A ideia de uma ação, crença, intenção, inferência ou emoção irracional é paradoxal. Isso porque o irracional não é apenas o não-racional, que se encontra fora do âmbito do racional; a irracionalidade é uma falha dentro da casa da razão. Quando Hobbes diz que somente o homem tem o “privilégio do absurdo”, ele está querendo dizer que somente a criatura racional pode ser irracional. Irracionalidade é um processo ou estado mental — um processo ou estado racional — que falhou. Como isso é possível?
O paradoxo da irracionalidade não é tão simples quanto o aparente paradoxo contido no conceito de uma piada mal sucedida, ou de uma obra de arte ruim. O paradoxo da irracionalidade surge a partir daquilo que está envolvido em nossas maneiras mais básicas de descrever, entender e explicar estados e eventos psicológicos. Sofia está satisfeita porque consegue fazer um nó. Seu prazer se deve à sua crença de que ela é capaz de fazer isso e ao seu julgamento positivo dessa realização. Além disso, e sem dúvida mais significativo, certas explicações podem estar disponíveis, mas elas não podem substituir essa que acabei de dar, uma vez que ela flui daquilo que deve ser satisfeito para que algo seja o caso. Ou tomemos Roger, que pretende passar em um exame decorando o Alcorão. Essa intenção deve ser explicada pelo seu desejo de passar no exame e pela sua crença de que, ao memorizar o Alcorão, ele aumentará as suas chances de realizar tal desejo. A existência desse tipo de explicação racional é um aspecto intrínseco das intenções, ações intencionais, e de muitas outras atitudes e emoções. Tais explicações se dão mediante racionalização: elas nos permitem considerar eventos ou atitudes como razoáveis do ponto de vista do agente. Uma aura de racionalidade, de se encaixar em um padrão racional, é assim inseparável desses fenômenos, pelo menos na medida em que eles são descritos em termos psicológicos. Como então podemos explicar, ou mesmo tolerar como possível, pensamentos, ações e emoções irracionais?
A teoria psicanalítica, tal como concebida por Freud, procura fornecer uma estrutura conceitual para descrever e compreender a irracionalidade. Muitos filósofos, contudo, acreditam que há erros ou confusões fundamentais no pensamento de Freud. Pretendo analisar aqui alguns elementos desse pensamento que têm sofrido ataques frequentes, elementos que consistem de algumas doutrinas bastante gerais que jazem no bojo de todas as fases da obra madura de Freud. Após analisar o problema subjacente à explicação da irracionalidade, concluirei que qualquer concepção satisfatória deve conter algumas das teses mais importantes de Freud, e quando essas teses são confirmadas de um modo suficientemente amplo, elas estão livres de confusão conceitual. Talvez seja necessário enfatizar que a minha “defesa” de Freud é dirigida a apenas algumas de suas ideias e que essas ideias encontram-se no limite conceitual, em contraste com o limite empírico, desse vago espectro.
Muito do que é considerado como irracional não está sujeito a paradoxo. Muitos podem sustentar que é irracional escalar o Monte Evereste sem oxigênio (ou mesmo com ele), devido aos perigos, ao desconforto e às poucas recompensas obtidas diante do sucesso. Mas não há dificuldade em explicar essa tentativa se ela for feita por alguém que juntou todos os fatos que pode, considerou todos os seus desejos, ambições e atitudes e agiu de acordo com o seu conhecimento e seus valores. Talvez seja de algum modo irracional acreditar em astrologia, discos voadores, bruxas, mas tais crenças podem ter explicações plausíveis se forem baseadas naquilo que seus defensores assumem como evidência. É razoável buscar a quadratura do círculo se você ignorar que isso é infactível. O tipo de irracionalidade que causa problema conceitual não é a falha de outra pessoa em acreditar ou sentir ou fazer o que ela considera razoável, mas sim a falha, dentro de uma mesma pessoa, de coerência e consistência no padrão das crenças, atitudes, emoções, intenções e ações. Exemplos são a crença naquilo que desejamos ser verdadeiro, o agir contrariamente ao nosso melhor juízo, a autodissimulação, o acreditar em algo reconhecidamente contrário ao peso da evidência.
Ao tentar explicar tais fenômenos (juntamente com muitas outras coisas, é claro), os seguidores de Freud sustentaram o seguinte:
Primeiro, a mente contém um certo número de estruturas semi-independentes, que são caracterizadas por atributos mentais como pensamentos, desejos, memórias.
Segundo, partes da mente são, em importantes aspectos, como seres humanos, não apenas porque elas possuem (ou consistem de) crenças, desejos, ansiedades, e outros traços psicológicos, mas sim porque tais fatores podem combinar, como na ação intencional, de modo a produzir eventos subsequentes na mente ou fora dela.
Terceiro, algumas das disposições, atitudes e eventos que caracterizaram as várias subestruturas da mente devem ser considerados segundo o modelo das disposições e forças físicas quando estas afetam ou são afetadas por outras subestruturas da mente.
Uma outra doutrina — sobre a qual direi muito pouco — é que alguns fenômenos mentais que normalmente assumimos como sendo conscientes, ou pelo menos disponíveis à consciência, não são conscientes, podendo se tornar acessíveis apenas com dificuldade, ou não podendo de modo algum. Em muitos aspectos funcionais, tais estados e eventos inconscientes são como crenças, memórias, desejos, expectativas e medos conscientes.
Espero que seja admitido que essas doutrinas podem ser encontradas em Freud, e que elas são centrais às suas teorias. Elas são, como já disse, bem mais fracas e menos detalhadas do que as de Freud. Entretanto, mesmo nessa forma reduzida, elas requerem mais defesa do que é possível, de acordo com muitos filósofos. As críticas com as quais procurarei lidar estão relacionadas de vários modos, mas elas são essencialmente de dois tipos.
Primeiro, a própria ideia de que a mente pode ser dividida tem sido frequentemente considerada ininteligível, uma vez que requer que pensamentos, desejos e mesmo ações sejam atribuídos a algo menor que, e portanto distinto, da pessoa como um todo. Mas será que é possível dotar de sentido as ações e atitudes que não são aquelas de um agente? Nesse sentido, afirma Sartre, a noção de responsabilidade perderia o seu ponto essencial se atos e intenções fossem relacionados não mais às pessoas, mas sim a partes semiautônomas da mente. As partes, então, assumiriam o papel de uma outra pessoa: cada parte tornar-se-ia uma mulher, um homem ou uma criança. O que antes era uma única mente transformar-se-ia em um campo de batalha onde forças em conflito se digladiariam, se enganariam umas às outras, esconderiam informações, planejariam estratégias. Como Irving Thalberg e outros salientam, às vezes ocorre que um segmento se protege de suas próprias forças (pensamentos). O principal agente pode parecer um tipo de coordenador, árbitro ou ditador. Não é surpresa que tenham surgido muitas dúvidas se tais metáforas podem constituir uma teoria consistente. Um segundo tipo de preocupações, relacionado ao primeiro, diz respeito à metodologia explanatória subjacente. De um lado, a teoria psicanalítica estende o alcance da explicação teleológica ou de razão descobrindo motivos, desejos e intenções que não foram anteriormente reconhecidos como tais. Nesse sentido, como se tem observado frequentemente, Freud ampliou enormemente o número e a variedade dos fenômenos considerados racionais; ocorre que temos razões para nossos esquecimentos, atos falhos e medos exagerados. Por outro lado, Freud pretende que suas explicações produzam o que a explicação na ciência natural frequentemente promete: abordagens causais que permitem controle. Dessa forma, ele aplica a eventos e estados mentais termos derivados da hidráulica, eletromagnetismo, neurologia e mecânica. Toulmim, Flew, McIntyre e Peters, entre os filósofos, em diferentes momentos afirmaram que as teorias psicanalíticas tentam o impossível ao submeterem os fenômenos psicológicos (que requerem explicações em termos de razões) a leis casuais; eles acreditam que isso explica, mas não justifica, o uso constante por parte de Freud, ao falar da mente, de metáforas retiradas de outras ciências.
Parece então que há duas tendências irreconciliáveis na metodologia de Freud. De um lado, ele pretende estender o alcance dos fenômenos sujeitos à explicação racional; por outro lado, ele procura tratar esses fenômenos do mesmo modo como forças e estados são tratados nas ciências naturais. No entanto, nestas últimas não há lugar para razões e atitudes proposicionais; só há lugar para causalidade.
Para avaliar essas críticas à teoria psicanalítica, gostaria primeiramente de apresentar parte do que acredito ser uma análise correta da ação intencional normal. Depois disso procurarei lidar com a questão da irracionalidade.
Um homem andando no parque tropeça num galho no caminho. Pensando que o galho possa colocar outras pessoas em risco, ele o pega e o joga numa cerca à beira do caminho. Voltando para casa, ele se dá conta de que o galho pode estar se projetando da cerca e ainda ser uma ameaça a pessoas desatentas. Ele interrompe o seu trajeto, retorna ao parque e coloca o galho em sua posição original. Aqui, tudo o que o agente faz (exceto tropeçar no galho) se dá por uma razão, à luz da qual a ação correspondente foi razoável. Dado que o homem acreditou que o galho era perigoso se deixado no caminho, e dado o desejo de eliminar o perigo, era razoável remover o galho. Dado que, ao refletir novamente, ele acreditou que o galho era um perigo na cerca, era razoável retirar o galho dali e recolocá-lo no caminho. Dado que o homem queria tirar o galho da cerca, era razoável interromper o trajeto e retornar ao parque. Em cada caso, as razões para a ação nos dizem o que o agente viu em sua ação; elas mostram a intenção com a qual ele agiu, e por isso oferecem uma explicação racional. Tal explicação, como já disse, deve existir se o que uma pessoa faz deve de algum modo ser considerado como uma ação.
O padrão das explicações racionais tem sido indicado por muitos filósofos. Hume o afirma incisivamente: Pergunte a um homem por que ele costuma se exercitar; ele responderá que é porque ele deseja se manter saudável. Se você então perguntar por que ele deseja a saúde, ele responderá prontamente que é porque a doença é dolorosa. O padrão é tão familiar que sua sutileza pode nos passar despercebida. O que deve ser explicado é a ação, a saber, o exercício físico. No mínimo, a explicação suscita dois fatores: um valor, uma meta, um desejo ou uma atitude do agente, e uma crença de que, ao agir da maneira a ser explicada, ele pode favorecer o valor ou a meta relevante, ou ele estará agindo de acordo com essa atitude. Tanto a ação quanto o par crença-desejo, que fornece a razão, devem ser relacionados de maneiras bem distintas a fim de produzir uma explicação. Primeiro, deve haver uma relação lógica. Crenças e desejos têm um conteúdo, e esses conteúdos devem ser tais que impliquem que haja algo valoroso e desejável sobre a ação. Assim, um homem que descubra algo desejável na saúde, e acredita que o exercício físico torná-lo-á sadio pode concluir que há algo desejável nisso que pode explicar por que ele se exercita. Segundo, as razões que um agente possui para agir, se o que se quer é explicar a ação por meio delas, devem ser razões com bases nas quais ele agiu; as razões devem ter desempenhado um papel causal na ocorrência da ação. Essas duas condições das explicações racionais são ambas necessárias, mas não suficientes, uma vez que algumas relações causais entre pares de crença-desejo e ações não oferecem explicações racionais (essa complicação não será tratada por nós aqui, embora não haja dúvida de que sejam ações irracionais que dão origem à complicação.)
Até este ponto, a análise da ação torna claro por que as ações intencionais, sejam elas em algum sentido ulterior irracionais ou não, têm um elemento racional intrínseco; é isso que ocasiona um dos paradoxos da irracionalidade. Mas também vemos que Freud pode ser defendido em um ponto importante: não há nenhum conflito inerente entre explicações racionais e explicações causais. Uma vez que crenças e desejos são causas das ações para as quais elas são razões, explicações racionais incluem um elemento causal essencial.
O que pode ser dito de uma ação intencional pode ser estendido a muitos outros fenômenos psicológicos. Se uma pessoa tenciona roubar couves-de-bruxelas, então independente de ela realizar essa ação ou não, tal intenção ela mesma deve ser causada por um desejo de possuir couves-de-bruxelas e por uma crença de que, ao roubá-las, ela os possuirá (uma vez mais, o aspecto lógico racional da intenção é óbvio). Do mesmo modo, muitas das nossas expectativas, esperanças, desejos, emoções, crenças e medos dependem de uma simples inferência (comumente, é claro, despercebida) a partir de outras crenças e atitudes. Tememos a pobreza porque acreditamos que ela nos traz o que consideramos pernicioso; esperamos que chova porque acreditamos que a chuva melhorará as safras agrícolas, e queremos que isso ocorra; acreditamos nisso com base em uma indução a partir do que ouvimos e lemos; e assim por diante. Em cada um desses casos há uma conexão lógica entre os conteúdos das várias atitudes e crenças e o que elas causam.
A conclusão, até aqui, é que simplesmente rotular um estado ou evento psicológico como sendo ou implicando o que é imprecisamente chamado de atitude proposicional é garantir a relevância de uma explicação racional, e com isso um elemento de racionalidade. Mas é claro que, se tais estados e eventos podem ser irracionais, o elemento de racionalidade não pode eliminar o fato de os mesmos serem concomitantemente menos que racionais. Considere o caso de uma ação em que o agente, considerando tudo que deve ser considerado, age contra o que ele acredita ser o melhor. (Aristóteles chamou esse tipo de comportamento de acrasia; outros termos são ‘incontinência’ e ‘fraqueza da vontade’). É fácil imaginar que o homem que retornou ao parque para recolocar o galho em sua posição original no caminho percebe que sua ação não é razoável. Ele tem um motivo para mover o galho, a saber, que o mesmo pode machucar um transeunte. Mas ele pode ter um motivo para não retornar, qual seja, o tempo e o transtorno que isso custa. Em seu próprio juízo, a última consideração suplanta a primeira; contudo, ele age de acordo com a primeira. Em suma, ele vai contra o seu melhor juízo.
O problema de explicar tal comportamento preocupa filósofos e moralistas pelo menos desde Platão. De acordo com Platão, Sócrates argumentou que, uma vez que ninguém age voluntariamente contra aquilo que sabe ser o melhor, apenas a ignorância pode explicar ações frívolas e nocivas.
Isso é frequentemente chamado de paradoxo, mas a visão de Sócrates é paradoxal somente porque ele nega aquilo que todos nós acreditamos, a saber, que há atos acráticos. Se Sócrates está certo — se tais ações são descartadas pela lógica dos conceitos — então não há nada problemático sobre os fatos a serem explicados. Contudo, Sócrates (ou Platão) deu destaque ao nosso problema: há um conflito entre a maneira usual de explicar a ação intencional e a ideia de que uma ação pode ser irracional. Uma vez que a visão segundo a qual nenhum ato intencional pode ser internamente irracional encontra-se em um extremo no contínuo de visões possíveis, permita-me dar-lhe um nome: O Princípio de Platão. É a doutrina da racionalidade pura.
No extremo oposto encontra-se o Princípio de Medeia. De acordo com esta doutrina, uma pessoa pode agir contra o seu melhor juízo, mas somente quando uma força estranha toma conta dela ou de sua vontade. Isso é o que acontece quando Medeia implora à sua própria mão que esta não assassine os seus filhos. Sua mão, ou a paixão da vingança por trás dela, assume o controle de sua vontade. Alguns desses estudos sobre a fraqueza da vontade são populares. E dada a tese, o nome é adequado, pois a vontade do agente é mais fraca do que a força estranha. Em particular, os moralistas têm sido atraídos a essa concepção, uma vez que ela sugere que nada mais é necessário para suplantar a tentação do que a determinação maior de fazer a coisa certa. Do mesmo modo, é uma doutrina estranha, uma vez que ela sugere que atos acráticos não são intencionais, e assim em si mesmos atos pelos quais o agente não pode ser responsabilizado. Se o agente for culpado, isso não se deve ao que ele fez, mas sim ao fato de que ele não resistiu com suficiente vigor. O que o agente se percebeu fazendo tinha uma razão — a paixão ou o impulso que suplantou seu melhor juízo — mas a razão não era dele. Do ponto de vista do agente, o que ele fez foi o efeito de uma causa que veio de fora, como se uma outra pessoa o tivesse forçado.
Aristóteles sugeriu que a fraqueza da vontade se deve a um tipo de esquecimento. O acrático tem dois desejos; em nosso exemplo, ele quer poupar seu tempo e esforço, e quer também mover o galho. Ele não pode agir de acordo com ambos os desejos, mas Aristóteles não o deixará chegar ao ponto de apreciar o seu problema, pois, de acordo a sua concepção, o agente perde o toque ativo com o seu conhecimento de que, ao não retornar ao parque, ele pode poupar tempo e esforço. Não se trata exatamente de um desejo consciente e de outro desejo inconsciente que estão em conflito; antes, há uma parte consciente e uma parte inconsciente de conhecimento, onde a ação depende de qual parte esteja consciente.
Há situações em que a análise de Aristóteles é apropriada, e há outras que são governadas pelo Princípio de Medeia. Mas tais situações não são as únicas, e não são casos definidores de acrasia, em que o agente age intencionalmente enquanto está a par do fato de que, considerando tudo o que deve ser considerado, um melhor curso de ação está disponível a ele. Pois quando o Princípio de Medeia entra em funcionamento, a intenção não está presente; e, na análise de Aristóteles, o agente não está a par de uma alternativa.
A partir do que até agora foi dito fica claro que nem o Princípio de Medeia nem a análise de Aristóteles suscita casos imediatos de conflito, ou casos em que um agente tem boas razões para fazer cada uma das duas coisas mutuamente excludentes. Tais situações são tão familiares que requerem uma explicação especial; não estamos normalmente paralisados quando afirmações em conflito nos são colocadas, nem suprimimos comumente parte da informação relevante, ou escondemos um de nossos desejos. Normalmente, podemos encarar situações em que uma decisão pode ser tomada e decidimos melhor quando conseguimos analisar todas as considerações, os prós e os contras.
O que precisa ser explicado é a ação de um agente que, tendo avaliado as razões em ambos os lados, e tendo julgado que a preponderância das razões se encontra em um desses lados, age contra esse juízo. Não devemos dizer que ele não possui razão para o seu ato, uma vez que ele tem razões tanto a favor quanto contra. É porque ele tem uma razão para o que faz que ele fornece a intenção com a qual ele age. E como todas as ações intencionais, sua ação pode ser explicada com referência às crenças e desejos que a causaram e lhe ofereceram motivo.
Mas embora o agente tenha uma razão para fazer o que fez, ele tinha melhores razões, por sua própria consideração, para agir de outro modo. O que precisa ser explicado não é porque o agente agiu como agiu, mas porque ele não agiu de outro modo, dado o seu juízo segundo o qual, considerando tudo o que deve ser considerado, isso seria melhor.
Uma pessoa que aprecia o fato de ter boas razões tanto contra quanto a favor de uma ação não deve ser vista como sustentando uma contradição. Segue-se que princípios morais, ou juízos que correspondem a desejos, não podem ser expressos por sentenças como ‘é errado mentir’, ou ‘é bom dar prazer’. Quer dizer, não se essas sentenças são tomadas da maneira natural para expressar afirmações universais como ‘toda mentira é errada’, ou ‘todo ato que dá prazer é bom’. Pois um único e mesmo ato pode ser uma mentira e um ato que dá prazer, e assim ser tão errado quanto bom. Em muitas teorias morais, isso é uma contradição. Ou, tomando um caso ainda mais simples, se é correto cumprir promessas e errado não fazê-lo, então alguém que, sem se aperceber do seu erro, fez promessas incompatíveis, fará algo errado se fizer algo certo.
A solução para tal enigma sobre a lógica do raciocínio prático é reconhecer que os princípios valorativos não são corretamente afirmados na forma ‘é errado mentir’. Pois nem todas as mentiras são erradas; há casos em que alguém tem que mentir em nome de alguma consideração mais importante. O fato de que uma ação é uma mentira, ou a quebra de uma promessa, ou um dispêndio de tempo, é um ponto contra a razão, a ser avaliado juntamente com outras razões para a ação. Toda ação que executamos, ou acreditamos executar, possui algo contra e algo a favor a ser dito sobre ela; mas falamos de conflito apenas quando os prós e os contras são avaliados e levados próximos ao equilíbrio. Uma simples dedução pode me dizer que, se desejo cumprir uma promessa A, eu devo estar em Addis Ababa em um certo dia, e se desejo cumprir uma promessa B, eu devo estar em Bora Bora ao mesmo tempo; mas a lógica não pode me dizer qual delas cumprir.
Sendo assim, não é claro em que medida qualquer uma dessas ações seria irracional. Também a irracionalidade não fica clara se julgo que, considerando tudo o que deve ser considerado, eu devo cumprir a promessa A e, no entanto, eu cumpro a promessa B. Pois o primeiro juízo é meramente condicional: à luz de todas as minhas evidências, eu devo fazer A; e isso não pode contradizer o juízo incondicional de que eu devo fazer B. A inconsistência interna pura é introduzida apenas se eu também sustentar — como de fato sustento — que devo agir de acordo com meu melhor juízo o que eu presumir como melhor ou obrigatório, considerando tudo o que deve ser considerado.
Uma concepção puramente formal do que é irracional em um ato acrático é, então, que o agente vai contra seu próprio princípio de segunda ordem segundo o qual ele deve agir com base naquilo que ele sustenta ser o melhor, considerando tudo o que deve ser considerado. É apenas quando podemos descrever sua ação exatamente dessa forma que há um problema para explicá-lo. Se o agente não possui o princípio segundo o qual ele deve agir de acordo com o que acredita ser o melhor, considerando tudo o que deve ser considerado, então, embora sua ação possa ser irracional do nosso ponto de vista, ela não precisa sê-lo de seu próprio ponto de vista — pelo menos não de modo a acarretar um problema para a explicação. Isso porque, para explicar o seu comportamento, precisamos apenas dizer que o seu desejo de fazer o que ele considerou como o melhor, considerando tudo o que deve ser considerado, não foi tão forte quanto o seu desejo de fazer algo mais.
Mas como podemos explicar a ação de alguém que consciente e intencionalmente age contra o seu próprio princípio? A explicação, é claro, deve conter algum aspecto que vai além do Princípio de Platão; do contrário, a ação é perfeitamente racional. Por outro lado, a explicação deve reter o ponto central do Princípio de Platão; do contrário, a ação não é intencional. Uma abordagem como essa parece satisfazer ambas as exigências: já concordamos que há uma explicação normal de razão para um ato acrático. Assim, o homem que retorna ao parque para recolocar o galho tem uma razão: eliminar o perigo. Mas, em assim o fazendo, ele ignora o seu princípio de agir de acordo com o que ele pensa ser o melhor, considerando tudo o que deve ser considerado. E não se pode negar que ele tem um motivo para ignorar seu princípio, a saber, que ele quer, talvez muito fortemente, colocar o galho em sua posição original. Digamos que o seu motivo realmente explique o fato de que ele deixa de agir de acordo com seu princípio. Esse é o ponto em que a irracionalidade é introduzida. Pois o desejo de recolocar o galho desempenhou um papel na decisão de fazer isso duas vezes. Primeiro, foi uma consideração em favor de recolocar o galho, uma consideração que, na opinião do agente, foi menos importante do que as razões para não retornar ao parque. O agente então concluiu que, considerando tudo o que deve ser considerado, ele não deveria retornar ao parque. Dado que o seu princípio segundo o qual ele devia agir com base em tal conclusão, a coisa racional a fazer era, obviamente, não retornar ao parque. A irracionalidade surgiu quando o seu desejo de retornar o fez ignorar e anular o seu princípio. Pois embora o seu motivo de ignorar o seu princípio fora uma razão para ignorar o princípio, não foi uma razão contra o próprio princípio e, assim, quando ela surgiu desse segundo modo, ela era irrelevante enquanto uma razão, ao princípio e à ação. A irracionalidade depende da distinção entre uma razão para se possuir, ou agir de acordo com, um princípio, e uma razão para o princípio.
Um outro exemplo mais simples esclarecerá esse ponto. Suponha que um rapaz deseje fortemente possuir um novilho bem torneado e isso o leve a acreditar que ele o possui. Ele tem uma razão normal para querer ter essa crença — isso lhe dá prazer. Mas se toda a explicação para ele sustentar a crença é a de que ele quis acreditar nisso, então sustentar a crença é irracional. Pois o desejo de ter uma crença não é evidência para a verdade da crença, nem tampouco fornece um suporte racional de nenhum outro modo. O que faz racional essa crença é que essa proposição deve ser verdadeira: ele acredita possuir um novilho bem torneado. Isso não racionaliza a sua crença: eu tenho um novilho bem torneado. Esse é um caso de crença naquilo que desejamos que fosse verdadeiro; ela é um modelo para o tipo mais simples de irracionalidade. Embora simples, porém, o modelo tem uma complexidade que é obscurecida pela ambiguidade da frase ‘razão para acreditar’.
Em alguns casos de irracionalidade, é improvável, e talvez impossível, ao agente estar plenamente consciente de tudo o que está acontecendo em sua mente. Se alguém ‘esquece’ que hoje é quinta-feira porque não quer manter um compromisso social discordante, talvez não seja importante ele estar consciente disso. Em muitos casos, porém, não há dificuldade lógica em supor que o agente sabe o que está acontecendo. O rapaz pode saber que ele acredita possuir um novilho bem torneado somente porque ele quer acreditar nisso, tal como o homem que retorna ao parque para recolocar o galho pode perceber tanto o absurdo de sua ação quanto a explicação da mesma.
Em explicações racionais usuais, como vimos, não apenas os conteúdos proposicionais das várias crenças e desejos mantêm relações lógicas adequadas entre si e com outros conteúdos de crença, atitude ou intenção que eles ajudam a explicar; os estados reais de crença e desejo causam o estado ou evento explicado. No caso da irracionalidade, a relação causal permanece, ao passo que a relação lógica ou não ocorre ou se encontra distorcida. Nos casos de irracionalidade que estivemos discutindo, há uma causa mental que não é uma razão para o que ela causa. Assim, no que diz respeito à crença naquilo que desejamos ser verdadeiro, um desejo causa uma crença. Mas o juízo de que um estado de coisas é ou seria desejável não é razão para se acreditar que ele existe.
Está claro que a causa, nesse caso, dever ser mental; trata-se de um estado ou evento com conteúdo proposicional. Se um pássaro voando causa uma crença de que o pássaro está voando (ou de que um avião está voando), a questão da racionalidade não se coloca; há causas que não são razões para o que elas causam, mas a causa não tem propriedades lógicas e não pode assim, por si mesma, explicar ou ocasionar a irracionalidade (do tipo que descrevi). Será que há outras formas de irracionalidade? A questão não é clara, e não faço afirmações nesse sentido. Até agora, minha tese é apenas a de que muitos exemplos normais de irracionalidade podem ser caracterizados pelo fato de que há uma causa mental que não é uma razão. Tal caracterização aponta um caminho para um tipo de explicação da irracionalidade.
Uma irracionalidade desse tipo pode ocorrer onde quer que a racionalidade opere. Tal como as ações incontinentes são irracionais, pode haver intenções irracionais para agir, quer elas sejam realizadas ou não. Crenças podem ser irracionais, do mesmo modo que o podem as linhas de raciocínio. Muitos desejos e emoções são caracterizados como irracionais se são explicados por causas mentais que não são razões para eles. Esse conceito geral também se aplica a casos em que não há variações. Um indivíduo é irracional se ele não está aberto à razão ou se, em aceitando uma crença ou atitude com base nas quais ele deve fazer mudanças para acomodar suas outras crenças, desejos ou intenções, ele se abstém de fazê-las. Ele tem uma razão que não causa aquilo para o qual ela não é uma razão suficiente.
Vemos agora como é possível reconciliar uma explicação que mostra que uma ação, crença ou emoção é irracional com o elemento de racionalidade inerente à descrição e explicação de todos estes fenômenos. Assim, de um modo preliminar, lidamos com um paradoxo da irracionalidade. Mas agora emerge uma fonte de paradoxo que não pode ser dissipada.
Se eventos são relacionados como causa e efeito, eles assim permanecem, não importando em qual vocabulário escolhemos descrevê-los. Eventos mentais ou psicológicos são mentais apenas a partir de um modo de descrição, pois esses mesmos eventos são certamente ao mesmo tempo neurológicos e, em última instância, físicos, embora os reconheçamos e os identifiquemos dentro de tais domínios apenas segundo descrições neurofisiológicas ou físicas. Como já vimos, não há em geral nenhuma dificuldade em explicar os eventos mentais recorrendo-se a causas neurofisiológicas ou físicas: isso é crucial para a análise da percepção ou da memória, por exemplo. Mas quando a causa é descrita em termos não-mentais, nós necessariamente perdemos contato com aquilo que é exigido para explicar o elemento de irracionalidade. Pois a irracionalidade aparece somente quando a racionalidade é evidentemente apropriada: onde tanto a causa quanto o efeito possuem conteúdos que têm o tipo de relações lógicas, quer sejam padrões racionais ou não. Eventos concebidos apenas em termos de suas propriedades físicas ou neurofisiológicas não podem ser considerados como razões, ou como em conflito, ou como dizendo respeito a uma questão. Assim, estamos diante do seguinte dilema: se pensamos na causa de um modo neutro, sem levar em conta o seu status mental como uma crença ou uma outra atitude — se pensamos nessa causa meramente como uma força que trabalha na mente sem ser identificada como parte dela — então falhamos em explicar, ou mesmo descrever, a irracionalidade. Forças cegas estão na categoria do não-racional, não do irracional. Isto posto, introduzimos uma descrição mental da causa que, assim, a torna uma candidata a ser uma razão. Mas ainda permanecemos fora do único padrão claro de explicação que se aplica ao mental, pois esse padrão exige que a causa seja mais do que uma candidata a ser uma razão; ela deve ser uma razão, e no caso presente ela não pode ser. Para a explicação de um efeito mental precisamos de uma causa mental que é também uma razão para este efeito; contudo, se a temos, o efeito não pode ser um caso de irracionalidade. Ou pelo menos tudo indica que não.
Há, porém, uma maneira pela qual um evento mental pode causar um outro sem ser uma razão para isso, e em que não há dilema algum e que não envolve necessariamente nenhuma irracionalidade. Isso pode acontecer quando causa e efeito ocorrem em mentes diferentes. Por exemplo, para atrair você ao meu jardim, eu cultivo uma bela flor. Você lança um olhar à minha flor e entra no jardim. Meu desejo causou o seu desejo e a sua ação, mas o meu desejo não foi uma razão para o seu desejo, nem uma razão com base na qual você agiu (você talvez nem saiba do meu desejo). Fenômenos mentais podem causar outros fenômenos mentais sem ser razão para eles, e ainda assim manter o seu caráter mental, contanto que causa e efeito sejam adequadamente separados. Os casos claros e óbvios são aqueles de interação social. Mas sugiro que essa ideia pode ser aplicada a uma mente e pessoa individual. De fato, se pretendemos explicar a irracionalidade de algum modo, parece que precisamos assumir que a mente pode ser dividida em estruturas quase independentes que interagem de maneiras que o Princípio de Platão não pode aceitar ou explicar.
A fim de constituir uma estrutura desse tipo, uma parte da mente deve mostrar um grau maior de consistência ou racionalidade do que é atribuído ao todo. Somente assim evitar-se-á que a parte da analogia com a interação social seja destruída. A ideia é que, se partes da mente são em um certo grau independentes, poderemos então entender como elas são capazes de abrigar inconsistência, e de interagir a um nível causal. Voltemos à análise da acrasia. Lá eu não mencionei nenhuma divisão da mente porque a análise foi até aquele ponto mais descritiva do que explanatória. Mas podemos fornecer as condições para uma explicação se supusermos dois departamentos semiautônomos da mente, um que estabeleça um certo curso de ação como o melhor, considerando tudo o que deve ser considerado, e um outro que indique um curso de ação alternativo. Em cada um dos lados — o lado do juízo sóbrio e o lado do intento e da ação incontinente —, há uma estrutura dando suporte a razões, a crenças interligadas a expectativas, suposições, atitudes e desejos. Essa concepção ainda deixa muita coisa a ser explicada, pois queremos saber por que essa dupla estrutura se desenvolveu, como ela esclarece a ação adotada, e também, sem dúvida, suas consequências psíquicas e sua cura. O que enfatizo aqui é que a mente dividida deixa o campo aberto para tais explicações posteriores, ajudando a resolver a tensão conceitual entre o Princípio de Platão e o problema de explicar a irracionalidade.
A divisão que proponho não corresponde em natureza ou função à antiga metáfora de uma batalha entre a Virtude a Tentação, ou entre a Razão e a Paixão. Pois os desejos ou valores em conflito que a acrasia exige, a meu ver, não sugerem em si mesmos a irracionalidade. De fato, um juízo segundo o qual, considerando tudo o que deve ser considerado, devemos agir de uma certa maneira, pressupõe que fatores em conflito tenham sido trazidos ao interior da mesma divisão da mente. Essa divisão também não está relacionada ao problema da simples intervenção de uma emoção excêntrica e estrangeira, como no Princípio de Medeia. O que se requer são elementos organizados, dentro dos quais haja um grau justo de consistência, e onde um elemento possa operar em outro aos moldes de uma causalidade não-racional.
Permitir um grau de autonomia a províncias da mente dissipa, até um certo ponto, os problemas que estou discutindo, mas gera outros. Pois na medida em que o Princípio de Platão falha em explicar as operações da mente, meras relações causais o substituem, e elas substituem melhor, pois fazem mais progresso em direção à ciência, na medida em que elas podem ser subsumidas sob leis. Mas há uma questão acerca de até que ponto as operações da mente podem ser reduzidas a leis determinísticas estritas enquanto os fenômenos forem identificados em termos mentais. De um lado, o domínio do mental não pode formar um sistema fechado; muito do que nele ocorre é forçosamente causado por eventos com uma descrição mental. Por outro lado, uma vez que contemplamos relações causais entre eventos mentais desprezando-se parcialmente as relações lógicas entre as descrições desses eventos, introduzimo-nos em um domínio sem um conjunto unificado e coerente de princípios constitutivos: os conceitos empregados devem ser tratados como misturados, devendo obediência parcialmente às suas conexões lógicas com o mundo de forças não-mentais, e parcialmente ao seu caráter como mental e dirigidos ao conteúdo proposicional. Essas questões nos conduzem à importante pergunta sobre quais leis ou generalizações irão dar sustentação nessa área, e portanto à questão sobre quão científica pode ser uma ciência do mental; isto, entretanto, é um assunto que deixarei de lado.
Há um outro problema que surge dos departamentos reconhecidamente semi-independentes dentro da mesma mente. Atribuímos crenças, propósitos, motivos e desejos a pessoas na tentativa de organizar, explicar e produzir o comportamento delas, seja verbal ou não. Descrevemos suas intenções, ações e sentimentos à luz do esquema mais unificado e inteligível que possamos conceber. A fala não produz mais acesso direto dentro desse esquema do que qualquer outro comportamento, uma vez que a própria fala pode ser interpretada; de fato, a fala requer pelo menos dois níveis de interpretação, havendo tanto a questão sobre o que as palavras do falante significam quanto a questão sobre o que o falante quer dizer com elas. Não quero dizer com isso que um agente saiba diretamente em que ele acredita, ou o que ele quer e pretende, de um modo tal que reduza observadores a meros detetives. Pois embora ele possa frequentemente saber o que está em sua mente, as palavras de um agente têm significado no domínio público; o que as suas palavras querem dizer vai depender do intérprete tanto quanto dele. Como ele deverá ser compreendido é um problema para ele assim como para os outros.
O que dificulta a interpretação é a multiplicidade de fatores mentais que produzem comportamento e fala. Considere o seguinte exemplo: se sabemos que, ao falar certas palavras, um homem quis afirmar que o preço do plutônio está subindo, então geralmente precisamos saber muito mais sobre as suas intenções, suas crenças e o significado de suas palavras. Se imaginamos estar começando do zero para construir uma teoria dos pensamentos, emoções e linguagem de um homem, não conseguiremos ser bem sucedidos. Há incógnitas demais para a quantidade de equações. Nós necessariamente lidamos com esse problema por meio de uma estratégia que é simples de afirmar, embora bastante complexa em sua aplicação: a estratégia é assumir que a pessoa a ser compreendida é bem parecida conosco. Essa é forçosamente a estratégia inicial da qual nos desviamos enquanto a evidência se acumula. Assumimos inicialmente que os outros possuem, nos assuntos básicos e mais amplos, crenças e valores similares a nós. Somos obrigados a supor que alguém que queremos compreender habita o nosso mundo de objetos físicos macroscópicos e mais ou menos permanentes, com disposições causais familiares: que o seu mundo, como o nosso, contém pessoas com mentes e motivos; e que ele compartilha conosco o desejo de encontrar calor, amor, segurança e sucesso, e o desejo de evitar dor e angústia. Na medida em que chegamos às questões de detalhe, ou a questões de um modo ou de outros menos centrais ao nosso pensamento, podemos cada vez mais facilmente tolerar diferenças entre nós mesmos e outros. Mas a menos que possamos interpretar outros como compartilhando uma grande quantidade daquilo que constitui o nosso senso comum, não seremos capazes de identificar quaisquer dessas crenças, desejos e intenções, quaisquer dessas atitudes proposicionais.
O motivo é o caráter holístico do mental. O significado de uma sentença, i.e., o conteúdo de uma crença ou desejo, não é um item que possa ser acrescido a elas independentemente de suas parceiras. Não podemos inteligivelmente atribuir o pensamento de que um pedaço de gelo está derretendo a alguém que não possui uma grande quantidade de crenças verdadeiras sobre a natureza do gelo, suas propriedades físicas em conexão com a água, o frio, a solidez, e assim por diante. Essa atribuição repousa na suposição de muitas outras — infinitas outras. E entre as crenças que supomos que um homem possua, muitas precisam ser verdadeiras (em nossa visão) para que possamos entender qualquer uma delas. A clareza e a consistência de nossas atribuições de atitude, motivo e crença são proporcionais, então, à extensão na qual consideramos outras crenças e motivos consistentes e corretas. Consideramos, com frequência, justificadamente que outras pessoas são irracionais e estão erradas; mas tais juízos estão firmemente baseados quando há um acordo maior. Compreendemos alguém melhor quando o consideramos racional e prudente, e essa compreensão é aquilo que torna possível as nossas disputas com ele.
Não há nenhuma dúvida de que o preceito da inevitável caridade interpretativa se opõe à divisão da mente. Pois o motivo da divisão era permitir que crenças, desejos e sentimentos conflitantes existam na mesma mente, enquanto a metodologia básica de toda a interpretação nos diz que a inconsistência provoca a ininteligibilidade.
Isto é uma questão de grau. Não temos dificuldades em compreender pequenas perturbações contra um pano de fundo determinado ao qual somos bastante simpáticos, mas grandes desvios da realidade ou da consistência começam a minar as bases de nossa habilidade em descrever e explicar o que ocorre em termos mentais. O que determina um limite à quantidade de irracionalidade que podemos dotar de sentido psicológico é uma questão puramente conceitual ou teórica — o fato de que os estados e eventos mentais são constituídos de estados e eventos que estão, por sua localização, num espaço lógico. Por outro lado, o que constrange a quantidade e o tipo de consistência e correspondência com a realidade que descobrimos em nossos companheiros é a fragilidade da natureza humana: a falha da imaginação ou simpatia da parte do intérprete, e a teimosa imperfeição do interpretado. O paradoxo subjacente da irracionalidade, do qual nenhuma teoria pode escapar inteiramente, é este: se o explicamos bem demais, nós o transformamos numa forma dissimulada de racional; ao mesmo tempo, se lhe atribuímos incoerência imediatamente, nós simplesmente comprometemos a nossa habilidade em diagnosticar a irracionalidade, retirando o pano de fundo da racionalidade necessário para justificar qualquer diagnóstico no final das contas.
O que tentei mostrar, assim, é que os aspectos mais gerais da teoria psicanalítica que listei como tendo preocupado filósofos e outros são, se eu estou certo, aspectos que serão encontrados em qualquer teoria que se proponha a explicar a irracionalidade.
O primeiro aspecto era que a mente deve ser considerada como possuindo duas ou mais estruturas semiautônomas. É esse aspecto que pensamos ser necessário para explicar causas mentais que não são razões para os estados mentais que elas causam. Somente dividindo-se a mente é que parece ser possível explicar como um pensamento ou impulso pode causar um outro, ao qual ele não apresenta nenhuma relação racional.
O segundo aspecto atribuiu um tipo particular de estrutura a uma ou mais subdivisões da mente: uma estrutura similar àquela necessária para explicar ações comuns. Isso requer uma constelação de crenças, propósitos e afetos do tipo que, através da explicação do Princípio de Platão, permite-nos caracterizar certos eventos como tendo um objetivo ou intenção. A analogia não precisa ser levada a ponto de exigir que falemos de partes da mente enquanto agentes independentes. O que é essencial é que certos pensamentos e sentimentos das pessoas sejam concebidos como interagindo de modo a produzir consequências nos princípios de ações intencionais, essas consequências então servindo como causas, e não razões, para outros eventos mentais. O colapso dessas relações racionais delineia a fronteira de uma subdivisão. Embora eu fale aqui, com Freud, de partes e agências, não parece haver nada que exija essa metáfora. As partes são definidas em termos da função: em última instância, em termos das concepções da razão e da causa. A ideia de uma divisão quase autônoma não é aquela que exige um pequeno agente na divisão; mais uma vez, os conceitos operativos são aqueles de causa e razão.
O terceiro aspecto que apontamos foi que certos eventos mentais assumem o caráter de meras causas em relação a alguns outros eventos mentais em uma mesma mente. Também consideramos esse aspecto como indispensável em qualquer abordagem da irracionalidade. Eu argumentei que ele pode ser superado, mas para tanto precisamos conferir um certo grau de autonomia a partes da mente.
Os três elementos da teoria psicanalítica que enfatizei — a saber, a divisão da mente, a existência de uma estrutura considerável em cada parte semiautônoma, e as relações causais não-lógicas entre as partes —, são combinados de modo a fundamentar uma maneira coerente de descrever e explicar tipos importantes de irracionalidade. Eles também explicam, e justificam, a mistura freudiana das explicações racionais usuais com as interações causais mais semelhantes àquelas das ciências naturais, interações nas quais a razão não desempenha o seu papel racionalizante e normativo que lhe é peculiar.
Finalmente, preciso mencionar a afirmação de que muitos fenômenos mentais que normalmente são acessíveis à consciência às vezes não são conscientes nem acessíveis à consciência. A razão pela qual eu não fiz nenhum comentário sobre isso é que, a meu ver, as objeções relevantes aos estados e eventos mentais inconscientes são respondidas mostrando-se que a teoria é aceitável sem eles. É surpreendente, por exemplo, que nada na descrição da acrasia requer que qualquer pensamento ou motivo seja inconsciente — de fato, eu critiquei Aristóteles por introduzir algo como um conhecimento inconsciente quando isto não era necessário. O caso padrão de acrasia é aquele no qual o agente sabe o que e por que está fazendo, e sabe que esse não é o melhor curso de ação, e sabe por que isso é assim. Ele se dá conta de sua própria irracionalidade. Sendo assim, então a descrição não pode ser tornada impraticável supondo-se que às vezes alguns dos pensamentos ou desejos envolvidos são inconscientes.
Se a uma teoria já consistente acrescentamos a suposição de elementos inconscientes, ela só pode ser mais aceitável, i.e., capaz de explicar mais. Pois suponha que sejamos levados a perceber, por um gênio como Freud, que, se postulamos certos estados e eventos mentais, podemos explicar que uma grande quantidade de comportamento que do contrário ficaria sem explicação; mas também descobrimos que o comportamento verbal associado não se encaixa no padrão normal. O agente nega ter atitudes e sentimentos que lhe atribuiríamos. Podemos reconciliar observação e teoria estipulando a existência de eventos e estados inconscientes que, com exceção da consciência, são como crenças, desejos e emoções conscientes. Sem dúvida que há outras complicações emergindo aqui, mas elas parecem ser complicações resultantes de outros problemas. Eventos mentais inconscientes nada acrescentam a outros problemas mas são companheiros naturais deles.
Eu argumentei que um certo esquema de análise se aplica a importantes casos de irracionalidade. Possivelmente, alguma versão desse esquema será encontrado em todo caso de inconsistência ou irracionalidade interna. Mas será que o esquema fornece uma condição suficiente para a irracionalidade? Parece que não. Isso porque casos simples de associação não contam como irracionalidade. Se consigo lembrar um nome assobiando um certo tom, há uma causa mental de algo para o qual ela não é uma razão; e, similarmente, para um grande número de outros casos. Mas muito mais interessante e importante é uma forma de autocrítica e reforma que tendemos a considerar em alta conta, e isso tem sido mesmo considerado como a própria essência da racionalidade e a fonte da liberdade. Contudo, é claramente um caso de causalidade mental que transcende a razão (no sentido algo técnico no qual estive usando o conceito).
O que tenho em mente é um tipo especial de desejo ou valor de segunda ordem, e as ações que ele pode provocar. Isso acontece quando uma pessoa forma um juízo positivo ou negativo de alguns de seus próprios desejos. Ele age para mudar esses desejos. Do ponto de vista do desejo mudado, não há razão para a mudança — a razão provém de uma fonte independente, e está baseada em considerações posteriores e parcialmente contrárias. O agente tem razões para mudar os seus próprios hábitos e caráter, mas essas razões provêm de um domínio de valores necessariamente extrínsecos aos conteúdos das visões e valores que sofrem mudança. A causa da mudança, se ela ocorre, pode portanto não ser uma razão para aquilo que ela causa. Uma teoria que não pudesse explicar a irracionalidade seria aquela que também não poderia explicar nossos esforços salutares, e sucessos ocasionais, ao realizarmos a autocrítica e aprimoramento de nós mesmos.
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(In: WOLLHEIM, R., HOPKINS, J. (1982): Philosophical Essays on Freud, Cambridge: Cambridge University Press. Trad. de Marco Antonio Frangiotti. p. 289-305.)