À parte das coisas

Emil M. Cioran

É preciso uma considerável dose de inconsciência para entregar-se sem reservas a qualquer coisa. Os crentes, os apaixonados, os discípulos, só percebem uma face de suas deidades, de seus ídolos, de seus mestres. O entusiasta permanece inelutavelmente ingênuo. Há sentimento puro onde a mescla de graça e imbecilidade não se traia, e admiração devota sem eclipse da inteligência? Quem entrevê simultaneamente todos os aspectos de alguém ou de algo permanece para sempre indeciso entre o arrebatamento e o estupor. Disse que qualquer crença: que fausto do coração — e quanta ignomínia por baixo! É o infinito sonhado em um esgoto e que conserva, indeléveis, sua marca e seu fedor. Há um notário em cada santo, um quitandeiro em todo herói, um porteiro no mártir. No fundo dos suspiros esconde-se uma careta; aos sacrifícios e às orações misturam-se os vapores do bordel terrestre. Consideremos o amor: há expansão mais nobre, arrebatamento menos suspeito? Seus estremecimentos competem com a música, rivalizam com as lágrimas da solidão e do êxtase: é o sublime, mas um sublime inseparável das vias urinárias: transportes vizinhos à excreção, céu das glândulas, santidade súbita dos orifícios… Basta um momento de atenção para que essa embriaguez, abalada, nos lance nas imundícies da fisiologia, ou um instante de fadiga para constatar que tanto ardor só produz uma variedade de ranho. O estado de vigília altera o sabor de nossos arroubos e transforma quem os sofre em um visionário pisoteando pretextos inefáveis. Não se pode amar e conhecer ao mesmo tempo, sem que o amor padeça e expire sob o olhar do espírito. Investigue suas admirações, perscrute os beneficiários de seu culto e os que se aproveitam de seus abandonos: sob seus pensamentos mais desinteressados descobrirá o amor-próprio, o aguilhão da glória, a sede de domínio e de poder. Todos os pensadores são fracassados da ação que se vingam de seu fracasso por meio de conceitos. Nascidos aquém dos atos, os exaltam ou os menosprezam, conforme aspirem ao reconhecimento dos homens ou à outra forma de glória: seu ódio; elevam indevidamente suas próprias deficiências, suas próprias misérias à categoria de leis, sua futilidade ao nível de princípios.

O pensamento é uma mentira, como o amor e a fé. Pois as verdades são fraudes e as paixões, odores; e, no final das contas, a escolha está entre o que mente e o que fede.

  • autor: Emil M. Cioran
  • fonte: Breviário de Decomposição