, deixar valer o conceito que está conexo com esse nome. A especulação desculpa a sua arbitrariedade ao dizer que, na língua, escolhe para os seus conceitos nomes aos quais a “consciência comum” associa representações, que têm uma semelhança longínqua com estes conceitos; lança, pois, as culpas sobre a linguagem. Mas a culpa reside na coisa, no princípio da própria especulação. A contradição entre o nome e a coisa, entre a representação e o conceito da especulação, nada mais é do que a antiga contradição teológica entre as determinações da essência divina e as determinações da essência humana, determinações que, em relação ao homem, se tomam no sentido genuíno e efetivo, e em relação a Deus, porém, apenas num sentido simbólico ou analógico. Sem dúvida, a filosofia não tem de se preocupar com as representações que o uso ou o abuso comum associa a um nome; mas tem de se vincular à natureza determinada das coisas, cujos signos são nomes.

24

A identidade do pensar e do ser, ponto central da filosofia da identidade, nada mais é do que uma consequência e um desenvolvimento necessários do conceito de Deus, enquanto ser cujo conceito ou essência implica a existência. A filosofia especulativa apenas generalizou, unicamente transformou em propriedade do pensamento e do conceito em geral o que a teologia transformava numa propriedade exclusiva do conceito de Deus. A identidade do pensar e do ser é, pois, apenas a expressão da divindade da razão — a expressão do seguinte: o pensar ou a razão é o ser absoluto, a quinta-essência de toda a verdade e realidade, de que não existe nenhum contrário da razão, melhor, que a razão é tudo, como também na teologia estrita, Deus é tudo, isto é, tudo o que existe de essencial e de verdadeiramente existente. Mas um ser que não se distingue do pensar, um ser que é apenas um predicado ou uma determinação da razão é tão-só um ser pensado e abstrato, na verdade, não é ser algum. A identidade do pensar e do ser exprime, pois, somente a identidade do pensar consigo mesmo. Quer isto dizer: o pensar absoluto não se desembaraça de si, não sai de si para o ser. O ser permanece um além. A filosofia absoluta transformou, sem dúvida, o além da teologia num aquém, mas, em compensação, transformou para nós o aquém do mundo real num além.

O pensar da filosofia especulativa ou absoluta, diferentemente de si enquanto atividade de mediação, determina o ser como o imediato, como o não-mediado. Para o pensamento — pelo menos para o pensamento que aqui temos diante de nós — o ser nada mais é do que isto. O pensar põe o ser diante de si, mas dentro de si mesmo e, por conseguinte, suprime imediatamente, sem dificuldade, a oposição do mesmo a seu respeito; com efeito, o ser enquanto contrário do pensar dentro do pensar nada mais é do que o próprio pensamento. Se o ser é apenas o imediato, se a imediatidade sozinha constitui a sua diferença quanto ao pensar, como será fácil mostrar que ao pensar também pertence a determinação da imediatidade, logo, o ser! Se uma simples determinidade de pensamento constitui a essência de um ser, como é que o ser se deveria distinguir do pensar?

25

A prova de que algo existe mais nenhum sentido tem a não ser o de que algo não é só pensado. Mas esta prova não se pode tirar do próprio pensar. Se o ser houver de se acrescentar a um objeto do pensar, importa que ao próprio pensar algo se acrescente distinto do pensar.

O exemplo da diferença entre os cem talheres representados e os cem talheres reais, escolhido por Kant na crítica da prova ontológica para ilustrar a diferença entre pensar e ser, mas ridicularizado por Hegel, é um exemplo no essencial inteiramente correto. Com efeito, há talheres que apenas tenho na cabeça, outros, porém, na mão; uns existem só para mim, os segundos, porém, também para os outros — podem sentir-se e ver-se; mas só existe o que é ao mesmo tempo para mim e para o outro, aquilo acerca do qual concordamos, eu e o outro, o que não é somente meu, o que é universal.

No pensar enquanto tal, encontro-me em identidade comigo mesmo, sou senhor absoluto; nada aí me contradiz; sou aí ao mesmo tempo juiz e parte, não há aí, pois, nenhuma diferença crítica entre o meu objeto e o meu pensamento acerca dele. Mas se se trata somente da existência de um objeto, então não devo apenas tomar conselho de mim, tenho de interrogar testemunhas diferentes de mim. Estas testemunhas diferentes de mim enquanto pensante são os sentidos. O ser é algo em que não só eu, mas também os outros, sobretudo também o objeto, estão implicados. Ser significa ser sujeito, quer dizer, ser para si. Isto é, na verdade, completamente diverso de ser sujeito ou ser apenas objeto, de ser um ser para mim mesmo, ou apenas o ser para outro ser, isto é, somente um pensamento. Se sou um simples objeto da representação, por conseguinte, se já não existo em mim mesmo, como acontece ao homem após a morte, então devo deixar que tudo me aconteça; o outro pode então fazer para si um retrato meu, que constituí uma verdadeira caricatura, sem que eu possa protestar. Mas se ainda existo realmente, posso opor-me aos seus intentos, posso fazer-lhe sentir que há uma enorme diferença entre mim, tal como sou na sua representação, e mim, como sou na realidade, portanto entre mim, enquanto objeto dele, e mim, enquanto sou sujeito. No pensar, sou um sujeito absoluto, deixo valer tudo apenas como objeto ou predicado do ser pensante que sou; sou intolerante. Pelo contrário, na atividade dos sentidos, sou liberal; permito que o objeto seja o que eu próprio sou — sujeito, um ser real que se manifesta. Só os sentidos e a intuição é que me proporcionam algo como sujeito.

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Um ser que apenas pensa e, claro está, de modo abstrato não tem representação alguma do ser, da existência e da realidade. O ser é o limite do pensar; o ser enquanto ser não é nenhum objeto da filosofia absoluta, pelo menos da que é abstrata. A própria filosofia especulativa declara indiretamente que o ser é ao mesmo tempo não-ser — é nada. Mas o nada não é um objeto do pensamento.

O ser, enquanto objeto do pensar especulativo, é o simplesmente imediato, isto é, indeterminado; portanto, nada nele se pode distinguir, nada se pode pensar. Mas o pensar especulativo é para si a medida de toda a realidade; só reconhece como algo aquilo em que ele se encontra confirmado, onde tem material para o pensar. Por conseguinte, em virtude de ser o nada do pensamento, isto é, de nada ser para o pensamento — o vazio de pensamento — o ser do pensar abstrato é o nada em si para si mesmo. Justamente por isso, o ser que a filosofia especulativa introduz no seu domínio e cujo conceito para si reivindica é também um puro fantasma, que está em absoluta contradição com o ser verdadeiro e com o que o homem entende por ser. O homem entende por ser, segundo os fatos e a razão, o ser-aí, o ser-para-si, a realidade, a existência, a efetividade e a objetividade. Todas estas determinações ou nomes exprimem uma só e mesma coisa a partir de diversos pontos de vista. O ser no pensamento, o ser sem objetividade, sem efetividade, sem ser-para-si é, certamente, nada; mas neste nada, expresso apenas a nulidade da minha abstração.

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O ser da lógica hegeliana é o ser da antiga metafísica, que se enuncia de todas as coisas sem diferença porque, segundo ela, todos têm em comum o fato de ser. Mas este ser indiferenciado é um pensamento abstrato, um pensamento sem realidade. O ser é tão diferenciado como as coisas que existem.

Por exemplo, numa metafísica da escola de Wolff, Deus, o mundo, o homem, a mesa, o livro, etc., têm em comum o fato de ser. E Christ. Thomasius diz: “O ser é em toda a parte o mesmo. A essência é tão múltipla como as coisas.” Este ser em toda a parte igual, indiferenciado e sem conteúdo, é também o ser da lógica hegeliana. O próprio Hegel observa que a polêmica contra a identidade do ser e do nada se deve unicamente à atribuição ao ser de um conteúdo determinado. Mas justamente a consciência do ser está sempre e de modo necessário vinculada com conteúdos determinados. Se eu abstrair do conteúdo do ser e, claro está, de todo o conteúdo, pois tudo é conteúdo do ser, então nada me resta a não ser o pensamento do nada. E, por conseguinte, quando Hegel censura a consciência comum por substituir ao ser, objeto da lógica, algo que não pertence ao ser, incorre, pelo contrário, na censura de supor uma abstração inconsistente ao que de modo legítimo e racional a consciência humana entende por ser. O ser não é um conceito universal, separável das coisas. É um só com o que existe. Só é mediatamente pensável — só pensável mediante os predicados, que fundam a essência de uma coisa. O ser é a posição da essência. O meu ser é o que é a minha essência. O peixe existe na água, mas não podes separar a sua essência deste ser. A linguagem já identifica ser e essência. Só na vida humana é que o ser se separa da essência, mas também apenas em casos anormais e infelizes — acontece que não se tem a sua essência no sítio onde se tem o ser; mas, justamente por causa desta separação, a alma não está verdadeiramente presente onde se está realmente com o corpo. Só onde está o teu coração estás tu. Mas todos os seres — excetuando casos contra a natureza — estão de bom grado onde estão e de bom grado são o que são — isto é, a sua essência não está separada do seu ser, nem o seu ser da essência. E, por conseguinte, não podes fixar para si o ser como algo de puramente idêntico, em oposição à diversidade das essências. O ser, após a subtração de todas as qualidades essenciais das coisas é apenas a tua representação do ser — um ser fabricado, inventado, um ser sem a essência do ser.

28

A filosofia hegeliana não foi além da contradição do pensar e do ser. O ser com que começa a Fenomenologia não está menos radicalmente em contradição com o ser real do que o ser, com que inicia a Lógica.

Esta contradição aparece na Fenomenologia sob a forma do “isto” e do “universal”; pois o singular pertence ao ser e o universal ao pensar. Ora, na Fenomenologia, o “isto” funda-se com o “isto” de um modo indiscernível para o pensamento; mas que imensa diferença existe entre o “isto”, enquanto objeto do pensar abstrato, e o mesmo isto enquanto objeto da realidade efetiva! Esta mulher, por exemplo, é a minha mulher, esta casa é a minha casa, embora cada qual fale da sua casa e da sua mulher como eu: esta casa, esta mulher. A indiferença e a indistinção do “isto” lógico são, portanto, aqui destruídas e suprimidas pelo sentimento do direito. Se deixássemos imperar o “isto” lógico no direito natural, iríamos diretamente para comunidade de bens e de mulheres, onde não há diferença alguma entre este e aquele, onde cada qual possui cada qual — ou, antes, diretamente para a supressão de todo o direito; com efeito, o direito só se funda na realidade da distinção entre este e aquele.

No início da Fenomenologia, deparamos apenas com a contradição entre a palavra, que é universal, e a coisa, que é sempre algo de singular. E o pensamento que unicamente se funda na palavra não ultrapassa semelhante contradição. Mas assim como a palavra não é a coisa, assim também o ser dito ou pensado não é o ser real. Se se objetar que em Hegel não se trata, como aqui, de ser do ponto de vista prático, mas apenas do ponto de vista teorético, responder-se-á que o ponto de vista prático está aqui no seu lugar. A questão do ser é justamente uma questão prática, uma questão na qual o nosso ser está implicado, é uma questão de vida e de morte. E se no direito nos agarramos ao nosso ser, não queremos que também ele nos seja tirado pela lógica. É preciso que ele seja igualmente reconhecido pela lógica, se esta não quiser persistir em contradição com o ser real. De resto, o próprio ponto de vista prático — o ponto de vista do comer e do beber — é aduzido pela Fenomenologia para refutar a verdade do ser sensível, isto é, singular. Mas também aqui não devo jamais a minha existência ao pão linguístico ou lógico — ao pão em si — mas sempre apenas a este pão, ao pão “indizível”. O ser, fundado em simples inefabilidades, é igualmente em si mesmo alga de inefável. — Mais ainda, é o inefável. Onde as palavras cessam, começa então a vida e desvelasse o segredo do ser. Mas se a inefabilidade é absurdidade, então toda a existência, porque é sempre apenas esta existência, é irrazão. Mas a existência não é irrazão. A existência, mesmo sem a enunciabilidade, tem por si mesma sentido e razão.

29

O pensar “que se sobrepõe ao seu outro” — o “outro do pensar” é o ser — é o pensar que ultrapassa os seus limites naturais. O pensamento sobrepõe-se ao seu contrário — quer dizer: o pensar não reivindica para si o que pertence ao pensar, mas ao ser. Ao ser, porém, compete a singularidade, a individualidade; ao pensar, a universalidade. Por conseguinte, o pensar reivindica para si a singularidade — transforma a negação da universalidade, a forma essencial da sensibilidade, a singularidade, num momento de pensar. É assim que o pensar “abstrato”, ou o conceito abstrato que deixa fora de si o ser, se torna conceito “concreto”.

Mas como é que o homem chega a estas invasões do domínio do ser pelo pensar? Pela teologia. Em Deus, o ser encontra-se imediatamente vinculado com a essência ou o conceito; a singularidade, a forma de existência com a universalidade. O “conceito concreto” é Deus transformado em conceito. Mas como é que o homem passa do pensar “abstrato” para o pensar “concreto” ou absoluto, da filosofia para a teologia? A própria história já forneceu a resposta a esta questão na transição da antiga filosofia pagã para a chamada filosofia neoplatônica; com efeito, a filosofia neoplatônica distingue-se da antiga unicamente por ser teologia, ao passo que aquela é apenas filosofia. A antiga filosofia tinha como seu princípio a razão, a “ideia”; mas “a ideia não foi posta por Platão e Aristóteles como o que tudo contém”. A antiga filosofia deixava subsistir algo fora do pensar — um resíduo por assim dizer supérfluo, que não entrava no pensar. A imagem deste ser fora do pensar é a matéria — o substrato da realidade. A razão tinha na matéria a sua fronteira. A antiga filosofia vivia ainda na distinção do pensar e do ser; não considerava ainda o pensar, o espírito, a ideia, como o que tudo engloba, isto é, a realidade única, exclusiva e absoluta. Os antigos filósofos eram ainda sábios mundanos fisiólogos, políticos, zoólogos, em suma, antropólogos; não eram teólogos, pelo menos só parcialmente teólogos — justamente por isso foram também apenas antropólogos, portanto antropólogos limitados e defeituosos. Em contrapartida, para os neoplatônicos, a matéria, o mundo material e real em geral, já não constitui qualquer instância, qualquer realidade. A pátria, a família, os laços e os bens do mundo em geral, que a antiga filosofia paripatética ainda incluía nos elementos da felicidade humana — tudo isso já nada conta para o sábio neoplatônico. Considera até melhor a morte do que a vida corporal; não inclui o corpo na sua essência; desloca a felicidade apenas para a alma, separando-se de todas as coisas corporais, em suma, de todas as coisas exteriores. Mas quando o homem já nada tem fora de si, então busca e encontra tudo em si, põe no lugar do mundo real o mundo imaginário e inteligível no qual se encontra tudo o que existe no mundo real, mas no modo da representação abstrata. Nos neoplatônicos, até a própria matéria se encontra no mundo imaterial, mas surge aqui apenas como uma matéria ideal pensada e imaginária. E quando o homem já não tem fora de si ser algum, então põe no pensamento um ser que, enquanto ser inteligível, possui ao mesmo tempo as propriedades de um ser real e, enquanto não sensível, é ao mesmo tempo um ser sensível, e enquanto objeto teorético, é também simultaneamente prático. Este ser é Deus — o bem supremo dos neoplatônicos. Só na essência se satisfaz o homem. Substitui, pois, a carência do ser real por um ser ideal, isto é, supõe agora a essência da realidade abandonada ou perdida às suas representações e pensamentos — a representação já não é para ele nenhuma representação, mas o próprio objeto; a imagem já não é uma imagem, mas a própria coisa; o pensamento, a ideia, é a própria realidade. Precisamente porque já não se comporta como sujeito perante o mundo real como seu objeto é que as suas representações se lhe transformam em objetos, em seres, em espíritos e em deuses. Quanto mais abstrato ele é, tanto mais negativo é perante o sensível real, tanto mais sensível é justamente no abstrato. Deus, o Uno — o supremo objeto e ser da abstração de toda a multiplicidade e diversidade, isto é, de toda a sensibilidade — conhece-se mediante contato por presença (parousía) imediata. Sim, tal como o mais baixo dos seres, a matéria, também o mais elevado, o Uno, se conhece mediante o não-saber, através da ignorância. Quer isto dizer: o ser puramente pensado, abstrato, o não-sensível, o suprassensível é ao mesmo tempo o ser que existe realmente, um ser sensível.

Assim como ao desencarnar-se o homem nega o corpo, o limite racional da subjetividade, para se sujeitar a uma práxis fantástica e transcendente, para lidar com aparições corporais de Deus e dos espíritos, portanto suprimir praticamente a distinção entre imaginação e intuição, assim também se desvanece teoricamente a distinção entre pensamento e ser, subjetivo e objetivo, sensível e não-sensível, quando a matéria deixa de ser para ele uma realidade e, portanto, uma fronteira da razão pensante, quando a razão, o ser intelectual, a essência da subjetividade em geral nesta sua ilimitabilidade constitui para ele o ser único e absoluto. O pensar nega tudo, mas apenas para tudo pôr em si. Já não tem fronteira alguma em algo fora de si, mas por isso mesmo sai fora da sua fronteira imanente e natural. Assim se torna concreta a razão, a ideia: isto é, o que a intuição deve dar atribui-se ao pensar; o que é função e tarefa do sentido, da sensação e da vida transforma-se em função e tarefa do pensar. O concreto transformou-se assim em predicado do pensamento, o ser em simples determinidade de pensamento; com efeito, a proposição — “o conceito é concreto” — é idêntica à proposição “o ser é uma determinidade de pensamento”. O que nos neoplatônicos é representação e fantasia foi por Hegel transformado e racionalizado apenas em conceitos. Hegel não é o “Aristóteles alemão ou cristão” — é o Proclo alemão. A “filosofia absoluta” é a ressurreição da filosofia alexandrina. Segundo a determinação expressa de Hegel, não é a filosofia aristotélica, a antiga filosofia pagã em geral, mas a filosofia alexandrina, que é a filosofia absoluta — a filosofia cristã, mesclada ainda com ingredientes pagãos — que permanece ainda, porém, no elemento da abstração da autoconsciência concreta.

Note-se ainda que a teologia neoplatônica mostra de modo particularmente nítido que tal objeto, tal sujeito, e vice-versa; que, por conseguinte, o objeto da teologia nada mais é do que a essência objetivada do sujeito, do homem. Para os neoplatônicos, Deus à mais elevada potência é o simples, o Uno, o puro indeterminado e indistinto — não é uma essência, mas está para além da essência, pois a essência é ainda determinada por ser essência; não é um conceito, uma inteligência, mas é privado de inteligência e está para além da inteligência, pois também a inteligência é determinada por ser inteligência; e onde existe inteligência, há distinção, cisão em pensante e pensado, a qual não pode, pois, ter lugar no puro simples. Mas, para o neoplatônico, o que objetivamente é o Ser supremo, também o é no sentido subjetivo; o que ele põe no objeto, em Deus como ser, também o põe em si como atividade, como esforço. Não mais ser distinção, não mais ser entendimento, não mais ser si mesmo é e chama-se ser Deus. Mas o neoplatônico esforçasse por se tornar aquilo que Deus é — a meta da sua atividade é deixar de “ser, de ser entendimento e razão.” O êxtase e o arroubo constituem, para o neoplatônico, o supremo estado psicológico do homem. Semelhante estado, objetivado como ser, é o ser divino. Assim, Deus procede apenas do homem, mas não ao invés, pelo menos originariamente, o homem a partir de Deus. Isto mostra-se de um modo particularmente claro também na definição de Deus, que se encontra também nos neoplatônicos, como o ser sem necessidades e bem-aventurado. Com efeito, onde é que este ser sem dor e sem necessidades pode ter o seu fundamento e origem senão nas dores e necessidades do homem? À miséria da necessidade e da dor corresponde também a representação e o sentimento da beatitude. Só em oposição à infelicidade é que a beatitude é uma realidade. Só na miséria do homem tem Deus o seu lugar de nascimento. Só ao homem é que Deus vai buscar todas as suas determinações, Deus é o que o homem quer ser — a sua própria essência, a sua própria meta, representada como ser real. Aqui reside também a diferença dos neoplatônicos relativamente aos estoicos, epicuristas e céticos. A impassibilidade, a beatitude, a ausência de necessidades, a liberdade e a autonomia eram também o objetivo destes filósofos, mas só enquanto virtudes do homem; ou seja, na base, encontrava-se ainda o homem concreto e real como verdade; a liberdade e a beatitude deviam sobrevir a este sujeito como predicados. Mas, nos neoplatônicos, embora a virtude pagã fosse ainda para eles a verdade — daí a sua diferença quanto à teologia cristã, que punha no além a beatitude, a perfeição e a semelhança do homem com Deus — este predicado tornou-se sujeito, um adjetivo do homem tornou-se substantivo, ser real. Justamente por isso, o homem real tornou-se também um simples abstrato sem carne e sem sangue, uma figura alegórica do ser divino. Plotino envergonhava-se, pelo menos segundo o relato do seu biógrafo, de ter um corpo.

30

A determinação de que apenas o conceito “concreto”, o conceito que traz em si a natureza do real, é o verdadeiro conceito exprime o reconhecimento da verdade do concreto ou da realidade efetiva. Mas porque se pressupõe também de antemão que o conceito, isto é, a essência do pensar, é o ser absoluto, o único ser verdadeiro, o real ou efetivo só se pode conhecer de um modo indireto, só como o adjetivo essencial e necessário do conceito. Hegel é realista, mas um realista puramente-idealista ou, antes, abstrato — realista na abstração de toda a realidade. Nega o pensar, a saber, o pensar abstrato; mas nega-o precisamente no pensar abstrativo, de maneira que a negação da abstração é de novo uma abstração. Segundo ele, a filosofia só tem por objeto “o que é”; mas este é constitui em si mesmo apenas algo de abstrato, pensado. Hegel é um pensador que se encarece no pensar — quer apreender a própria coisa, mas no pensamento da coisa; quer estar fora do pensar, mas no seio do próprio pensar — daí a dificuldade de conceber o conceito “concreto”.

31

O reconhecimento da luz da realidade na obscuridade da abstração é uma contradição — é afirmar o real na sua própria negação. A nova filosofia, que não pensa o concreto de modo abstrato, mas concreto, que reconhece o real na sua efetividade, portanto de um modo adequado à essência do real, como o verdadeiro e o eleva a princípio e objeto da filosofia, é pois, antes de mais, a verdade da filosofia hegeliana, a verdade da filosofia moderna em geral. A necessidade histórica ou a gênese da nova filosofia a partir da antiga produz-se mais ou menos assim. O conceito concreto, a Ideia é, segundo Hegel, em primeiro lugar, apenas abstrato e só existe no elemento do pensar — é o Deus racionalizado da teologia, antes da criação do mundo. Mas assim como Deus se expressa, manifesta, se faz mundo e se realiza, assim também se realiza a Ideia: Hegel é a história da teologia transformada num processo lógico. Mas logo que entramos no reino do realismo com a realização da Ideia, logo que a verdade da Ideia é ser real e existir, possuímos na existência o critério da verdade. Só o que é real é verdadeiro. E pergunta-se apenas: o que é real? O simplesmente pensado? O que é apenas objeto do pensar, do entendimento? Mas assim não sairíamos da Ideia in abstracto. A Ideia platônica é também objeto do pensar; o além celeste é igualmente objeto interior — objeto da fé, da representação. Se a realidade do pensamento é a realidade enquanto pensada, então a realidade do próprio pensamento é de novo apenas o pensamento, e assim ficamos sempre na identidade do pensamento consigo mesmo, no idealismo — um idealismo que só se distingue do idealismo subjetivo por englobar todo o conteúdo da realidade e o transformar numa determinidade de pensamento. Por conseguinte, para tomar realmente a sério a realidade do pensamento ou da Ideia é preciso acrescentar-lhe algo de diferente dela, ou: o pensamento realizado deve ser algo diverso do pensamento não realizado, do simples pensamento — objeto não só do pensar, mas também do não-pensar. O pensamento realiza-se, quer dizer, nega-se, deixa de ser simples pensamento. O que é então este não-pensar, este elemento distinto do pensar? O sensível. O pensamento realiza-se, quer dizer, faz-se objeto dos sentidos. A realidade da Ideia é, pois, a sensibilidade, mas a realidade, a verdade da Ideia — portanto — a sensibilidade é a sua verdade. No entanto, transformamos assim apenas a sensibilidade em predicado, a Ideia ou o pensamento em sujeito. Por que é que então a Ideia se torna sensível? Por que é que ela não é verdadeira, se não for real, isto é, sensível? Não se torna assim a sua verdade dependente da sensibilidade? Não se admite assim um significado e valor para o sensível por si mesmo, independentemente de ele ser a realidade da Ideia? Se a sensibilidade nada é por si mesma, por que é que dela precisa a Ideia? Se apenas a Ideia proporciona valor e conteúdo à sensibilidade, então esta é puro luxo, pura trivialidade — apenas uma ilusão, que o pensamento a si mesmo propõe. Mas não é assim. Faz-se ao pensamento a exigência de se realizar e de se tornar sensível apenas porque se pressupõe inconscientemente que a realidade e a sensibilidade independentes do pensamento constituem a sua verdade. O pensamento verifica-se mediante a sensibilidade; como seria isto possível se não se considerasse inconscientemente como a verdade? Mas porque, não obstante, se parte conscientemente da verdade do pensamento, só apendicularmente se expressa a verdade da sensibilidade e dela se faz um atribulo da Ideia. Mas é uma contradição; com efeito, ela constitui só o atributo e, no entanto, é ela que confere verdade ao pensamento, é pois ao mesmo tempo o principal e o secundário, simultaneamente essência e acidente. Só nos libertaremos de tal contradição se fizermos do real e do sensível o sujeito de si mesmo; se lhe dermos uma significação absolutamente autônoma, divina, primordial, e não apenas derivada da Ideia.

32

O real na sua realidade efetiva, ou enquanto real, é o real enquanto objeto dos sentidos, é o sensível. Verdade, realidade e sensibilidade são idênticas. Só um ser sensível é um ser verdadeiro e efetivo. Apenas através dos sentidos é que um objeto é dado numa verdadeira acepção — e não mediante o pensar por si mesmo. O objeto dado ou idêntico com o pensar é apenas pensamento.

Um objeto, um objeto efetivo, só me é dado quando me é dado um ser que age sobre mim, quando a minha autoatividade — se eu começar no ponto de partida do pensar — encontra na atividade de outro ser o seu limite — uma resistência. O conceito do objeto originariamente nada mais é do que o conceito de um outro eu — é assim que o homem na infância concebe todas as coisas como seres com ação livre e arbítrio — por conseguinte, o conceito de objeto em geral é mediatizado pelo conceito do tu, do eu objetivo. Não é ao eu, mas ao não-eu em mim, para me expressar na linguagem de Fichte, que é dado o objeto, isto é, um Outro eu; com efeito, só quando o meu eu se metamorfoseou num tu, quando padeço, é que surge a representação de uma atividade que existe fora de mim, isto é, da objetividade. Mas é só pelos sentidos que o eu é não-eu.

Característica da anterior filosofia abstrata é a questão: como é que seres, substâncias autônomas e distintas, podem agir uns sobre os outros, por exemplo o corpo sobre a alma, o eu? Mas tal questão era para ela insolúvel, porque abstraía da sensibilidade; porque as substâncias, que deveriam agir umas sobre as outras, eram seres abstratos, puros seres do entendimento. O mistério da ação recíproca resolve-se apenas na sensibilidade. Só os seres sensíveis agem uns sobre os outros. Eu sou eu — para mim — e ao mesmo tempo tu — para outrem. Mas só o sou enquanto ser sensível. O entendimento abstrato, porém, isola este ser-para-si como substância, átomo, eu, Deus — por conseguinte, só pode conectar arbitrariamente o ser para outro; com efeito, a necessidade de tal conexão é apenas a sensibilidade, da qual porém ele abstrai. O que eu penso sem a sensibilidade penso-o sem e fora de toda a conexão. Como posso, então, pensar ao mesmo tempo o inconexo como algo de conexo?

33

A nova filosofia considera e aborda o ser, tal como é para nós, enquanto seres não só pensantes, mas também realmente existentes — por conseguinte, o ser enquanto objeto do ser — como objeto de si mesmo. O ser como objeto do ser — e somente este ser é o ser e merece o nome de ser — é o ser dos sentidos, da intuição, da sensação, do amor. O ser é, por conseguinte, um segredo da intuição, da sensação, do amor.

Apenas na sensação, unicamente no amor, tem “isto” — esta pessoa, esta coisa — isto é, o singular, um valor absoluto, o finito é o infinito; apenas nisto consiste a profundidade, a divindade e a verdade infinita do amor. Só no amor é que o Deus que conta os cabelos da cabeça é verdade e realidade. O próprio Deus cristão é apenas uma abstração do amor humano, apenas uma imagem do mesmo. Mas precisamente porque “isto” só tem valor absoluto no amor, também só no amor, e não no pensar abstrato, é que se revela o segredo do ser. O amor é paixão, e só a paixão é o critério da existência. Só existe o que é — real ou possível — objeto da paixão. O pensar abstrato desprovido de sensação e de paixão suprime a diferença entre ser e não-ser, mas tal diferença, insignificante para o pensamento, é uma realidade para o amor. Amar nada mais significa do que percepcionar semelhante diferença. A quem nada ama — seja qual for o objeto — é de todo indiferente se ele existe ou não. Mas assim como unicamente pelo amor, pelo sentimento em geral, me é dado o ser na sua distinção do não-ser, assim também só por meio dele me é dado um objeto como distinto de mim. A dor é um protesto estrondoso contra a identificação do subjetivo e do objetivo. A dor do amor consiste em não existir na realidade o que existe na representação. O subjetivo é aqui o objetivo, a representação é o objeto; mas isto não deve ser assim, é uma contradição, uma não-verdade e uma infelicidade — daí a exigência da restauração da verdadeira relação, onde o subjetivo e o objetivo não são idênticos. Até mesmo a dor animal exprime com bastante clareza esta diferença. A dor da fome consiste apenas em nada de objetivo haver no estômago, em o estômago ser por assim dizer para si o seu objeto; as paredes vazias, em vez de se friccionarem contra um alimento, friccionam-se uma contra a outra. Por isso, os sentimentos humanos não têm nenhuma significação empírica e antropológica, no sentido da antiga filosofia transcendente, mas um significado ontológico e metafísico: nos sentimentos, mais ainda, nos sentimentos quotidianos, estão ocultas as mais profundas e elevadas verdades. Assim o amor é a verdadeira prova ontológica da existência de um objeto fora da nossa cabeça — e não existe mais nenhuma prova do ser exceto o amor, o sentimento em geral. Só existe aquilo cujo ser te proporciona alegria, e cujo não-ser te causa dor. A diferença entre objeto e sujeito, entre ser e não-ser, é uma diferença que tanto causa alegria como dor.

34

A nova filosofia funda-se na verdade do amor, na verdade do sentimento. É no amor, no sentimento em geral, que cada homem reconhece a verdade da nova filosofia. A nova filosofia, relativamente à sua base, nada mais é do que a essência do sentimento elevada à consciência — afirma apenas na e com a razão o que cada homem — o homem real — reconhece no coração. Ela é o coração elevado ao entendimento. O coração não quer objetos e seres abstratos, metafísicos ou teológicos — quer objetos e seres reais e sensíveis.

35

Se a antiga filosofia dizia: o que não é pensado não existe, então, ao invés, a nova filosofia diz: o que não é amado, o que não se pode amar não existe. Mas o que não se pode amar também não se pode adorar. Só o que pode ser objeto da religião constitui o objeto da filosofia.

O amor, não só no plano objetivo, mas também subjetivo, é o critério do ser — o critério da verdade e da realidade efetiva. Onde não há amor, também não há verdade alguma. E só é alguma coisa quem algo ama — nada ser e nada amar são idênticos. Quanto mais alguém é tanto mais ama, e vice-versa.

36

Se a antiga filosofia tinha como ponto de partida a proposição: sou um ser abstrato, um ser puramente pensante, o corpo não pertence à minha essência, então, ao invés, a nova filosofia começa com a proposição: sou um ser real, um ser sensível; sim, o corpo na sua totalidade é o meu eu, a minha própria essência. O antigo filósofo pensava, pois, numa contradição e num conflito incessantes com os sentidos para impedir as representações sensíveis de manchar os conceitos abstratos; o novo filósofo, pelo contrário, pensa em consonância e em paz com os sentidos. A antiga filosofia admitia a verdade da sensibilidade — e até no conceito de Deus, que inclui o ser em si mesmo; pois, este ser devia todavia ser, ao mesmo tempo, um ser distinto do ser pensado, um ser fora do espírito, fora do pensar, um ser efetivamente objetivo, isto é, sensível — mas só a admitia de um modo dissimulado, conceitual, inconsciente e involuntário, unicamente porque devia; em contrapartida, a nova filosofia reconhece a verdade da sensibilidade com alegria, com consciência: é a filosofia sinceramente sensível.

37

A filosofia moderna buscava algo de imediatamente certo. Por conseguinte, rejeitou o pensar sem fundamento e sem base da escolástica, fundou a filosofia na autoconsciência, isto é, pôs no lugar do ser puramente pensado, no lugar de Deus, do ser supremo e último de toda a filosofia escolástica, o ser pensante, o eu, o espírito autoconsciente; com efeito, o pensante está infinitamente mais próximo do pensante, é mais presente e mais certo do que o pensado. Suscetível de dúvida é a existência de Deus e, em geral, também o que eu penso; mas é indubitável que eu existo, eu que penso, que duvido. Mas a autoconsciência da filosofia moderna é, por seu turno, apenas um ser pensado, mediado pela abstração, suscetível de dúvida. Indubitável, imediatamente certo, é tão-só o objeto dos sentidos, da intuição e do sentimento.

38

Verdadeiro e divino é apenas o que não precisa de prova alguma, o que é imediatamente certo por si mesmo, que imediatamente por si fala e convence, que imediatamente arrasta após si a afirmação de que é — o simplesmente definido, o pura e simplesmente indubitável, o que é claro como o dia. Mas claro como o dia é apenas o sensível; só onde começa o sensível cessa toda a dúvida e toda a disputa. O segredo do saber imediato é a sensibilidade.

Tudo é mediatizado, diz a filosofia hegeliana. Mas algo só é verdadeiro se já não for um mediado, mas imediato. Épocas históricas só nascem, pois, quando o que antes era apenas algo de pensado e de mediato se torna objeto de certeza imediata e sensível — portanto quando se torna verdade o que antes era apenas pensamento. Fazer da mediação uma necessidade divina e uma propriedade essencial da verdade é escolástica. A sua necessidade é apenas condicionada; só é necessária quando lhe está ainda subjacente um falso pressuposto; quando uma verdade, uma doutrina, entra em contradição com uma teoria que vale ainda como verdadeira e é ainda objeto de respeito. A verdade que se mediatiza é ainda a verdade enredada no seu contrário. Começa-se pela oposição; mas, em seguida, esta suprime-se. Se ela é, pois, algo a eliminar e a negar, porque tenho eu de começar por ela, em vez de começar imediatamente pela sua negação? Um exemplo. Deus enquanto Deus é um ser abstrato; particulariza-se, determina-se, realiza-se no mundo e no homem; é pois concreto, só assim se nega a essência. Mas por que é que não devo então começar pelo concreto? Por que é que o certo e garantido por si mesmo não deve ser superior ao que é certo mediante a nulidade do seu contrário? Quem pode, pois, transformar a mediação em necessidade, em lei da verdade? Só quem se encontra ainda enredado no que se deve negar, que ainda combate e luta consigo, que ainda não se encontra em harmonia consigo: numa palavra, somente aquele em que uma verdade é apenas talento, tarefa de uma faculdade particular, por eminente que seja, e não gênio, tarefa do homem inteiro. O gênio é o saber imediato e sensível. O que o talento tem apenas na cabeça, tem-no o gênio na carne e no sangue; isto é, o que para o talento é ainda um objeto do pensar, constitui para o gênio um objeto dos sentidos.

39

A antiga filosofia absoluta rejeitou os sentidos para o domínio dos fenômenos, da finitude; e, no entanto, determinou contraditoriamente o absoluto, o divino, como o objeto da arte. Mas o objeto da arte — mediatamente nas belas letras, e imediatamente nas artes plásticas — é objeto da vista, do ouvido e do tato. Portanto, não é só o finito, o fenômeno, mas também a essência verdadeira e divina que é objeto dos sentidos — os sentidos são o órgão do absoluto. A arte “representa a verdade no sensível” — corretamente compreendido e expresso isto significa: a arte representa a verdade do sensível.

40

O que se passa com a arte, passa-se também com a religião. A intuição sensível, e não a representação, é a essência da religião cristã — a forma, o órgão do ser supremo, do ser divino. Mas onde a intuição sensível figura como órgão do ser divino e verdadeiro, aí se expressa e reconhece também o ser divino como um ser sensível, e o ser sensível como o ser divino; pois tal sujeito, tal objeto.

“E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória.” Só para a posteridade é que o objeto da religião cristã constitui um objeto da representação e da fantasia; mas restaura-se a intuição originária. No céu, Cristo e Deus são objeto da intuição imediata e sensível; aí, transforma-se de objeto da representação, do pensamento, portanto de ser espiritual, no que aqui é para nós, num ser sensível, palpável e visível. E esta intuição é não só o começo, mas também a meta — por conseguinte, a essência do Cristianismo. A filosofia especulativa não concebeu, pois, a arte e a religião na luz verdadeira, na luz da realidade efetiva, mas apenas no claro-escuro da reflexão porque, em virtude do seu princípio, que é a abstração da sensibilidade, o sensível volatilizou-se em simples determinidade formal: a arte é Deus na determinidade formal da intuição sensível, a religião é Deus na da representação. Mas, na verdade, o ser é justamente o que à reflexão aparece apenas como a forma. Quando Deus aparece e se adora no fogo, adora-se em verdade o fogo como Deus. O Deus que reside no fogo nada mais é do que a essência do fogo que impressiona o homem por causa dos seus efeitos e propriedades; o Deus que reside no homem nada mais é do que a essência do homem. E, de igual modo, o que a arte representa na forma da sensibilidade nada mais é do que a essência própria do sensível e inseparável de tal forma.

41

As coisas “externas” não são o único objeto dos sentidos. O homem só é dado a si mesmo através dos sentidos — ele é para si mesmo objeto enquanto objeto dos sentidos. A identidade de sujeito e objeto, apenas pensamento abstrato na autoconsciência, é verdade e realidade efetiva somente na intuição sensível que o homem tem do homem.

Não só sentimos pedras e paus, carne e ossos, mas experimentamos também sentimentos, quando premimos as mãos ou os lábios de um ser sensível; percepcionamos pelos ouvidos não só o murmúrio da água e o rumorejo das folhas, mas também a voz ardorosa do amor e da sabedora; vemos não só superfícies refletoras e fantasmas coloridos, vemos também o olhar do homem. Por conseguinte, não só algo de externo, mas também interno, não só carne, mas também espírito, não só a coisa, mas também o eu é objeto dos sentidos. — Tudo é, pois, perceptível aos sentidos, se não imediatamente, pelo menos de um modo mediato; se não aos plebeus, aos brutos, pelo menos aos de sentidos educados; se não aos olhos do anatomista ou do químico, pelo menos aos olhos do filósofo. Por isso, é com razão que o empirismo deriva também dos sentidos a origem das nossas ideias; esquece-se apenas de que o objeto mais importante e mais essencial dos sentidos humanos é o próprio homem; que unicamente no olhar do homem sobre o homem se acende a luz da consciência e do entendimento. Por conseguinte, o idealismo tem razão quando busca no homem a origem das ideias; mas erra ao querer derivá-las do homem isolado, fixado como ser que existe para si, com alma, numa palavra: ao querer deduzi-las do eu sem um tu sensivelmente dado. Só mediante a comunicação, apenas a partir da conversação do homem com o homem brotam as ideias. Não é sozinho, mas apenas a dois que se chega aos conceitos, à razão em geral. Dois homens se requerem para a geração do homem — o homem espiritual e o homem físico; a comunidade do homem com o homem é o princípio e o critério da verdade e da universalidade. A própria certeza das outras coisas fora de mim é para mim mediada pela certeza da existência de um outro homem exterior a mim. Duvido daquilo que só eu vejo; só é certo o que o outro também vê.

42

As diferenças entre essência e aparência, fundamento e consequência, substância e acidente, necessário e contingente, especulativo e empírico, não constituem dois reinos ou mundos — um mundo suprassensível, a que pertence a essência, e um mundo sensível, a que pertence a aparência; tais diferenças integram-se antes no domínio da própria sensibilidade.

Um exemplo tirado das ciências da natureza. No sistema botânico de Lineu, as primeiras classes definem-se pelo número dos filamentos. Mas já na undécima classe, onde ocorrem doze a vinte filamentos, e mais ainda na classe dos vinte elementos masculinos, a determinação numérica não desempenha qualquer papel; deixa de se contar. Temos pois aqui, diante dos nossos olhos, num só e mesmo domínio, a diferença entre uma multiplicidade determinada e uma multiplicidade indeterminada, entre uma multiplicidade necessária e uma multiplicidade indiferente, entre uma multiplicidade racional e uma multiplicidade irracional. Por conseguinte, não precisamos ir além da sensibilidade para chegarmos ao limite do puramente sensível, do unicamente empírico, no sentido da filosofia absoluta; devemos apenas não separar dos sentidos o entendimento para encontrar no sensível o suprassensível, isto é, o espírito e a razão.

43

O sensível não é o imediato no sentido da filosofia especulativa, no sentido de que o profano, que está ao alcance da mão, o desprovido de pensamento, seja o que por si mesmo se compreende. A intuição imediata e sensível é, pelo contrário, posterior à representação e à fantasia. A primeira intuição do homem é unicamente a intuição de representação e da fantasia. A tarefa da filosofia e da ciência em geral consiste, pois, não em se afastar das coisas sensíveis, isto é, efetivas, mas em ir até elas — não em transformar os objetos em pensamentos e em representações, mas em tornar visível, objetivo, o que é invisível para os olhos comuns.

Os homens divisam primeiramente as coisas só como lhes aparecem, e não como são; nas coisas não as veem a elas próprias, mas unicamente as suas ideias acerca delas, projetam nelas a sua própria essência, não distinguem o objeto e a representação que dele têm. A representação está mais próxima que a intuição do homem sem cultura, do homem subjetivo; na intuição, de fato, ele arranca-se de si mesmo, na representação, porém, permanece em si próprio. Mas o que se passa com a representação passa-se também com o pensamento. Os homens ocupam-se primeiro e durante muito mais tempo com as coisas celestes, divinas, do que com as coisas terrestres e humanas, isto é, muito mais longamente com a tradução das coisas em pensamentos do que com as coisas no original, na língua primigênia. Só nos tempos modernos é que a humanidade, como outrora na Grécia, após o prelúdio do mundo onírico dos orientais, é que regressou à intuição sensível, isto é, não falsificada e objetiva do sensível, do real, chegando assim ao mesmo tempo também a si mesma; com efeito, um homem que se ocupa apenas com a essência da imaginação ou do pensamento abstrato, é ele próprio unicamente um ser abstrato ou fantasmal, e não um ser real, verdadeiramente humano. A realidade do homem depende somente da realidade do seu objeto. Se nada tens, nada és.

44

O espaço e o tempo não são simples formas fenomenais — são condições do ser, formas da razão, leis tanto do ser como do pensar.

O ser-aí é o primeiro ser, a primeira determinação. Estou aqui — eis o primeiro sinal de um ser real e vivo. O índex é o guia do nada para o ser. Aqui está o primeiro limite, a primeira separação. Eu estou aqui, tu além; somos exteriores um ao outro; eis porque podemos ser dois, sem nos prejudicarmos; há lugar suficiente. O Sol não está onde Mercúrio se encontra, nem Mercúrio está onde se encontra Vênus, o olho não está onde está o ouvido etc. Sem espaço, também não há lugar para sistema algum. A determinação local é a primeira determinação da razão, na qual assenta toda a ulterior determinação. É pela distinção dos lugares diversos — mas com o espaço põem-se imediatamente lugares distintos — que começa a natureza organizadora. É apenas no espaço que a razão se orienta. Onde estou eu? Eis a pergunta da consciência que desperta, a primeira pergunta da sabedoria mundana. A limitação no espaço e no tempo é a primeira virtude, a diferença de lugar é a primeira diferença entre o conveniente e o inconveniente, que ensinamos à criança e ao homem grosseiro. O homem grosseiro é indiferente ao lugar e faz tudo em qualquer lugar, sem distinção; o louco igualmente. Por isso, os loucos só vêm à razão quando de novo se religam ao lugar e ao tempo. Dispor coisas diferentes em lugares diversos, separar espacialmente o que é diferente no plano qualitativo, eis a condição de toda a economia, mesmo da espiritual. Não pôr no texto o que pertence à nota, não pôr no começo o que incumbe apenas ao fim, numa palavra, a distinção e a limitação espaciais fazem também parte da sabedoria do escritor.

Sem dúvida, trata-se aqui sempre de um lugar determinado; mas também nada mais se considera a não ser a especificação do local. E eu não posso isolar o lugar do espaço, se pretendo conceber o espaço na sua realidade. Só com o onde é que surge em mim o conceito de espaço. Onde? — É uma pergunta universal, vale para todos os lugares sem distinção e, no entanto, o onde é determinado. Com este onde põe-se ao mesmo tempo aquele onde, com a determinidade do lugar põe-se, portanto, simultaneamente a universalidade do espaço; mas, justamente por isso, o conceito universal do espaço é um conceito real, concreto, só na conexão com a determinidade do lugar. Hegel dá ao espaço, como em geral à natureza, apenas uma determinação negativa. Somente “estar-aqui” é positivo. Não estou além, porque estou aqui — este não-estar-além é, pois, uma consequência do estar-aqui positivo, rico de sentido. É somente um limite da tua representação, mas não um limite em si, que o aqui não seja o além, que uma coisa seja exterior à outra. É uma exterioridade que deve existir, que não se opõe à razão, mas se lhe conforma. Mas, em Hegel, esta exterioridade recíproca é uma determinação negativa, porque é a exterioridade do que não deve ser exterior — com efeito, o conceito lógico, enquanto identidade absoluta consigo mesmo, tem-se por verdade — e o espaço é justamente a negação da Ideia, da razão, negação na qual, pois, só se pode de novo reintroduzir a razão, negando-a. Mas longe de o espaço ser a negação da razão, é pelo contrário no espaço que justamente importa abrir lugar à Ideia e à razão; o espaço é a primeira esfera da razão. Sem exterioridade espacial, também não existe exterioridade lógica alguma. Ou inversamente: se, como Hegel, quisermos passar da lógica para o espaço onde não há distinção, também não existe espaço algum. As diferenças que existem no pensamento devem realizar-se como seres distintos; mas os seres distintos são espacialmente exteriores uns aos outros. Por conseguinte, a exterioridade recíproca espacial é que apenas constitui a verdade das distinções lógicas. Mas a exterioridade só pode pensar-se na sucessão. O pensamento real é pensamento no espaço e no tempo. A negação do espaço e do tempo (duração) insere-se sempre no interior do espaço e do tempo. Queremos economizar espaço e tempo unicamente para ganharmos espaço e tempo.

45

Não nos é permitido pensar as coisas de outro modo a não ser como ocorrem na realidade efetiva. O que na realidade está separado, também se não deve identificar no pensamento. Excetuar o pensamento, a Ideia — o mundo inteligível dos neoplatônicos — das leis da realidade efetiva é o privilégio do arbitrário teológico. As leis da realidade são também leis do pensamento.

46

A unidade imediata de determinações contrárias só é possível e válida na abstração. Na realidade efetiva, os contrários estão sempre conexos apenas mediante um termo médio. Este termo médio é o objeto, o sujeito dos contrários.

Nada é, portanto, mais fácil do que mostrar a unidade dos predicados contrários; basta abstraí-los do objeto, ou do seu sujeito. Com o objeto, esvanece-se a fronteira entre os opostos; perdem então todo o fundamento e toda a consistência, portanto coincidem imediatamente. Se, por exemplo, considero o ser apenas como tal, abstraio de toda a determinidade existente, tenho então naturalmente ser igual a nada. Só a determinidade constitui a distinção, a fronteira entre o ser e o nada. Se eu deixo de lado o que é, o que é que pode ser ainda este simples é? Mas o que vale para esta contradição e para a sua identidade é igualmente válido para a identidade dos restantes contrários na filosofia especulativa.

47

O termo médio capaz de unir, de um modo conforme à realidade, determinações opostas ou contraditórias num só e mesmo ser — é apenas o tempo.

Assim acontece, pelo menos no ser vivo. Assim somente aqui, por exemplo no homem, se torna evidente a contradição de eu ser assolado e dominado ora por esta determinação — sentimento, intenção — ora por uma outra que é justamente contrária. Só quando uma representação expulsa a outra e um sentimento repele o outro, quando não se chega a nenhuma decisão, a nenhuma determinidade persistente, quando a alma se encontra numa alternância contínua de estados opostos, é que ela se encontra no suplício infernal da contradição. Se eu pudesse unir em mim, ao mesmo tempo, as determinações opostas, elas neutralizar-se-iam e esbater-se-iam como os contrários do processo químico que, nele presentes simultaneamente, perdem a sua diferença num produto neutro. Mas justamente querer agora e ser apaixonadamente o que, no instante seguinte, me recusarei, com a mesma energia, a querer e a ser, passar da posição à negação e vice-versa, ser afetado por ambos os contrários, mas de tal modo que cada um exclui o outro e, portanto, por cada qual na sua determinação plena e no seu rigor, eis o que constitui a dor da contradição.

48

O real não pode representar-se no pensamento em números inteiros, mas apenas em números fracionários. Esta diferença é uma diferença normal — assenta na natureza do pensamento, cuja essência é a universalidade, diversamente da realidade, cuja essência é a individualidade. Mas impedir que nesta diferença não se chegue a uma contradição formal entre o pensado e o real só é possível se o pensar, em vez de progredir em linha reta, em identidade consigo mesmo, se deixa interromper pela intuição sensível. Somente o pensar que se determina e se retifica por meio da intuição sensível é um pensar real, objetivo — pensamento da verdade objetiva.

O que, acima de tudo, importa saber é que o pensar absoluto, isto é, isolado e separado da sensibilidade, não vai além da identidade formal a identidade do pensamento consigo mesmo; com efeito, embora o pensamento ou o conceito se determine como a unidade de determinações opostas, estas determinações são, contudo, de novo apenas abstrações, determinações de pensamento — por conseguinte, sempre mais uma vez, identidades do pensamento consigo, apenas múltiplos da identidade, de que se partiu como verdade absoluta. O outro, que a ideia a si contrapõe, não é, enquanto algo por ela posto, nem verdadeiramente, realiter, dela distinto, nem livre fora da ideia; quando muito, é apenas pro forma, simples formalidade, para mostrar a sua liberalidade; pois este outro da ideia é novamente a ideia, apenas não ainda na forma da ideia, não ainda posto, realizado como ideia. Assim o pensamento por si só não chega a nenhuma distinção positiva e oposição de si e, por isso mesmo, não possui também nenhum outro critério da verdade exceto o de que algo não contradiga a ideia e o pensamento, portanto um critério simplesmente formal, subjetivo, que não decide se a verdade pensada é também uma verdade efetiva. O único critério que a este respeito decide é a intuição. Importa sempre ouvir também o adversário. Mas justamente a intuição sensível é a parte contrária do pensamento. A intuição toma as coisas num sentido amplo, o pensamento no sentido mais estrito; a intuição deixa as coisas na sua liberdade ilimitada, o pensamento dá-lhes leis, mas estas são apenas com demasiada frequência despóticas; a intuição esclarece a cabeça, mas nada determina e decide; o pensamento determina, mas limita também muitas vezes a cabeça; a intuição por si não tem princípios alguns, o pensamento não tem por si nenhuma vida; a regra é a tarefa do pensamento, a exceção à regra é a tarefa da intuição. Por conseguinte, assim como só a intuição determinada pelo pensamento é a verdadeira intuição, assim também, inversamente, só o pensamento alargado e aberto pela intuição é o verdadeiro pensamento, o pensamento conforme à essência da realidade efetiva. O pensamento idêntico consigo e contínuo faz, em contradição com a realidade efetiva, girar o mundo em torno do seu centro; mas o pensamento interrompido pela observação da não uniformidade deste movimento, portanto pela anomalia da intuição, transforma, de acordo com a verdade, este círculo numa elipse. O círculo é o símbolo e o brasão da filosofia especulativa, do pensamento que apenas se apoia em si mesmo também a filosofia hegeliana é, como se sabe, um círculo de círculos, embora ela, em relação aos planetas, mas só a tal determinada pela empiria, explique a órbita circular como “a trajetória de um movimento uniforme”; a elipse, pelo contrário, é o símbolo e o brasão da filosofia sensível, do pensamento que se apoia na intuição.

49

As determinações que garantem o conhecimento real são sempre apenas as que determinam o objeto pelo próprio objeto as suas determinações próprias, individuais — portanto não são universais, como as determinações lógico-metafísicas que, por se estenderem a todos os objetos sem distinção, não determinam objeto algum.

Com toda a razão, pois, Hegel transformou as determinações lógico-metafísicas de determinações de objetos em determinações autônomas — autodeterminações do conceito; de predicados, que elas eram na antiga metafísica, fez sujeitos, e deu assim à metafísica ou à lógica a significação do saber autossuficiente e divino. Mas é uma contradição transformar em seguida, apesar de tudo, nas ciências concretas, como também na antiga metafísica, estas sombras lógico-metafísicas em determinações das coisas reais, o que naturalmente só é possível com a condição ou de sempre associar determinações concretas, tiradas do próprio objeto, e portanto justas, às determinações lógico-metafísicas, ou reduzir o objeto a determinações totalmente abstratas, nas quais ele já não é reconhecível.

50

O real na sua realidade e totalidade, o objeto da nova filosofia, é também só objeto para um ser real e total. A nova filosofia tem, pois, como seu princípio de conhecimento, como seu sujeito, não o eu, não o espírito absoluto, isto é, abstrato, numa palavra, não a razão por si só, mas o ser real e total do homem. A realidade, o sujeito da razão é apenas o homem. É o homem que pensa, e não o eu, não a razão. A nova filosofia não se apoia, portanto, na divindade, isto é, na verdade da razão por si só, apoia-se na divindade, na verdade do homem total. Ou: apoia-se, sem dúvida, também na razão, mas na razão cuja essência é o ser humano; por conseguinte, não numa razão sem ser, sem cor e sem nome, mas na razão impregnada com o sangue do homem. Se, pois, a antiga filosofia dizia — “só o racional é o verdadeiro e o real” —, então, ao invés, a nova filosofia diz — só o humano é o verdadeiro e o real; com efeito, unicamente o humano é o racional; o homem é a medida da razão.

51

A unidade do pensamento e do ser só tem sentido e verdade, se o homem se conceber como o princípio, o sujeito desta unidade. Só um ser real conhece coisas reais; só onde o pensar não se toma como sujeito para si mesmo, mas predicado de um ser real, é que o pensamento não está também separado do ser. A unidade do pensar e do ser não é, pois, uma unidade formal de modo que ao pensar em si e para si se acrescente o ser como uma determinidade; depende somente do objeto, do conteúdo do pensamento.

Daí se segue o imperativo categórico seguinte. Não queiras ser filósofo na discriminação quanto ao homem; sê apenas um homem que pensa; não penses como pensador, isto é, numa faculdade arrancada à totalidade do ser humano real e para si isolada; pensa como ser vivo e real, exposto às vagas vivificantes e refrescantes do oceano do mundo; pensa na existência, no mundo como membro do mundo, e não no vazio da abstração como uma mônada isolada, como monarca absoluto, como um deus indiferente e exterior ao mundo — podes, depois, estar certo de que os teus pensamentos são unidades de ser e de pensar. Como é que o pensamento, enquanto atividade de um ser real, não deverá captar as coisas e os seres reais? Só quando se separa o pensamento do homem e se fixa para si mesmo é que surgem as questões penosas, estéreis e, deste ponto de vista, insolúveis: como é que o pensamento acede ao ser e ao objeto? Com efeito, fixado para si mesmo, isto é, posto fora do homem, o pensar encontra-se fora de toda a conexão e relação com o mundo. Elevas-te ao objeto só quando te baixas, até fazeres de ti próprio um objeto de outro. Só pensas porque os teus próprios pensamentos podem ser pensados, e eles só são verdadeiros se superarem a prova da objetividade, se o outro, fora de ti, para o qual eles são objeto, também os reconhecer. Vês só enquanto tu próprio és um ser visível, só sentes, enquanto és igualmente um ser tangível. O mundo encontra-se aberto só para uma cabeça aberta, e as aberturas da cabeça são unicamente os sentidos. Mas o pensamento isolado para si mesmo, em si fechado, o pensamento sem sentidos, sem o homem, fora do homem, é o sujeito absoluto, que não pode nem deve ser o objeto para outrem e, por isso mesmo, não obstante todos os seus esforços, não encontra agora nem nunca uma passagem para o objeto, para o ser; como também uma cabeça, que está separada do tronco, é incapaz de encontrar uma passagem para a apreensão de um objeto, porque lhe faltam os meios de preensão.

52

A nova filosofia é a resolução plena, absoluta, não contraditória da teologia na antropologia; com efeito, é a solução da mesma não apenas, como a antiga filosofia, na razão, mas também no coração, em suma, no ser total e real do homem. Nesta acepção, ela é apenas o resultado necessário da antiga filosofia — pois o que uma vez é resolvido no entendimento deve, por fim, resolver-se também na vida, no coração, no sangue do homem — mas ao mesmo tempo, só ela é a verdade da mesma e, claro está, como uma verdade nova e autônoma; efetivamente, só a verdade feita carne e sangue é que é a verdade. A antiga filosofia recaía necessariamente na teologia: o que se suprime apenas no entendimento, no simples conceito, possui ainda um contrário no coração; em contrapartida, a nova filosofia já não pode ser relapsa: o que ao mesmo tempo morreu no corpo e na alma já nem sequer pode regressar como fantasma.

53

O homem de nenhum modo se distingue do animal só pelo pensamento. Pelo contrário, o seu ser total é que o distingue do animal. Sem dúvida, aquele que não pensa não é homem algum; não é porque o pensar seja a causa do ser humano, mas unicamente porque é uma consequência e uma propriedade necessária do mesmo ser humano.

Por conseguinte, não precisamos aqui sair do domínio da sensibilidade para reconhecer no homem um ser superior aos animais. O homem não é um ser particular como o animal, mas um ser universal, por conseguinte, não é um ser limitado e cativo, mas um ser ilimitado e livre; com efeito, a universalidade, a ilimitação e a liberdade são inseparáveis. E esta liberdade também não reside numa faculdade particular, na vontade, da mesma maneira que esta universalidade não se situa numa disposição particular da faculdade de pensar, na razão — esta liberdade, esta universalidade estende-se ao seu ser total. Sem dúvida, os sentidos animais são mais agudos do que os humanos, mas apenas em relação a coisas determinadas, necessariamente conexas com as necessidades do animal, e são mais agudos justamente por causa dessa determinação, desta restrição exclusiva a algo de determinado. O homem não tem o faro de um cão de caça, de um corvo; mas apenas porque o seu olfato pode abranger todas as espécies de odores, pelo que é um sentido livre e indiferente a respeito de odores particulares. Mas onde um sentido se eleva acima dos limites da particularidade e da sua vinculação à necessidade, eleva-se a uma significação e dignidade autônomas, teóricas: sentido universal é o entendimento, sensibilidade universal é espiritualidade. Mesmo os sentidos mais baixos, o olfato e o gosto, se elevam no homem a atos espirituais e científicos. O olfato e o gosto das coisas são objetos da ciência da natureza. Até mesmo o estômago do homem, por mais desdenhosamente que o olhemos, não é um ser animal, mas humano, porque é universal, não confinado a espécies determinadas de alimentos. É precisamente por isso que o homem se subtrai à fúria da voracidade com que o animal se lança sobre a sua presa. Deixa a um homem a sua cabeça, mas dá-lhe o estômago de um leão ou de um cavalo — ele cessa imediatamente de ser um homem. Um estômago limitado harmoniza-se também apenas com um sentido limitado, isto é, animal. A relação moral e racional do homem com o estômago não consiste, pois, em lidar com ele como ser bestial, mas como ser humano. Quem faz terminar a humanidade no estômago, rejeita o estômago para a classe dos animais, autoriza o homem a comer como uma besta.

54

A nova filosofia faz do homem, com a inclusão da natureza, enquanto base do homem, o objeto único, universal e supremo da filosofia — faz, pois, da antropologia, com inclusão da fisiologia, a ciência universal.

55

A arte, a religião, a filosofia ou a ciência são apenas as manifestações ou revelações do ser humano verdadeiro. Homem perfeito e verdadeiro é apenas quem possui o sentido estético ou artístico, religioso ou moral, filosófico ou cientifico — homem em geral somente é aquele que nada de essencialmente humano exclui de si mesmo. Homo sum, humani nihil a me alienum puto — esta frase, tomada na sua significação mais universal e mais elevada, é a divisa do novo filósofo.

56

A filosofia da identidade absoluta inverteu completamente o ponto de vista da verdade. O ponto de vista natural do homem, o ponto de vista da distinção em eu e tu, em sujeito e objeto, é o ponto de vista verdadeiro e absoluto, por conseguinte, também o ponto de vista da filosofia.

57

A unidade da cabeça e do coração conforme à verdade não consiste na extinção ou na supressão da sua diferença, mas antes no fato de que o objeto essencial do coração é também o objeto essencial da cabeça — por conseguinte, apenas na identidade do objeto. A nova filosofia, que faz do essencial e supremo objeto do coração, o homem, também o objeto mais essencial e supremo do entendimento, funda pois uma unidade racional da cabeça e do coração, do pensamento e da vida.

58

A verdade não existe no pensamento, no saber por si mesmo. A verdade é unicamente a totalidade da vida e da essência humanas.

59

O homem singular por si não possui em si a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem — uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu.

60

A solidão é finitude e limitação, a comunidade é liberdade e infinidade. O homem para si é um homem (no sentido habitual); o homem com o homem — a unidade do eu e do tu — é Deus.

61

O filósofo absoluto, em analogia com o l‘état c’est moi do monarca absoluto e l‘être c‘est moi do Deus absoluto, dizia ou, pelo menos, pensava de si, enquanto pensador naturalmente, não como homem: la vérité c‘est moi. O filósofo humano, pelo contrário, diz: no próprio pensamento, também enquanto filósofo, sou um homem com os homens.

62

A verdadeira dialética não é um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre o eu e o tu.

63

A Trindade era o mistério supremo, o ponto central da filosofia e da religião absolutas. Mas o seu segredo, como se provou histórica e filosoficamente em A Essência do Cristianismo, é o segredo da vida comum e social o segredo da necessidade do tu para o eu a verdade de que nenhum ser, quer seja ou se chame homem ou Deus, espírito ou eu, é apenas por si mesmo um ser verdadeiro, perfeito e absoluto, e que só a ligação, a unidade de seres de idêntica essência constitui a verdade e a perfeição. O princípio supremo e último da filosofia é, pois, a unidade do homem com o homem. Todas as relações fundamentais — os princípios das diferentes ciências são unicamente espécies e modos diferentes desta unidade.

64

A antiga filosofia possui uma dupla verdade — a verdade para si mesma, que não se preocupava com o homem — a filosofia — e a verdade para o homem a religião. Pelo contrário, a nova filosofia, enquanto filosofia do homem — é também essencialmente a filosofia para o homem — possui, sem prejuízo para a dignidade e a autonomia da teoria, mais, na consonância mais íntima com a mesma, essencialmente uma tendência prática e, claro está, prática no sentido mais elevado; vem ocupar o lugar da religião, tem em si a essência da religião, ela própria é em verdade religião.

65

As tentativas de reforma até agora feitas na filosofia distinguem-se, mais ou menos, da antiga filosofia apenas segundo a espécie, não segundo o gênero. A condição mais imperativa de uma filosofia realmente nova, isto é, independente e que corresponde à necessidade da humanidade e do futuro, é que ela se distinga da antiga filosofia segundo a essência.

Notas

* Publicado primeiramente como escrito autônomo na Suíça e com o seguinte Prólogo: “Estes princípios contêm a continuação e a ulterior fundamentação das minhas Teses para a reforma da filosofia, votadas ao exílio pela arbitrariedade irrefreada da censura alemã. Em conformidade com o primeiro manuscrito, visavam ser um livro completo; mas, quando encetei a redação definitiva, apossou-se de mim — não sei como — o espírito de censura alemã e risquei de um modo bárbaro. Tudo o que esta censura indireta deixou subsistir reduz-se aos seguintes cadernos, que são poucos. Dei-lhes o nome de “Princípios da filosofia do futuro” porque o tempo presente em geral, enquanto época de ilusões refinadas e de preconceitos de bruxa velha, é incapaz de capiscar e ainda menos de apreciar, justamente em virtude da sua simplicidade, as verdades simples de que estes princípios são abstraídos. A filosofia do futuro tem a tarefa de reconduzir a filosofia do reino das “almas penadas” para o reino das almas encarnadas, das almas vivas; de a fazer descer da beatitude de um pensamento divino e sem necessidades para a miséria humana. Para esse fim de nada mais precisa do que de um entendimento humano e de uma linguagem humana. Mas pensar, falar e agir de modo puramente humano só está concedido às gerações futuras. Hoje, ainda não se trata de exibir o homem, mas de o tirar da lama em que mergulhou. O fruto deste trabalho limpo e penoso são também estes princípios. A sua tarefa era deduzir da filosofia do Absoluto, isto é, da teologia, a necessidade da filosofia do homem, isto é, da antropologia e, mediante a crítica da filosofia divina, fundamentar a crítica da filosofia humana. Pressupõem, pois, para a sua apreciação, um exato conhecimento dos tempos modernos. As consequências destes princípios não se farão esperar. Bruckberg, 9 de Julho de 1843”

  1. É evidente que aqui, como em todos os parágrafos que envolvem e dizem respeito a temas históricos, eu falo e argumento não no meu sentido, mas no sentido do objeto invocado; portanto, aqui, no sentido do teísmo.
  2. As diferenças entre materialismo, empirismo, realismo e humanismo são, naturalmente, indiferentes no presente escrito.
Nota do Tradutor

O traslado aqui proposto data de 1988, ano em que foi publicado, mas surge agora refeito e modificado em vários pormenores. Na sua base, está a Gesammtausgabe das obras de L. Feuerbach, pronta e realizada por Wilhelm Bolin e Friedrich Jodl.

  • autor: Ludwig Feuerbach
  • tradução:Artur Morão
  • fonte: Lusosofia