Os novos deuses

Emil M. Cioran

I

Um homem interessado na procissão das ideias e das crenças irredutíveis achará digno do esforço se deter por um instante sobre o espetáculo oferecido pelos primeiros séculos de nossa era: descobrirá aqui o verdadeiro modelo de todos os tipos de conflito que se encontram, em formas atenuadas, a cada momento da história. Perfeitamente compreensível: essa é a época em que o homem odiou mais, crédito que se deve conceder aos cristãos – febris, intratáveis, especialistas desde o começo na arte da detestação; ao passo que os pagãos já não podiam se valer de nada além do escárnio. A agressão é um traço comum aos homens e aos novos deuses.

Se algum monstro de amenidade, ignorante do tédio, quisesse tornar-se mesmo assim versado no assunto, ou pelo menos aprender o que ele vale, o método mais simples seria ler alguns autores eclesiásticos, a começar por Tertuliano, o mais brilhante de todos, e terminando, digamos, com São Gregório de Nazianzo, rancoroso mas insípido, cuja oração contra Juliano o Apóstata nos dá ganas de conversão ao paganismo. Ao imperador não se concede nenhuma virtude; com uma satisfação que mal se disfarça, sua morte heroica na Guerra Pérsica é contestada, pois Gregório alega que Juliano teria sido despachado por “um bárbaro que, como bufão profissional, acompanhava os exércitos com o intuito de divertir os soldados, com suas piadas e gracejos, frente às durezas da guerra”. Nenhuma elegância, nenhuma preocupação em se tornar digno de tal adversário. O que é imperdoável, no caso do santo, é que ele conhecera Juliano em Atenas, na época em que, jovens, ambos frequentaram as escolas filosóficas de lá.

Nada é mais odioso do que o tom daqueles que defendem uma causa – que se acha comprometida em aparência, mas que de fato é a vencedora; daqueles que não podem ocultar seu deleite ante a ideia do triunfo, nem podem deixar de converter seus verdadeiros terrores em ameaças. Quando Tertuliano, sardônico e trêmulo, descreve o Último Julgamento, “o maior de todos os espetáculos”, como o chama, imagina seu próprio riso ao contemplar tantos monarcas e deuses “emitindo gemidos pavorosos nas profundezas do abismo…” Essa insistência em lembrar aos pagãos que eles estavam perdidos – eles e os seus ídolos – seria capaz de exasperar até os mais moderados. Uma série de libelos camuflados em tratados, a apologética cristã representa o acme de um gênero bilioso.

O homem só respira à sombra de divindades erodidas. Quanto mais nos convencemos disso, mais nos lembramos, com terror, a nós mesmos que, se tivéssemos vivido no momento da ascensão da Cristandade, poderíamos ter sucumbido ao seu fascínio. Os começos de uma religião (tal como os começos de qualquer coisa) são sempre suspeitos. Só eles, porém, possuem alguma realidade, só eles são verdadeiros; verdadeiros e abomináveis. Não assistimos à fundação de um deus – qualquer que seja ou de onde quer que venha – impunemente. Nem é recente tal desvantagem: Prometeu já tinha chamado a atenção para ela, vítima ele próprio de Zeus e da nova gangue do Olimpo.

Muito mais que a perspectiva da salvação, foi a raiva contra o mundo antigo que se abateu sobre os cristãos num único impulso destrutivo. Desde que vinham, em sua maioria, de outras partes, seu acesso de fúria contra Roma é compreensível. Mas de que espécie de frenesi participava um cidadão quando se convertia? Menos preparado que aqueles, restava-lhe apenas um recurso: odiar-se a si mesmo. Sem esse desvio do ódio, no começo atípico, mas depois contagioso, a Cristandade teria permanecido só uma seita, limitada a uma clientela estrangeira, capaz apenas de trocar os antigos deuses por um cadáver cravejado. Que o homem que se pergunta como teria reagido à mudança de política de Constantino se coloque no lugar de um partidário da tradição, um pagão orgulhoso de ser pagão: como compactuar com a Cruz, como tolerar que aquele símbolo de uma morte desgraçada fosse gravado nos estandartes de Roma? No entanto tais homens se resignaram a isso, e é difícil para nós imaginar o cúmulo de derrotas internas de onde brotaria essa resignação. Se, no plano moral, podemos concebê-la como a consumação de uma crise e assim lhe conceder o status ou a desculpa de uma conversão, tal resignação aparece como uma traição tão logo a consideramos do ponto de vista político. Abandonar os deuses que fizeram Roma seria abandonar a própria Roma, para formar uma aliança com essa “nova raça de homens nascidos ontem, não tendo país nem tradição, coligados contra qualquer instituição religiosa e civil, perseguidos pela lei, universalmente execrados por causa de suas infâmias, e no entanto gloriando-se dessa execração comum”. A diatribe de Celso data de 178. Cerca de dois séculos mais tarde, Juliano escreveria: “Se nos reinados de Tibério ou Cláudio se encontrar uma única mente distinta que se tenha convertido às ideias cristãs, considerem-me o maior dos impostores.”

A “nova raça de homens” seria capaz de tudo para vencer os escrúpulos dos mais cultivados. Como acreditar nesses novos que estavam surgindo das profundezas mais baixas e cujos gestos, todos eles, convidavam ao desdém? Pois o caso era: de que maneira aceitar o Deus daqueles que desprezamos e Que era, além disso, de manufatura recente? Somente a idade garantia a validade dos deuses – todos eram tolerados, contanto que não tivessem sido moldados há pouco. O que se considerava particularmente problemático era a absoluta novidade do filho: um contemporâneo, um recém-chegado… Essa figura desestimulante, que nenhum sábio tinha previsto ou prefigurado, é que “chocava” mais. Seu aparecimento foi um escândalo que levou quatro séculos para ser assimilado. O Pai, um velho conhecido, era admitido; por razões táticas, os cristãos se voltaram para Ele e falaram em Seu nome: não eram os livros que O celebraram e cujo espírito os Evangelhos perpetuaram, de acordo com Tertuliano, muitos séculos mais velhos que os templos, os oráculos, os deuses pagãos? Os apologistas, uma vez postos a caminho, chegam ao ponto de alegar que Moisés antecede a queda de Tróia em vários milhares de anos. Tais divagações destinavam-se a combater o efeito de opiniões como esta, de Celso: “Afinal, os judeus, muitos séculos atrás, se organizaram numa nação, estabeleceram leis próprias que conservam ainda hoje. A religião que seguem, o que quer que valha e o que quer que se diga a seu respeito, é a religião de seus ancestrais. Permanecendo fiéis a ela, não fazem mais do que os outros homens, que preservam sempre os costumes de seu país.”

Sacrificar ao preconceito da antiguidade era, implicitamente, reconhecer os deuses autóctones como os únicos deuses legítimos. Os cristãos estavam prontos, por motivos egoístas, a curvar-se também a esse preconceito, mas não podiam, sem se destruírem, ir além e adotá-lo totalmente, com todas as suas consequências. Para um Orígenes, os deuses étnicos eram ídolos, relíquias do politeísmo; São Paulo já os tinha reduzido à categoria de demônios. O judaísmo considerava-os todos falsos, a não ser um, o seu próprio. “Seu único erro”, diz Juliano, acerca dos judeus, “é que mesmo quando procuram satisfazer seu deus, não servem os outros ao mesmo tempo”. No entanto os elogia pela sua repugnância em seguir a moda no que diz respeito à religião. “Desprezo a inovação em todas as coisas e especialmente naquilo que concerne aos deuses” – uma afirmação que o desacreditou e que foi usada para tachá-lo de “reacionário”. Mas que “progresso”, pode-se perguntar, a Cristandade representa em relação ao paganismo? Não existe um “salto qualitativo” de um deus para o outro, nem de uma civilização para a outra, e muito menos de uma linguagem para a outra. Quem ousaria proclamar a superioridade dos escritores cristãos sobre os pagãos? Mesmo os profetas, conquanto de uma inspiração e de um estilo diferente daquele dos Padres da Igreja – São Jerônimo o confessa – produziam aversão no leitor que tivesse retornado a Cícero ou a Plauto. O “progresso”, ao mesmo tempo, estava encarnado nesses Padres ilegíveis: então, desviar-se deles era cair na “reação”? Juliano estava perfeitamente certo em preferir Homero, Tucídides ou Platão a todos eles. O édito pelo qual proibiu os educadores cristãos de explicarem os autores gregos tem sido duramente criticado não apenas pelos seus adversários, mas também pelos seus admiradores, em todas as épocas. Sem tentar justificá-lo, não se pode deixar de compreendê-lo. Ele lidava com fanáticos; para obter seu respeito era preciso, ocasionalmente, exagerar tanto quanto eles mesmos, emitir algum nonsense em seu favor, ou então o teriam escarnecido como não mais que um amador. Ele, assim, convida esses “instrutores” a imitar os escritores que estavam expondo e a compartilhar as opiniões deles sobre os deuses. “Contudo, se eles acreditam que esses autores se enganaram quanto ao ponto mais importante, que vão às igrejas dos galileus para oferecer comentários sobre Mateus e Lucas!”

Aos olhos dos antigos, quanto mais deuses você reconhece, melhor você serve a divindade, da qual eles não são senão os aspectos, as faces. Tentar limitar o seu número era uma impiedade; suprimi-los todos em favor de um único, um crime. É desse crime que os cristãos se tornaram culpados. A ironia contra eles já não era apropriada: o mal que estavam propagando tinha se espalhado demais. Toda a dureza de Juliano deriva da impossibilidade de tratá-los levianamente.

II

O politeísmo corresponde melhor à diversidade de nossas tendências e de nossos impulsos, aos quais oferece a possibilidade de expressar-se, de manifestar-se – cada um deles estando livre para buscar, de acordo com sua natureza, aquele deus que melhor lhe quadra no momento. Porém como lidar com um deus único? Como afrontá-lo, como utilizá-lo? Na sua presença, vivemos continuamente sob pressão. O monoteísmo inibe nossa sensibilidade: aprofunda-nos porque nos estreita. Um sistema de constrangimentos que nos fornece uma dimensão interior ao custo do florescimento de nossas forças constitui-se num bloqueio, impede nossa expansão, tira-nos dos eixos. Por certo, éramos mais normais quando tínhamos muitos deuses do que somos agora, com apenas um. Se a saúde é um critério, que embaraço o monoteísmo!

Sob o regime de vários deuses, o fervor é compartilhado. Quando se dirige a um deus somente, ele se concentra, se exacerba e termina por converter-se em agressão, em fé. A energia já não se dispersa, é inteiramente focalizada numa direção. O que havia de mais notável no paganismo era que nele não se fazia nenhuma distinção radical entre acreditar e não acreditar, entre ter fé e não ter. A fé é uma invenção cristã, supõe um desequilíbrio tanto no homem quanto em Deus, desequilíbrio que um diálogo dramático e desordenado estimula. Daí provém o caráter frenético da nova religião. A antiga, tão mais humana, permitia a você a possibilidade de escolher entre o deus que você queria; e, já que não lhe impunha nenhum, ficava a seu critério inclinar-se para um ou outro. Quanto mais caprichoso você fosse, mais precisaria mudar de deuses, passar de um para outro, estando quase certo de encontrar os meios de adorar a todos no curso de uma única existência. Além do mais, eles eram modestos, queriam somente respeito: você os saudava, não se ajoelhava diante deles. Eram idealmente apropriados para o homem cujas contradições não se resolviam nem podiam resolver-se – para a mente inquieta e atormentada. Quão afortunado era ele – esse homem –, na sua confusão itinerante, em poder experimentá-los a todos e poder estar quase certo de topar com aquele de que mais precisava na ocasião!  Após o triunfo da Cristandade, a liberdade de manobrar entre os deuses e de escolher algum, ao seu talante, se tornou inconcebível. Teria algum esteta, exausto mas ainda não inteiramente desgostoso do paganismo, aderido à nova religião se houvesse adivinhado que esta se estenderia por tantos séculos? Trocaria o capricho apropriado a um regime de ídolos intercambiáveis por um culto cujo Deus iria gozar de uma longevidade tão assustadora?

Ao que parece, o homem se deu os deuses por uma necessidade de se ver protegido, garantido – na realidade, por uma gana de sofrer. Desde que acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para uma liberdade de escolha, para evasões. Na sequência, limitando-se a um deus, passou a ser afligido por um suplemento de amarras e embaraços. Certamente não há outro animal que se ame e se odeie tanto, até o limite do vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão pesada. Quanta crueldade para com nós mesmos – unir forças com o grande Espectro e fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna a vida irrespirável.

A Cristandade lançou mão do rigor jurídico dos romanos e das acrobacias filosóficas dos gregos, não para liberar a mente, mas para acorrentá-la. E, acorrentando-a, a Cristandade obrigou a mente a se aprofundar, a descer ao fundo de si mesma. Os dogmas aprisionam-na, traçam-lhe limites externos que ela não pode ultrapassar de modo algum. Ao mesmo tempo, deixam a mente livre para explorar seu universo particular, para escrutinar sua própria vertigem e, a fim de escapar à tirania das certezas doutrinais, para procurar o ser – ou o seu equivalente negativo – nos confins de toda sensação. Experiência da mente enjaulada, o êxtase é, por necessidade, mais frequente numa religião autoritária do que numa liberal: isso acontece porque o êxtase é um salto para a intimidade das profundezas, um recurso à introversão, uma fuga em direção ao eu.
Não tendo tido, por tão longo tempo, nenhum refúgio além de Deus, mergulhamos tão profundamente Nele quanto em nós mesmos (um mergulho que representa a única exploração autêntica que fizemos em dois mil anos). Sondamos o Seu abismo e o nosso, erodimos os Seus segredos um por um, enfraquecemos e comprometemos a Sua substância pela dupla agressão do conhecimento e da prece. Os antigos não sobrecarregavam seus deuses: eram demasiado elegantes para aborrecê-los a esse ponto ou para convertê-los em objeto de estudo. Desde que a transição fatal da mitologia para a teologia ainda não se fizera, eles nada conheciam dessa tensão perpétua, presente tanto nos arroubos dos grandes místicos quanto nas banalidades do catecismo. Quando a terra se torna sinônimo do impraticável, e quando sentimos que o contato que nos prende a ela é fisicamente cortado, o remédio não está na fé ou na negação da fé (ambas expressões da mesma fraqueza), mas naquele diletantismo pagão, mais precisamente na ideia que temos dele, na ideia que forjamos.

A desvantagem mais séria que um cristão encontra é aquela de não ser capaz de servir conscientemente a mais do que um deus, embora tenha latitude bastante para aderir, na prática, a muitos (o culto aos santos!). Uma adesão salutar que permitiu ao politeísmo prosseguir, apesar de tudo, indiretamente. Sem ela, uma Cristandade excessivamente pura desembocaria, com certeza, numa esquizofrenia universal. Com o devido respeito a Tertuliano, a alma é naturalmente pagã. Qualquer deus, quando responde às nossas necessidades imediatas, representa para nós um acréscimo de vitalidade, um estímulo, o que não é o caso quando esse deus nos é imposto ou quando não corresponde à necessidade. O erro do paganismo foi não ter aceitado e acumulado muitos deles: morreu por generosidade e excesso de compreensão – morreu por falta de instinto.
Se, para vencer o eu, essa lepra, não nos fiamos em nada mais, a não ser nas aparências, é impossível não deplorar o recuo de uma religião sem cenas, sem crises de consciência, sem incitações ao remorso – uma religião igualmente superficial nos princípios e nas práticas. Na antiguidade, a filosofia, e não a religião, é que era profunda; na época moderna, a Cristandade foi a causa única da “profundidade” e de todas as dilacerações que lhe são inerentes.

São os períodos que não têm uma fé específica (o helenístico ou o nosso) que se ocupam em classificar os deuses, enquanto se recusam a dividi-los entre verdadeiros e falsos. A noção de que todos os deuses valem alguma coisa – de que cada um vale tanto quanto o outro – é, pelo contrário, inaceitável nos intervalos em que prevalece o fervor. Não podemos orar a um deus que é provavelmente verdadeiro. A prece não se rebaixa com sutilezas nem tolera distinções dentro do Supremo: mesmo quando duvida, só o faz em nome da verdade. Não exortamos à nuança. Tudo isso passou a importar depois da calamidade do monoteísmo. Para a piedade pagã, as coisas eram diferentes. Em seu Octavius, Minúcio Félix, antes de defender a posição cristã, faz com que Cecílio, seu representante do paganismo, diga: “Vemos os deuses nacionais sendo adorados: em Elêusis, Ceres; na Frigia, Cibele; em Epidauro, Esculápio; na Caldéia, Baal; na Síria, Astarte; em Tauris, Diana; Mercúrio entre os gauleses, e em Roma todos os deuses juntos.” E acrescenta, acerca do deus cristão, o único a não ser aceito: “De onde vem ele, esse deus único, solitário, derrelito, não reconhecido por nenhuma nação livre, por nenhum reino…?”

De acordo com um antigo decreto romano, ninguém deveria adorar exclusivamente deuses novos ou forasteiros, se eles não fossem admitidos pelo Estado, mais precisamente pelo Senado, a única instância competente para decidir quais mereciam ser adotados ou rejeitados. O Deus cristão, aparecendo na periferia do Império, chegando a Roma por meios indeclaráveis, cobraria mais tarde uma revanche terrível pelo fato de ter sido obrigado a entrar na capital mediante fraude.

Uma civilização é destruída apenas quando seus deuses são destruídos. Os cristãos, não ousando atacar de frente o Império, emboscaram sua religião. Deixaram-se perseguir apenas para poder arremeter contra ela de modo mais efetivo, a fim de satisfazer o seu apetite irrefreável por execração. Quão miseráveis seriam se ninguém se dignasse a promovê-los à categoria de vítimas! Tudo no paganismo, inclusive a tolerância, os exasperava. Fortes em suas certezas, não podiam entender a resignação à probabilidade, própria do paganismo, nem a adesão a um culto cujos padres, simples magistrados designados para as formas perfunctórias do ritual, não impunham a ninguém o fardo da sinceridade.

Quando nos damos conta de que a vida só é suportável se podemos mudar de deuses, e de que o monoteísmo contém em germe todas as formas de tirania, deixamos de ter pena da velha instituição da escravidão. Era melhor ser escravo e poder adorar uma forma escolhida de divindade do que ser “livre” e se confrontar com uma única variedade do divino. Liberdade é o direito à diferença; plural, postula a dispersão do absoluto, sua resolução numa poeira de verdades, igualmente justificadas e provisórias. Há um politeísmo subjacente na democracia liberal (chamem-no de politeísmo inconsciente); inversamente, cada regime autoritário compartilha de um monoteísmo disfarçado. Curiosos os efeitos da lógica monoteísta: um pagão, ao tornar-se cristão, tendia à intolerância. Melhor naufragar com uma horda de deuses acomodatícios do que prosperar à sombra de um déspota! Numa época em que, por falta de conflitos religiosos, presenciamos os ideológicos, a questão que se coloca para nós é, com efeito, a mesma que atormentou a antiguidade decadente: como renunciar a tantos deuses em nome de um? – ressalvado que, no entanto, o sacrifício que se nos exige se situa num nível inferior, não mais aquele dos deuses, mas o das opiniões. Tão logo uma divindade, ou uma doutrina, exige supremacia, a liberdade é ameaçada. Se vemos um valor supremo na tolerância, então tudo o que lhe faz violência deve ser considerado como um crime, a começar por esses empreendimentos de conversão nos quais a Igreja se mantém inigualável. E, se ela exagerou a gravidade das perseguições a que foi submetida e inchou absurdamente o número de seus mártires, ela precisava encobrir seus crimes com pretextos nobres: deixar sem punição doutrinas perniciosas – não teria sido uma traição àqueles que se sacrificaram por ela? Assim, foi num espírito de lealdade que a Igreja se lançou à aniquilação dos “desviados”, e que pôde, depois de ter sido perseguida por quatro séculos, tornar-se perseguidora ao longo de quatorze. Esse é o segredo, o milagre da sua perenidade. Nunca houve mártires vingados com tão sistemática tenacidade.

Tendo coincidido o advento da Cristandade com o do Império, certos padres (Eusébio, entre outros) sustentaram que essa coincidência tinha um significado profundo: um Deus, um imperador. Na realidade, tratava-se de abolir os empecilhos nacionais, da possibilidade de circular através de um vasto estado sem fronteiras, o qual permitia à Cristandade infiltrar-se, tornar-se audaciosa. Sem essa oportunidade de se expandir, teria permanecido como uma simples dissidência dentro do judaísmo, em vez de se tornar uma religião invasora e, o que é pior, uma religião da propaganda. Todos os meios se justificavam para recrutar, para reforçar e para expandir até mesmo essas bajulações diárias cujo aparato era uma ofensa tanto para os pagãos quanto para os deuses olímpicos. Juliano observa que, de acordo com os legisladores de outrora, “desde que a vida e a morte diferem completamente, os atos relativos a uma e à outra devem ser executados separadamente”. Essa disjunção, os cristãos, em seu proselitismo fanático, não estavam dispostos a aceitá-la: tinham consciência da utilidade do cadáver, das vantagens a extrair dele. O paganismo não elidia a morte, mas tinha o cuidado de não deixá-la à mostra. Para o paganismo, era um princípio fundamental supor que a morte não é consoante com o dia claro, que a morte é um insulto à luz. A morte pertencia à noite e aos deuses infernais. Os galileus encheram os sepulcros, diz Juliano, que nunca chama Jesus a não ser de “o morto”. Para os pagãos dignos do nome, a nova superstição podia parecer apenas uma exploração, um aproveitamento do repulsivo. Tanto mais amargamente iriam deplorar o progresso que ela estava a fazer em cada setor. O que Celso não pôde conhecer, mas que Juliano entendeu perfeitamente, eram os levianos da Cristandade – aqueles que, incapazes de submeter-se a ela de modo pleno, mesmo assim se esforçavam para segui-la, temendo que, se se mantivessem à parte, seriam excluídos do “futuro”. Tanto por oportunismo quanto por medo da solidão, queriam estar ao lado desses homens “nascidos ontem”, mas logo chamados a exercer o papel de mestres, de torturadores.

III

Embora legítima a sua paixão pelos deuses defuntos, Juliano não teve chance de revivê-los. Em vez de trabalhar para isso, devia ter se aliado, num ato de fúria, com os maniqueus e, junto com eles, ter minado a Igreja. Sacrificando seu ideal, teria ao menos satisfeito seu rancor. Que outra carta além da vingança ainda lhe restava na mão? Uma carreira magnífica de demolição se abria diante dele, e ele talvez a abraçasse, não tivesse sido obnubilado por uma nostalgia do Olimpo. Não se movem batalhas em nome de uma mágoa. Morreu jovem, é verdade – depois de magros dois anos de governo. Com mais dez ou vinte à sua frente, que serviço não teria prestado a nós todos! Não que tivesse reprimido a Cristandade, mas a teria ao menos compelido a uma modéstia maior. Seríamos menos vulneráveis, pois não viveríamos como se fôssemos o centro do universo, como se tudo, inclusive Deus, girasse à nossa volta. A Encarnação é a bajulação mais perigosa de que fomos objeto. Ela nos terá concedido um status excessivo, fora de qualquer proporção com o que somos. Elevando a anedota humana à dignidade de um drama cósmico, o cristianismo nos enganou quanto à nossa insignificância, lançando-nos na ilusão, naquele mórbido otimismo que, a despeito de toda evidência, identifica o progresso com a apoteose. Mais prudente, a antiguidade pagã colocava o homem em seu lugar. Quando Tácito se pergunta se os eventos são regidos por leis eternas ou se acontecem por acaso, procura se esquivar de responder, deixando a questão em aberto; e essa indecisão representa muito bem o sentimento geral dos antigos. Mais do que qualquer outro, o historiador, confrontado com a mistura de constantes e aberrações de que o processo histórico é composto, necessariamente se vê forçado a oscilar entre o determinismo e a contingência, o acidente e a lei, a física e a fortuna. Não há desastre que não possamos remeter, conforme o quisermos, a uma distração da Providência ou à indiferença do Acaso, ou finalmente à inflexibilidade do Destino. Essa trindade, tão convenientemente aplicável para qualquer um, especialmente para uma mente desabusada, é a coisa mais confortadora que a sabedoria pagã tem a propor. Nós modernos relutamos em recorrer a ela, tal como não somos menos relutantes em esposar a noção (especificamente antiga) de acordo com a qual tanto bênçãos quanto desastres representam um total invariável que não pode sofrer modificação. Com nossa obsessão do progresso e da regressão, admitimos implicitamente que o mal muda, que diminui ou aumenta. A identidade do mundo consigo próprio, a noção esplêndida de que está condenado a ser o que é e de que o futuro não acrescentará nada de essencial aos dados existentes, não tem mais nenhum apelo. Isto, precisamente porque o futuro, objeto de horror ou de esperança, é o nosso verdadeiro lugar; vivemos nele, ele é tudo para nós. A obsessão com o advento, que é essencialmente cristã, reduzindo o tempo ao conceito do iminente e do possível, torna-nos inaptos a conceber um momento imutável que repouse em si mesmo, livre do flagelo da sucessão. Mesmo privada do menor conteúdo, a expectativa é um vazio que nos gratifica, uma ansiedade que nos conforta, tão pouco propensos somos à visão estática. “Deus não tem necessidade de corrigir Suas obras” – eis uma opinião de Celso, e também a de toda uma civilização, que vai contra nossas inclinações, contra nossos instintos, contra nosso próprio ser. Podemos ratificá-la somente num instante inabitual, num lapso de sabedoria. Vai contra, até mesmo, aquilo a que o crente se agarra, pois o de que mais se censura Deus nos círculos religiosos é Sua boa consciência, Sua indiferença à qualidade da Sua obra e Sua recusa em mitigar suas anomalias. Precisamos ter um futuro a qualquer preço. A crença no Juízo Final criou as condições psicológicas para uma crença no significado da história. Melhor ainda: todas as filosofias da história são meramente um subproduto da ideia do Juízo Final. Não importa o quanto nos inclinemos para uma teoria cíclica, a inclinação é apenas uma aderência abstrata de nossa parte; comportamo-nos, de fato, como se a história seguisse um desdobramento linear, como se as várias civilizações que nela se têm sucedido umas às outras fossem meros estágios ocupados, a fim de se manifestar e de se completar a si mesmos, por um vasto desígnio, cujo nome varia de acordo com nossas crenças ou nossas ideologias.