Talvez fosse de se esperar que eu começasse pela definição de “filosofia”, mas, certo ou errado, não me proponho a tal. A definição de “filosofia” variará segundo a filosofia que adotarmos; para começar, diremos apenas que há certos problemas, julgados interessantes por certas pessoas, mas que não pertencem, pelo menos até agora, a qualquer uma das ciências especiais. Esses problemas são de molde a levantar dúvidas a respeito do que comumente se entende por conhecimento; e se as dúvidas requerem resposta, esta virá unicamente por meio de um estudo especial, a que denominamos “filosofia”. Portanto, o primeiro passo para definir “filosofia” está na indicação de tais problemas e dúvidas — e será também o primeiro passo no verdadeiro estudo da filosofia. Entre os tradicionais problemas da filosofia, há alguns que não parecem merecer, em minha opinião, tratamento intelectual, por transcenderem nossa capacidade cognitiva; desses problemas não cuidarei. Existem outros, porém, para os quais, embora não seja possível encontrar-se solução definitiva neste momento, pode-se indicar o rumo para uma busca de solução, e o tipo de solução que, em tempo oportuno, venha a se revelar possível.
A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto e, em si mesmo, contraditório. O primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada espécie de conhecimento que será experimental, precisa e autoconsistente. Naturalmente, desejamos atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento: a compreensão. Desejamos que a área de nosso conhecimento seja a mais ampla possível. Isto, no entanto, é mais da competência da ciência que da filosofia. Um homem não vem a ser necessariamente melhor filósofo graças ao conhecimento de maior número de fatos científicos; são os princípios e métodos, e as concepções gerais, que ele deva apreender da ciência, caso a filosofia seja matéria de seu interesse. A missão do filósofo é, a bem dizer, a segunda natureza do fato bruto. A ciência tenta agrupar fatos por meio de leis científicas; estas leis, mais que os fatos originais, são a matéria-prima da filosofia. A filosofia envolve uma crítica — do conhecimento científico — não de um ponto de vista em tudo diferente do da ciência, mas de um ponto de vista menos preocupado com detalhes e mais comprometido com a harmonia do corpo genérico das ciências especiais.
As ciências especiais desenvolveram-se pelo uso de noções derivadas do senso comum, tais como coisas e suas qualidades, espaço, tempo e causalidade. A própria ciência tem demonstrado que nenhuma dessas noções baseadas no senso comum presta-se completamente à explicação do mundo; nenhuma ciência tem atribuição de empreender a necessária reconstrução de fundamentos. Isto deve ser matéria da filosofia. Quero dizer, desde logo, que acredito ser este um empreendimento da maior importância. Acredito que os erros filosóficos nas crenças do bom senso não somente produzem confusão na ciência, como também prejudicam a ética e a política, em instituições sociais, e a conduta de todos na vida diária.
Não faz parte de meu mister, neste volume, apontar os efeitos práticos de uma má filosofia: minha missão será puramente intelectual. Mas, se estou certo, as aventuras intelectuais já empreendidas têm efeitos em muitos rumos que parecem, à primeira vista, bastante remotos em relação ao nosso tema. O efeito de nossas paixões em nossas crenças constitui assunto favorito dos psicólogos modernos; porém o efeito inverso, de nossas crenças sobre nossas paixões, também existe, embora não admitido por uma psicologia intelectualista antiquada. Ainda que eu não pretenda discuti-lo aqui, devemos tê-lo em mente, a fim de convir que nossos debates podem abranger matérias além da esfera ao intelecto puro.
Mencionei há pouco três defeitos das crenças comuns, a saber, que elas são convencidas, incertas e, em si mesmas, contraditórias. É tarefa da filosofia corrigir esses defeitos na medida de suas possibilidades, sem sobrecarregar o conhecimento. Para ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de saber, combinado à grande cautela em acreditar que se sabe; também se deve possuir a acuidade lógica e o hábito do pensamento exato. Tudo isso, claro, é uma questão de grau. A incerteza, em particular, pertence, até certo ponto, ao pensamento humano; podemos reduzi-la indefinidamente, embora jamais possamos aboli-la por completo. Em consequência, a filosofia é uma atividade contínua, e não uma coisa pela qual podemos conseguir a perfeição final, de uma vez por todas. A este respeito, a filosofia tem sofrido por causa de sua associação à teologia. Os dogmas teológicos são fixos e encarados pelos ortodoxos como incapazes de aperfeiçoamento. Filósofos têm sido tentados com frequência a produzir sistemas finais idênticos: não se contentam com aproximações graduais que satisfaçam os homens de ciência. Nisso, eles me parecem enganados. A filosofia deve ser fragmentada e provisória como a ciência; a verdade derradeira pertence aos céus, não a este mundo.
Os três defeitos que mencionei são interligados, e a percepção de um nos leva a reconhecer os outros dois. Ilustrarei os três através de uns poucos exemplos.
Tomemos, em primeiro lugar, a crença em objetos comuns, quais sejam mesas, cadeiras e árvores. Todos nós nos sentimos bastante seguros acerca desses objetos na vida comum, e no entanto nossas razões de confiança são, em verdade, muito inadequadas. O ingênuo senso comum supõe serem eles o que aparentam, embora isto seja impossível, uma vez que não parecem exatamente iguais a dois observadores simultâneos. Pelo menos isso é impossível se o objeto é uma coisa física, a mesma para todos os observadores. Se admitirmos não ser o objeto aquilo que vemos, então já não podemos sentir a mesma segurança quanto à existência de um objeto. Esta é a primeira intromissão da dúvida. No entanto, podemos nos recobrar de imediato do golpe e dizer que, naturalmente, o objeto é “realmente” o que a física diz que ele é(1). Ora, a física diz que uma mesa ou uma cadeira é “realmente” um vasto e incrível sistema de elétrons e prótons em rápida movimentação, com espaços vazios entre si. Tudo isso está muito bem. Mas o físico, como o homem comum, depende de seus sentidos para a existência do mundo físico. Se o abordarmos, solenemente, e dissermos: “Quer ter a bondade de me dizer, como físico, o que é, em realidade, uma cadeira?”, obteremos uma resposta conhecida. Mas se dissermos, sem preâmbulos: “Há uma cadeira aqui?”, ele dirá: “Claro que sim. Não a vê?” A isso, poderemos responder de forma negativa. Poderemos dizer: “Não, eu vejo certas extensões de cor, mas não vejo elétrons e prótons, embora o senhor me garanta que eles formam uma cadeira”. Ele talvez replique: “Sim, mas uma quantidade de elétrons e prótons intimamente unidos assemelha-se a uma extensão de cor”. “Que pretende dizer com ‘assemelha-se’?”, perguntaremos então. Ele tem a resposta pronta, dirá que as ondas de luz partem dos elétrons e prótons (ou, mais provavelmente, são refletidas por eles a partir de uma fonte luminosa), atingem o olho, produzem uma série de efeitos nos bastonetes e cones, no nervo ótico e no cérebro, e finalmente causam uma sensação. Mas ele nunca viu um olho ou um nervo ótico ou um cérebro, da mesma forma que jamais viu uma cadeira: apenas viu extensões de cor que, segundo diz, são o que “se assemelham” aos olhos. Isto é, ele pensa que a sensação que temos ao ver (assim pensamos) uma cadeira envolve uma série de causas, físicas e psicológicas, mas todas elas, por sua própria observação, vinculadas essencialmente e para sempre à experiência externa. Todavia, ele pretende basear sua ciência na observação. É óbvio haver aqui um problema para o lógico, um problema pertencente não à física, mas a outra espécie de estudo. Este é o primeiro exemplo da maneira pela qual a busca de precisão destrói a certeza.
O físico crê inferir os elétrons e prótons do que observa. Mas a inferência nunca está claramente disposta em cadeia lógica, e, se estivesse, não pareceria assaz plausível para garantir muita confiança. Na verdade, a evolução global dos objetos, desde o senso comum aos elétrons e prótons, tem sido governada por certas crenças, raramente conscientes, mas que existem no homem natural. Estas crenças não são inalteráveis, porém crescem e se desenvolvem como uma árvore. Começamos por pensar que uma cadeira é o que aparenta, e que ainda continua no mesmo lugar, quando não a olhamos. Mas descobrimos, mediante pequena reflexão, que estas duas crenças são incompatíveis. Se a cadeira persiste, independentemente de ser vista por nós, então deve ser algo mais que uma mancha de cor o que vemos, porque isso dependerá de condições extrínsecas à cadeira, tais como as diferenças de luz, se estamos de óculos azuis, e assim por diante. Isso força o homem de ciência a considerar a cadeira “real” como causa (ou parte indispensável da causa) de nossas sensações quando vemos a cadeira. Assim estamos comprometidos com a causação como uma crença a priori sem a qual não teríamos razão de supor que existe absolutamente uma cadeira “real”. Ademais, em vista da permanência, nós introduzimos a noção de substância: a cadeira “real” é uma substância, ou coleção de substâncias, possuída de permanência e do poder de provocar sensações. Esta crença metafísica tem afetado, de forma mais ou menos inconsciente, a inferência de sensações para elétrons e prótons. O filósofo deve trazer tais crenças à luz do dia, e ver se ainda sobrevivem. Muitas vezes descobrirá que elas morrem quando expostas.
Passemos agora a outro ponto. A evidência de uma lei física, ou de qualquer lei científica, envolve sempre memória e testemunho. Temos de confiar no que nos lembramos ter observado em ocasiões anteriores, e no que os outros dizem ter observado. Nos primórdios da ciência talvez fosse possível dispensar, às vezes, o testemunho; não tardaria muito, porém, e todas as investigações científicas começariam a ser construídas sobre resultados previamente checados, e a dependerem, por conseguinte, do que outros haviam registrado. De fato, sem a corroboração do testemunho dificilmente teríamos maior confiança na existência de objetos físicos. Às vezes pessoas sofrem alucinações, isto é, julgam perceber objetos físicos, mas não são confirmadas, nessa crença, pelo testemunho de outras. Em tais casos, decidimos que elas estão enganadas. É a similaridade entre as percepções de pessoas diferentes em situações idênticas que nos torna confiantes quanto à causação externa de nossas percepções; quanto a isso, quaisquer crenças ingênuas que tenhamos em objetos físicos dissiparam-se há muito tempo. Em consequência, memória e testemunho são essenciais à ciência. Todavia, cada um deles está aberto à crítica do cético. Ainda que possamos, mais ou menos, desfazer sua crítica, ficaremos, se formos racionais, com uma confiança menos completa em nossas crenças originais do que antes tínhamos. Uma vez mais, ficaremos menos convencidos à medida que nos aproximamos da exatidão.
Memória e testemunho nos levam à esfera da psicologia. Eu não os discutiria, a essa altura, além do ponto em que se tornou claro que eles constituem legítimos problemas filosóficos a serem resolvidos. Começarei pela memória.
Memória é uma palavra com vários significados. No momento refiro-me à recordação de ocorrências passadas. Isto é tão notoriamente falível que todo o experimentador faz um registro do resultado de seu experimento no instante mais imediato possível: julga que a inferência entre palavras escritas e acontecimentos passados tem menor probabilidade de conter engano do que as crenças diretas que constituem a memória. No entanto, uma fração de tempo, embora talvez inferior a poucos segundos, decorrerá entre a observação e o registro, a menos que o registro seja tão fragmentário que a memória se faça necessária para interpretá-lo. Assim, não escapamos à necessidade de confiar, até certo ponto, na memória. Além disso, sem memória não pensaríamos em interpretar registros aplicados ao passado, porque não saberíamos da existência de um passado. Deixando de lado os argumentos destinados a provar a falibilidade da memória, há uma consideração embaraçosa que o cético poderá opor. Já que a recordação, como foi visto, não é possível — dirá ele ela prova, então, que a coisa lembrada ocorreu em outro tempo, porque o mundo pode ter emergido cinco minutos atrás, exatamente como ele foi, cheio de atos de recordação que eram inteiramente ilusórios. Oponentes de Darwin, tais como o pai de Edmund Gosse, levantaram argumento bem parecido contra a evolução. O mundo, disseram, foi criado em 4004 a.C., com fósseis introduzidos para tentar nossa fé. O mundo foi criado de repente, mas de tal maneira como se fruto de longa evolução. Não há impossibilidade lógica a esta opinião. E, igualmente, não há impossibilidade lógica à opinião segundo a qual o mundo foi criado cinco minutos atrás, cheio de memórias e registros. Talvez pareça uma hipótese improvável, mas não refutável logicamente.
Além desse argumento, que seria considerado fantástico, há motivos de sobra para a relativa desconfiança na memória. É óbvio que a confirmação direta de uma crença sobre uma ocorrência passada não é possível, porque não temos acesso ao passado. Podemos encontrar confirmação de uma espécie indireta nas revelações de terceiros nos arquivos contemporâneos. Estes, conforme vimos, envolvem certo grau de memória, mas talvez envolvam muito pouco; por exemplo, quando o relato, em primeira mão, de uma conversa ou discurso foi feito na ocasião. Mesmo assim, não escapamos inteiramente à necessidade de estender a memória a um espaço mais longo de tempo. Suponhamos uma conversa de todo imaginária, com algum propósito criminoso; dependeríamos, então, das memórias de testemunhas, a fim de estabelecer seu caráter fictício num tribunal. E a memória que abrange longo período de tempo está muito propensa a erro, segundo demonstrado pelos equívocos invariavelmente descobertos em autobiografias. Quem reler cartas que escreveu muitos anos atrás verificará a maneira como sua memória falsificou acontecimentos pretéritos. Por estes motivos, o fato de não podermos nos libertar da dependência da memória para construir o conhecimento é, prima facie, uma razão para considerar o que chamamos de conhecimento como algo incerto. O tema genérico da memória será considerado mais cuidadosamente em capítulos subsequentes.
O testemunho levanta problemas ainda mais embaraçosos, principalmente por ele participar da formação de nosso conhecimento de física, e, inversamente, a física ser convocada a estabelecer a veracidade dele. Além disso, o testemunho denuncia todos os problemas ligados à relação do espírito com a matéria. Alguns filósofos eminentes, como Leibniz, construíram sistemas segundo os quais não haveria testemunho, e no entanto aceitaram como verdadeiras muitas coisas que não poderiam ser conhecidas sem ele. Não creio que a filosofia tenha feito justiça a este problema, porém umas poucas palavras bastarão, segundo penso, para mostrar sua gravidade.
Para nossos objetivos, podemos definir por testemunho os ruídos que se ouvem, ou formas que se veem, análogos aos que faríamos se desejássemos transmitir uma afirmação, e que o ouvinte ou observador acredita serem causados pelo desejo de outra pessoa de transmitir uma afirmação. Vamos a um exemplo concreto: pergunto o caminho a um policial e ele diz: “Quarta à direita, terceira à esquerda”. Melhor dizendo, eu ouço esses sons, e talvez veja o que interpreto como o movimento de seus lábios. Concluo que ele tem uma inteligência mais ou menos igual à minha, e que emitiu aqueles sons com a mesma intenção que eu os teria emitido, isto é, para dar uma informação. Na vida ordinária, isso não constitui, em qualquer sentido adequado, uma inferência; é uma crença que assoma em nós na ocasião apropriada. Mas, se desafiados, temos de substituir a inferência pela crença espontânea, e quanto mais examinada, mais a inferência se mostra incerta.
A inferência a ser feita tem duas etapas, uma física e uma psicológica. A inferência física é do gênero que consideramos anteriormente, no qual passamos de uma sensação para uma ocorrência física. Ouvimos ruídos e pensamos que eles procedem do corpo do policial. Vemos formas movendo-se, e as interpretamos como sendo os movimentos físicos de seus lábios. Esta inferência, como já vimos, é em parte justificada pelo testemunho; contudo, verificamos agora que ela terá de ser feita antes que tenhamos razões para crer na existência de algo como o testemunho. E essa inferência, às vezes, está errada. Loucos ouvem vozes que ninguém mais escuta; em vez de criar-lhes uma audição anormalmente aguda, nós os prendemos em asilos. Mas se nós mesmos, ocasionalmente, ouvimos frases que não procedem de um corpo, por que não se daria, então, o mesmo caso? Talvez nossa imaginação tenha conjurado todas as coisas que pensamos ouvir dos outros. Isto, porém, é parte do problema geral de inferir objetos físicos de sensações, o qual, difícil como pareça, não constitui a parte mais difícil dos enigmas lógicos relativos ao testemunho. A mais difícil é a inferência do corpo do policial para sua mente. Não pretendo insultar os policiais; diria o mesmo dos políticos, e até dos filósofos.
A inferência da mente do policial certamente pode estar errada. Está claro que um fabricante de objetos de cera seria capaz de fazer um boneco quase idêntico a um policial de carne e osso, e dentro pôr um gramofone que o habilitaria, periodicamente, a informar os visitantes de uma feira onde monta guarda sobre o caminho até a seção mais interessante. Os visitantes teriam a mesma evidência deste estar vivo que encontrariam diante de outros policiais. Descartes acreditava que os animais não têm espírito, não passando de complicados autômatos. Os materialistas do século XVIII estenderam esta doutrina aos homens. Mas não estou preocupado agora com o materialismo; meu problema é bem diferente. Até um materialista deve admitir que, quando fala, pretende transmitir alguma coisa, isto é, usa palavras como signos, não como simples ruídos. Talvez seja difícil decidir exatamente o que está contido nesta declaração, mas é claro que ela significa algo, e que isso constitui as observações de uma pessoa. A questão é: estamos certos da realidade das observações que ouvimos, bem como das que fazemos? Ou as observações que ouvimos talvez não passem de outros tantos ruídos, meros distúrbios do ar, sem significação? O principal argumento contra isto é a analogia: as observações que ouvimos são tão iguais às que fazemos que julgamos terem elas causas similares. Mas embora não possamos prescindir da analogia como forma de inferência, ela não é, de maneira alguma, demonstrativa, e não raramente nos extravia. Mais uma vez, portanto, ficamos com uma razão prima facie de incerteza e dúvida.
A questão sobre o que queremos exprimir quando falamos me leva a outro problema, o da introspecção. Muitos filósofos sustentam que a introspecção tornou o conhecimento mais indubitável; outros afirmam não existir o que se chama introspecção. Descartes, depois de tentar duvidar de tudo, chegou a esta conclusão: “Penso, logo existo”, como base para o conhecimento restante. O behaviourista Dr. John B. Watson diz, ao contrário, que não pensamos, mas apenas falamos. Dr. Watson, na vida real, dá tantas provas de pensar como qualquer outro; portanto, se ele não está convencido que pensa, estamos todos em maus lençóis. De qualquer modo, a mera existência de uma opinião como esta, da parte de um filósofo competente deve bastar para mostrar que a introspecção não é tão certa quanto alguns pensam. Examinemos, porém, a questão um pouco mais de perto.
A diferença entre introspecção e o que chamamos percepção de objetos externos parece-me ligada, não com o que é fundamental em nosso conhecimento, mas com o que é inferido. Pensamos, de uma feita, estar vendo uma cadeira; de outra feita, pensamos acerca de filosofia. Ao primeiro caso, chamamos percepção de um objeto externo; ao segundo, chamamos introspecção. Nesse ponto já encontramos motivo para duvidar da percepção externa, no sentido vigoroso em que o senso comum a admite. Examinarei mais adiante o que há de indubitável e de primitivo na percepção; por enquanto, anteciparei minhas conclusões dizendo que o indubitável quando se “vê uma cadeira” é a ocorrência de um certo esquema de cores. Mas essa ocorrência, segundo verificamos, está vinculada tanto a mim quanto à cadeira; ninguém, a não ser eu mesmo, pode ver exatamente o modelo que vejo. Existe, portanto, algo de subjetivo e particular no que entendemos por percepção externa, mas isto é disfarçado pelas precárias extensões no mundo físico. Penso que a introspecção, ao contrário, envolve extensões precárias no mundo mental: despojada dessas extensões, ela não difere muito da percepção externa despojada de seus desdobramentos. Para esclarecer melhor, tentarei mostrar o que sabemos estar ocorrendo quando, conforme foi dito, pensamos em filosofia.
Suponha que, em consequência da introspecção, você chega a uma crença expressa em palavras: “Agora acredito que o espírito é diferente da matéria”. O que você sabe, afora as inferências, nesse caso? Primeiro de tudo, deve eliminar a palavra “Eu”: a pessoa que acredita é uma inferência, não é parte do que você pensa de imediato. Em segundo lugar, deve ter cuidado com a palavra “acredito”. Não estou preocupado com o que esta palavra significaria em lógica ou teoria do conhecimento; estou preocupado com o que pode significar quando usada para descrever uma experiência direta. Em semelhante caso, parece que ela só pode descrever um certo gênero de impressão. E quanto à declaração de que pensa que acredita, ou seja, “o espírito é diferente da matéria”, é muito difícil dizer o que na verdade ocorre quando você pensa acreditar nisso. Talvez sejam meras palavras, pronunciadas, visualizadas e ouvidas, ou imagens motoras. Talvez sejam imagens do que as palavras “significam”, mas, nesse caso, não seria absolutamente uma representação exata do conteúdo lógico da declaração. Você pode ter a imagem de uma estátua de Newton “viajando por estranhos mares só de pensamento”, e outra imagem de uma pedra rolando pela encosta, combinada com as palavras “como é diferente!” Ou poderá pensar na diferença entre preparar uma conferência e comer seu jantar. Somente quando se chega a exprimir o pensamento em palavras é que ocorre a aproximação com a exatidão lógica.
Na introspecção e também na percepção externa, tentamos exprimir o que sabemos em palavras.
Chegamos aqui, como na questão do testemunho, ao aspecto social do conhecimento. O objetivo das palavras é dar ao pensamento o mesmo gênero de publicidade reclamado pelos objetos físicos. Numerosas pessoas podem ouvir uma palavra falada ou ver uma palavra escrita, porque ambas são ocorrências físicas. Se eu lhe digo “o espírito é diferente da matéria”, haveria apenas leve semelhança entre o pensamento que tento exprimir e o pensamento despertado em você, mas esses dois pensamentos têm apenas isto em comum: poderem ser expressos pelas mesmas palavras. Igualmente, haverá grandes diferenças entre o que você e eu vemos quando, por exemplo, olhamos a mesma cadeira; todavia, ambos podem exprimir nossas percepções pelas mesmas palavras.
Um pensamento e uma percepção não são, por conseguinte, muito diferentes em sua própria natureza. Se a física está correta, eles divergem em suas correlações: quando vejo uma cadeira, outros têm percepções mais ou menos idênticas, e acredita-se que estas percepções estão associadas às ondas de luz provenientes da cadeira, enquanto que, quando eu formulo um pensamento, outros talvez não estejam pensando em algo idêntico. Mas isso se aplica também a uma sensação de dor de dente, o que normalmente não seria considerado um caso de introspecção. Em resumo, portanto, parece não haver razão para considerarmos a introspecção um gênero diferente de conhecimento em relação à percepção externa. Mas a questão voltará a ocupar-nos outra vez em etapa posterior deste livro.
Quanto à veracidade da introspecção, há novamente um completo paralelismo com o caso da percepção externa. O dado verdadeiro, em cada caso, é impecável, mas as extensões que fazemos instintivamente são questionáveis. Em vez de dizer “Acredito que o espírito é diferente da matéria”, você deveria dizer: “Certas imagens se processam com uma certa relação mútua, acompanhadas de um certo sentimento”. Não existem palavras para descrever a verdadeira ocorrência em toda a sua particularidade; todas as palavras, inclusive os substantivos adequados, são genéricas, com a possível exceção de “isto” que é ambíguo. Quando você traduz a ocorrência em palavras, está fazendo generalizações e inferências, da mesma forma que quando você diz “existe uma cadeira”. Não há, em verdade, diferença vital entre os dois casos. Em cada caso, é inexprimível o que viria a ser realmente um dado, e o que se pode pôr em palavras envolve inferências que estariam erradas.
Quando digo que há “inferências” envolvidas, estou dizendo uma coisa não suficientemente precisa, a menos que fosse cuidadosamente interpretada. Ao “ver uma cadeira”, por exemplo, não apreendemos logo um esquema colorido, para em seguida inferirmos uma cadeira: a crença na cadeira surge espontaneamente ao vermos o esquema colorido. Mas esta crença tem causas não só no estímulo físico presente, mas também, em parte, na experiência passada, e em parte nos reflexos. Nos animais, os reflexos desempenham parte considerável; nos seres humanos, a experiência é mais importante. A criança aprende devagar a correlacionar tato e visão, e a esperar que os outros vejam o que ela vê. Os hábitos que, em consequência, não formamos tornam-se essenciais à nossa noção adulta de um objeto igual a uma cadeira. A percepção de uma cadeira por intermédio da vista tem um estímulo físico que afeta só diretamente a visão, mas que estima ideias de solidez e assim por diante, na experiência inicial. A inferência poderia chamar-se “fisiológica”. Uma inferência de tal natureza é prova de correlações passadas, por exemplo, entre tato e visão, mas podem estar equivocadas neste caso. Pode-se, para citar um exemplo, errar um reflexo num grande espelho para outra sala. Da mesma forma, cometemos em sonhos erros de inferência fisiológica. Não podemos, por conseguinte, ter certeza a respeito de coisas que, neste sentido, são inferidas, porque, ao tentarmos aceitar o maior número possível delas, estamos, por outro lado, compelidos a rejeitar algumas devido à autoconsistência.
Chegamos um momento atrás ao que chamei “inferência fisiológica” como ingrediente essencial na noção do senso comum de um objeto físico. A inferência fisiológica, em sua forma mais simples, significa isto: dado um estímulo S, para o qual, mediante um reflexo, reagimos por um movimento corporal R, e um estímulo S’ como uma reação R’, se os dois estímulos são frequentemente experimentados em conjunto, S produzirá, com o tempo, R'(2). O que vale dizer, o corpo agirá como se S’ estivesse presente. A inferência fisiológica é importante na teoria do conhecimento, e terei observações a acrescentar mais adiante. Por enquanto, mencionei-a parcialmente para evitar que ela fosse confundida com a inferência lógica, e também a fim de introduzir o problema da indução, sobre a qual devemos dizer algumas palavras preliminares nesta fase de nossa exposição.
A indução propõe talvez o mais difícil problema em toda a teoria do conhecimento. Toda lei científica é estabelecida por seu intermédio, e no entanto é difícil ver porque a julgaríamos um processo lógico válido. A indução, em seu fundamento, consiste do seguinte argumento: já que A e B têm sido encontrados juntos muitas vezes, e jamais separados, quando A for encontrado outra vez, B provavelmente o será também. Isto ocorre, primeiro, como “inferência fisiológica”, e como tal é praticado por animais. Quando começamos a refletir, nós nos descobrimos a fazer induções no sentido fisiológico; por exemplo, à espera de que o alimento que vemos possua um certo gosto. Com frequência: só nos damos conta dessa expectativa quando ela nos desaponta, isto é, se provamos sal julgando ser açúcar. Ao abraçar a ciência, a humanidade tentou formular princípios lógicos justificadores desse gênero de inferência. Discutirei tais tentativas em capítulos posteriores; agora, direi apenas que elas me parecem assaz infrutíferas. Estou convencido de que a indução deve ter alguma validade, até certo grau, mas o problema de mostrar como ou por que ela pode ser válida continua insolúvel. Enquanto isso não for resolvido, o homem racional duvidará se o alimento o nutrirá, e se o Sol se erguerá amanhã. Não sou um homem racional nesse sentido, mas, neste momento, pretenderia ser. E mesmo que não possamos ser completamente racionais, faríamos o possível, sem dúvida alguma, para sermos mais racionais do que somos. Na pior das hipóteses seria uma aventura interessante ver até onde a razão nos conduzirá.
Nenhum dos problemas que levantamos são novos, bastam para indicar que nossas opiniões cotidianas sobre o mundo e nossas relações com ele são insatisfatórias. Estivemos a indagar se conhecemos isto ou aquilo, mas ainda não perguntamos o que é “conhecer”. Talvez descobríssemos ter ideias erradas a respeito do conhecimento, e que nossas dificuldades crescem menos quando dispomos, neste particular, de ideias mais corretas. Penso que deveríamos iniciar nossa jornada filosófica pela tentativa de compreender o conhecimento como parte da relação do homem com sua ambiência, esquecendo, por enquanto, as dúvidas fundamentais que estivemos a considerar. Talvez a ciência moderna nos capacite a ver problemas filosóficos sob uma nova luz. Nessa esperança, vamos examinar a relação do homem com o seu meio, com o intuito de chegar a uma visão cientifica do que constitui o conhecimento.
Notas
- Não estou pensando, aqui, na física elementar a ser encontrada num compêndio escolar. Penso na moderna física teórica, mais particularmente em relação à estrutura do átomo, sobre a qual terei outras coisas a dizer em capítulos posteriores.
- Por exemplo, se você ouve um ruído agudo e vê, simultaneamente, uma luz brilhante, com o tempo o ruído sem a luz contrairá, suas pupilas.