Há uma tendência da parte de muitos teístas de assumir que o ônus da prova recai sobre o não-teísta quando o assunto é moral. Deste modo, o indivíduo que opera sem uma base teológica é solicitado a justificar seu ato — a assunção do teísta sendo que nenhuma moral é possível na ausência de alguma forma de lei “superior”.
Em nossa cultura, as pessoas estão tão com acostumadas à ideia de que toda lei tem um legislador, de que toda regra tem um moderador, de que toda instituição tem alguma autoridade, e assim por diante, que a ideia de algo ser contrário a isso possui em si o toque no caos. Como resultado, quando alguém vive sua vida sem referência a alguma autoridade última em relação à moral, pensa-se que seus valores e aspirações são arbitrários. Ademais, frequentemente argumenta-se que, se todos tentassem viver desse modo, nenhum acordo em relação à moral seria possível e não haveria modo de se decidir disputas entre indivíduos; nenhuma defesa de um ponto de vista moral particular seria possível na ausência de algum ponto de referência absoluto.
Mas tudo isso se baseia em certas assunções discutíveis do moralista teístico — assunções que são frequentemente produto de analogias falaciosas. Será meu objetivo aqui dar uma boa olhada nestas assunções. Tentarei demonstrar a verdadeira fonte da qual estes valores são originalmente derivados, apresentar uma sólida fundamentação para um sistema moral de base humana (humanístico), e então colocar sobre o teísta o ônus de justificar qualquer ponto de partida proposto.
Leis e Legisladores
De modo impensável, as pessoas frequentemente assumem que o Universo funciona de modo similar às sociedades humanas. Eles percebem que humanos são capazes de criar ordem através da criação leis e do estabelecimento de meios de coerção. Deste modo, quando veem ordem no Universo, imaginam que esta ordem teve origem similarmente humana. Este ponto de vista antropomórfico é um produto do natural orgulho que seres humanos têm de sua habilidade de inserir significado em seu mundo. Ironicamente, é um sutil reconhecimento do fato de que seres humanos são realmente a fonte dos valores e, consequentemente, que qualquer conjunto valores “superior” que puder ser colocado acima dos objetivos humanos comuns deve emanar de uma fonte análoga, mas superior, a seres humanos comuns. Em suma, valores super-humanos devem ser proporcionados por um super-humano — não havendo outro modo de se realizar tal feito.
Mas, enquanto tal ponto de vista antropomórfico é uma hipertrofia da autoestima humana, também é evidência de uma certa falta de imaginação. Por que razão a única fonte de valores morais superiores precisa ser algo super-humano? Por que não é algo totalmente estranho e incompreensivelmente superior?
Alguns teólogos de fato alegam que seu deus é realmente incompreensível. Entretanto, mesmo assim, eles falham em evitar analogias humanas, e usam termos como “legislador”, “juiz”, e assim por diante. Claramente, a imagem que emerge da filosofia moral religiosa e até de alguma secular é que, assim como leis convencionais requerem um legislador, a moral requer uma fonte última da moralidade.
Uma assunção relacionada e discutível é a de que valores morais, para que tenham autoridade, devem possuir uma origem exterior aos seres humanos. Novamente, surge a analogia das leis, dos juízes e da polícia. Na vida diária, obedecemos leis aparentemente criadas por outros, julgadas por outros e sustentadas por outros. Por que leis morais deveriam ser diferentes?
Assunções Falaciosas
Quando se diz que um legislador é necessário para cada lei, o resultado é uma série infindável, visto que alguém precisa ser o legislador das leis do legislador. Devido a tal série ser desconfortável a filósofos morais e teólogos, em certo ponto eles declaram que “a série para aqui”. Eles argumentam em favor de um legislador último, de alguém que não possui outrem para fazer-lhe leis. E como isso é feito? O argumento é que a série precisa parar em algum lugar, e um deus sobrenatural é visto como um ponto de parada melhor que qualquer outro.
Mas ainda assim a questão pode ser feita: “De onde Deus tira seus valores morais?”. Se Deus tira-os de uma fonte ainda mais elevada, a série não foi interrompida, e estamos de volta à nossa interminável sucessão. Se forem originadas em Deus, então a moral de Deus é inventada e, portanto, arbitrária. Se a analogia deve ser usada para estabelecer Deus como a origem da moral porque toda a moral precisa de uma fonte inteligente, então, infelizmente — para o teístas —, a mesma analogia deve ser utilizada para demonstrar que, se Deus cria a moral “do nada”, Deus está sendo exatamente tão arbitrário quanto seres humanos que fazem esta mesma coisa. Como resultado, não temos qualquer vantagem e, portanto, filosoficamente, não temos mais motivos para obedecer à moral arbitrária de Deus do que temos para obedecer à moral estabelecida por nosso melhor amigo ou mesmo por nosso pior inimigo. Arbitrário significa arbitrário, e a arbitrariedade de nenhum modo é removida fazendo-se do moralista arbitrário um ser sobrenatural, onipotente, incompreensível, misterioso ou com qualquer outra característica comumente atribuída a Deus. Então, neste caso, se Deus existe, os valores de Deus são apenas as opiniões de Deus e não precisam necessariamente dizer respeito a nós.
Enquanto esta primeira assunção — a necessidade de um legislador — falha na pretensão de resolver o problema, a segunda assunção — a de que a origem dos valores morais deve ser exterior aos seres humanos — de fato representa um obstáculo à busca por uma resposta. A segunda assunção baseia-se na superficial consciência de que leis parecem ser impostas a nós de fora para dentro. E disso segue-se que há necessidade de uma imposição externa de valores morais. Mas o que não raro esquece-se é que estas leis humanas que aparentemente são importas externamente são, na verdade, pelo menos no mundo ocidental, produto de um processo democrático. Elas são as leis dos governados. E, se é possível que pessoas desenvolvam leis e imponham tais leis sobre elas próprias, então é possível fazer o mesmo com relação à moral. Assim como com as leis, também com a moral; os governados são capazes de governar.
Um Ponto de Referência Absoluto
Neste ponto, poder-se-ia perguntar: como é possível que os governados sejam capazes de governar a si próprios? Não estariam eles talvez utilizando um ponto de referência mais elevado, último ou absoluto? Não seriam todas as leis e convenções humanas simplesmente aplicações específicas das leis de Deus? Vejamos.
Suponhamos que eu estivesse dirigindo meu carro e me deparasse com um sinal vermelho. Se desejar virar à direita, é seguro fazê-lo nesta situação, então na maioria dos estados posso proceder sem medo de punição. Mas e se eu fizer isso onde não é legal ou seguro? Então é possível que o policial me multe. O policial — e o sistema de justiça que sustenta a multa — é uma imposição externa a mim? Sim, mas, em última instância, as leis que afetam o tráfego foram feitas por pessoas como eu e podem ser mudadas por mim e por outros trabalhando em conjunto. Logo, a lei que regulamenta como devo operar quando desejo virar à direita num sinal vermelho é uma invenção totalmente humana que visa resolver um problema humano.
Poderia esta convenção humana basear-se numa lei superior à qual eu e outros devemos nos referir? Não vejo como. Nenhum desses veneráveis livros sagrados antigos discutem o virar à direita em sinais vermelhos ou oferecem algum princípio superior a partir do qual todas as leis de trânsito devem ou podem ser racionalmente derivadas. Nem mesmo a regra dourada oferece qualquer referencial aqui, já que ela apenas me diz para obedecer a lei seja esta qual for — se é uma lei, quero que outros a obedeçam. Ela não me diz se virar à direita num sinal vermelho deve ser legal ou não, ou se o sinal de “pare” deve ser vermelho ou roxo, ou qualquer outra coisa útil neste sentido. Quando o problema são leis de trânsito, os seres humanos estão sozinhos, sem nenhum guia sobrenatural ao qual recorrer para ajudá-los a formular as melhores leis de tráfego.
(Isso, entretanto, não significa que leis de trânsito são totalmente arbitrárias. Elas são, no fim das contas, baseadas em considerações relativas à sobrevivência. Elas existem devido à preocupação humana com a segurança. Como resultado, um número de importantes descobertas da física é levado em consideração na decisão dos limites de velocidade. Os fatos da natureza, neste caso, tornam-se um ponto externo de referência, mas um Deus ainda não figura no processo.)
Agora, por que — se seres humanos supostamente não são capazes de funcionar bem sem uma base externa e sobrenatural para sua conduta — tantas pessoas são capazes de obedecer e impor leis de tráfego? Deveria tornar-se óbvio a partir da observação mais casual que seres humanos são totalmente capazes de criar sistemas e então operar sob suas regras.
Uma vez visto isso, poder-se-ia perguntar que motivos existem para a crença de que seres humanos não podem continuar a operar deste modo no que diz respeito a leis e ensinamentos morais que regulam coisas como trocas e comércio, direitos de propriedade, relacionamentos interpessoais, comportamento sexual, rituais religiosos e o resto dessas coisas que teólogos aparentemente julgam necessitar de uma fundamentação teológica. O simples fato de que antigos e reverenciados livros sagrados fazem pronunciamentos nestas questões e atribuem tais pronunciamentos a princípios morais divinos faz da teologia uma necessidade para a lei e para a moral tanto quanto faria dela uma necessidade ao jogo de basebol se suas regras tivessem aparecido nestas obras antigas (1). Se podemos obedecer nossas próprias leis de tráfego sem necessidade de bases teológicas ou metafísicas, somos capazes de obedecer nossas próprias regras em outras áreas. Considerações análogas sobre necessidades e interesses humanos, em harmonia com os fatos, podem ser aplicadas em ambos casos para a invenção das melhores leis e regras pelas quais viver. Deste modo, podemos aplicar às leis o que o astrônomo Laplace disse a Napoleão: no que concerne um deus, nós não temos “nenhuma necessidade dessa hipótese”.
Lei e Moral
A lei, entretanto, não é necessariamente a mesma coisa que a moral; há muitas regras morais que não são reguladas por autoridades legais humanas. E então surge a questão de como alguém pode ter um conjunto de princípios morais funcionais se não há ninguém para impô-los. Leis e regras são geralmente criadas para regular atividades que são publicamente observáveis — isso torna a imposição fácil. Mas os arreios de princípios morais são para um cavalo de uma cor diferente. Eles frequentemente envolvem atos que não são ilegais, mas simplesmente antiéticos, e podem incluir atos que são privados e difíceis de se observar sem invasão de privacidade. A imposição, deste modo, é quase totalmente deixada nas mãos do perpetrador. Outros podem trabalhar as emoções do perpetrador para encorajar culpa ou vergonha, mas não têm qualquer verdadeiro controle sobre sua conduta.
Para resolver este problema, alguns teólogos deram a Deus o atributo de “espião cósmico” e o poder de punir o comportamento antiético que a lei não consegue cobrir — um poder que se estende mesmo para além do túmulo. Assim, mesmo se a arbitrariedade de Deus for concedida, não haveria negação do poder de Deus para amoldar sua vontade. Assim, no grau em que este Deus e este poder fossem reais, haveria um potente estímulo — apesar de não representar uma justificativa filosófica — para que as pessoas comportassem-se de acordo com a vontade divina. E isto no mínimo retiraria a maior parte da incerteza da imposição do comportamento moral, mas não ilícito.
Infelizmente àqueles avançando nesta proposta, a existência de tal autoridade não é tão aparente quanto a existência de autoridades humanas que impõem leis públicas. Deste modo, com o objetivo de controlar o comportamento legal, mas imoral, o clero ao longo da história julgou necessário seduzir, bajular, amedrontar e etc, a fim de condicionar seus rebanhos à crença neste árbitro supremo da conduta moral. Eles buscaram condicionar as crianças tanto mais jovens quanto possível. E, tanto com adultos quanto com crianças, eles apelaram à imaginação, pintando, com palavras, imagens das torturas infligidas aos amaldiçoados.
Os Romanos antigos alegavam obter algum sucesso com estas medidas; o historiador antigo Políbios, comparando as crenças gregas e romanas e os graus de corrupção em cada cultura, concluiu que os romanos eram menos inclinados ao roubo porque temiam o fogo do inferno. Por razões como esta, o governador romano Cícero julgou a religião romana como sendo útil, mesmo enquanto a considerava falsa.
Mas seres humanos realmente necessitam de tais sanções para controlar seu comportamento privado? Quase nunca. Pois se tais sanções fossem de importância primária, elas seriam quase sempre usadas por moralistas e pregadores. Mas não são. Atualmente, quando argumentos para comportamento moral são feitos, mesmo pelos pregadores religiosos mais conservadores, raramente apela-se às punições presentes ou futuras de Deus. O apelo é feito mais frequentemente a considerações práticas como o bem-estar psicológico, a boa reputação, a satisfação de metas pessoais e a promoção do bem-estar geral. Os apelos são feitos também à consciência e aos sentimentos humanos naturais de simpatia. No cristianismo, às vezes o medo é substituído pela motivação de se imitar o ideal de Cristo, um método geral estabelecido anteriormente pelo budismo. É significante notar que tais apelos podem influenciar tanto o comportamento do não-teísta quanto o do teísta.
Mas suponha-se que teístas cessassem tais apelos práticos e humanísticos e retornassem a basear toda a pregação moral na vontade de Deus. Uma incômoda ironia iria permanecer: há muitos deuses diferentes (2). O simples fato de que as religiões em todo o mundo são capazes de promover comportamentos morais similares torna falsa a ideia de que apenas um certo deus é o único “verdadeiro” disseminador da moralidade. Se apenas um dos muitos deuses adorados é real, milhões de pessoas, apesar de comportarem-se moralmente, estão o fazendo sob a influência, inspiração ou ordem do deus errado. A crença no deus “certo”, deste modo, não parece ser muito crítica no que concerne a conduta moral. Alguém poderia até concordar com Cícero e admitir a hipocrisia e obter o mesmo resultado. E quando alguém acrescenta que os não-teístas do mundo mostraram-se tão capazes de comportamentos morais privados quanto os teístas (os budistas oferecerem, talvez, o melhor exemplo em larga escala), então a crença em Deus torna-se uma questão de segunda importância no assunto. Há algo na natureza humana que opera num nível mais profundo que a simples crença teológica, e é isso que serve como o verdadeiro incentivo para o comportamento moral. Assim como com as leis, também com a moral: seres humanos parecem ser totalmente capazes de tomar, eles próprios, decisões sensatas e sensíveis em relação à conduta.
A Origem da Moral
Mas isto resolve completamente o problema apresentado pelo teísta? De fato, não resolve. Pois ainda pode-se levantar a questão de como é possível a seres humanos comportarem-se moralmente, concordarem sobre regras morais e leis e cooperarem mutuamente na ausência de qualquer ímpeto divino nesta direção. Afinal, não argumentaram todos os filósofos modernos, em particular os filósofos analíticos, que manifestações morais são basicamente expressões emocionais sem base racional? E não separaram eles irrevogavelmente o “deve” do “ser”, de modo que nenhuma fundamentação chega sequer a ser possível? Sob esta ótica, como é possível que seres humanos consigam concordar — não raro até de cultura para cultura — quanto a uma variedade de princípios morais e legais? E, mais importante, como é possível que sistemas legais e morais evoluam ao longo dos séculos na ausência do próprio fundamento racional ou teológico que os filósofos modernos tão eficientemente destruíram? Sem alguma base, algum critério objetivo, não é possível escolher um sistema moral bom em lugar de um ruim. Se ambos são igualmente emotivos e irracionais, são ambos igualmente arbitrários — tornando qualquer seleção entre eles apenas um produto de propensões acidentais ou caprichos pessoais. Nenhuma escolha poderia ser racionalmente defendida.
Ainda assim, aparentemente, apesar deste problema, seres humanos de fato desenvolvem, eles próprios, sistemas morais e legais — e posteriormente os aperfeiçoam. Qual é a explicação? De onde vêm os valores morais?
Imaginemos, por um momento, que temos a Terra sem vida e morta, flutuando num universo sem vida e morto. Há apenas montanhas, rochas, abismos, vento e chuva, mas ninguém em qualquer lugar para fazer julgamentos relativos ao bem ou ao mal. Em tal mundo o bem e o mal existiriam? Haveria qualquer diferença moral se uma rocha rolasse montanha abaixo ou não? Richard Taylor, em seu livro Good and Evil, demonstrou muito bem que a “distinção entre bem e mal não poderia ser nem mesmo teoricamente delineada em um mundo imaginado como destituído de qualquer vida”.
Agora, seguindo o raciocínio de Taylor, adicionemos alguns seres a este planeta. Entretanto, façamo-los perfeitamente racionais e destituídos de quaisquer emoções, totalmente isentos de propósitos, necessidades ou desejos. Como computadores, eles simplesmente registram o que está acontecendo, mas não fazem quaisquer ações a fim de assegurar sua própria sobrevivência ou evitar sua própria destruição. O bem e o mal existem agora? Teoricamente, como visto, não há como. Esses seres não se importam como que acontece; eles simplesmente observam. E, deste modo, eles não têm razão para declarar algo bom ou ruim. Nada importa para eles, e, já que são os únicos seres no universo, nada importa em absoluto.
Entra Adão. Adão é um homem totalmente humano. Ele possui deficiências e, portanto, possui necessidades. Ele possui anseios e desejos. Ele pode sentir dor e prazer, e frequentemente evita a primeira e busca o segundo. As coisas importam para ele. Ele pode perguntar para uma dada coisa: “Isto é para mim ou contra mim?”, e chegar a alguma determinação.
Neste ponto, e apenas neste ponto, o bem e o mal surgem. Além disso, Taylor argumenta, “os julgamentos deste ser solitário, no que concerne bem e mal, são tão absolutos quanto qualquer julgamento pode ser. Tal ser é, de fato, a medida de todas as coisas: das coisas boas como boas e das coisas más como más… Nenhuma distinção pode ser feita, em termos deste ser, entre o que é simplesmente bom para ele e o que é bom absolutamente; não há patamares mais elevados de bondade. Pois o que este poderia ser?” À parte dos desejos e necessidades de Adão, há apenas aquele universo morto. E, sem ele, o bem e o mal não poderiam existir.
Imaginemos agora outro ser na cena, um ser que, apesar de possuir muitas necessidades e interesses em comum com Adão, tem algumas leves diferenças. Chamemo-la Eva. Coisas interessantes começam a acontecer neste ponto. Pois, por um lado, duas pessoas com objetivos similares são capazes de trabalhar em conjunto por uma causa comum. Por outro, temos duas pessoas que necessitam compromissar-se reciprocamente a fim de que cada uma seja capaz de satisfazer os desejos únicos do outro. E assim um complexo relacionamento interpessoal desenvolve-se, e regras são estabelecidas para maximizar a satisfação mútua e minimizar os efeitos do mal. Com regras, agora temos o certo e o errado. Deste reconhecimento básico da necessidade de cooperação é que, em última instância, surgem a lei e a ética.
Agora, suponhamos que estas duas pessoas entrem em feroz desacordo quanto ao melhor modo de realizar uma desejada ação. Ambas argumentam, mas não parecem chegar a lugar algum. Então Adão tira uma carta de sua manga. Diz a Eva: “Espere um minuto. Não estamos esquecendo de Deus?” A isto Eva responde: “Quem?” Adão agora procede numa longa explicação sobre como todos os valores morais seriam arbitrários se não houvesse um Deus; sobre como foi Deus quem fez as coisas boas serem boas e as coisas más serem más; e sobre como nosso conhecimento do bem e do mal, do certo e do errado, do moral e do imortal precisa basear-se num fundamento moral absoluto estabelecido no céu. Bem, tudo isto é novo para Eva, e então ela pede a Adão, que parece saber muito a respeito do assunto, para falar um pouco mais detalhadamente sobre estes fundamentos absolutos. E assim Adão inicia outra longa explicação sobre as leis de Deus e as punições de Deus para a desobediência, até chegar à questão que começou toda esta discussão. E, assim, Adão conclui: “Você percebeu Eva, Deus diz que devemos fazê-lo do meu modo!”. Este é o modo através do qual os apelos aos absolutos divinos resolvem disputas sobre questões morais e outros assuntos entre pessoas.
Pontos de Referência Menos que Absolutos
Assim, podemos ver que, sem seres viventes com necessidades, não pode haver bem ou mal, e que, sem a presença de mais de um ser vivente, não pode haver regras de conduta. A moral, deste modo, surge da humanidade precisamente porque existe para servir a humanidade. A teologia tenta caminhar para fora deste sistema, apesar de que não há necessidade (além da coerção) de fazê-lo.
Quando teólogos imaginam que seres humanos, sem algum sistema moral teologicamente derivado, estariam sem quaisquer pontos de referência nos quais ancorar sua ética, eles esquecem-se dos seguintes fatores que a maioria dos seres humanos compartilha:
1 — Seres humanos normais compartilham as mesmas necessidades básicas de sobrevivência e crescimento. Nós todos pertencemos à mesma espécie e reproduzimos nosso próprio tipo. Assim, não deveria causar surpresa a qualquer um que possamos ter interesses e preocupações comuns.
2 — Sociobiólogos estão aprendendo que importantes comportamentos humanos que parecem transcender as linhas culturais podem estar enraizados nos genes. Assim, muitos dos dispositivos mais básicos da cultura e da civilização poderiam ser da própria natureza da nossa espécie. Certamente a paleoantropologia ajuda a respaldar isso através do reconhecimento de que os hominídeos mais antigos conhecidos demonstram evidências de terem sido animais sociais. E nossas similaridades aos símios atuais envolvem mais que a simples aparência; muito de nosso comportamento é similar também. A existência de certos comportamentos genéticos, deste modo, torna muito menos surpreendente a concordância entre pessoas sobre leis, instituições, costumes e questões morais. Nós, humanos, não somos infinitamente maleáveis, e portanto nossas leis e instituições não são tão arbitrárias quanto se pensava.
3 — A maioria dos seres humanos normais responde com sentimentos similares de compaixão a um dado tipo de evento. Nossos valores não são todos baseados simplesmente no autointeresse individual ou no egoísmo. Há casos em que nitidamente nosso autointeresse não seria servido — por exemplo, ao ajudarmos um animal em sofrimento — e, ainda assim, nós respondemos a tal situação e aplaudimos àqueles que fazem o mesmo. Essas respostas compassivas naturais são repetidamente encontradas em nossa literatura, instituições e leis. Deste modo fica claro que nossa moral é, em grande parte, um produto de nossas respostas emocionais comuns, consequentemente permitindo a nós propor aperfeiçoamentos a esta moral através de apelos aos sentimentos de nossos semelhantes.
4 — Nós compartilhamos o mesmo meio-ambiente planetário com outros humanos. Se adicionarmos o fato de que já compartilhamos necessidades em comum, então nos deparamos com problemas em comum e com prazeres em comum. Compartilhamos experiências similares e, portanto, podemos facilmente nos identificar uns com os outros e compartilhar objetivos similares.
5 — Compartilhamos as mesmas leis da física, e tais leis nos afetam de modos idênticos. Em particular, elas nos afetam quando desejamos fazer algo. Percebemos que todos temos de levar em consideração problemas idênticos quando construímos uma estrutura, planejamos uma estrada ou fazemos uma plantação.
6 — As leis da lógica e da evidência aplicam-se igualmente bem a todos, e assim possuímos meios em comum de argumentar casos e discutir assuntos — meios que nos permitem comparar ideias e chegar a acordos em áreas tão variadas quanto ciência, leis e história. Podemos usar a razão e a observação como uma “corte de apelação” na análise de pontos de vista adversários.
Por essas e outras razões, não deveria parecer estranho que seres humanos possam encontrar fatores-comuns nas questões de valores morais sem precisar apelar a — ou mesmo conhecer — um conjunto de regras divinas. De fato, ironicamente, uma vez que regras religiosamente embasadas são trazidas à disputa, especialmente se houver mais de uma visão religiosa presente, quanto mais os argumentos religiosos são usados, menos concordância há. Isto ocorre porque muitos valores embasados teologicamente e religiosamente não se relacionam uns com os outros ou com a verdadeira condição humana ou com a ciência do mundo. Tais valores são defendidos como sendo provenientes de uma fonte “superior”. E, assim, quando esses valores “superiores” entram em desacordo uns com os outros ou com a natureza humana, não há como decidir a disputa, pois o ponto de referência é baseado somente num compromisso de fé feito a algo invisível, não a uma variedade de experiências em comum.
Portanto, são os valores teológicos — e não os orientados em função do homem — os mais infundados. Pois, com valores teológicos, um arbitrário “pulo de fé” precisa ser dado em algum ponto. E, uma vez dado este “pulo arbitrário”, todos os valores derivados são tão arbitrários quanto o “pulo de fé” que os tornou possíveis.
O Ônus da Prova
Portanto, não é o humanista que precisa oferecer uma explicação para os valores. Que explicação poderia ser necessária para o fato de que pessoas naturalmente buscam interesses humanos e, deste modo, relacionam as leis e instituições às preocupações humanas? Apenas quando alguém busca divergir-se do ponto de vista mais natural que quaisquer questões precisam ser levantadas. Apenas quando alguém fixa uma lei mais elevada que aquilo que é bom para humanidade que dúvidas precisam ser expressas. Pois é aqui que uma explicação ou justificativa de uma base moral faz sentido. O ônus da prova pertence àquele que diverge do modo habitual de se derivar os valores morais — não àquele que continua a manter sua moral, leis e instituições relevantes, úteis e democráticas.
Notas
1 — O basebol também é um caso útil neste ponto. Suponham que eu esteja jogando basebol e tenha três “strikes” contra mim. O árbitro me da um “out” e então preciso deixar a placa. Isso, aparentemente, é uma imposição externa. Mas as regras do jogo foram inventadas de modo totalmente arbitrário por pessoas como eu, e entrei no jogo com a tácita concordância de que jogaria de acordo com tais regras. Portanto, essas regras não passam de uma convenção humana, não possuindo ou necessitando de qualquer base metafísica ou teológica. Ainda assim, vejo que os outros jogadores facilmente curvam-se a elas, às vezes de modo bastante “religioso”. Esta última situação sugere que seres humanos são uma espécie inerentemente criadora de regras.
2 — Pessoas de outros credos, continuando a pregar a vontade de outros deuses, encontrariam a si próprias moralmente beneficiadas essencialmente do mesmo modo que os cristãos.
Comentários adicionais
Educação Moral
No grau em que os pontos no artigo acima são conscientemente ou inconscientemente compreendidos, torna-se possível formular diretamente modos mais funcionais de promover o comportamento moral. Isto é, quando as pessoas concordam quanto a como os valores humanos são de fato derivados, então são mais capazes de estimular áreas relevantes e desenvolver um currículo de educação moral que pode mostrar-se progressivamente útil e eficiente.
Em particular, compreendendo-se que a sobrevivência de nossa espécie é um interesse comum, e que compartilhamos necessidades comuns à sobrevivência, podemos fazer grande progresso no sentido do crescimento da cooperação. E somos assim mais bem capacitados a educar outros sobre fatores relevantes à sobrevivência, tais como saúde e higiene.
O estudo da antropologia e da biologia nos ensina sobre nossa interconexão entre variadas culturas humanas e entre todo o reino animal, e através disso conseguimos aprender coisas sobre nós mesmos que promovem o desenvolvimento de nossa ética, moral e sistemas legais. Tais sistemas, quando derivados deste modo, vão de encontro às nossas necessidades mais eficientemente e reduzem a discussão.
Por compartilharmos sentimentos comuns, o papel da educação moral não precisa se limitar somente ao enfoque de regras de conduta úteis e práticas. É habilitada a voltar-se também ao desenvolvimento de emoções construtivas. Por exemplo, a compaixão é nutrida e desenvolvida através de programas educacionais onde estudantes têm oportunidade de experimentar como é ser paralítico, cego ou surdo. Uma boa parte da compaixão parece ser a habilidade de se identificar com aqueles que sofrem — assim, esta habilidade, se mais bem desenvolvida, pode possibilitar à sociedade a produção de uma geração de indivíduos jovens que são mais respeitosos aos direitos do próximo, mais prestos em situações que evocam um comportamento altruístico e mais justos em suas relações com pessoas em geral.
A ciência que proporciona um conhecimento mais elaborado de nosso mundo permite-nos tomar decisões mais informadas sobre o trato com nosso meio-ambiente. Deste modo práticas e leis racionais tornam-se mais prováveis.
Educação em lógica e outros aspectos do raciocínio permite às pessoas analisar melhor as situações e chegar a decisões menos preconceituosas em questões políticas.
Em suma, uma educação liberal parece proporcionar um excelente treinamento moral, pois oferece o conhecimento e a sofisticação necessários para dar continuidade ao processo de tentativa-e-erro cuja finalidade é encontrar melhores modos para se viver e cooperar.
Ética Situacional
Visto que o processo de aperfeiçoamento da ética é o da tentativa-e-erro, então faz sentido que se mantenha os princípios éticos flexíveis. Afinal, se um dado princípio é rígido e absoluto, ele tende a nutrir um tipo de idolatria onde pessoas adoram a regra em vez do objetivo desta. Já que o bem e o mal, em última instância, são julgados na perspectiva da necessidade e interesses humanos, então apenas faz sentido que todos princípios morais trabalhem no sentido de satisfazer necessidades humanas e servir aos interesses humanos — em oposição a tornarem-se um fim neles mesmos.
Em contrapartida, acreditar que valores morais vêm de Deus tem inspirado muitos através da história a praticar idolatria com princípios morais.
Por exemplo, num esforço para seguir o mandamento de guardar o sábado santo (dia no qual a Bíblia especificamente declara que ninguém deve trabalhar — incluindo escravos ou animais), muitos apoiaram as leis de fechamento para o domingo. Entretanto, mesmo quando tais leis estão vigorando, serviços vitais — como o médico e o policial — são mantidos em operação. Uma prática verdadeiramente absoluta deste mandamento requereria que também esses serviços fossem fechados por um dia. Esta inconsistência é claramente fruto das verdadeiras necessidades humanas, que se tornaram, na prática, mais importantes que a regra absoluta. Assim, uma posição tanto consistente quanto moral seria abandonar as leis de fechamento dominical como um todo — tais leis sendo, na melhor das hipóteses, inúteis, e, na pior, perniciosas.
O simples mandamento “Não matarás” admite numerosas exceções, as quais os crentes prontamente apoiam, como a autodefesa, o assassinato de animais, o assassinato de germes e assim por diante. A re-tradução do mandamento para “Tu não cometerás assassinato” não resolve o problema porque o mandamento falha em definir “assassinato”, que, em linguagem vulgar, significa praticamente qualquer forma de assassínio que venha a ser ilegal. Por este critério, o aborto, não sendo legalmente declarado como assassinato, não poderia constituir uma transgressão deste mandamento. Assim, não há qualquer surpresa no fato de que diferentes denominações de cristãos e judeus interpretam diversamente este mandamento a fim de permitir ou proibir a pena de morte, a vivissecção, a guerra, a autodefesa, o aborto, a eutanásia e a vacinação. Uma simples regra de nunca matar não pode ser seguida, e o resultado é sempre um catálogo dos casos em que é e dos casos em que não é lícito tirar uma vida. Isto é, com efeito, ética situacional, significando que a regra de fato já foi abandonada.
“Não roubarás” é uma regra similar. Não é praticada de modo absoluto também. Por exemplo, em tempo de guerra, e mesmo de paz, segredos nacionais são constantemente roubados de uma nação por agentes de outra como parte de um esforço para promover a segurança. Todos esses roubos são apoiados frequentemente pelos crentes deste mandamento. Ademais, poderíamos perguntar se cleptomania constitui uma quebra deste mandamento, visto que poderíamos ser solicitados a desculpar a ação sob a escusa da enfermidade emocional.
Mas o problema mais gritante de sistemas absolutistas como os Dez Mandamentos é que, quando há mais de uma regra absoluta, torna-se possível o surgimento de conflitos entre elas. Assim, poder-se-ia perguntar se é algo apropriado assassinar para prevenir um roubo. É permitido roubar para prevenir um assassinato? Deveríamos mentir se tivéssemos uma boa razão para acreditar que a verdade faria com que o indivíduo morresse de ataque cardíaco? É apropriado mentir para evitar ser assassinado? É lícito quebrar o sábado santo para salvar a vida de alguém? Seria correto roubarmos um carro se soubéssemos que isso evitaria que seu dono trabalhasse no sábado santo ou matasse alguém? Deveríamos honrar a vontade de nossos pais se eles nos pedissem para quebrar algum dos outros mandamentos? Deveríamos roubar nossos pais se, ao fazê-lo, talvez estivéssemos prevenindo um assassinato? Todos tipos de dilema como esses são possíveis.
Isso demonstra que não podemos viver baseados em princípios absolutos e abstratos. Precisamos relacioná-los à vida e às necessidades humanas — e os nossos melhores juízes e júris fazem exatamente isso. Aqui é onde entra a compaixão humana. Esta é a razão pela qual existem dentro da lei vários graus de assassinato, e por que o motivo é uma questão de tamanha importância no julgamento das penalidades criminais.
Tais práticas são sensatas porque a natureza do mundo não se curva facilmente a determinações bipolares do tipo “ou isto ou aquilo”. As coisas admitem graduações. A moral absoluta tenta ignorar tais distinções. Aplicar o que talvez poderia ser denominado um sistema moral “digital” (sim, não) em um mundo “análogo” só poderia resultar numa pobre funcionalidade. Estes dois não se misturam bem. É claro, leis do tipo “ou isto ou aquilo” de fato existem em áreas como a do tráfego automotivo. Isto porque provaram ser úteis por serem fáceis de recordar quando uma ação reflexa é uma necessidade comum. Mas leis de trânsito inapropriadas foram alteradas quando se mostraram ineficazes. Eu diria que o princípio da anulação é um serviço de longo-alcance da humanidade — e isto é verdadeiro até quando pessoas aplicam o que eles imaginam ser padrões “absolutos”.
Em suma, não há nada a ser temido com a perda do absoluto. Ele nunca existiu realmente. O caos não reina. Em vez disso, esforços de tentativa-e-erro têm aperfeiçoado as leis, tornado as instituições mais eficientes e adaptado os princípios morais melhor à continuada sofisticação do conhecimento humano. As genuínas necessidades e preocupações humanas que conduziram à formulação dos Dez Mandamentos e outros supostos absolutos também abasteceram sua sofisticação dentro de nosso vasto corpo de mutáveis leis e princípios éticos.
O Objetivo
Quando percebemos que o certo e o errado não podem existir sem seres com necessidades, e que seres humanos provaram ser capazes inventar e depois aplicar suas próprias regras, então não há mais qualquer modo de negar que a busca dos interesses humanos — para os indivíduos e para a sociedade, em curto e longo prazo — é o grande objetivo das leis e da ética.
Ademais, isso não necessita realmente de uma explicação ou justificativa, exceto àqueles que perderam de vista o verdadeiro fundamento de seus próprios valores. Isto é, ninguém precisa explicar por que busca seus próprios interesses, e nenhum planeta de pessoas precisa explicar por que busca perpetrar objetivos comuns. Apenas quando pessoas tentam divergir desta perspectiva simples e natural, apenas quando alguém fixa uma lei superior ao bem-estar da humanidade, é que questões precisam ser levantadas — pois é apenas então que uma explicação ou justificativa de uma base moral faz-se necessária.