Fisicismo

Jaegwon Kim

Universidade de Notre Dame e Universidade de Brown

O fisicismo é a doutrina de que tudo o que existe no mundo espaço-temporal é uma coisa física, e que toda a propriedade de uma coisa física ou é uma propriedade física ou uma propriedade que está de algum modo intimamente relacionada com a sua natureza física. Formulada assim, a doutrina é uma afirmação ontológica, embora tenha importantes corolários epistemológicos e metodológicos.

Os fisicistas em geral aceitarão a seguinte tese do “fisicismo ontológico” (Hellman e Thompson, 1975): todo o objeto no espaço-tempo é completamente material — isto é, ou é uma partícula básica de matéria (próton, elétron, quark, ou seja o que for) ou é uma estrutura agregada composta exclusivamente de tais partículas. O fisicismo ontológico, portanto, nega a existência de coisas como almas cartesianas, divindades sobrenaturais, “enteléquias”, “forças vitais” e coisas semelhantes. Os fisicistas, contudo, discordam bastante quanto à questão das propriedades dos objetos físicos — a questão de os sistemas físicos complexos poderem ou não ter propriedades que sejam, em algum sentido, infísicas. Mas o que é uma propriedade física?

É difícil responder claramente a esta questão. Em sentido estrito, as propriedades físicas são aquelas propriedades, relações, quantidades e magnitudes que aparecem na física, como a massa, a energia, a forma, o volume, a entropia, a temperatura, a posição e a distância espaço-temporal, e coisas semelhantes. Majoritariamente, incluir-se-á também propriedades químicas como a valência, a inflamabilidade e a acidez, embora estas não estejam entre as propriedades físicas básicas — propriedades que aparecem em leis básicas da física (neste sentido a entropia e a temperatura também não são básicas). Nas discussões acerca do estatuto das propriedades cognitivas/psicológicas, considera-se em geral que as propriedades físicas incluem propriedades de segunda ordem, como propriedades biológicas e computacionais. Este sentido lato de propriedade física parece apropriado para discutir a questão de como as propriedades psicológicas se relacionam com as propriedades físicas — isto é, o problema da mente-corpo. No seu sentido lato, portanto, “físico” quer dizer essencialmente “impsicológico”. O que deixa por responder a nossa questão anterior: o que é uma propriedade física? Massa, carga, energia e coisas semelhantes são obviamente propriedades importantes na física corrente, mas a física do futuro poderá invocar propriedades muito diferentes das da física atual. Como as reconheceríamos enquanto propriedades físicas e não propriedades de outro gênero? Ou seja, como saberíamos que a física do futuro é física?

Como vimos, os fisicistas divergem quanto ao estatuto das propriedades de segunda ordem em relação com as propriedades físicas básicas, de primeira ordem. O fisicismo reducionista afirma que as propriedades de segunda ordem, incluindo as propriedades psicológicas, são redutíveis a propriedades físicas e portanto são propriedades físicas. O fisicismo irreducionista opõe-se ao fisicismo reducionista, também chamado dualismo-propriedade, o qual considera que pelo menos algumas propriedades de segunda ordem, em particular propriedades cognitivas/psicológicas, formam um domínio autônomo irredutível. Isto implicaria que a psicologia é uma ciência especial cujo objeto é a investigação das conexões causais/nomológicas que implicam estas propriedades psicológicas irredutíveis e gerar explicações especificamente psicológicas nos termos daquelas. Nesta perspectiva, não se pode formular estas leis e explicações em termos puramente físicos — nem sequer numa teoria física idealmente completa — e uma descrição puramente física do mundo, por muito fisicamente completa que fosse, deixaria de fora algo de importante acerca do mundo. O fisicismo irreducionista, portanto, conduz à doutrina da autonomia da psicologia e, mais geralmente, à autonomia de todas as ciências especiais relativamente à física básica (Davidson 1970; Fodor 1974).

A teoria da identidade mente-cérebro (Feigl 1958; Smart 1959; Armstrong 1968) é uma forma de fisicismo reducionista. Esta perspectiva propõe-se a identificar propriedades psicológicas com os seus correlatos neurais; por exemplo, identifica-se a dor com o seu substrato neural (“estimulação de fibras-C”, de acordo com a neurofisiologia filosófica de poltrona). Afirma-se que estas identidades entre o mental e o neural são como as identidades correntes que ciência descobriu, por exemplo, “água = H2O”, “luz = radiação electromagnética” e “genes = moléculas de ADN”. Tal como a “verdadeira natureza” da água é o ser composta por moléculas de H2O, os avanços na neurofisiologia irão revelar-nos a verdadeira natureza de cada tipo de estado mental identificando-o com um tipo específico de estado cerebral.

O emergentismo, uma doutrina popular na primeira metade do século XX, é uma forma de fisicismo irreducionista (Morgan 1923; Sperry 1969; McLaughlin 1992). O seu princípio nuclear é a afirmação de que algumas propriedades de segunda ordem, em particular a consciência e a intencionalidade, são emergentes no sentido de que, embora só apareçam quando se verifica um conjunto favorável de condições físicas, são propriedades genuinamente novas que não são explicáveis nem previsíveis em termos das suas condições físicas subjacentes. Além disso, estas propriedades emergentes trazem ao mundo os seus poderes causais característicos, enriquecendo assim a estrutura causal do mundo. O funcionalismo é também frequentemente visto como uma forma de fisicismo irreducionista. De acordo com esta perspectiva, as propriedades psicológicas não são propriedades físicas nem neurais e sim tipos funcionais, sendo um tipo funcional uma propriedade definida em termos de inputs e outputs causais. Para dar um exemplo conhecido, diz-se que a dor é um tipo funcional na medida em que estar com dores é estar num estado físico/biológico tipicamente causado por determinados tipos de inputs físicos (por exemplo, danos nos tecidos) e que causa determinados outputs comportamentais (por exemplo, gemido, retraimento, comportamento de fuga). Observa-se então que um tipo psicológico do qual se faz este gênero de interpretação funcional tem realizadores físicos múltiplos (Putnam 1967; Block e Fodor 1972; Fodor 1974); isto é, o mecanismo neural que realiza ou implementa a dor nos seres humanos provavelmente difere imensamente dos mecanismos de dor nos répteis, nos moluscos e talvez em certos sistemas electromecânicos complexos. Este é o “argumento da realização múltipla” contra o reducionismo: dado que a dor tem realização múltipla em diversos mecanismos físicos/biológicos, não pode ser identificada com qualquer propriedade física ou biológica singular. Isto levou à perspectiva de que as propriedades cognitivas/psicológicas se situam num nível de abstração e formalidade superior ao das propriedades físicas/biológicas que as implementam (Kim 1992).

Contudo, os fisicistas irreducionistas, enquanto fisicistas, reconhecerão que as propriedades psicológicas, embora sendo fisicamente irredutíveis, dependem, num certo sentido, de propriedades físicas, ou são determinadas por propriedades físicas — a menos, isto é, que se esteja preparado para entender a sua irredutibilidade física como demonstração da sua irrealidade e adotar o eliminativismo/irrealismo (ou materialismo eliminativo) acerca da mente (Churchland 1981). Isto é, os fisicistas que aceitam a realidade da mente aceitarão a tese da sobreveniência entre a mente e o corpo (Hellman e Thompson 1975; Horgan 1982; Kim 1984): o caráter psicológico de um organismo ou sistema é inteiramente fixado pela totalidade da sua natureza física. Daqui se segue que quaisquer dois sistemas com estrutura física relevantemente similar exibirão um caráter psicológico idêntico ou similar. Mesmo os emergentistas concedem que quando se replica condições físicas idênticas, o mesmo fenômeno mental irá emergir ou não. A sobreveniência é também um compromisso com o funcionalismo: sistemas em condições físicas idênticas têm supostamente os mesmos poderes causais e irão instanciar as mesmas propriedades funcionais. É um compromisso básico de todas as formas de fisicismo que o mundo é como é porque os fatos físicos do mundo são como são. Isto é, os fatos físicos fixam todos os fatos.

Entre os fatos deste mundo contam-se os fatos causais, incluindo os que envolvem propriedades mentais e outras propriedades de segunda ordem. A tese da sobreveniência implica então que estes fatos causais de segunda ordem são fixados por fatos físicos de primeira ordem, fatos supostamente acerca de relações causais físicas. O mesmo se aplica a leis de segunda ordem: sob a sobreveniência, estas leis fixam-se quando se fixam os fatos físicos básicos, em particular as leis básicas da física. De acordo com a tese da sobreveniência, portanto, as leis da física e as relações causais são fundamentais; elas, e só elas, são em última instância responsáveis pela estrutura causal/nômica do mundo. Mas esta conclusão não se compatibiliza confortavelmente com a afirmação de que as ciências especiais são autônomas relativamente à física básica. Visto que se as leis e relações causais que se verificam no nível físico básico determinam todas relações causais e leis de segunda ordem, devia em princípio ser possível, ou pelo menos assim parece, formular explicações de leis e fenômenos de segunda ordem no interior do domínio físico. Se o mundo funciona como funciona porque o mundo físico funciona como funciona, por que razão não é possível explicar tudo em termos do modo como o mundo físico funciona?

Haverá quem desafie este raciocínio. Argumentarão que X determina Y é uma coisa, mas que X explica ou torna inteligível por que Y ocorre é outra coisa muito diferente. A dor emerge sempre que disparam as fibras-C, e isto pode bem ser uma correlação legiforme. Mas a correlação é “bruta”: não é possível explicar por que razão emerge dor, e não cócegas ou comichão, quando as fibras-C disparam, nem por que razão a dor emerge da excitação das fibras-C mas não de outros tipos de atividade neural. Nem parece que sejamos capazes de explicar por que razão quaisquer estados conscientes deveriam emergir de processos neurais. Assim, para os emergentistas, apesar de todos os fatos de segunda ordem serem determinados por fatos físicos de primeira ordem, os últimos são incapazes de explicar os primeiros. O mundo pode ser fundamentalmente um mundo físico, mas pode perfeitamente incluir fatos fisicamente inexplicáveis.

A questão de o funcionalista poder ou não resistir à pressão reducionista e como o faz não é tão clara. Suponha-se, como quer o funcionalismo, que estar no estado mental M é estar num estado físico ou satisfazer uma certa condição causal D. Parece então que poderíamos facilmente explicar por que uma dada coisa está em M mostrando que está em P e que P satisfaz a especificação causal D — nomeadamente, que P é um realizador de M. E dada a caracterização funcional de M, parece seguir-se que os poderes causais de uma dada instância de M são apenas os poderes causais do seu realizador P nessa ocasião. Assim, se é uma lei da ciência especial que os acontecimentos M causam os acontecimentos M*, isso tem de ser assim porque cada um dos realizadores físicos de M causa um realizador físico de M*. Deste modo, parece que se pode explicar as leis das ciências especiais pela redução em termos de leis que regem os realizadores das propriedades das ciências especiais implicadas.

O termo “materialismo” é muitas vezes usado intersubstituivelmente com “fisicismo”. Contudo, há algumas diferenças sutis entre estes termos, sendo a mais saliente a de que o fisicismo indica um reconhecimento de que algo como a física atual é a derradeira teoria explicativa de todos os fatos, ao passo que o materialismo não está necessariamente ligado ao sucesso da física enquanto teoria explicativa básica do mundo.

Referências
  • Armstrong, D. M. (1968). A Materialist Theory of Mind. New York: Humanities Press.
  • Block, N., and J. A. Fodor. (1972). What psychological states are not. Philosophical Review 81: 159-181.
  • Churchland, P. M. (1981). Eliminative materialism and the propositional attitudes. Journal of Philosophy 78: 68-90.
  • Davidson, D. (1970). Mental events. In L. Foster and J. W. Swanson, Eds., Experience and Theory. Amherst, MA: University of Massachusetts Press, pp. 79-101.
  • Feigl, H. (1958). The “mental” and the “physical.” Minnesota Studies in the Philosophy of Science 2: 370-497.
  • Fodor, J. A. (1974). Special sciences, or the disunity of science as a working hypothesis. Synthese 28: 97-115.
  • Hellman, G., and F. Thompson. (1975). Physicalism: Ontology, determination, and reduction. Journal of Philosophy 72: 551- 564.
  • Horgan, T. (1982). Supervenience and microphysics. Pacific Philosophical Quarterly 63: 29-43.
  • Kim, J. (1984). Concepts of supervenience. Philosophy and Phenomenological Research 45: 153-176.
  • Kim, J. (1992). Multiple realization and the metaphysics of reduction. Philosophy and Phenomenological Research 52: 1-26.
  • Lewis, D. (1972). Psychophysical and theoretical identifications. Australasian Journal of Philosophy 50: 249-258.
  • McLaughlin, B. (1992). The rise and fall of British emergentism. In A. Beckermann, H. Flohr, and J. Kim, Eds., Emergence or Reduction. Berlin: De Gruyter, pp. 49-93.
  • Morgan, C. L. (1923). Emergent Evolution. London: William and Norgate.
  • Putnam, H. (1967). Psychological predicates. In W. H. Capitan and D. D. Merrill, Eds., Art, Mind, and Religion. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, pp. 37-48.
  • Smart, J. J. C. (1959). Sensations and brain processes. Philosophical Review 68: 141-156.
  • Sperry, R. W. (1969). A modified concept of consciousness. Psychological Review 76: 532-536.
Leitura complementar
  • Broad, C. D. (1925). The Mind and Its Place in Nature. London: Routledge and Kegan Paul.
  • Kim, J. (1989). The myth of nonreductive materialism. Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association 63: 31-47.
  • Levine, J. (1983). Materialism and qualia: The explanatory gap. Pacific Philosophical Quarterly 64: 354-361.
  • McLaughlin, B. (1989). Type epiphenomenalism, type dualism, and the causal priority of the physical. Philosophical Perspectives 3: 109-136.
  • Moser, P. K., and J. D. Trout, Eds. (1995). Contemporary Materialism. London: Routledge.
  • Poland, J. (1994). Physicalism. Oxford: Clarendon Press.
  • Rosenthal, D. M., Ed. (1991). The Nature of Mind. New York: Oxford University Press.


Retirado de The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, org. Robert A. Wilson e Frank C. Keil (The MIT Press, Cambridge, Londres, 1999), pp. 645-47.

  • autor: Jaegwon Kim
  • tradução: Vítor Guerreiro
  • fonte: Crítica