Pela terrível conotação que o termo adquiriu, dogma nos remete imediatamente a algo negativo. Sem a menor das dúvidas, apontamos alguém irredutível, indisposto a mudar de opinião como dogmático. O termo vem do grego δόγμα [1], que, por sua vez, deriva do verbo δοκέω, equivalente a crer ou pensar, mas a palavra representa, literalmente, o que parece bom. O adjetivo dogmático, no entanto, deriva sua má reputação desde o uso primário: δογματικός era como uma pessoa atrelada a outras doutrinas que não a dos céticos (σκεπτικός) era chamada por eles. Diferente da maioria das acepções atuais, cético, aqui, diz respeito à filiação à escola de Pirro de Élis, ou seja, à doutrina da dúvida absoluta e universal. Com tais termos em mente, não fica difícil concluir que, para quem duvida de tudo, filiar-se a uma corrente de pensamento específica, que não compartilha dessa premissa, só pode ser interpretado como algo negativo. Mas, em nosso sentido atual, ser dogmático ou ter dogmas é realmente um traço que podemos expurgar?
Comecemos por um simples jogo de significados: se duvidar de tudo é nossa doutrina, então podemos dizer que duvidar de tudo é nosso dogma. Por causa dos limites dos conceitos, mesmo se duvidarmos de nossa doutrina de dúvida, estaríamos consequentemente seguindo a doutrina. Naturalmente, não se busca tirar a credibilidade da dúvida, enquanto ferramenta de análise e validação de hipóteses, com um exercício linguístico tão simples, mas não podemos deixar de nos apercebermos da fragilidade que termos conceituais absolutos podem nos proporcionar. Assim, seremos dogmáticos se seguirmos qualquer doutrina que não a cética pirrônica, mas seremos, de igual modo, dogmáticos — em um sentido mais especial, é claro — se a seguirmos. Disso não se tira a impossibilidade de não sermos dogmáticos, mas nos mostra como é impraticável nos pautarmos nesses conceitos superficiais — principalmente se acharmos que, com eles, temos qualquer tipo de vantagem em matérias de coerência interna.
Saindo desse tipo de análise puramente semântica — tão comum em épocas nas quais a filosofia esteve estritamente ligada à linguagem —, podemos encontrar outras formas mais pragmáticas de encarar o assunto. Podemos nos perguntar, por exemplo, sobre a genealogia de um dogma em particular, ou, tentando encontrar traços mais gerais que os permeiam, sobre a necessidade ou não de dogmas para conduzir nossas vidas, ou seja: que tipo de utilidade os dogmas nos oferecem, que tipo de lacuna eles preenchem. Para tanto, é claro, devemos entender dogma no sentido mais amplo possível, na forma basilar de posicionamentos ou de atitudes das quais dificilmente abriremos mão, mesmo com bons argumentos ou com evidências massivas apontando em contrário. Em outras palavras, devemos ter em mente aquele bloco de nossa personalidade que não dispomos para discussão, sobre o qual não aceitamos sequer deliberar.
Será mais fácil se partirmos de um exemplo. Estamos sós com nossos pensamentos e, depois de vaguearmos a esmo por uma infinidade de assuntos, chegamos a um que nos prende a atenção, por julgarmos importante ter uma resposta satisfatória para ele: como devemos nos comportar na presença daqueles que são mais velhos ou que estão em uma camada superior de hierarquia? Como devemos proceder à comunicação? Devemos ser mais recatados ou mais espontâneos? Devemos agir com formalidades ou tratá-los como tratamos a nossos amigos mais íntimos? Que tom de voz devemos usar? Devemos encarar-lhes ou seria melhor desviar o olhar? E quanto às roupas: devemos nos vestir bem ou dar preferência a modelos mais confortáveis? Como se pode imaginar, as perguntas podem se estender indefinidamente. E precisamos, mais do que multiplicá-las, entender como nos comportarmos de acordo com as configurações externas a nós, sejam elas puramente físicas ou sociais.
Para respondê-las da forma mais precisa possível, o passo mais usual seria lembrar-nos de como agimos em situações anteriores e avaliarmos a reação que causamos. Se tivermos agido como era esperado, lembraremos de pouca coisa senão elogios ao nosso comportamento; por outro lado, teremos más lembranças das reprimendas que sofremos por algo que foi considerado inadequado para a situação. Para termos o maior número de dados relevantes, recordamos nossa relação com nossos pais e outros familiares mais velhos, bem como de nossa interação com os primeiros professores, contando que deram boa ênfase à nossa formação social, além do conteúdo educacional programático. Analisando esses exemplos, parece haver um consenso de que a forma mais aceitável —entenda-se por isso aquela que gerou as lembranças mais agradáveis — é aquela que observa melhor as regras básicas de educação e de respeito.
Agora que temos em mãos o protocolo a ser seguido, já saberemos o que fazer se tivermos por objetivo receber o máximo de elogios e o mínimo de reprimendas: devemos ser sempre educados e reservados, tanto quanto possível. Essa máxima passa a ser o guia para as nossas interações e a resolução ganha cada vez mais força, proporcionalmente ao número de reações positivas que recebemos. Em resumo, crescemos com isso em mente e não tivemos grandes razões retiradas da experiência para questionar o seu âmago, pois é algo que nos rendeu muitos bons frutos, desde o momento em que decidimos racionalmente adotar uma postura estável. Mas continuemos com o exercício mental.
Pulando um pouco na linha de tempo, terminamos a faculdade e a nossa medida de sucesso continuou nos oferecendo ótimos resultados. Agora, só nos resta encontrar um bom emprego e certamente seguir aplicando o que se mostrou satisfatório. Dessa forma, teremos sucesso financeiro e gozaremos de bom prestígio profissional na área em que escolhemos para dedicarmos o restante de nossas vidas. Contudo, algo não parece estar bem: nosso novo chefe não costuma simpatizar com toda a nossa formalidade, preferindo que o tratemos da forma mais espontânea possível. E não é só: exige que abandonemos o comportamento que, para ele, soa pedante, hipócrita e arrogante. Não obstante nossas alegações de que tudo era natural à nossa personalidade, os atritos entre nós só aumentam, tornando a relação que devia ser prazerosa e fluente em algo áspero e agonizante. O que devemos fazer?
Parece haver um choque entre obedecer à hierarquia externa que nosso chefe representa e seguir o nosso próprio comando interno. Se nos lembrarmos bem, reconheceremos que só agimos assim, em primeiro lugar, em uma tentativa de agradar àqueles de quem dependemos, direta ou indiretamente. Se tivermos esse princípio bem claro em nossas mentes, o conselho para nos readaptarmos não soará tão insensato. Por outro lado, nosso comportamento está conosco há tanto tempo que já se tornou — talvez inconscientemente — parte de nossa personalidade. Nossa conexão sentimental com ele é tão grande que largá-lo agora não parece ser uma opção válida, pois já não sabemos distinguir até que ponto somos o que escolhemos ser, ou até onde podemos escolher sobre a provável mudança. Sendo esse o caso, como resposta, recrudesceremos nossa posição e nos recusaremos peremptoriamente a ceder ao que pensamos ser caprichos de nosso chefe — mas nunca nossos.
Não é um belo exemplo de uma atitude dogmática? No entanto, poderíamos, se tivéssemos que nos posicionar, discernir claramente a linha que separa o que é razoável do que não é? Com boa empatia, podemos nos lembrar de situações análogas nas quais pesaram para nós, ora os argumentos a favor da manutenção do que julgamos ser nossa personalidade, ora aqueles outros que apontavam para a mudança e a adaptação como a melhor forma de ação. Por pura tendenciosidade, certamente apoiaremos as escolhas que refletem os nossos argumentos, mas não colocaremos em questão aqui qual dos dois lados está certo, por tratar-se, para todos os efeitos, de uma discussão literalmente inócua. Muito mais lucrativo parece ser entender como se deu a formação desse nosso dogma.
Assim como em nosso exemplo, dogmas nascem, de uma forma geral, da repetição de atitudes cujo raciocínio que as legitima já se perdeu — e essa perda é muitas vezes significativa, pois é o que delimita o tanto de parcialidade envolvida. Eles são uma resposta simplificada para aqueles questionamentos reiterados que norteiam nossas vidas e que dão indícios para o modo como devemos nos comportar. Podem ter uma boa base racional e até guardar certa relação causal nas situações que os originaram, mas sua generalização imprópria faz com que percam todo o poder explanatório que possuem, em favor de um simbolismo superficial. Em nosso exemplo, saímos de a experiência nos mostra que recebemos melhores reações quando agimos educadamente para devemos sempre agir educadamente, não importa a reação.
Contudo, fora de contexto, não podemos atacar a segunda máxima. A sua negação absoluta vai de encontro aos princípios de boa convivência e parece ser um dogma social que se sustenta pelos benefícios resultantes que podemos imaginar, caso fosse efetivamente posto em prática. Em contraste, não seria difícil supor como seria catastrófico viver em uma sociedade na qual os indivíduos têm por hábito ser desrespeitosos. No mínimo, seria muito constrangedor trocar cumprimentos, como bem o é, quando não nos retornam os bons votos. Mas isso não quer necessariamente dizer que toda pessoa mais velha gosta de ser chamada de senhor ou de senhora — só para citar a forma mais comum de cortesia. De fato, muitas pessoas sentem-se ofendidas se usarmos tais epítetos, talvez por lembrar-lhes de maneira indesejada sobre sua idade.
É dessa reiteração de comportamentos socialmente desejáveis in absoluto, representados por regras gerais, muitas vezes simplórias, que surgem os principais dogmas morais. Dificilmente negaríamos o seu poder normativo, e questioná-los abertamente só nos renderia um atestado de pária — possivelmente acompanhado de fortes sanções sociais. Para todos os que duvidam de nosso potencial segregativo, basta que tentemos defender uma posição controvertida que encontre oposição na maioria estabelecida. Digamos, para fins de ilustração, que alguém proponha o fim da proibição de circulação e venda de certa substância atualmente considerada ilícita. A depender do círculo no qual estivermos inseridos, podemos nos preparar para, no mínimo, ouvirmos ofensas variáveis em agressividade, tomando cuidado com nossa integridade física, muito provavelmente ameaçada.
Mesmo assim, podemos imaginar duas turbas bem definidas: a daqueles que são a favor e a dos que são contra. Não será difícil compor uma situação em que o número absoluto das duas correntes se equipare, ou outra em que certa margem venha a mudar de opinião, pesando um dos pratos para tal ou qual lado. Temos vários exemplos atuais assim, em questões que apontam, não só para a legalização de substâncias psicotrópicas, mas também para questões de matrimônio e de família menos convencionais, ou de provimento jurídico às formas de vida que destoam do senso-comum de “vida humana”, como o óvulo fecundado em processo de nidação ou o paciente em coma considerado irreversível. Se perguntarmos o que devemos fazer nessas situações, será comum obtermos respostas igualmente bem fundamentadas para qualquer dos lados. Para evitar discussões indefinidamente prolongadas, usemos, então, uma pergunta mais clara e direta: devemos matar?
Enfrentemos a situação mais ou menos profetizada: se dissermos que não devemos matar, passaremos como pessoas sãs e bem equilibradas. Se, ao menos por um momento, dissermos que podemos relativizar esse dogma, seremos execrados e comparados a trogloditas que acreditam no poder de resolução da força bruta e da vingança pessoal. Mas, então, adicionamos uma variável: em caso de injusta agressão e possibilidade real de perdermos a nossa própria vida, devemos matar? Se ainda disséssemos que não, provavelmente riríamos ao imaginar uma situação na qual um indivíduo revela suas solenes convicções sobre abster-se do apelo irracional ao assassinato pela simples incapacidade de convivência pacífica, enquanto o seu discurso é interrompido por uma bala que lhe atravessa o crânio, pouco acima do zigoma.
Concluímos, disso tudo, que não matar é a coisa certa a se fazer, na maioria dos casos; e que matar é a coisa certa a se fazer, quando a nossa própria vida ou a daqueles a quem julgarmos inocentes esteja em perigo real. Posto dessa forma, a ideia central que fica é a de que o que realmente buscamos é fazer a coisa certa, e que matar ou não matar são personificações desse dogma maior, supostamente mais fundamental para um objetivo que não entendemos bem qual é — mas que pode ser identificado como um sentido para as nossas vidas. Com base nesse pressuposto, podemos estabelecer valores que serão sobrepostos ou denegados, a depender da situação. Como, por exemplo, devemos não mentir, mas devemos mentir se isso for um meio para que evitemos uma agressão a um bem de mais alta consideração, como no caso de mentir para o marido traído sobre o paradeiro de sua esposa, quando o encontramos armado e completamente dominado por sua ira.
Adicionamos, portanto, mais um exemplo hipotético ao nosso rol de ações frente a acontecimentos potenciais. E, como era de se esperar, acabaremos por simplificar o modelo para que possamos nos lembrar facilmente da ação padrão em situações semelhantes. O principal problema agora é que, dada a nossa limitação mnemônica, seria impraticável memorizar todos os detalhes. Digamos, para fins ilustrativos, que o comando, depois de várias simplificações, se tornou devemos mentir para maridos traídos. Esse, daí em diante, será o nosso dogma específico e provavelmente nos orientará a esconder a verdade, mesmo que a situação que o gerou não se repita, como quando o marido esteja simplesmente nos contando sobre suas suspeitas e não pareça propenso a atitudes violentas ou homicidas.
Nesse caso, por mais que não possamos prever a cólera que poderia ou não se instalar em nosso hipotético marido, podemos, mesmo assim, imaginar o pior dos cenários e concluirmos que mentir ainda é a melhor opção, por via das dúvidas. Contudo, consideremos outra situação com detalhes diferentes: o marido já descobrira que sua mulher o traía, bem como já sabe quem é o seu amante, já falou com os dois, aceitou a situação amigavelmente e programou com sua esposa a melhor forma de darem continuidade a suas vidas. Agora, nossa opção sobre mentir ou não mentir dependerá exclusivamente do quão arraigado está o dogma em nossas mentes. Se soubermos separar bem a situação originária dessa que agora enfrentamos, não teremos problema em consolar o marido com um ombro amigo, dispensando-lhe algumas palavras de conforto. Como também, se não soubermos discernir sobre a adequação e a necessidade da mentira, continuaremos a negar os fatos e a dizer que sua esposa é completamente fiel, defendendo sua honra com a mais vociferante convicção.
Apesar de não se sustentar nessas situações limítrofes, o que temos de entender é que o dogma funciona, na maior parte dos casos. Mesmo que tenha perdido todo o sentido originário de ser, em algum momento de sua existência, ele precisa ter funcionado — é claro, entenda-se “funcionar” como oferecer algum tipo de recompensa, ou, no mínimo, que os prejuízos não sejam maiores do que a satisfação gerada. Não funcionasse, dificilmente seria mantido e transmitido como verdadeiro. Ele é, até onde conseguimos enxergar, apenas uma simplificação de uma conclusão que se mostrou útil, mas que tomaria muito tempo para demonstrar a cada vez que fosse requisitada. É assim que costumamos aprender, na maior parte dos casos: partimos de uma regra geral que supostamente se aplica a tudo e, ao nos depararmos com situações que invalidam nossa regra, simplesmente as adicionamos ao rol de exceções às quais ela não se aplica.
No entanto, há outras formas de construir dogmas, e são nestas formas que primeiro pensamos quando o assunto surge. Dentre elas, podemos destacar os dogmas advindos do respeito puro e simples à autoridade. Não se trata, é certo, de simplesmente reconhecer a autoridade de alguém mais capacitado em determinado assunto, mas de aceitar acriticamente o que a autoridade tem a dizer, principalmente quando a alegação não diz respeito à sua área de especialidade, ou vem acompanhada de explicações duvidosas, quando as há. É assim porque me disseram que era assim. E já estão lá todos os principais aspectos de um posicionamento dogmático: indiscutível, desarrazoado e defendido apaixonadamente.
Esses, diferentemente daqueles que discutimos antes, são dogmas externos, impostos de forma heterônoma. Não são comportamentos ou opiniões que decidimos racionalmente ter e que, só depois, perderam a maleabilidade. São imposições socioculturais que, dada a falta de opções — principalmente devido ao fato de não podermos pensar em tudo a fundo antes de agirmos —, julgamos por verdadeiras de forma absoluta. Não precisam sequer de coerção, pois, na maioria dos casos, são assimilados por exposição contínua. Quando questionamos aqueles que são custosos seguir, recebemos um porque sim! como resposta. Nem sempre será assim — para fazer jus àquelas pessoas que tentam explicá-los de forma inteligível —, mas chegaremos invariavelmente ao mesmo desfecho se continuarmos questionando as primeiras explicações dadas. E isso acontece por dois motivos principais: ou não sabemos explicar de forma racional e satisfatória o dogma, ou não existe, no fim das contas, racionalidade suficiente por trás dele.
Nesse sentido, o dogma não passa de um cala-boca, de um subterfúgio na força para algo que queremos passar adiante, provavelmente porque nos foi passado da mesma forma. Podemos pensar em vários exemplos práticos, mas nenhum superaria o caso dos dogmas religiosos. Em primeiro lugar, devemos fazer uma ressalva: nem todos os dogmas religiosos fazem parte deste segundo grupo. Muitos rituais ainda guardam relação de utilidade, mas suas explicações religiosas nem sempre condizem com os reais motivos que trazem benefícios. Se for assim, em casos de grande exposição a perigo ou mesmo de exigências desproporcionais para a execução do ritual, a maioria de nós passa a condenar a sua prática. Mas acontece o mesmo com os seus seguidores? Peguemos um exemplo.
O pênis é revestido por uma camada de pele retrátil chamada prepúcio, que cobre a glande, parte extremamente sensível ao toque, e a protege contra eventuais danos. No entanto, o espaço entre a glande e o prepúcio pode vir a acumular colônias de bactérias, devido à umidade do local. Sendo o caso, pode haver infecção urinária e renal, bem como pode ser um ambiente mais propício a dar sobrevida a agentes causadores de doenças venéreas. Hoje em dia, com as nossas práticas atuais, o tratamento para tais problemas vão, desde uma higienização mais cuidadosa, até mesmo à intervenção de fármacos que podem controlar os micro-organismos responsáveis. Mas não é só isso: em casos de má formação — fimose —, o prepúcio impede a saída da glande, e causa, além do aumento à possibilidade de infecção, grande desconforto.
Para resolver tudo isso, há uma solução que já foi muito mais popular, mas que hoje não goza de grande prestígio entre os médicos: a retirada total do prepúcio, por um processo chamado de circuncisão. Para nós, ela é mais famosa pelo costume judeu de circuncidar os recém-nascidos no oitavo dia de vida, mas também há relatos entre os antigos gregos e egípcios, e tudo indica que o costume tenha surgido independentemente nos três povos. O ritual judaico começa ainda com o povo hebreu e o relato mais antigo pode ser encontrado em Gênesis 17:1-14, quando o patriarca Abraão circuncida todos os homens de sua casa, como sinal de um pacto com seu deus (בְּרִית מִילָה, literalmente “pacto de circuncisão”). Mais tarde, o mesmo deus ordena a Moisés (Levítico 12:3) que a circuncisão seja feita no oitavo dia de vida [2].
A prática terapêutica da circuncisão perdeu espaço porque é uma cirurgia irreversível, para a qual os sucedâneos demonstram resultados igualmente satisfatórios, senão melhores. Se não é caso de fimose, como vimos, bastam a higienização (profilaxia) e o tratamento farmacológico (intervenção). Mesmo assim, até em casos de fimose, a cirurgia só é recomendada em último caso, sendo precedida por um tratamento local com creme esteroide e, em eventual falha, uma cirurgia apenas corretiva, chamada prepucioplastia, que alarga o anel prepucial. Mesmo assim, se a decisão for pela circuncisão, há a óbvia prevalência pelo procedimento operado por um urologista, médico especializado, sobre aquele operado por um rabino ou qualquer outro responsável pela cirurgia com finalidades religiosas. Por fim, parece haver consenso entre pediatras de que a época menos traumática para a operação é por volta de um ano de vida, por maior facilidade técnica e por menor sofrimento pós-operatório [3].
Resta algum motivo senão dogmático religioso para proceder como procedem? Não é à toa que até mesmo alguns grupos judeus discordem da prática: vista de fora, parece apenas um ritual antigo de mutilação que já perdeu o sentido — e temos bons motivos para acreditar que não passa disso. O exemplo é forte e acreditamos ser suficiente para demonstrar que grandes prejuízos podem surgir de dogmas que perderam sua função, exatamente por perderem aquele laço entre a utilidade e a explicação. Se continua a ser passado adiante, é pela impressionante capacidade que temos de espalhar ideias, bem descrita por Dawkins como memes, e bem estudados por Dennett como parasitas, em casos muito similares ao que acabamos de descrever.
Agora, para dar um exemplo de dogma do segundo tipo, peguemos um exemplo de difícil correlação com o universo físico. O cristianismo em si é cheio de dogmas — e qualquer outra religião não ficaria muito atrás. Para muitos deles, um exercício, como o anterior — de procurar as origens históricas e perscrutar sobre a sua utilidade e a sua conexão com a realidade — resultaria em poucas ou em nenhuma resposta satisfatória: a imaculada conceição de Maria, a unicidade da Santíssima Trindade, a dupla natureza — humana e divina — de Jesus etc. Alguns dogmas são exclusivos de certas denominações e muitos deles foram o estopim para o cisma entre grupos maiores. Para nossos propósitos, usaremos alguns dogmas da Igreja Católica, por ser mais antiga e por ter uma produção teológica mais acentuada, além de ter algumas peculiaridades que nos ajudarão a entender o ponto mais claramente — sem mencionar, obviamente, que conta com um número considerável de fiéis.
Para a sua aplicação, esses dogmas exigem uma organização hierárquica eclesiástica que culmina com o seu líder máximo, o papa. Dentre eles, sem dúvidas, o mais interessante para os nossos propósitos é o da infalibilidade papal ex cathedra, ou seja, durante pronunciamentos oficiais do papa, enquanto pastor e mestre dos fiéis. Supostamente, enquanto investido de tais atributos, o papa está em comunhão com as revelações de seu deus e, sendo este infalível, também o será o supremo pontífice. Essa comunhão seria obra direta do Espírito Santo, que faria a distinção entre o homem e o representante de seu deus, retirando deste todo o erro e diferenciando o falível humano do infalível papa. Muitos dos outros dogmas católicos são provenientes, por extensão, de pronunciamentos papais ex cathedra [4].
Não é difícil entender a motivação política para que um líder — religioso ou não — não tenha suas decisões questionadas. Obediência cega é algo almejado, e quanto menos violência estiver envolvida, maiores os benefícios para o soberano e para os subordinados. Se conseguirmos, além da aceitação total e irrestrita, uma forma de que obedeçam sem que isso constitua um fardo — ou que seja até mesmo uma forma de demonstrar devoção! —, tanto melhor. Assim, ao invés de impor uma norma, o papa terá suposta legitimidade para torná-la uma questão de fé. Questionar a norma passa, então, a ser sinônimo de questionar toda uma ordem estabelecida, que, de passo em passo, chega a questionar a infalibilidade divina. É certamente uma construção útil e extremamente poderosa, da qual discordar não parece ser uma opção: um verdadeiro dogma da fé.
Por fim, tendo estudado os princípios básicos de constituição e de passagem de dogmas, devemos voltar o pensamento para nossas opiniões e para nossos comportamentos, analisando quais deles são dogmas estabelecidos e de quais deles estamos dispostos a abrir mão, caso surja uma explicação melhor, ou caso seu objeto seja perdido no espaço ou no tempo. Não ser dogmático é certamente um dogma, e parece ser impossível viver sem eles — mas não seria idealmente mais vantajoso termos somente aquele que nos empurra para decisões mais sóbrias e acertadas? Limitados como somos, o melhor que podemos fazer é escolher dentre aqueles que se justificam, separando-os daqueles que aprendemos a cultivar somente por afeição ou por tradição. O prejuízo que eles trazem deve ser calculado pessoalmente, como também deve ser pessoal a escolha entre abandoná-los ou continuar a segui-los, mesmo já tendo dispersado a aura mística que carregavam.
Leituras recomendadas:
BECK, Judith. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997.
BLACKMORE, Susan. The meme machine. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000. [em inglês]
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
DENNETT, Daniel. Consciousness explained. Boson: Back Bay Books, 1991. [em inglês]
HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. On religion. In: Parerga & Paralipomena. Volume II. Oxford: Oxford University Press, 2000. [em inglês]
Notas:
[1] Os vocábulos gregos e suas respectivas explicações básicas podem ser encontrados em: GOBRY, Ivan. Vocabulário grego da filosofia. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[2] De acordo com a tradução revisada de João Ferreira de Almeida.
[3] As informações sobre o uso não-terapêutico da circuncisão foram retiradas do posicionamento oficial da Associação Médica Real dos Países Baixos (KNMG). O manifesto está disponível online no endereço: <http://knmg.artsennet.nl/Diensten/knmgpublicaties/KNMGpublicatie/Nontherapeutic-circumcision-of-male-minors-2010.htm>. Acesso em 26 maio 2011. [em inglês]
Quanto à melhor época de vida para o procedimento, indicamos o artigo do cirurgião pediatra Uenis Tannuri, Fimose, circuncisão e postectomia: conceitos e controvérsias. Disponível online no endereço: <http://www.pediatriasaopaulo.usp.br/upload/pdf/213.pdf>. Acesso em 26 maio 2011.
[4] Dogma instituído solenemente durante o Primeiro Concílio do Vaticano, em 18 de julho de 1870. Os precedentes mais famosos são: Papa Bonifácio VIII, na Bula Unam Sanctam, de 1302, definindo a supremacia da Igreja sobre o Estado; e Papa Pio IX, na Constituição Apostólica Ineffabilis Deus, de 1854, definindo a Imaculada Conceição de Maria. Após o dogma, somente um pronunciamento ex cathedra foi feito: Papa Pio XII, na Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1950, definindo a Assunção de Maria como questão de fé para os professantes.