Jamais alguém fez qualquer coisa por qualquer outra pessoa. Jamais. Espero que esta declaração seja recebida com uivos de negação, porque nós todos já vimos casos de autossacrifício. De fato, nós próprios muitas vezes nos sacrificamos por outros e temos noção de pessoas que se sacrificaram por nós. Então que significa essa declaração patentemente estúpida?
Parece que tal ideia só poderia ser expressada pela mais insensível e cínica das almas, mas talvez ela contenha elementos de verdade, que merecem exame. Obviamente, estamos falando a respeito de altruísmo e obviamente vou dizer uma coisa que contraria a opinião geral. Mas, antes de prosseguirmos, definamos nossos termos. Altruísmo, para nosso propósito, implicará fazer o bem a outros com algum custo para si próprio. Em outras palavras, a boa ação prejudica quem a pratica, pelo menos em certa medida. Vou sustentar é que, mesmo quando alguém parece estar fazendo alguma coisa para o bem de outra pessoa, o ato pode ser essencialmente egoísta.
Logo se tornará claro que este assunto todo é odiento. Envolve algumas de nossas ideias mais queridas. Não é fácil ouvir uma grande dádiva de amor ser chamada egoísta. Mas, sem dúvida, algumas vezes é assim.
Alguns anos atrás, quando eu estava brincando com a ideia de altruísmo (sem ter um nome para ela), abordei o assunto em uma classe de escola dominical. O assunto estava sendo discutido de maneira bastante vaga, com os habituais lugares-comuns e gestos de concordância que precedem o jantar de domingo. Mas alguma coisa parecia não estar muito certa, por isso tentei definir os limites do fenômeno, levando-o a seus extremos. Imaginei um caso em que alguém poderia decidir quem iria para o Céu: ele próprio ou uma pessoa amada. (Como se pode ver, eu estava um pouco influenciado pela minha formação como fundamentalista sulino.) A pessoa não escolhida arderia eternamente no Inferno. Agora, para que ninguém pudesse colher recompensas ocultas, como os benefícios de aprovação ou os sentimentos de martírio, havia armadilhas. Uma vez tomada a decisão, a pessoa escolhida apareceria repentinamente no Céu, sem a menor lembrança de qualquer decisão, a memória de todas as partes seria totalmente obliterada. Ninguém seria capaz de lembrar a existência de qualquer outra pessoa. Ademais, Deus de nada se lembraria a respeito. O prêmio e o castigo seriam definitivos. Não haveria remorso, nem consolos.
Perguntei, retoricamente, quantas pessoas seriam altruístas em tais condições e tenho de admitir que me causaram alguma surpresa a força e veemência das respostas lançadas em rancoroso coro. Uma pequena informação que pude tirar de tudo aquilo foi que, se decidisse ir para o Inferno dentro de uma proposição fantástica como aquela, um indivíduo desejaria o consolo de saber que a pessoa amada estava no Céu, lembrando que era querida por ele. A questão toda era mórbida demais para merecer algo além de passageira consideração por parte de qualquer um, mas eu achei que aprendi alguma coisa fazendo a pergunta. Primeiro, pessoas se tornam reflexamente irracionais na defesa de suas vacas sagradas; mas, ainda mais importante, fiquei sabendo (pelas poucas respostas racionais apresentadas) que altruísmo tem limites e graus. Comecei também a suspeitar que, quando alguma coisa dói, a pessoa deseja que doa em seu melhor interesse.
Nos anos transcorridos desde quando me interessei pela questão, descobri que quase todo mundo está disposto a ser um pouco prejudicado a fim de fazer um grande bem. Vemos isto, por exemplo, em nossa disposição de nos tributarmos para pagar benefícios sociais que provavelmente jamais receberemos. Contudo, a probabilidade de uma ação altruística ser praticada diminui à medida que o custo é elevado ou o benefício é reduzido. Finalmente, chega um ponto em que não a praticaremos. Naturalmente, mesmo então poderíamos ainda abrigar o espírito de benevolência, mas não estaríamos dispostos a pagar o preço para exercitá-lo.
Agora que estabelecemos alguns pontos a respeito da natureza de altruísmo, poderíamos perguntar como isto tudo se relaciona conosco biologicamente. Naturalmente, precisamos expor nosso problema em termos genéticos, como estamos fazendo desde o começo. Eu vou dizer que “bem” feito a outros provavelmente é, em última análise, benéfico a nossas próprias espécies de genes e que “mal” feito a outros é medido em termos do dano causado a nossas próprias espécies de genes. Parece um argumento convoluto, mas não é; é um argumento simples. Precisamos apenas examinar ações altruísticas à luz da importância que outros têm no sentido de ajudar-nos a cumprir nosso Imperativo Reprodutivo.
Em alguns casos, a importância é óbvia. Afinal de contas, nossos filhos são “outras” pessoas. Compete-nos cuidar deles porque são os repositórios diretos de nossos genes. Eles são tão importantes e nosso investimento neles é tão grande, que sofremos considerável dano em nós próprios a fim de protegê-los.
De fato, nós nos comportamos mais altruisticamente em relação a nossos filhos do que em relação a nosso cônjuge. Há menos coisas investidas em um cônjuge. Cônjuges são mais facilmente adquiridos e não exigem anos de cultivo para se tornarem funcionais (geralmente). Quantas vezes você já ouviu um homem queixar-se de que grande parte da atenção amorosa da mulher com quem se casou é agora dirigida para os filhos? Se ficar cansado de suas queixas, você poderá dar-lhe um soco no nariz, sem que ela corra em defesa dele, mas é melhor não bater nos filhos dela. O investimento genético dela nos filhos é grande demais. Ela se arriscará imediatamente a ser ferida para saltar em defesa deles.
Estas espécies de declarações são, naturalmente, predições baseadas no princípio de que, quanto maior o “investimento” reprodutivo que fizemos em outro indivíduo, maior probabilidade temos de sacrificar-nos por aquela pessoa. Vemos a aplicação disto em toda parte. Você pode causar devastação nos ovos da tênia, sem correr o risco de ser atacado por um genitor enraivecido. Pelo menos, não li recentemente notícia de algum ataque de tênia. Tênias têm investimento muito pequeno em qualquer ovo, por isso seu sacrifício e seu cuidado são mínimos. Um ovo perdido é simplesmente substituído na postura seguinte de ovos. (…) uma mãe antílope, que passou pela gravidez e pela lactação, tem considerável investimento em seu único filho e, por isso, o defenderá. Se hienas saqueadoras tentarem agarrar seu filhote, ela resistirá e lutará com risco da própria vida. Todavia, quando se torna claro que a batalha está perdida, a antílope pode abandonar seu filho. A economia reprodutiva diz que ela deve fazê-lo, a fim de viver para reproduzir-se mais tarde. Os genes de mães que lutam por tempo excessivo tendem a desaparecer na população. Naturalmente, o mesmo acontece com genes de mães que fogem ao primeiro sinal de perigo. O fundo de tudo isto é que altruísmo pode ser predito em termos de investimento reprodutivo. Veremos daqui a pouco que altruísmo pode ser predito matematicamente com bastante precisão, mas descobriremos também que o fenômeno é mais complexo do que se acreditava antigamente, porque animais se sacrificam por parentes tanto quanto por descendentes.
Biologistas resumiram a complexidade de altruísmo em uma questão enganosamente simples. Por que um pássaro de um bando emite um grito de advertência quando localiza um gavião voando acima dele? Estará ele tentando salvar outros pássaros que não são seus parceiros ou descendentes, especialmente se corre algum risco de atrair atenção sobre si próprio? Não seria melhor simplesmente afastar-se às escondidas e esperar que, se alguém for apanhado, seja outro pássaro?
Depende de o pássaro que dá o aviso ser provavelmente aparentado de qualquer maneira com os pássaros que o cercam. Ele salvará parentes. Estes não precisam ser descendentes diretos. Podem até mesmo ser primos distantes, se houver bom número deles.
Você pode ter notado em nossas discussões anteriores que eu disse que um indivíduo precisa cuidar de suas espécies de genes. Não é o mesmo que dizer que ele cuida de seus genes. Esta última declaração implica que ele só se sacrificará por seus descendentes; a primeira prediz que ele se sacrificará também por parentes. Lembre-se que indivíduos aparentados têm genes em comum.
Por isso, a fim de perpetuar suas espécies de genes, uma pessoa precisa comportar-se como se soubesse em que medida as pessoas que a cercam são aparentadas com ela. Você tem parentesco mais próximo com seus irmãos (irmãos e irmãs) ou com seus pais? Eu costumava fazer esta pergunta a minhas classes de genética e lamentava toda vez que a fazia. Ela gerava tantos gráficos complexos e tantas explicações convolutas, que eu precisava fazer de tudo para clarear minha própria cabeça. Acontece que você é igualmente aparentado com um irmão ou com um genitor. Como recebeu metade de seus genes de sua mãe e metade de seu pai, você obviamente tem metade de seus genes em comum com seu pai ou com sua mãe. Como genes vêm aos pares (ficando na mesma posição ao longo daqueles cromossomos emparelhados que vêm de cada genitor), um irmão partilha metade dos genes de sua mãe (ou 1/4) e metade dos genes de seu pai (ou 1/4), de modo que você partilha um total de metade de seus genes com um irmão ou irmã. Você tem 1/4 de parentesco com um meio-irmão (tal como é determinado pelo número de genes que vocês dois têm em comum) e 1/4 com um tio, uma tia, um sobrinho ou uma sobrinha. Você só tem 1/8 de seus genes em comum com um primo.
Tendo esses números em mente, por quem você morreria? Vamos perguntar de outra maneira: Por que a seleção natural diz que você deve arriscar sua vida a fim de aumentar suas espécies de genes na população? Se há boa probabilidade de você ter mais dois descendentes caso continuasse vivo (duplicando assim seus genes existentes no conjunto de genes), não seria bem avisado morrer por um ou dois irmãos; você precisaria defender três pelo menos. Você não desejaria também morrer por menos de cinco meio-irmãos, sobrinhos ou tias, e não o faria por todos os seus primos, a menos que eles fossem suficientemente numerosos para formar um time de basebol. A ideia consiste em abrir mão de suas probabilidades de reprodução futura só quando é provável que os parentes que você salvasse tivessem mais de suas próprias espécies de genes do que você seria capaz de perpetuar através de seus descendentes, se continuasse vivo.
É evidente, portanto, que, quanto mais distante é um parente, menos probabilidade você tem de morrer por ele. Mas morte, afinal de contas, é pedir um pouco demais. Talvez você não corresse à frente de um bonde para salvar um primo que vai ser atropelado, mas certamente gritaria uma advertência. Isto nos leva de volta ao ponto inicial: Uma pessoa tem mais probabilidade de comportar-se altruisticamente se o custo é baixo e o benefício para outros é alto. À medida que o parentesco diminui, o custo precisa ser proporcionalmente mais baixo e o benefício mais alto.
Então, que faz o passarinho quando vê um gavião no alto? Emite um assobio agudo e prolongado. Todos os outros pássaros sabem o que isso significa e se dispersam. Qual o custo do aviso? Um assobio é difícil de localizar, de modo que o pássaro que dá o aviso não corre grande risco. Pode-se presumir que o vigilante passarinho seja aparentado com aqueles que o cercam e que está, portanto, simplesmente avisando os guardiães de sua espécie de genes. Como seu próprio risco é muito baixo, ele não precisa ser parente muito próximo de ninguém. Um primo aqui, outro acolá são suficientes.
Mas, talvez você não esteja disposto a aceitar a ideia de cérebros de pássaros resolvendo toda a aritmética genética, decidindo a quem eles ajudarão e a quem não ajudarão. (Isto tudo precisamente na ocasião em que estamos descobrindo que muitas pessoas formadas no curso secundário não são capazes de fazer troco para uma nota de vinte dólares.) Mas, naturalmente, agora você já se impregnou tanto dos elementos essenciais da teoria evolucionária, que imediatamente se controlará e perceberá que pássaros não calculam coisa alguma. A seleção natural fez o cálculo. Os pássaros simplesmente se comportam como se o tivessem feito; aqueles que não se comportam assim não deixam genes.
É esta a única razão pela qual um pássaro solta o gripo de advertência? Só para salvar suas espécies de genes, que por acaso residem nos corpos de outros? Talvez, não. Um pássaro em um bando completamente anônimo de estorninhos, no qual nenhum deles tem probabilidade de ser parente de seu vizinho, também dará o aviso. Isto pode parecer altruísmo, mas aqui também a razão pode ser inteiramente egoísta. O grito de advertência que salva outros pode, por exemplo, assegurar a presença de uma multidão, que distrairá e confundirá o predador. Seria fácil acertar um alvo entre três pássaros, mas difícil entre vinte; além disso, é mais difícil atacar de surpresa uma multidão de pássaros, porque há muitos olhos vigilantes. Ademais, dando o aviso, um indivíduo pode estar assegurando a presença de parceiros para reprodução, mais tarde. Assim, o pássaro que avisa pode estar-se comportando de acordo com o melhor interesse de seus próprios genes.
Devo acrescentar que há uma explicação ainda mais cínica para gritos de advertência em grupos de pássaros não aparentados. Sugeriu-se que um pássaro dá o aviso a fim de assustar seus colegas e fazê-los moverem-se abruptamente, com isso chamando atenção sobre si próprios. Assim, o pássaro que avisa aumenta a probabilidade de algum outro pássaro ser agarrado pelo gavião.
Em geral, porém, podemos esperar gritos de advertência e outros atos de “altruísmo”, quando animais são aparentados. Significa isto que devemos procurar tais ações em espécies viscosas — espécies nas quais o grupo reprodutivo tem certa coesão. Como exemplo, há uma espécie de pássaros na qual os machos de qualquer ninhada tendem a permanecer no território de seus pais. Assim, uma família de pássaros tende a ocupar determinado território. Os filhotes que permanecem são chamados “ajudantes”, porque auxiliam os pais a defender o território contra intrusos e ajudam a criar as ninhadas mais novas. Fazem tudo isto, mas o par mais velho não lhes permite procriar. Esta ação é altruística? Não. Ajudando, ele aumenta sua própria aptidão reprodutiva de duas maneiras: primeiro, maximalizam suas espécies de genes por aumentarem o rendimento reprodutivo de seus pais; segundo, permanecem para herdar o território quando um dos genitores morre e, naturalmente, o herdeiro tem liberdade para procriar. Assim, “ajudando” a espécie, tanto o parentesco quanto o altruísmo tem probabilidade de ser grande.
Devo acrescentar que há casos nos quais ajudantes podem não ser parentes daquele que ajudam, mas promovem seus próprios genes do mesmo jeito. Por exemplo, fêmeas de chimpanzés de classe média podem demonstrar obstinada e devotada atenção pelos filhotes de mães de categoria mais elevada. Seguem constantemente a mãe e tentam tocar no filhote ou brincar com ele. A princípio, são escorraçadas, mas sua persistência finalmente vence e elas obtêm permissão para cuidar dos bebês mais bem nascidos. Elas são “tias” extremamente atenciosas e, como a coesão dos grupos de chimpanzés não exclui parentesco, as tias colhem também outros benefícios. A posição social se dilui e elas podem elevar-se na hierarquia, associando-se aos filhotes de fêmeas dominantes. Posição social tem, naturalmente, suas recompensas, de modo que fêmeas que se promovem desta maneira subirão na hierarquia e poderão aumentar sua própria aptidão global como resultado. Por isso, vemos que exemplos de aparente altruísmo devem ser examinados muito de perto, porque benefícios ocorrem de todas as formas e tamanhos.
A fim de testar a presunção de que, entre pássaros, os ajudantes estão cuidando de seus próprios genes, foi realizada uma experiência com vinte e cinco pares de bluebirds das montanhas. Um genitor de cada par foi removido. Já havia ovos ou filhotes nos ninhos e, em todos os casos, o pássaro restante acasalou-se com um novo parceiro. Os padrastos estavam ansiosos por acasalar-se com a viúva ou o viúvo, mas aparentemente não estavam loucos por criar filhotes de outrem. Quase nenhum emitia grito de advertência quando havia claro perigo no alto. Os padrastos estavam obviamente esperando que aquela ninhada com a qual não tinham parentesco morresse ou deixasse o ninho, para que pudessem criar uma nova ninhada, contendo seus próprios genes, uma ninhada que eles alimentariam e protegeriam.
Existem diversas variações fascinantes deste tema. Por exemplo, embora gnus e zebras se movam em grandes rebanhos através das planícies africanas, comportam-se de maneira muito diferente em relação a seus filhotes. Se um filho de gnu é atacado por um predador depois de desgarrar-se de sua mãe, os outros se espalham em todas as direções. Acontece que os gnus se movem em rebanhos anônimos e não têm probabilidade de serem parentes dos animais vizinhos. Mas se um predador tentar atacar um filhote de zebra que se desgarrou, ele pode ser recebido por coices de cascos que voam em todas as direções. Zebras tendem a mover-se em unidades familiares e, por isso, um adulto tem probabilidade de ser parente do jovem e indefeso animal. Por isso, a zebra adulta movimenta-se rapidamente paras proteger suas espécies de genes.
A mecânica do altruísmo se torna muito complexa em algumas espécies, como os perus da América do Norte. Aqui, quando dois irmãos crescem juntos, precisam em certo tempo lutar entre si pelo domínio. Quando um vence, o que perde não se retira, mas permanece com seu irmão. Juntos, os dois lutam contra outros pares de irmãos que também já decidiram entre eles a questão do domínio. Finalmente, uma dupla emerge vitoriosa e esses dois irmãos ficam então livres para se dedicar a atrair fêmeas. Ambos se pavoneiam, rodopiam e exibem seu vigor, mas só um, o dominante, tem probabilidade de acasalar-se com qualquer das fêmeas que atraíram. O irmão que perdeu precisa permanecer nos bastidores, observando suas espécies de genes serem perpetuadas por procuração. Não é tão bom quanto procriar, mas é melhor do que nada.
Talvez os melhores exemplos da importância de parentesco no altruísmo sejam encontrados nos insetos sociais, particularmente naquela grande sociedade sexista da colmeia. Abelhas operárias trabalham incansavelmente até morrer e começam assim que saem de suas celas. As operárias mais jovens preparam celas novas na colmeia durante um ou dois dias, até suas glândulas chocadeiras se desenvolverem. Depois começam a alimentar as larvas, até estas se tornarem seus irmãos mais novos. Mais tarde, descarregam o néctar trazido pelas operárias de campo e guardam em celas o pólen que chega. Em seguida, suas glândulas cerosas se desenvolvem e elas começam a construir favos de mel. Algumas dessas “abelhas da casa” se tornam guardas e patrulham a área em volta da colmeia. No devido tempo, porém, todas as abelhas se tornam operárias de campo ou buscadoras de alimento. Agora voam até muito longe para recolher néctar, pólen ou água, de acordo com as necessidades da colmeia, e morrem sem hesitar para proteger a colmeia. De fato, abelhas precisam dar suas vidas a fim de picar. Os ferrões prendem-se na carne de um intruso; quando uma abelha se afasta, voando, depois de um ataque, seu ferrão e suas entranhas ficam para trás e ela logo morre. Quando não morrem dessa maneira, e se desgastam em seu serviço, quando suas asas ficam tão gastas e estraçalhadas que já não podem mais voar, as abelhas morrem quietamente ou são mortas por suas irmãs. Auto-sacrifício é o lema; as abelhas dão tudo quanto têm; e a colmeia continua.
A vida de autossacrifício das abelhas é imposta porque elas são estéreis. Operárias não podem pôr ovos, por isso não têm a menor esperança de reproduzir-se. Em lugar disso, dependem da rainha para reproduzir suas espécies de genes. A rainha é simplesmente uma irmã que foi alimentada com dieta especial quando larva. É atenciosamente cuidada e vive muito mais tempo do que suas irmãs operárias, de modo que finalmente se torna a mãe de todas as operárias da colmeia. Quando se acasala, é fertilizada por um zangão que tem apenas metade do número de cromossomos de suas irmãs. Assim, cada descendente acaba com a cota inteira de cromossomos, recebendo metade dos cromossomos de sua mãe e todos os de seu pai. Significa isto que todos partilham em comum três quartos de seus genes. Por isso, qualquer abelha é mais estreitamente aparentada com uma irmã do que seria com seus próprios descendentes (se pudesse tê-los). É melhor, em termos de benefício para sua própria espécie de genes, cuidar de suas irmãs do que ter filhos e, com a ajuda das irmãs, cuidar do grande saco de ovos que é a rainha, pois esta é sua única esperança de perpetuar suas espécies de genes. Com parentesco tão forte, pode-se esperar extremo altruísmo e é precisamente o que encontramos.
Se a presunção básica de tudo isto é verdadeira, que podemos dizer a respeito da declaração, tão comum, de que animais se comportam de certa maneira “para o bem da espécie”? Ouvimos isto frequentemente — em particular na voz do locutor de programas de animais na televisão. Deve ser a esta altura evidente que nada é feito pelo bem da espécie. Tudo é feito pelo bem de si próprio. Se uma ação beneficia a espécie, é um efeito secundário — uma coincidência.
A discussão sobre isto foi em certa época acalorada no mundo da biologia. Foi provocada por uma declaração muito eloquente de V.C. Wynne-Edwareds, biologista britânico, o qual procurou demonstrar que animais podem reduzir voluntariamente seu próprio rendimento reprodutivo em tempos de superpopulação. Assim, disse ele, a aptidão do indivíduo seria sacrificada pelo bem do grupo. É uma bela ideia e certamente apelas às nossas sensibilidades morais, mas não funciona. Se alguns animais reduzissem voluntariamente sua reprodução, os genes desses altruístas seriam logo destruídos pela progênie egoísta daqueles que recusassem reduzir. Assim, qualquer população tenderia a sempre ser composta pelos descendentes de indivíduos egoístas.
Talvez lhe tenha ocorrido que há outra maneira de encarar toda esta questão de aptidão e egoísmo — se não todo o paradigma sobiobiológico. É provocada pelo conhecimento de que nós próprios estamos condenados. Mas, olhando do ponto de vista de nossos genes, isto não é tragédia alguma. Nós somos dispensáveis. Não apenas somos dispensáveis, mas é essencial ao bem-estar de nossos genes que nós morramos. Bem-estar de nossos genes? Estaremos realmente ocupados apenas em cuidar de nossos genes? De acordo com os argumentos que apresentei, a resposta é, categoricamente, sim. Mas seremos nós menos do que isso? Seremos simplesmente instrumentos involuntários de genes egoístas, como sugeriu Richard Dawkins, da Universidade de Oxford? Talvez, em certo sentido, os genes estejam no banco do motorista, simplesmente nos usando como alojamento temporário, até poderem forçar-nos a fornecer-lhes outra geração, mais jovem e mais variável, de corpos quentes. É uma ideia particularmente doentia, que agride as sensibilidades poéticas de cada um de nós. Obviamente, precisamos olhar mais de perto a questão.
Deve-se admitir que só nossos genes têm realmente alguma coisa a ganhar ou perder com nosso comportamento. Os genes em nossos corpos são aqueles — ou, precisamente, são réplicas daqueles — que foram transmitidos por nossos ancestrais. E são as únicas partes físicas de nos que terão oportunidade de continuar quando nós partirmos. Eles proporcionam um delicado, mas robusto, fio de vida entre as gerações efêmeras. São periodicamente reembaralhados, divididos ao meio e introduzidos nos corpos de novas gerações de crianças. Naturalmente, algumas dessas crianças traem a confiança e deixam de ter descendentes próprios — e o sortimento de genes que permitiu tal traição é assim rapidamente removido da população. Contudo, pode-se esperar que a maioria de nossos filhos obedeça fielmente ao chamado de seus genes. Terão filhos e os amarão. Tornar-se-ão atraentes. Serão orientados para o sexo. Lançarão no ostracismo os pervertidos. Reproduzir-se-ão.
Que faz de nós tudo isto? Guardiães genéticos? Alojamentos temporários de cromossomos? Escravos de minúsculas moléculas enroladas, que nos operam por controle remoto? Pesados robôs, cheios de racionalizações, explicações, superstições e escusas, mas seguindo cegamente o Imperativo Reprodutivo? Que dizer do fato de estarmos aprendendo a tocar guitarra clássica? De estarmos interessados em dança de sapateado e podermos começar a tomar lições logo? De sermos ordeiros e responsáveis, e termos empregos terrivelmente bons? De termos lido Camus e não pronunciarmos o “s” de seu nome? De termos bons amigos, realmente bons? De sermos grandes pessoas e nossos pais se orgulharem de nós? Que dizer de tudo isso? Cromossomos levam-nos a fazer isso? “Não”, vem a resposta da montanha, “mas eles não se importam que você faça” — desde que isso não interfira em sua reprodução. Ser uma pessoa esplêndida pode até mesmo ajudá-lo a encontrar mais facilmente um parceiro e deixar ainda mais genes.
“Eles não se importam com o que eu faço? Grita você. Estúpidas moléculas enroladas não se importam? Essa é muito boa! Homem, você está doido!”
Mas é ainda pior que isso. As moléculas não são sequer estúpidas. São simplesmente indiferentes. Elas nem sequer sabem que existem. Simplesmente ficam lá no fundo de suas células, oferecendo-se cegamente como padrões para formação de enzimas. Essas enzimas, por sua vez, produzem certas reações químicas e com isso fazem diferentes células adquirirem propriedades determinadas. Algumas enzimas dirigem a formação de células musculares ou sanguíneas. Outras podem ajudar a formar o hipotálamo ou parte do cérebro. Portanto, se o cérebro dirige nosso comportamento, as raízes do comportamento podem ser totalmente encontradas nos genes. Genes são o diabo que leva você a fazer o que fez.
Na realidade, tudo isto não deveria causar surpresa. É simplesmente outra maneira de encarar o que estivemos discutindo o tempo todo. Naturalmente, não é preciso conferir inteligência ou vontade aos genes. É novamente simples aritmética. Os genes que sobrevivem são aqueles que nos ajudam a reproduzir-nos.
A fim de ilustrar alguns dos problemas para explicar altruísmo em base evolucionária, voltemos à ideia de “emissários genéticos” mencionada antes. Pessoas que estudam uma ampla variedade de animais, desde pássaros até macacos, observaram que animais mais jovens se comportam de maneira um pouco diferente daqueles mais velhos. Podemos ver isto por nós mesmos, ao observarmos um gatinho bobo saltar para o ar, depois sair correndo através da sala e do quarto, e enfiar-se embaixo da cama, de onde surge em seguida sua carinha redonda. Podemos ver isto em um alegre cãozinho que é capaz de enfiar o nariz em um cacto e ficar cheio de espinhos. E vemos isto nos exploradores e brincalhões macacos, que, mesmo na selva, olham, cutucam, exploram e aprendem. Animais jovens parecem ser muito mais curiosos e aventureiros do que os mais velhos. Podem também ser mais inovadores.
Um estudo sobre macacos japoneses revelou que uma jovem fêmea muito inteligente aprendeu a separar cereais de areia, pegando um punhado de cereais e areia, e jogando tudo na água. Os cereais flutuavam e podiam ser facilmente retirados. A técnica aparentemente nunca havia ocorrido nos macacos velhos, que trabalhosamente extraíam cada grão de cereal na praia. Mas, depois de observarem a jovem experimentadora, eles logo aprenderam.
Descrevi anteriormente o comportamento exploratório de pássaros jovens, observando que eles têm maior probabilidade de invadir habitats novos do que pássaros velhos. Além de sua propensão para exploração, pássaros novos não navegam tão bem quanto os velhos, e, por isso, têm mais probabilidade de voar fora do curso em suas migrações anuais e se perder. Isto pode ser também uma maneira de invadir habitats novos, embora um pouco arriscada. O fato é que animais jovens são os exploradores, os colonizadores.
Tudo isto parece muito bom e nós já o vimos em nossa própria espécie com tanta frequência que não ficamos surpreendidos. Mas há um problema em exploração. Ela pode ser perigosa. Há um risco envolvido. Naturalmente, poder-se-ia dizer que juventude é o tempo de correr riscos, quando indivíduos são fortes e antes que padrões de comportamento se tornem tão rígidos a ponto de tornar difícil a adaptação. Mas surge esta questão: Afinal de contas, por que arriscar-se? Por que invadir habitats novos, quando a população já está bem situada na área tradicional? Sem dúvida, é mais seguro permanecer com o grupo dos pais. Pode-se argumentar, porém, que o grupo dos pais talvez esteja adaptado bem demais à sua área. A gente de casa pode oferecer competição tão intensa, que um recém-chegado se sairá melhor em outras áreas, onde talvez haja maior risco, mas há menos competição.
Existe outra razão para que animais jovens tendam deliberadamente a deixar o grupo? Pais forçam “deliberadamente” seus filhos a saírem? E equipam-nos “deliberadamente” com disposições genéticas que os encorajem a separar-se, a explorar, a assumir riscos, pela probabilidade de que isso será geneticamente compensador para os pais? É esta a “estratégia genética” de um bom genitor? Brinquedo é a expressão extravagante de uma tendência mais evolucionariamente séria para fazer o incomum? O impulso exploratório é um comportamento que capitalizou a exuberância e força da juventude? Se bebês macacos brincalhões fazem coisas e comem coisas que seus pais não fazem e não comem, isto é do melhor interesse deles ou de seus pais?
Talvez os animais jovens se comportem no melhor interesse de seus pais. Se se arriscam ao desconhecido, porque seus pais os equiparam geneticamente para fazê-lo, e se, em resultado, sofrem mortalidade mais alta (a mortalidade entre a maioria dos vertebrados jovens é alta), então animais jovens podem ser considerados “emissários genéticos” de seus pais. São testas-de-ferro, balões de ensaio. Talvez haja lá recompensas potenciais, mas os pais podem não desejar entrar no jogo, por isso enviam seus genes, sob a forma de seus filhos, para verem se há alguma coisa a ganhar.
Às vezes, os ganhos são enormes, como ocorre quando animais invasores colonizam ilhas difíceis de ser alcançadas e, por isso, virtualmente livres de competidores. Mas muitos dos pretendentes a colonizador podem ser perdidos ao fazerem a tentativa.
Como pode haver grandes riscos, o animal jovem talvez não esteja agindo em seu melhor interesse ao aventurar-se, explorar, experimentar coisas novas. Poderia ter melhor sorte ficando com o grupo e comportando-se circunspectamente. Se estivesse agindo em seu melhor interesse, seria de esperar que tentasse sair para arenas desconhecidas só quando o risco fosse pequeno e a recompensa potencial grande ou quando o risco fosse grande e a recompensa potencial muito grande.
Portanto, a questão básica é esta: Animais exploradores jovens estão agindo em seu próprio interesse ou no interesse de seus pais? Eles realmente começam a tentar maximizar seu próprio sucesso genético tão logo se veem entregues a si próprios ou assumem riscos desnecessários porque não receberam de seus pais tudo que precisavam? Saíram para maximizar o sucesso de seus pais com risco para si próprios? Afinal de contas, o risco para o genitor é uma função de seu investimento; o risco para o filho é total. Poder-se-ia argumentar que seleção natural não concede imediatamente suas grandes vantagens ao indivíduo novo na população, mas que essas boas graças só são gradualmente conferidas à medida que o animal adquire idade. O animal é a princípio apenas um artigo mais ou menos dispensável, agindo, em certa medida, em favor de seus pais. Mais tarde, esses impulsos de exploração-brinquedo desaparecerão e o animal se tornará um guardião completo da seleção natural, não mais frívolo, mas agindo agora em seu próprio interesse. Seria também de se esperar que, à medida que se tornasse mais velho, um animal tendesse a ser mais cuidadoso com seus emissários genéticos. Uma coisa é mandar um filho mal equipado sair para o mundo, quando se tem bastante certeza de ser capaz de substituí-lo mais tarde, caso ele falhe. Mas é coisa completamente diferente mandar sair aquele que talvez seja sua última probabilidade de reprodução. Seria interessante saber se genitores mais velhos tendem a proteger seus filhos mais do que genitores mais novos. Este decididamente parecer ser o caso entre seres humanos, a espécie com o maior investimento paterno.
Se a argumentação precedente — de que um animal jovem pode a princípio assumir riscos em favor de seus pais — tem alguma validade, poder-se-ia então dizer que alguns animais jovens se comportam altruisticamente. Podem falhar e perder-se, mas seus pais viverão para reproduzir-se de novo. Naturalmente, os frutos desses esforços reprodutivos serão novos irmãos e irmãos, indivíduos portadores de genes em comum com o explorador. Assim, o explorador talvez esteja, afinal de contas, cuidando de seu próprio sucesso reprodutivo. Novamente, o que parecia ser altruísmo é apenas uma maneira de perpetuar os próprios genes por procuração, ajudando parentes a se reproduzirem.
O impulso de toda esta argumentação (de fato, de todo o capítulo, se não do livro inteiro) talvez seja ligeiramente irreverente. E, diriam alguns, um ataque às nossas reverenciadas qualidades de amor, carinho, compaixão, autossacrifício. E, enquanto uns poucos talvez achem isto tudo muito interessante, outros o acharão irritante. Tudo deve ser encarado como expediente reprodutivo? Altruísmo é realmente apenas uma maneira pela qual genes se multiplicam através de uma rede de parentes? É um instrumento com o qual alguém conserva outros em ação, a fim de que outro sofra o peso dos riscos ambientais? É uma maneira de obter acesso fácil a parceiros? É simplesmente mais um recurso darwinista capacitante? Devem nossos mais queridos traços ficar embaixo do guarda-sol darwinista? Uma de nossas primeiras linhas de defesa é, naturalmente, descobrir exceções. Exceções enfraquecem a regra.
Que dizer do fato de estranhos muitas vezes se ajudarem mutuamente? Como pode o fato de ajudar um estranho contribuir para o bem-estar genético de quem ajuda? Por que eu parei uma noite, no Mississippi, para ajudar um estranho a encontrar um quarto de hotel? Por que um homem negro parou sob a chuva em uma ponte através do Mississippi para ajudar-me a apertar a correia do ventilador? Como me foi possível ver um grupo de nova-iorquinos, vejam bem, nova-iorquinos, perseguir dois ladrões pela rua, gritando a distância até chegar a polícia? Por que um soldado britânico, que conheci em Copenhague, defendeu uma mulher contra seu agressivo marido? Por que encontramos diariamente ações de ajuda e autossacrifício — ações que podem não ter a menor “explicação” genética?
Você provavelmente não ficará encantado ao ouvir dizer que tais ações podem, de fato, ser explicadas em base evolucionária. Parece, depois de tudo dito e feito, que nós estamos novamente fazendo a mesma coisa, cuidando de nós próprios. Pelo menos é o que diz a teoria de altruísmo recíproco. A ideia toda foi mais ou menos desenvolvida na década de 1970 por um brilhante e atrevido jovem de Harvard, Robert Trivers. (Alguns sugeriram que a apresentação desta ideia fez com que ele perdesse sua posição. Seja ou não verdade, a ideia de altruísmo recíproco é sem dúvida tão ofensiva para muitas pessoas que a sugestão se torna crível.)
A ideia de altruísmo recíproco está contida em uma parábola de Bom Samaritano. Suponha-se que um homem que se está afogando é socorrido por um Bom Samaritano, embora os dois não tenham parentesco entre si e sejam totalmente estranhos. Parece a princípio que encontramos um exemplo de puro altruísmo. Todavia, acontece que o Bom Samaritano tem um pouco a ganhar com seu ato “altruístico”. Suponha-se que o homem que se está afogando tem cinquenta por cento de probabilidades de morrer se não for ajudado e que o Bom Samaritano, sendo um Bom Nadador, só tem uma probabilidade em vinte de morrer se o ajudar. Em nosso enredo, presumimos também que, se o Bom Samaritano debater-se na água e afogar-se, a vítima também se afogará. Mas se o Samaritano viver, a vítima também viverá.
Para finalidades de ilustração, presumamos que existe grande probabilidade de o próprio Bom Samaritano vir a ter necessidade de assistência em época posterior e o homem socorrido poder retribuir, salvando-o. De fato, se o homem que se estava afogando retribuir (com a mesma probabilidade de risco para cada um), ambos terão recebido um benefício líquido ao desempenhar o papel de salvador. Em essência, cada homem teria trocado um risco de cinquenta por cento, de morrer, por cerca de um décimo de risco.
Antigamente, em nossa história evolucionária, uma pessoa que socorresse outra poderia literalmente ser capaz de contar com o próprio homem salvo para ajudá-la. Grupos eram pequenos e coesos, de modo que quem socorria e quem era socorrido se conheciam e provavelmente estariam próximos um do outro quando surgisse qualquer crise. Na sociedade moderna, porém, nós somos excessivamente numerosos e excessivamente móveis, para que possamos tratar-nos reciprocamente em base individual. Em lugar disso, precisamos contar com o estabelecimento de um padrão comportamental através da cultura. Uma população de indivíduos que interatuem dessa maneira será constituída de pessoas com aptidão reprodutiva aumentada. Cada indivíduo colhe um benefício líquido em troca.
Agora, pode ter-lhe ocorrido que existe uma maneira de derrotar o sistema. Fraude. Ande por aí vestido de branco, com uma expressão concentrada no rosto e, se estiver se afogando, grite por socorro. Quando chegar a ajuda, pareça agradecido. Contudo, se a situação inverter-se, por que assumir aquele risco de um para vinte, de morrer, a fim de socorrer uma outra pessoa? Deixe que ela se afogue. Dessa maneira você nada tem a perder e tem tudo a ganhar.
O problema é que somos uma espécie inteligente, com longa memória e com capacidade de nos reconhecermos individualmente. Assim, se outros virem você fraudando, passarão a reconhecê-lo como impostor, a marcá-lo como tal, a colocá-lo no ostracismo ou a puni-lo de outras maneiras. Talvez recusem salvá-lo.
Assim, se impostores são identificados e não são salvos quando se encontram em dificuldade, a fraude não compensará. O fator de risco da fraude será, de fato, maior que o do altruísmo. Se provocar a justa indignação de seu vizinho e violar os código morais dele, você, como indivíduo, pagará.
Altruísmo recíproco, diga-se de passagem, explica uma ampla variedade de sutis traços humanos, com simpatia, gratidão, convencimento da própria virtude e culpa. Nós nos sentimos compelidos a ajudar outra pessoa, não por termos usado a aritmética para ver se seremos beneficiados, mas por sentimentos de simpatia. Nós somos tão vulneráveis às sugestões, que simpatia pode ser evocada mesmo em situações nas quais não existe a menor possibilidade de recompensa (como vemos nas fisionomias dos visitantes do museu Dachau, da Alemanha). Mas cumpre-nos, apesar disso, conservá-la em nosso repertório comportamental.
Gratidão é o sentimento que nos leva a expressar nossos agradecimentos, e ela aumenta a probabilidade de sermos ajudados de novo (“Ele nem sequer disse obrigado. Você acha que vou ajudá-lo outra vez?”) Convencimento da própria virtude é um pouco mais difícil de definir, mas poderia ser descrito como aquele glorioso sentimento que temos quando sabemos, talvez demais, que nos comportamos de acordo com as regras. (Martírio pode resultar naquele sentimento igualmente esplêndido que temos, por saber que nos comportamos de maneira apropriada, mesmo sem perspectiva imediata de sermos recompensados. Mártires podem estar dispostos a adiar o pagamento para a outra vida.) Finalmente, chegamos àquele grande manto cinzento da culpa.
Ah, a culpa! Culpa causa-nos sofrimento, mas na realidade atua para vantagem nossa: Quando nos comportamos de maneira socialmente irresponsável, sem que outros notem e nos punam, nós punimos a nós mesmos. Nós nos sentimos mal. Decidimos ser melhores na vez seguinte. Sob o incentivo da culpa, tendemos a corrigir comportamento socialmente inaceitável e substituir nossas ações misantrópicas por boas ações, que outros poderão então ver e pelas quais nos recompensarão. Podemos até mesmo nos comportar altruisticamente quando ninguém está observando, de modo a alimentar o convencimento de nossa própria virtude e eliminar quaisquer traços de culpa potencial.
Culpa pode, naturalmente, manter-nos na linha de muitas maneiras. Se desperdiçamos tempo, não estamos nos comportando de maneira reprodutivamente saudável. Nossa culpa nos leva então de volta ao caminho da virtude reprodutiva. Se tratamos mal nossos filhos, nós nos sentimos culpados. Se somos incapazes de tratá-los bem, nós nos sentimos culpados. A alegação do jogador de dados, quando se refere ao “Leite das Crianças!”, talvez resulte de um esforço para suprimir o sentimento de culpa, enquanto esbanja a renda da família.
A consideração de culpa é interessante do ponto de vista evolucionário. Certamente, não nascemos com um conjunto de diretivas que diga: “Não jogue dados com o dinheiro do aluguel”. Parece muito mais provável que nascemos com (1) a capacidade de colocar-nos ao longo de um espectro de virtude-culpa e (2) o desejo de permanecer à esquerda do espectro. Os comportamentos específicos ao longo daquele espectro podem ser inatos (como aqueles relacionados muito especificamente com reprodução) ou aprendidos (aqueles que a sociedade ditou e que podem ou não ter fundamentos reprodutivos). Devido à nossa capacidade de adotar os ditames da sociedade, muitos de nós nos aleijamos a ponto de não termos mais conserto, por cambalearmos continuamente sob o peso da culpa autoimposta. Nós nos sentimos culpados em relação a tudo. Em alguns casos, chegamos mesmo a ter convencimento da própria virtude por nos sentirmos culpados e, olhando para pessoas que carregam um peso mínimo de culpa (talvez até mesmo, que Deus nos livre, gozando a vida), nós as chamamos amorais. Elas são deficientes em culpa. Estranhamente, porém, algumas daquelas próprias pessoas têm o costume de aparecer quando necessárias, talvez com uma loira em cada braço, mas aparecendo de qualquer maneira.
Antes que eu comece a sentir-me culpado por condenar o amoral, permitam-me resumir. Estou plenamente cônscio do risco de condenação que correm aqueles que tentam enfiar alfinetes nos em balões sagrados e sei que cutuquei alguns daqueles balões nestas páginas. Não obstante, é tempo de olharmos mais de perto para nós mesmos, por isso me sinto justificado, se não convencido de minha virtude. Falei sobre alguns de nossos ideais mais queridos e sugeri que eles podem ser explicados como recursos essencialmente egoísticos. Falei sobre o amor como um meio de introduzir nossos genes no conjunto de genes da geração seguinte. Não estou dizendo que o amor é mau; estou dizendo que o amor é egoísta e que o egoísmo é bom, ou pelo menos foi. Egoísmo é a qualidade penetrante que se filtra através das almas das coisas vivas. É a força propulsora por trás de nosso comportamento, do comportamento que nos trouxe a nossos sucessos presentes. Mas o mundo está mudando. As coisas agora são diferentes e talvez seja tempo de mudar nosso comportamento. Para termos alguma esperança de adaptar-nos a um plano modificado, precisamos vir a compreender nossas motivações como elas realmente são e não como gostaríamos que fossem.
Sobre o autor: Robert A. Wallace formou-se em Biologia e Belas Artes em 1960. Em 1965 graduou-se pela Universidade Vanderbilt e em 1969 pela Universidade do Texas, Austin. Sua pesquisa relacionou-se com sistemas sociais de animais, particularmente os pássaros insulares das Índias Ocidentais e do Oceano Índico. Lecionou em departamentos de Biologia, Psicologia e Antropologia em várias universidades dos Estados Unidos e Europa. Atualmente, é professor visitante da Universidade de Duke, EUA.