Apresentação
Se algo desperta a nossa atenção, ao percorrermos os textos de L. Feuerbach, é a presença incessante da teologia. Conhece-a em primeira mão, está dela imbuído, com ela obcecado. Ele próprio afirmou: “Todos os meus escritos têm, em rigor, apenas um objetivo, uma vontade, um tema. Este tema é justamente a religião e a teologia e o que com elas se relaciona.”
E a partir daí limita-se a fazer antiteologia, a explorar o núcleo ou o cerne antropológico presente no cristianismo. Como lembra Kart Barth no capítulo que lhe dedicou em A teologia protestante do século XIX — ele quer transformar a teologia em antropologia, os amigos de Deus em amigos dos homens, os candidatos do além em estudiosos do aquém, o cristão no homem total, a fé no amor, o sobrenaturalismo — que reprova a Kant, Fichte e Hegel — em vida real. O ateísmo que ele desdobra a partir do fundo teológico — e talvez por isso mesmo — possui um tom afirmativo e substancial que, em grande parte, falta aos ateísmos posteriores, sobretudo ao contemporâneo, que se agita nas águas estagnadas do niilismo e é, quando muito, escorado por um cientismo superficial e por um naturalismo que nega o que pretende asserir e defender.
Falta decerto em Feuerbach a inserção no social, no movimento real e nos mecanismos da história — vai nesse sentido a censura que K. Marx lhe move — mas, por outro lado, explora aspectos que o último descurou: a relação do Eu-Tu, um sentido mais profundo da existência humana, o entrosamento da minha consciência com a consciência do outro e com a consciência do mundo, uma mais intensa valorização da nossa sensibilidade e carnalidade, uma proposta mais nítida do papel da comunidade humana e não apenas das classes.
Notável é a concepção da política e do Estado, derivada da redução extrema que ele faz da cristologia, e que constitui o gérmen filosófico fundamental do presente escrito, ao mesmo tempo resultado de uma aguda percepção da crise do seu tempo e um apelo à transformação radical do pensamento. No seu convite á “coragem do negativo”, à transformação da religião em política e da política em religião do homem, padece porventura de uma ingenuidade incurável, pois o filósofo não conseguiu, aparentemente, vislumbrar a inversão da república providente no seu contrário; de fato, o Estado, em vez de ser sempre uma divindade tutelar, pode encarnar antes o elemento demoníaco, que também pode habitar e assediar os homens, precisamente nas redes sociais em que se emaranha e se passa a sua vida.
Artur Morão
Necessidade de uma Reforma da Filosofia
(1842)
Ludwig Feuerbach
Uma nova filosofia que se situa numa época comum às filosofias precedentes é algo de inteiramente diverso de uma filosofia que incide num período totalmente novo da humanidade; isto é, uma filosofia que deve a sua existência apenas à necessidade filosófica como, por exemplo, a de Fichte em relação à kantiana, é uma coisa; mas uma filosofia que corresponde a uma necessidade da humanidade é outra coisa inteiramente diferente; uma filosofia que se inscreve na história da filosofia e só indiretamente, por meio dela, se relaciona com a história da humanidade é uma coisa; mas uma filosofia que é imediatamente a história da humanidade é outra coisa de todo diversa.
Pergunta-se, pois: é urgente uma transformação, uma reforma e uma renovação da filosofia? E, nesse caso, como pode, como deve ela constituir-se? Far-se-á esta transformação no espírito e no sentido da filosofia tradicional ou num sentido novo? Trata-se de uma filosofia como a que até agora existiu ou de uma essencialmente diversa? Ambas as questões dependem de outra: encontramo-nos no limiar de uma nova época, de um novo período da humanidade ou prosseguimos em caminhos já batidos? Continuamos agarrados ao homem velho, só com as modificações que inevitavelmente têm lugar com o progresso do tempo? Se encarássemos a questão da necessidade de uma transformação apenas do ponto de vista filosófico, encará-la-íamos de um modo demasiado restrito, mais, permaneceríamos no campo de uma banal querela de escola. Nada mais vão.
A reforma da filosofia só pode ser a necessária, a verdadeira, a que corresponde à necessidade da época, da humanidade. Em períodos da decadência de uma concepção do mundo de alcance histórico, há certamente necessidades contrárias — para uns é, ou parece, necessário conservar o antigo e banir o que é novo; para outros, é imperativo realizar o novo. Em que lado reside a verdadeira necessidade? Naquele que tem a exigência do futuro — o futuro antecipado: naquele que é movimento para a frente. A necessidade de conservação é somente uma necessidade artificial, criada — é apenas reação. A filosofia hegeliana foi a síntese arbitrária de diversos sistemas existentes, de insuficiências — sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo tem a força de criar a novidade.
Os períodos da humanidade distinguem-se apenas por transformações religiosas. O movimento histórico só obtém um fundamento onde ele penetra no coração do homem. O coração não é uma forma da religião, como se ela houvesse também de residir no coração; é a essência da religião. Surge, pois, a questão: teve já lugar em nós uma revolução religiosa? Sim; já não temos coração, já não temos religião. O Cristianismo é negado — negado mesmo por aqueles que ainda parecem sustentá-lo; mas não se quer dizer em voz alta que é negado. Não se diz isso por razões de política, faz-se disso um segredo; alimenta-se a este respeito, de modo intencional ou não, uma ilusão; mas faz-se passar a negação do Cristianismo por Cristianismo, faz-se do Cristianismo um simples nome. Vai-se tão longe na negação do Cristianismo que se rejeita todo o critério positivo e não se exige como critério do cristão nem os livros simbólicos, nem os Padres da Igreja, nem a Bíblia: como se não fora verdade que toda a religião só permanece religião enquanto possui um determinado critério do religioso, um determinado centro e um princípio determinado. Tal é a conservação sob a forma da negação. Que é, pois, o Cristianismo? Se não temos mais nenhum testamento, por onde reconhecemos a vontade, o espírito do fundador? Isto significa apenas que já não existe Cristianismo algum. Semelhantes manifestações são apenas revelações da decadência interna, mais, a decadência do Cristianismo.
O Cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito, nem sequer satisfaz ainda o coração, porque temos outros interesses para o nosso coração, diferentes da beatitude celeste e eterna.
A filosofia prevalente pertence ao período da decadência do Cristianismo, da sua negação, mas que pretendia ser ao mesmo tempo ainda a sua posição. A filosofia hegeliana dissimulava a negação do Cristianismo sob a contradição entre representação e pensamento: isto é, negava o Cristianismo ao povo, e à sombra da contradição entre o Cristianismo das origens e o Cristianismo acabado. Nas origens, o cristianismo teria sido necessário; aqui, todos os laços foram rejeitados. Uma religião só se mantém se ela se preservar no seu sentido inicial, originário. Na origem, a religião é fogo, energia, verdade; toda a religião começa por ser estrita e incondicionalmente religiosa mas, com o tempo, esgota-se, torna-se laxa, infiel a si mesma, indiferente, submete-se à lei do ato. Para reconciliar com a religião esta contradição da prática, esta apostasia da religião, para a dissimular, recorre-se à tradição ou à modificação do antigo livro da Lei. Assim os Judeus. Os cristãos conseguem dar às suas Escrituras sagradas um sentido radicalmente contraposto a esses textos.
O Cristianismo é negado — negado no espírito e no coração, na ciência e na vida, na arte e na indústria, radicalmente, de um modo irrevogável, sem apelo, porque os homens de tal modo se apropriaram do verdadeiro, do humano, do antissagrado, que se roubou ao cristianismo toda a força de oposição. Até agora, a negação era uma negação inconsciente. Só hoje é que ela é, ou se torna, uma negação consciente, querida, uma negação visada diretamente, e tanto mais quanto o cristianismo se aliou aos inimigos do impulso fundamental da humanidade presente, o impulso da liberdade política. A negação consciente funda uma época nova, funda a necessidade de uma filosofia nova, franca, não mais cristã, resolutamente acristã.
A filosofia toma o lugar da religião; mas é justamente por isso que também uma filosofia de todo diversa entra para o lugar da antiga. A filosofia prevalente não pode substituir a religião; ela era filosofia, mas nenhuma religião, era sem religião. Deixava fora de si a essência peculiar da religião, pretendia unicamente a forma do pensamento. Para substituir a religião, a filosofia deve tornar-se religião enquanto filosofia, deve introduzir em si mesma, de um modo a ela conforme, o que constitui a essência da religião, o que constitui a vantagem da religião sobre a filosofia.
A necessidade de uma filosofia essencialmente nova dimana ainda do fato de termos diante dos olhos o tipo já acabado da filosofia antiga. É, pois, supérfluo tudo o que se lhe assemelha; tudo o que se possa produzir em conformidade com o seu espírito, por mais longe que dela possa estar nas suas determinações particulares. Por mais que se conceba ou se demonstre o Deus pessoal de tal ou tal maneira — nada mais disso queremos saber, não queremos mais nenhuma teologia.
As diferenças fundamentais da filosofia são diferenças fundamentais da humanidade. Para o lugar da fé entrou a descrença; para o lugar da Bíblia, a razão; para o lugar da religião e da Igreja, a política; a terra substituiu o céu, o trabalho substituiu a oração, a necessidade material o inferno, o homem o cristão. Homens que já não estão cindidos entre um senhor no céu e um senhor na terra, que se arrojam à realidade com a alma indivisa, são homens diferentes dos que vivem na desarmonia. O que para a filosofia é resultado do pensamento é, para nós, certeza imediata. Necessitamos, pois, de um princípio conforme a esta imediatidade. Se, na prática, o homem entrou para o lugar do cristão, então também no plano teórico o ser humano deve substituir o divino. Em suma, devemos resumir num princípio supremo, num vocábulo supremo, aquilo em que queremos tornar-nos: só assim santificamos a nossa vida, fundamentamos a nossa tendência. Só assim nos livramos da contradição que, presentemente, envenena o mais íntimo de nós mesmos: da contradição entre a nossa vida e o nosso pensamento e uma religião radicalmente contrária a esta vida e a este pensamento. Devemos, pois, tornar-nos novamente religiosos — a política deve tornar-se a nossa religião — mas ela só pode tornar-se tal se tivermos na nossa intuição um princípio supremo que consiga transformar a política em religião. Pode, por instinto, fazer-se da política uma religião, mas trata-se aqui de um último fundamento declarado, de um princípio oficial. Este princípio, expresso negativamente, é apenas o ateísmo, isto é, o abandono de um Deus distinto do homem.
A religião, no sentido ordinário, não é tanto o vínculo quanto a dissolução do Estado. Deus, no sentido da religião, é o pai, o conservador, o providenciador, o guardião, o protetor, o regente e o senhor da monarquia mundial. Por isso, o homem não precisa do homem; tudo o que ele deve receber de si ou dos outros recebe o imediatamente de Deus. Confia em Deus, não no homem; dá graças a Deus e não ao homem, por conseguinte, o homem só por acidente está vinculado ao homem. Na explicação subjetiva do Estado, os homens reúnem-se pela simples razão de que não creem em nenhum Deus, porque negam inconscientemente, de modo instintivo e prático, a sua fé religiosa. Não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que funda os Estados. É a crença no homem como deus do homem que explica subjetivamente a origem do Estado.
No Estado, as forças do homem separam-se e desenvolvem-se para, através desta separação e da sua reunificação, constituírem um ser infinito; muitos homens, muitas forças, constituem uma só força. O Estado é a soma de todas as realidades, o Estado é a providência do homem. No Estado, os homens representam-se e completam-se uns aos outros — o que eu não posso ou sei, outro o pode. Não existo para mim, entregue ao acaso da força da natureza; outros existem para mim, sou abraçado por um círculo universal, sou membro de um todo. O Estado [verdadeiro] é o homem ilimitado, infinito, verdadeiro, completo, divino. Só o Estado é o homem — o Estado é o homem que a si mesmo se determina, o homem que se refere a si próprio, o homem absoluto.
O Estado é a realidade, mas ao mesmo tempo também a refutação prática da fé religiosa. Mesmo nos nossos dias, o crente em aflição busca apenas ajuda no homem, contenta-se com a “bênção de Deus”, que deve estar em toda a parte. Sem dúvida, o sucesso não depende da atividade humana, mas muitas vezes, acidentalmente, das circunstâncias favoráveis; a “bênção de Deus” é apenas poeira nos olhos com que a descrença crente dissimula o seu ateísmo prático. O ateísmo prático é, pois, o vínculo dos Estados; os homens estão no Estado porque estão sem Deus no Estado, o Estado é o deus dos homens, por isso, reivindica justamente para si o predicado divino da “majestade”. Tornou-nos conscientes daquilo que faz o fundamento e o vínculo inconscientes do Estado: o ateísmo prático. Os homens lançam-se presentemente na política, porque reconhecem no cristianismo uma religião que destrói a energia política dos homens. O que o pensador, antes da consciência, tem no conhecimento, o homem prático tem-no no seu impulso. Mas o impulso prático na humanidade é o impulso político, o impulso para participar ativamente nos negócios do Estado, o impulso para a supressão da hierarquia política, da insensatez do povo, o impulso para a negação do catolicismo político. A Reforma destruiu o catolicismo religioso, mas os tempos modernos puseram em seu lugar o catolicismo político. Pretende-se agora, no domínio da política, o que a Reforma quis e projetou no domínio da religião.
Assim como a transmutação de Deus em razão não elimina Deus, mas somente o desloca, assim também o protestantismo deslocou apenas o Papa para o rei. Trata-se agora do papado político; as razões que tornam necessário o rei são as mesmas que tornam necessário o Papa religioso.
A chamada era moderna é a Idade Média protestante em que só com meias negações e expedientes conservamos a Igreja romana, o direito romano, o direito criminal penal, as universidades de estilo antigo etc. Com a dissolução do cristianismo protestante, enquanto poder e verdade religiosa que determinam o espírito, entramos na nova era. O espírito desta era, ou do futuro, é o do realismo. Se concebemos um ser diferente do homem como princípio e ser supremos, então a distinção do abstrato e do homem permanecerá a condição permanente do conhecimento deste ser; então jamais chegaremos à unidade imediata conosco mesmos, com o mundo, com a realidade; reconciliamo-nos com o mundo mediante o outro, um terceiro, temos sempre um produto em vez do produtor, temos um além, se já não fora de nós, pelo menos em nós; encontramo-nos sempre numa cisão entre a teoria e a prática, temos na cabeça uma outra essência diferente da que está no coração; na cabeça o “espírito absoluto”, na vida o homem; além, o pensamento, que não é nenhum ser; aqui, seres que não são noúmenos, que não são pensamentos; em cada passo na vida, estamos fora da filosofia, em cada pensamento da filosofia, fora da vida.
O Papa, cabeça da Igreja, é homem como eu; o rei, homem como nós. Ele não pode, pois, impor ilimitadamente as suas fantasias; não está por cima do Estado, por cima da comunidade. O protestante é um republicano religioso. Por isso, na sua dissolução, quando o seu conteúdo religioso desaparece, ou seja, é descoberto e desvelado, o protestantismo leva ao republicanismo. Se suprimirmos a cisão do protestantismo entre o céu, onde somos senhores, e a terra, onde somos escravos, se pois reconhecermos a terra como lugar do nosso destino, então o protestantismo leva diretamente à república. Se, em tempos passados, a república se aliou ao protestantismo foi, sem dúvida, casualmente — não todavia sem significado — porque o protestantismo apenas liberta no plano religioso; e daí uma contradição, enquanto se conservou ainda a fé religiosa do protestantismo. Só quando tiveres suprimido a religião cristã é que tu, por assim dizer, terás direito à república; pois na religião cristã tens a tua república no céu; por isso não precisas de uma aqui. Pelo contrário, aqui deves ser escravo, para que o céu não seja supérfluo.
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Nota do Tradutor
O traslado aqui proposto data de 1988, mas surge agora refeito e modificado em vários pormenores. Na sua base está a Gesammtausgabedas obras de L. Feuerbach, pronta e realizada por Wilhelm Bolin e Friedrich Jodl.