O conceito de identidade pessoal
Ao ser julgado por homicídio, o leitor decide defender-se a si próprio. Afirma não ser o assassino; o assassino e o leitor são pessoas diferentes. O juiz pede-lhe que apresente provas. Tem fotografias de um intruso com bigode? Não é verdade que as suas impressões digitais correspondem às que foram encontradas na arma do crime? Pode provar que o assassino é canhoto? “Não”, responde o leitor. A sua defesa será muito diferente. Eis as suas alegações finais:
Admito que o assassino é destro, como eu, que tem as mesmas impressões digitais que as minhas e que não usa barba nem bigode, como eu. Até se parece exatamente comigo nas fotografias da câmara de vigilância apresentadas pela defesa. Não, não tenho um irmão gêmeo. Na verdade, admito lembrar-me de ter cometido o homicídio! Mas eu e o homicida não somos a mesma pessoa, uma vez que sofri mudanças. A banda de rock preferida dessa pessoa eram os Led Zeppelin; agora prefiro Todd Rundgren. Essa pessoa tinha apêndice, mas eu não; o meu foi removido na semana passada. Essa pessoa tinha de vinte e cinco anos de idade; eu tenho trinta. Eu e esse assassino de há cinco anos não somos a mesma pessoa. Portanto, não podem punir-me, pois ninguém é culpado de um crime cometido por outra pessoa.
Como é óbvio, nenhum tribunal aceitaria este argumento. No entanto, o que tem de errado? Quando alguém sofre mudanças, física ou psicologicamente, não é verdade que “não é a mesma pessoa”?
Sim, mas a expressão “a mesma pessoa” é ambígua. Há dois sentidos em que podemos afirmar que duas pessoas são a mesma. Quando alguém se converte a uma religião ou rapa o cabelo, torna-se dissemelhante do que era antes. Digamos que, qualitativamente, não é mais a mesma pessoa. Então, em certo sentido, não é “a mesma pessoa”. Mas noutro sentido é a mesma pessoa: ninguém o substituiu. Chama-se “identidade numérica” a este segundo gênero de identidade, uma vez que é o mesmo gênero de identidade denotado pelo sinal de igualdade em expressões matemáticas como “2 + 2 = 4”: as expressões “2 + 2” e “4” representam o mesmo número. Numericamente, o leitor é a mesma pessoa que era em bebê, apesar de qualitativamente ser muito diferente. As alegações finais do julgamento confundem os dois gêneros de identidade. Na verdade, o leitor mudou desde que o crime foi cometido: qualitativamente, não é a mesma pessoa. Mas, numericamente, o leitor e o assassino são a mesma pessoa; ninguém mais assassinou a vítima. É verdade que “ninguém pode ser punido pelos crimes de outrem”. Mas aqui “outrem” significa alguém que é numericamente distinto do leitor.
O conceito de identidade numérica é importante para os assuntos humanos. Afeta a questão de saber quem podemos punir, uma vez que é injusto punir alguém que seja numericamente distinto do malfeitor. Também desempenha um papel crucial em emoções como a antecipação, o arrependimento e o remorso. O leitor não pode sentir pelos erros dos outros o mesmo gênero de arrependimento ou de remorso que sente pelos seus próprios erros. Não pode antecipar os prazeres de que outra pessoa terá experiência, por mais que essa pessoa seja semelhante a si em termos qualitativos. A questão sobre o que faz que as pessoas sejam numericamente idênticas ao longo do tempo é conhecida dos filósofos como a questão da identidade pessoal.
Pode-se representar a questão da identidade pessoal através de um exemplo. Imagine o leitor que está muito curioso acerca de como será o futuro. Um dia encontra Deus, particularmente bem-humorada; ela promete ressuscitá-lo quinhentos anos após a sua morte, para que o leitor tenha experiência do futuro. A princípio fica compreensivelmente entusiasmado, mas depois começa a duvidar. Como irá Deus garantir que será o leitor a existir no futuro? Daqui a quinhentos anos terá morrido e o seu corpo ter-se-á decomposto. A matéria que o compõe agora ter-se-á então dispersado pela superfície da terra. Deus poderia facilmente criar, a partir de nova matéria, uma nova pessoa que se assemelhe a si, mas isso não o conforta. O leitor quer ser o próprio a existir no futuro; alguém que seja meramente parecido consigo não serve.
Este exemplo torna o problema da identidade pessoal particularmente vívido, mas repare que a mudança trivial ao longo do tempo levanta as mesmas questões. Olhando para fotografias da infância, você diz “este era eu”. Mas por quê? O que faz que o leitor e aquele bebê sejam a mesma pessoa, apesar de todas as mudanças que sofreu ao longo dos anos?
(Os filósofos refletem também na identidade ao longo do tempo de objetos que não são pessoas; refletem no que faz que um elétron, árvore, bicicleta ou nação sejam a mesma coisa em momentos distintos. Estes objetos levantam muitas das mesmas questões que se coloca acerca das pessoas, além de algumas questões novas. Mas as pessoas são particularmente fascinantes. Por um lado, apenas a identidade pessoal se liga a emoções como o remorso e a antecipação. Por outro lado, nós somos pessoas. É natural que nos interessemos particularmente por nós próprios.)
Então, como poderia Deus fazer o leitor existir no futuro? Como vimos, não basta reconstituir, a partir de outra matéria, uma pessoa fisicamente similar. Seria mera semelhança qualitativa. Adiantaria usar a mesma matéria? Deus poderia recolher todos os prótons, nêutrons e elétrons que agora constituem o seu corpo, mas que estarão então dispersos na superfície da Terra, e transformá-los numa pessoa. Por via das dúvidas, Deus poderia até fazer que esta nova pessoa fosse parecida contigo. Mas não seria você. Seria uma nova pessoa criada a partir da sua velha matéria. Se não concorda, então pense no seguinte: esqueça o futuro; tanto quanto sabe, a matéria de que agora é composto o seu corpo foi, em tempos, parte do corpo de outra pessoa, há milhares de anos. É altamente improvável mas contudo possível que a matéria de um antigo estadista grego se tenha reciclado através da biosfera, vindo a acabar em você. É claro que isso não o tornaria numericamente idêntico àquele estadista. O leitor não deveria ser punido pelos crimes do dito; não poderia arrepender-se do que o outro tivesse feito. A identidade da matéria não é condição suficiente para a identidade pessoal.
Tampouco é necessária. Pelo menos, a exata identidade da matéria não é necessária para a identidade pessoal. As pessoas sobrevivem constantemente a mudanças graduais na sua matéria. Ingerem e excretam, cortam o cabelo e perdem porções de pele, e por vezes fazem implantes de pele ou de outra matéria nos seus corpos. Na verdade, o processo normal de ingestão e excreção reciclam quase toda a matéria de que o leitor é feito, periodicamente ao longo dos anos. No entanto, o leitor continua a ser o leitor. A identidade pessoal não está especialmente ligada à identidade da matéria. Então com o que está ela ligada?
A alma
Alguns filósofos e pensadores religiosos respondem: a alma. A alma de uma pessoa é a sua essência psicológica, uma entidade infísica onde há pensamentos e emoções. A alma sobrevive ilesa a todo o gênero de transformações físicas do corpo e pode mesmo sobreviver à sua destruição total. A alma do leitor é o que o faz que o leitor seja quem é. O bebê nas fotos é o leitor porque a alma que agora habita o seu corpo é a mesma que habitava então o corpo daquele bebê. Deus pode então ressuscitá-lo no futuro fazendo um novo corpo e inserindo nele a sua alma.
As almas parecem dar resposta rápida a muitas perplexidades filosóficas acerca da identidade ao longo do tempo, mas não há qualquer boa razão para pensar que existem. Os filósofos costumavam argumentar que se tem de postular as almas para explicar os pensamentos e os sentimentos, visto que os pensamentos e os sentimentos não parecem fazer parte do corpo físico. Mas a ciência contemporânea destrói este argumento. Há muito que os seres humanos sabem que a vida mental está especialmente ligada a uma parte do corpo — o cérebro. Mesmo antes da neurociência contemporânea, sabia-se que as lesões cefálicas causam danos psicológicos. Sabemos agora como certas partes do cérebro estão associadas a certos efeitos psicológicos. Embora estejamos longe de poder correlacionar inteiramente estados psicológicos com estados cerebrais, progredimos o suficiente para saber que a existência de uma tal correlação é uma hipótese razoável. É razoável inferir que a própria vida mental está no cérebro, e que não existe alma. Não é que a ciência neurológica refute a alma: as almas podiam existir ainda que os estados psicológicos e os estados mentais estejam perfeitamente correlacionados. Mas se o cérebro físico explica por si a vida mental, não há necessidade de postular também almas.
Além disso, os teorizadores da alma têm dificuldade em explicar como as almas conseguem pensar. Os teorizadores do cérebro têm os rudimentos de uma explicação: o cérebro contém bilhões de neurônios, cujas interações incrivelmente complexas produzem o pensamento. Ninguém sabe ao certo como isto funciona, mas pelo menos os neurocientistas fizeram um bom começo. O teorizador da alma nada tem para dizer que se compare, uma vez que na sua maioria os teorizadores da alma pensam que a alma não tem partes menores. As almas não são compostas de bilhões de minúsculas partículas anímicas. (Se o fossem, deixariam de fornecer respostas rápidas para as perplexidades filosóficas acerca da identidade ao longo do tempo. Os teorizadores da alma enfrentariam as mesmas questões filosóficas difíceis que os restantes de nós. Por exemplo: o que faz que uma alma seja a mesma ao longo do tempo, apesar das mudanças nas suas partículas anímicas?) Mas se as almas não têm minúsculas partículas anímicas, não têm algo semelhante a neurônios para as ajudar a fazer o que fazem. Como é que, então, fazem o que o fazem?
A continuidade espaço-temporal e o caso do príncipe e do sapateiro
Pondo de parte as almas, voltemo-nos agora para as teorias científicas, que fazem assentar a identidade pessoal em fenômenos naturais. Uma dessas teorias usa o conceito de continuidade espaço-temporal. Considere a identidade ao longo do tempo de um objeto inanimado, como uma bola de basebol. Um lançador agarra a bola e prepara o lançamento; momentos depois, há uma bola na luva do apanhador. Serão ambas a mesma bola? Como sabemos? É mais fácil se tivermos mantido os olhos na bola. Uma série contínua — uma série de posições no espaço e no tempo contendo uma bola de basebol, a primeira na mão do lançador, as localizações ulteriores nos espaços e momentos intermédios, e a posição final na luva do apanhador — convence-nos de que a bola do lançador e a bola do apanhador são a mesma. Se não observarmos essa série contínua podemos suspeitar que as bolas são diferentes. Normalmente, não precisamos deste método para identificar uma pessoa ao longo do tempo, uma vez que, na sua maioria, as pessoas diferem muito umas das outras, mas pode ser útil se lidarmos com gêmeos verdadeiros. Quer saber se é o Zé Manel ou o Manel Zé quem está na cela? Primeiro, reúna informação a partir dos vídeos de vigilância ou de informadores. Depois, usando esta informação, esboce uma série contínua regredindo no tempo a partir da pessoa que está na cela e veja a qual dos gêmeos conduz.
Todos concordam que a continuidade espaço-temporal é um bom indício prático da identidade pessoal. Mas enquanto filósofos queremos mais. Queremos descobrir a essência da identidade pessoal; queremos saber o que é ter identidade pessoal e não apenas reconhecê-la quando está presente. Se o leitor quiser saber se um certo homem é solteiro, é um bom indício prático verificar se ele tem o apartamento desarrumado; se quer saber se um certo metal é ouro, a inspeção visual e a pesagem numa balança darão a resposta certa nove vezes em cada dez. Mas ter o apartamento desarrumado não é a essência de ser solteiro, pois alguns solteiros são arrumados. Ter um certo peso e uma certa aparência não é a essência do ouro, pois é possível um metal aparentar ser ouro (em todas as suas características superficiais) sem que por isso seja realmente ouro (pense na pirita). A verdadeira essência de ser solteiro é ser um indivíduo não casado do sexo masculino; a verdadeira essência de ser ouro é ter o número atômico 79. Pois não há circunstância possível em que algo seja solteiro sem ser um homem não casado, e não há circunstância possível em que algo seja ouro sem ter o número atômico 79. Tudo o que exigimos dos indícios práticos para reconhecer solteiros ou ouro é que funcionem na maioria das vezes, mas as considerações filosóficas sobre a essência têm de funcionar em todas as circunstâncias possíveis. A teoria da continuidade espaço-temporal afirma que a continuidade espaço-temporal é de fato a essência da identidade pessoal e não apenas que é um bom indício prático. A identidade pessoal é, simplesmente, a continuidade espaço-temporal.
Tem de se aperfeiçoar um pouco a teoria para que possa funcionar em todas as circunstâncias possíveis. Suponha o leitor que é capturado, metido numa panela e transformado em sopa. Embora possamos traçar uma série contínua entre o leitor e a sopa, a sopa não é o leitor. Depois de liquefeito, o leitor deixa de existir; a matéria que antes o compunha compõe agora outra coisa qualquer. Assim, temos de aperfeiçoar a teoria da continuidade espaço-temporal até se obter a seguinte formulação: as pessoas são numericamente idênticas se, e só se, são espaço-temporalmente contínuas ao longo de uma série de pessoas. O leitor está certamente ligado à sopa por uma série contínua, mas os últimos elementos da série são porções de sopa e não pessoas.
São possíveis melhoramentos posteriores (entre os quais afirmar que qualquer mudança de matéria numa série contínua tem de ocorrer gradualmente, ou que os elementos anteriores de uma tal série são a causa dos elementos posteriores). Mas passemos antes a um exemplo muito interessante introduzido pelo filósofo britânico do séc. XVII, John Locke. Um príncipe interroga-se como seria viver como um humilde sapateiro. Reciprocamente, há um sapateiro que sonha com uma vida de príncipe. Um dia têm a sua oportunidade: permutam-se todas as características mentais do príncipe e do sapateiro. O corpo do sapateiro fica com a memória, o conhecimento e os atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram por sua vez para o corpo do sapateiro. O próprio Locke falou em almas: as almas do príncipe e do sapateiro permutam-se. Mas modifiquemos a sua história: suponha-se que a troca ocorre porque os cérebros do príncipe e do sapateiro são alterados por um cientista malévolo, sem qualquer transferência de almas ou de matéria. Embora seja implausível, não é de todo em todo inconcebível. A ciência diz-nos que os estados mentais dependem da configuração dos neurônios no cérebro. Essa configuração poderia em princípio ser alterada de modo a ficar exatamente igual à configuração de outro cérebro.
Depois da permuta, a pessoa que está no corpo do sapateiro lembrar-se-á de ter sido um príncipe e do desejo de experimentar a vida como sapateiro. Dirá para si própria: “Finalmente, tenho a minha oportunidade!” Reconhece-se como príncipe e não como sapateiro. A pessoa que está no corpo do príncipe reconhece-se como sapateiro e não como príncipe. Terão razão?
A teoria da continuidade espaço-temporal afirma que não têm razão. Os itinerários espaço-temporais contínuos atêm-se a corpos; vão do príncipe original à pessoa que está no corpo do príncipe e do sapateiro original até a pessoa que está no corpo do sapateiro. Então, se a teoria da continuidade espaço-temporal está correta, a pessoa que está no corpo do sapateiro é de fato o sapateiro e não o príncipe e a pessoa que está no corpo do príncipe é de fato o príncipe e não o sapateiro.
Locke adota uma perspectiva diferente; concorda com o príncipe e com o sapateiro. Se tem razão, então a sua experiência mental refuta a teoria da continuidade espaço-temporal. Eis um argumento poderoso da parte de Locke: Suponhamos que o príncipe cometeu um crime horrível, sabia que ia acontecer a troca mental e esperava usá-la para fugir à acusação. Depois da troca, o crime é descoberto e os guardas vêm buscar o culpado. Nada sabem da troca, pelo que prendem a pessoa que está no corpo do príncipe, ignorando os seus protestos de inocência. A pessoa que está no corpo do sapateiro (que se vê como príncipe) lembra-se de ter cometido o crime e gaba-se de ter escapado por um triz. Trata-se de uma enorme injustiça! O fanfarrão que está no corpo do sapateiro devia ser punido. Se é assim, então a pessoa que está no corpo do sapateiro é o príncipe e não o sapateiro, pois só se deve punir uma pessoa pelo que ela própria fez.
A continuidade psicológica e o problema da duplicação
Locke usou o exemplo do príncipe e do sapateiro para mostrar que a identidade pessoal segue outro tipo de continuidade, a continuidade psicológica. Segundo a nova teoria proposta por Locke, a teoria da continuidade psicológica, uma pessoa no passado é numericamente idêntica à pessoa no futuro, se alguma houver, que tenha a memória da pessoa no passado, as suas características individuais, e por aí em diante — quer a pessoa no passado e a pessoa no futuro sejam ou não espaço-temporalmente contínuas entre si. A teoria de Locke afirma que o fanfarrão que está no corpo do sapateiro é de fato o príncipe e é portanto culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que é psicologicamente contínuo com o príncipe. Como vimos, este parece ser o veredicto correto. Mas Locke enfrenta desafio fascinante que se segue, apresentado pelo filósofo britânico do séc. XX, Bernard Williams.
O nosso cientista malévolo entra de novo em cena e faz Charles, uma pessoa dos nossos dias, adquirir as características mentais de Guy Fawkes, um homem enforcado em 1606 por tentar fazer explodir o parlamento inglês. Obviamente, seria difícil saber se Charles está a fingir, mas se tiver de fato as características mentais de Fawkes, então, diz Locke, Charles é Guy Fawkes. Até aqui tudo bem.
Mas agora o nosso cientista, perversamente, provoca esta transformação também em outra pessoa, Robert. Adquirir as características mentais de Fawkes consiste apenas numa alteração do cérebro; se pode acontecer a Charles, então pode acontecer também a Robert. A teoria de Locke está agora em dificuldades. Tanto Charles como Robert são psicologicamente contínuos com Fawkes. Se a identidade pessoal é a continuidade psicológica, então tanto Charles como Robert seriam idênticos a Fawkes. Mas tal não faz sentido, uma vez que implicaria que Charles e Robert são idênticos entre si! Pois se sabemos que
x = 4 e y = 4
Então concluímos que
x = y
Do mesmo modo, se sabemos que
Charles = Fawkes e Robert = Fawkes
Então concluímos que
Charles = Robert
Mas é absurdo afirmar que Charles = Robert. Apesar de serem agora qualitativamente similares (cada um tem a memória de Fawkes e as suas características individuais), numericamente são duas pessoas distintas. Este é o problema da duplicação na teoria de Locke: o que sucede quando a continuidade psicológica é duplicada? (ou triplicada, ou quadruplicada…)
Williams preferiu a continuidade espaço-temporal e não a psicológica devido ao problema da duplicação. Antes de o seguirmos, pensemos um pouco mais na continuidade espaço-temporal. Tal como uma árvore pode sobreviver à perda de um ramo, uma pessoa pode sobreviver à perda de algumas partes, ainda que significativas. Mesmo que lhe amputassem as pernas ou os braços o leitor continuaria a ser a mesma pessoa. No entanto, a perda de partes provoca alguma descontinuidade espaço-temporal, uma vez que a região do espaço-tempo ocupada pela pessoa muda abruptamente de forma. Assim, a “continuidade espaço-temporal” deve ser entendida como continuidade espaço-temporal suficiente, de modo a permitir mudanças nas partes enquanto a coisa ou a pessoa permanecem as mesmas.
Quanta continuidade é continuidade espaço-temporal “suficiente”? Imagine que tem um câncer incurável na metade direita do seu corpo mas que a esquerda se encontra saudável. Este câncer abrange o seu cérebro: o hemisfério direito está canceroso ao passo que o hemisfério esquerdo se encontra saudável. Felizmente, há uns cientistas futuristas que podem separar o seu corpo em dois. Podem dividir os hemisférios cerebrais e remover a parte cancerosa. Dão-lhe próteses do braço e perna direitos, uma metade artificial do seu coração, e por aí em diante. Contudo, o leitor não precisa de qualquer prótese do hemisfério cerebral direito, porque o hemisfério esquerdo, que ficou saudável, acabará por funcionar do mesmo modo que todo o seu cérebro costumava funcionar. (Apesar de ficcional, não é de todo em todo implausível: os hemisférios cerebrais humanos podem de fato funcionar independentemente quando desligados, e replicar algumas funções — embora não todas — um do outro.) Seguramente, a pessoa depois da operação é a mesma que era antes: esta operação é uma maneira de lhe salvar a vida! Mas o resultado da operação é uma descontinuidade espaço-temporal significativa, uma vez que a continuidade entre a pessoa do antes e a pessoa do depois fica reduzida a metade do corpo. Lição: mesmo a continuidade de apenas metade do corpo seria suficiente para manter a identidade pessoal.
Mas agora a teoria da continuidade espaço-temporal enfrenta o seu próprio problema da duplicação. Alteremos a história do parágrafo anterior de tal modo que o câncer esteja apenas no cérebro, mas em ambos os hemisférios. A única cura é a radioterapia, mas a probabilidade de sucesso é apenas de 10%. É uma probabilidade baixa. Felizmente, pode ser aumentada. Antes da radioterapia, os médicos dividem o seu corpo — incluindo os hemisférios — em dois. Como antes, cada metade é completada artificialmente; inicia-se então a radioterapia aos hemisférios cancerosos. Isto dá-lhe duas hipóteses com 10% de probabilidade de sucesso, em vez de uma. Mas agora vem a reviravolta na narrativa: suponha o resultado improvável de que o tratamento cura ambas as metades. Assim, o resultado da operação são duas pessoas, cada uma das quais tem um dos seus hemisférios originais. Repare que cada uma mantém continuidade espaço-temporal “suficiente” com o leitor, uma vez que concordamos que metade de uma pessoa é o suficiente para haver continuidade. A teoria da continuidade espaço-temporal implica então que o leitor seja idêntico a cada uma destas duas novas pessoas, e temos uma vez mais a consequência absurda de que estas duas pessoas são idênticas entre si.
Cada uma das nossas teorias, a teoria da continuidade psicológica de Locke e a teoria da continuidade espaço-temporal, enfrenta o problema da duplicação. Pode haver continuidade, psicológica ou espaço-temporal, entre uma só pessoa original e duas sucessoras. Cada teoria afirma que a identidade pessoal é um tipo de continuidade. Assim, a pessoa original é idêntica a cada sucessora, o que implica o absurdo de as sucessoras serem idênticas entre si. Como resolver este problema?
Alguns sentir-se-ão tentados a abandonar as teorias científicas voltando-se para a alma. A continuidade, psicológica ou espaço-temporal, não determina o que acontece a uma alma. Quando se duplica um corpo, a alma do corpo original pode ser herdada por um ou outro dos corpos sucessores, talvez por nenhum, mas não por ambos. Embora seja uma solução arrumada, os indícios disponíveis não a sustentam: continuamos a não haver razão para aceitar a existência de almas. Seria melhor reformular de alguma maneira as teorias científicas tendo em conta o problema da duplicação. (Se formos bem-sucedidos, temos ainda de decidir entre a continuidade espaço-temporal, a continuidade psicológica, ou uma combinação das duas. Mas deixemos isso de lado por agora.)
Na sua formulação original, as teorias científicas afirmavam que a identidade pessoal é continuidade. Podíamos reformulá-las, para que afirmem, ao invés, que a identidade pessoal é continuidade imbifurcante. Normalmente a continuidade não tem bifurcações: normalmente, só há continuidade, em cada momento, entre uma pessoa e outra pessoa anterior. Nesses casos há identidade pessoal. Mas os exemplos de duplicação implicam bifurcação, ou seja, num dado momento, há continuidade entre duas pessoas e uma pessoa anterior. Assim, segundo a teoria reformulada, não há identidade pessoal nesses casos. Não há identidade entre Charles e Guy Fawkes nem entre Robert e Guy Fawkes. O leitor não sobrevive ao transplante duplo.
Ao contrário da afirmação de que as pessoas sucessoras são idênticas entre si, esta não é absurda. Mas é bastante difícil de aceitar. Imagine o leitor que recebe uma boa notícia antes da operação: a pessoa que tem o seu hemisfério esquerdo irá sobreviver à operação de divisão. Excelente. Mas agora, se a teoria modificada da continuidade espaço-temporal está correta, e se além disso a pessoa que tem o hemisfério direito sobrevive, o leitor não sobreviverá. Pelo que é pior para você se a pessoa que tem o hemisfério direito sobreviver. Tem de fazer figas para que a pessoa que tem o hemisfério direito morra. Que estranho! A notícia de que a pessoa que tem o hemisfério esquerdo sobreviveria era boa; a notícia de que a pessoa com o hemisfério direito também sobreviveria parece ser mais uma boa notícia. Como poderia mais uma boa notícia tornar as coisas muito piores?
Soluções radicais para o problema da duplicação
A duplicação é um problema realmente difícil! Talvez seja altura de investigar algumas soluções radicais. Eis duas.
Derek Parfit, o filósofo britânico contemporâneo, põe em causa um pressuposto fundamental que temos mantido acerca da identidade pessoal, o pressuposto de que a identidade pessoal é importante. No início deste capítulo, concordamos que a identidade pessoal está ligada à antecipação, ao arrependimento e ao castigo. Isto é uma parte da importância da identidade pessoal. O último parágrafo da seção anterior pressupôs outra parte: que é muito mau para o leitor se no futuro não houver continuidade entre outra pessoa e o leitor. Isto é, deixar de existir é muito mau. Parfit põe em causa este pressuposto de que a identidade é importante. O que é realmente importante, defende Parfit, é a continuidade psicológica. Na maior parte dos casos triviais, a continuidade psicológica e a identidade pessoal andam par. Isso é porque, segundo Parfit, a identidade pessoal é continuidade imbifurcante, e a continuidade raramente bifurca. Mas no caso da duplicação ramifica. Nesse caso o leitor deixa de existir. Mas no exemplo da duplicação, diz Parfit, deixar de existir não é mau. Pois ainda que o próprio leitor deixe de existir, preservará tudo aquilo que importa: terá continuidade psicológica (em dose dupla, na verdade!).
As perspectivas de Parfit são interessantes e provocadoras. Mas podemos realmente aceitar que por vezes deixar completamente de existir é insignificante? Isso implicaria uma revisão radical das nossas crenças habituais. Haverá mais opções?
Podíamos, ao invés, reconsiderar um dos nossos outros pressupostos acerca da identidade pessoal. O argumento da duplicação pressupõe que se há identidade pessoal entre a pessoa original e cada uma das sucessoras, temos a conclusão absurda de que as sucessoras são idênticas entre si. Mas este resultado absurdo só se segue se a identidade pessoal for identidade numérica, a mesma noção que o sinal de igualdade (=) exprime em matemática. Fizemos esta pressuposição logo à partida, mas talvez seja um erro. Talvez a “identidade pessoal” nunca seja realmente identidade numérica. Talvez o resultado de toda a mudança seja mesmo uma pessoa numericamente distinta. Se é assim, então não seria preciso afirmar que a bifurcação destrói a identidade pessoal. Porquanto podíamos regressar à ideia de que a “identidade” pessoal é continuidade (psicológica ou espaço-temporal — falta decidir isso.) Nos casos em que há bifurcação, pode haver relação de “identidade pessoal” entre única pessoa e duas pessoas distintas; isto não é absurdo se a identidade pessoal não for identidade numérica. Teríamos ainda de distinguir entre a mera semelhança qualitativa (“ele não é a mesma pessoa que era antes de ir para a faculdade”) e uma noção mais estrita de “identidade” pessoal que se associe ao castigo, à antecipação e ao arrependimento. Mas mesmo esta noção mais estrita seria mais frouxa do que a identidade numérica.
Poderemos realmente acreditar que as nossas fotografias de infância são de pessoas numericamente distintas de nós? Também isso exigiria uma revisão radical de crenças. Mas às vezes é precisamente isso o que a filosofia pede.
Sugestões de leitura
A antologia de John Perry Personal Identity (University of California Press, 1975) é uma excelente fonte para leituras adicionais acerca da identidade pessoal. Contém um excerto de John Locke em defesa da perspectiva da continuidade psicológica, um ensaio de Derek Parfit que argumenta que a identidade pessoal não é tão importante como normalmente pensamos que seja, um artigo de Thomas Nagel sobre a bisseção cerebral, e muitos outros artigos de interesse. A introdução de Perry à antologia é também excelente.
Outro bom livro, também intitulado Personal Identity, é da co-autoria de Sydney Shoemaker e Richard Swinburne (Blackwell, 1984). A primeira parte, redigida por Swinburne, defende a teoria da identidade pessoal com base na alma e é particularmente acessível. A segunda parte, redigida por Shoemaker, defende a perspectiva da continuidade psicológica.
Bernard Williams introduz o problema da duplicação em “Personal Identity and Individuation”, no seu livro Problems of the Self (Cambridge University Press, 1973).