A consciência é o que torna o problema mente-corpo realmente intratável. Talvez seja por isso que as discussões atuais do problema dão a ela pouca atenção, ou a abordam de modo obviamente errado. A recente onda de euforia reducionista vem produzindo várias análises dos fenômenos e dos conceitos mentais, construídas para explicar a possibilidade de alguma variedade de materialismo, identificação psicofísica ou redução [1]. Mas os problemas com que elas lidam são aqueles comuns a esse ou a outros tipos de redução. E ignora-se o que faz o problema mente-corpo único e diferente do problema água-H2O, ou do problema máquina de Turing-máquina da IBM, ou do problema raio-descarga elétrica, ou do problema gene-DNA, ou do problema carvalho-hidrocarbono.
Todo reducionista tem a sua analogia predileta tirada da ciência moderna. É muito pouco provável que algum dentre esses diversos [unrelated] exemplos de redução bem sucedida ilumine a relação entre a mente e o cérebro. Mas os filósofos compartilham da fraqueza humana de explicar o que não é compreensível em termos que se adéquam ao que lhes é familiar e bem compreendido, ainda que completamente diferente. Isso levou à aceitação de descrições [accounts] pouco plausíveis do mental, porque permitiam tipos familiares de redução. Eu tentarei explicar porque os exemplos usuais não nos ajudam a compreender a relação entre mente e corpo, e porque nós de fato não temos, presentemente, qualquer concepção do que seria uma explicação de um fenômeno mental em termos físicos. Sem a consciência, o problema mente-corpo seria bem menos interessante. Com a consciência, ele parece insolúvel [hopeless]. O aspecto mais importante e característico dos fenômenos mentais conscientes é muito mal compreendido. A maioria das teorias reducionistas nem mesmo tentam explicá-lo. Um exame cuidadoso mostrará que nenhum dos conceitos atualmente disponíveis de redução se aplica a tal aspecto. Talvez uma nova forma teórica possa ser concebida com esse propósito, mas tal solução, se existe, está no futuro intelectual distante.
A experiência consciente é um fenômeno difundido. Ocorre em muitos níveis da vida animal, porém não podemos estar certos da sua presença nos organismos mais simples, e é muito difícil dizer, em termos gerais, o que nos dá evidências dessa experiência. (Alguns extremistas chegaram a negá-la até mesmo nos mamíferos diferentes do homem). Ela ocorre, sem dúvida, sob formas incontáveis, totalmente inimagináveis para nós, em outros planetas, em outros sistemas solares, pelo universo afora. Mas quaisquer que sejam as variações quanto à forma, o fato de um organismo ter, seja lá como for, uma experiência consciente significa, basicamente, que há algo que seja ser como aquele organismo [that there is something it is like to be that organism]. Pode haver implicações adicionais sobre a forma da experiência; pode mesmo haver implicações sobre o comportamento do organismo (porém, disso eu duvido). Mas, fundamentalmente, um organismo tem estados mentais conscientes se e somente se existe algo que é como ser esse organismo, algo que é como ser para o organismo [something it is like for the organism].
Podemos chamar isso de o caráter subjetivo da experiência. Ele não é capturado por quaisquer das recentes e familiares análises redutivas do mental, já que todas elas são logicamente compatíveis com sua ausência. Não é analisável em termos de nenhum sistema explicativo de estados funcionais, ou de estados intencionais, pois esses poderiam ser atribuídos a robôs ou autômatos que se comportassem como pessoas, embora não experimentassem nada [2]. Não é analisável em termos do papel causal das experiências no comportamento humano típico, por razões similares [3]. Eu não nego que os estados e eventos mentais causem o comportamento, nem que possam ser dadas caracterizações funcionais deles. Nego apenas que esse tipo de coisa esgote a análise dos mesmos. Qualquer programa reducionista tem que se basear em uma análise do que deve ser reduzido. Se a análise deixa algo de fora, o problema será colocado erroneamente. É inútil basear a defesa do materialismo em qualquer análise dos fenômenos mentais que não encare explicitamente o seu caráter subjetivo. Não há razão para se supor que uma redução que pareça plausível quando não se tenta explicar a consciência possa ser estendida para incluir a consciência. Sem ter alguma ideia do que seja o caráter subjetivo da experiência, nós não podemos saber o que se requer de uma teoria fisicalista.
Embora uma abordagem em termos da base física da mente tenha que explicar muitas coisas, esta parece ser, contudo, a maior dificuldade. Não é possível excluir de uma redução os aspectos fenomênicos da experiência, da mesma maneira como se excluem os aspectos fenomênicos das substâncias comuns para a sua redução física ou química, ou seja, explicando-os como efeitos nas mentes dos observadores humanos [4]. Se se deseja defender o fisicalismo, deve ser dada uma explicação física dos aspectos fenomênicos. Mas quando examinamos seu caráter subjetivo, parece que tal feito é impossível. A razão é que todo fenômeno subjetivo é essencialmente conectado a um ponto de vista singular e parece inevitável que uma teoria física, objetiva, abandone esse ponto de vista.
Tentarei, primeiramente, colocar a questão de uma maneira mais completa do que por referência à relação entre o subjetivo e o objetivo, ou entre o “pour-soi” e o “en-soi”. Isso não é nada fácil. Os fatos a respeito do que é ser como um X [what is it like to be an X ] são muito peculiares, tão peculiares que algumas pessoas podem se sentir inclinadas a duvidar da sua realidade ou da importância [significance] das asserções sobre eles. Para ilustrar a conexão entre subjetividade e ponto de vista, e para tornar evidente a importância dos aspectos subjetivos, será de alguma ajuda explorar o assunto relativamente a um exemplo que nos mostre claramente a divergência entre os dois tipos de concepção, subjetiva e objetiva.
Assumirei que todos nós acreditamos que morcegos têm experiência. Afinal, eles são mamíferos, e não é mais duvidoso que eles tenham experiência do que ratos, pombos ou baleias a tenham. Escolhi morcegos, em vez de vespas ou linguados, porque se descermos demais na árvore filogenética, as pessoas perdem gradualmente a sua crença de que haja experiências quaisquer nos animais. Os morcegos, embora mais proximamente relacionados a nós do que essas outras espécies, apresentam uma variedade de atividades e um aparato sensorial tão diferentes dos nossos que o problema que quero colocar torna-se excepcionalmente vívido (mas ele também poderia ser suscitado por outras espécies). Mesmo sem os benefícios da reflexão filosófica, quem permaneceu algum tempo num espaço fechado junto com um morcego agitado sabe o que é encontrar uma forma de vida fundamentalmente alienígena.
Eu disse que a essência da crença de que morcegos têm experiência está em que haja algo que é ser como um morcego [that there is something that it is like to be a bat]. Atualmente, sabemos que a maior parte dos morcegos (microchiroptera, para ser preciso) percebem o mundo externo primariamente por um sonar, localizando-se pelo eco, detectando as reflexões dos seu próprios gritos rápidos, sutilmente modulados e de alta frequência, nos objetos ao seu alcance. Seus cérebros são projetados [designed] para correlacionar os impulsos enviados com os ecos subsequentes, e as informações assim adquiridas permitem aos morcegos discriminações precisas acerca da distância, tamanho, forma, movimento e textura, comparáveis às que fazemos pela visão. Mas o sonar dos morcegos, embora seja claramente uma forma de percepção, não é similar a nenhum sentido que possuímos, quanto à forma das suas operações. E não há razão para se supor que ele seja, subjetivamente, parecido com algo que nós possamos experimentar ou imaginar. Isso parece criar dificuldades para a noção de como é ser um morcego [what is it like to be a bat]. Devemos considerar se algum método nos permitirá extrapolar o nosso próprio caso à vida interior do morcego, [5] e, em caso negativo, se pode haver algum método alternativo para o entendimento desta noção.
A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação, cujo alcance é, consequentemente, limitado. Não ajuda tentar imaginar que alguém tenha membranas sob os braços que o habilite a voar ao entardecer e ao alvorecer pegando insetos com a boca, que tenha a visão muito precária e perceba o mundo à sua volta por um sistema de sinais de som em alta frequência refletidos, e que passe o dia pendurado de cabeça para baixo com os pés no teto de um sótão. Até onde eu consiga imaginar isso (e não chego muito longe), isso apenas me diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas não é essa a questão. Eu quero saber como é, para um morcego, ser um morcego. Se eu ainda assim tento imaginar isso, fico restrito aos recursos da minha própria mente, inadequados para a tarefa. Não consigo isso nem mesmo imaginando acréscimos à minha experiência presente, nem imaginando segmentos gradualmente subtraídos dela, nem imaginando uma combinação de acréscimos, subtrações e modificações.
Mesmo que eu pudesse parecer uma vespa ou um morcego, ou comportar-me como eles, sem modificar a minha estrutura fundamental, minhas experiências não seriam nada parecidas com as experiências de tais animais. Por outro lado, é muito duvidoso que qualquer significado possa ser associado à suposição de que eu poderia possuir a constituição neurofisiológica interna de um morcego. Mesmo se eu pudesse ser gradualmente transformado em um morcego, nada na minha constituição presente me tornaria apto a imaginar o que as experiências de tal estágio futuro de mim, mesmo assim metamorfoseado, poderiam ser. A melhor evidência viria das experiências dos morcegos, mas apenas se soubéssemos como elas são.
Então, se a extrapolação a partir do nosso próprio caso está envolvida na ideia de como é ser um morcego, então a extrapolação é impossível de ser completada. Nós não podemos formar nada além de uma concepção esquemática de como é ser um morcego. Por exemplo, podemos atribuir tipos gerais de experiência com base na estrutura do animal e do seu comportamento. Descrevemos o sonar do morcego como uma forma de percepção tridimensional; acreditamos que os morcegos sintam, além da percepção por sonar, alguma variante de dor, medo, fome, libido e outros tipos familiares de percepção. Mas acreditamos também que essas experiências tenham um caráter subjetivo específico, o qual está além da nossa habilidade de concepção. E se há vida consciente em outro lugar do universo, é provável que alguma [vida] não possa ser descrita mesmo nos termos experienciais [experiential terms] mais gerais a nós disponíveis [6]. (O problema, contudo, não está restrito aos casos exóticos, já que ele se coloca entre uma pessoa e outra. O caráter subjetivo da experiência de uma pessoa surda e cega desde o nascimento, por exemplo, não me é acessível e, presumivelmente, nem a minha a ela. Isso não nos impede de acreditar que a experiência dos outros tenha tal caráter subjetivo).
Se alguém tende a negar que possamos acreditar na existência de fatos como esses, cuja natureza exata não nos é sequer concebível, deveria refletir que ao contemplarmos os morcegos, nós estamos na mesma posição em que morcegos inteligentes ou marcianos [7] estariam se eles tentassem formar uma concepção de como é ser como nós. A estrutura da mente deles poderia impossibilitá-los de ter sucesso, mas nós sabemos que eles estariam enganados se concluíssem que não há nada precisamente que é ser como nós [that it is like to be us]: que apenas certos tipos gerais de estados mentais poderiam ser atribuídos a nós (talvez a percepção e o apetite pudessem ser conceitos comuns a eles e a nós, talvez não). Sabemos que eles estariam enganados ao chegar a tal posição cética porque sabemos como é ser como nós. E sabemos também que embora isso inclua uma enorme variedade e complexidade, e que não temos o vocabulário adequado para descrevê-lo, o seu conteúdo subjetivo é altamente específico e, em alguns aspectos, passível de descrição em termos que só podem ser compreendidos por criaturas como nós. O fato de que não tenhamos expectativa de poder algum dia acomodar, na nossa linguagem, uma descrição detalhada da fenomenologia dos marcianos, ou dos morcegos, não deve levar-nos a descartar, como carente de sentido, a alegação de que marcianos e morcegos tenham experiências completamente comparáveis às nossas, em toda a sua riqueza de detalhes. Seria bom se alguém viesse a desenvolver conceitos e uma teoria que nos permitissem pensar sobre essas coisas; mas pode ser que nunca as compreendamos, em virtude dos limites da nossa natureza. E negar a realidade ou a significância lógica do que nós não poderemos nunca descrever, ou entender, é a forma mais grosseira de dissonância cognitiva.
Isso nos leva a tocar num tópico que requer muito mais discussão do que eu posso fazer aqui, ou seja, a relação entre fatos, de um lado, e esquemas conceituais ou sistemas de representação, de outro. Meu realismo a respeito do domínio subjetivo em todas as suas formas implica uma crença na existência de fatos além do domínio dos conceitos humanos. Certamente é possível para um ser humano acreditar que há fatos sobre os quais o homem nunca terá os conceitos necessários para representar ou compreender. Seria tolo duvidar disso, dada a finitude das expectativas [expectations] da humanidade [humanity]. Afinal, haveria números transfinitos mesmo que toda a humanidade tivesse sido dizimada pela Peste Negra, antes de serem descobertos por Cantor. Alguém pode acreditar, além disso, que existem fatos os quais não poderiam nem mesmo ser representados ou compreendidos pelos humanos, mesmo que a nossa espécie durasse para sempre, simplesmente pela nossa estrutura não poder operar com os conceitos do tipo requerido. Tal impossibilidade poderia mesmo ser constatada [observed] por outros seres, mas não é claro que a existência desses seres, ou a possibilidade da sua existência, seja uma pré-condição da significância da hipótese de que há fatos humanamente inacessíveis. (Além de tudo, a natureza de tais seres com acesso a fatos humanamente inacessíveis é, ela mesma, presumivelmente, um fato humanamente inacessível). A reflexão sobre como é ser um morcego parece nos conduzir, então, à conclusão de que há fatos que não consistem na verdade de proposições que possam ser expressas numa linguagem humana. Nós podemos ser compelidos a reconhecer a existência de tais fatos, sem estarmos aptos a formulá-los ou compreendê-los.
Entretanto, eu não continuarei explorando esse assunto. Sua relação com o tópico em pauta (a saber, o problema mente/corpo) é o que nos permite fazer uma observação geral a respeito do caráter subjetivo da experiência. Qualquer que possa ser o status de fatos a respeito de como é ser um ser humano [what is it like to be a human being], ou um morcego, ou um marciano, estes parecem ser fatos que incorporam [embody] um ponto de vista particular.
Não me refiro aqui à suposta privacidade da experiência para quem a possui. O ponto de vista em questão não é um [ponto de vista] que apenas um único indivíduo tem acesso. Ao invés disso, trata-se de um tipo. Frequentemente, é possível adotar um ponto de vista diferente do nosso próprio; logo a compreensão de tais fatos não é limitada ao caso da própria pessoa. Há um sentido no qual os fatos fenomenológicos [phenomenological facts] são perfeitamente objetivos: uma pessoa pode conhecer ou falar sobre a qualidade das experiências do outro. Elas são subjetivas, no entanto, no sentido em que mesmo essa atribuição objetiva de experiência só é possível para alguém suficientemente similar ao objeto da atribuição para estar apto a adotar o seu ponto de vista, para compreender a atribuição na primeira pessoa tão bem quanto na terceira, por assim dizer. Quanto mais diferente de nós for o outro sujeito de experiência [experiencer], menos sucesso se pode esperar desse empreendimento. No nosso próprio caso, ocupamos o ponto de vista relevante, mas teremos tanta dificuldade em compreender apropriadamente a nossa própria experiência se a abordarmos a partir de um outro ponto de vista, quanto teríamos se tentássemos compreender a experiência de uma outra espécie sem que adotássemos o seu ponto de vista [8].
Isto é diretamente relevante para o problema mente/corpo. Se os fatos da experiência — fatos sobre como é para o organismo que tem a experiência — são acessíveis apenas de um ponto de vista, logo, é um mistério como o verdadeiro caráter das experiências poderia ser revelado através das operações físicas do organismo. Este último é, por excelência, o domínio dos fatos objetivos, o tipo de fato que pode ser observado e entendido de diversos pontos de vista, e por indivíduos com diferentes sistemas perceptivos. Não há obstáculos imaginativos comparáveis para a aquisição de conhecimentos sobre a neurofisiologia do morcego, por parte dos nossos cientistas. Por sua vez, morcegos inteligentes ou marcianos poderiam aprender mais sobre o cérebro humano do que jamais poderemos.
Por si só, este não é um argumento contra a possibilidade da redução. Um cientista marciano com nenhuma compreensão da percepção visual poderia compreender o arco-íris, o raio ou as nuvens como fenômenos físicos, mas ele nunca estaria apto a compreender os conceitos humanos de arco-íris, de raio ou de nuvem, ou o lugar ocupado por essas coisas no nosso mundo fenomênico. A natureza objetiva das coisas indicadas [picked up] por esses conceitos poderia ser apreendida por ele porque embora os conceitos sejam, em si, conectados a um ponto de vista particular e a uma fenomenologia visual particular, as coisas apreendidas a partir daquele ponto de vista não o são: elas são observáveis a partir do ponto de vista, mas externas a ele; logo elas podem ser compreendidas também a partir de outros pontos de vista, pelos mesmos organismos ou por outros. O raio tem um caráter objetivo que não é exaurido por sua aparência visual; e isso poderia ser investigado por um marciano destituído de visão. Para ser preciso, o raio tem um caráter mais objetivo do que o que é revelado na sua aparência visual. Ao falar da passagem da caracterização subjetiva para uma objetiva, eu gostaria de não me comprometer a respeito da existência de um ponto final — a natureza intrínseca e completamente objetiva da coisa — que se poderia ou não estar apto a alcançar. Seria mais acurado pensar na objetividade como uma direção em que o entendimento pode mover-se. No entendimento de um fenômeno como o raio, é legítimo ir para tão longe de um ponto de vista estritamente humano quanto se puder ir [9].
No caso da experiência, por outro lado, a conexão com um ponto de vista particular parece mais próxima. É difícil compreender o que significaria o caráter objetivo da experiência separadamente do ponto de vista particular pelo qual o sujeito a apreende. Ademais, o que restaria do que é ser como um morcego se fosse removido o próprio ponto de vista do morcego? Mas, se a experiência não tiver, além do seu caráter subjetivo, uma natureza objetiva que possa ser apreendida de diversos pontos de vista, então como se poderia supor que um marciano, investigando o meu cérebro, poderia estar investigando processos físicos que fossem meus processos mentais (do modo como ele poderia observar processos físicos que são raios), apenas de um ponto de vista diferente? Quanto a isto, como poderia um fisiologista humano observá-los de um outro ponto de vista? [10]
Parece que estamos face a uma dificuldade geral a respeito da redução psicofísica. Nas outras áreas, o processo de redução vai em direção à maior objetividade, à visão mais acurada da natureza real das coisas. Isto é realizado diminuindo a nossa dependência de pontos de vista individuais, ou específicos-a-espécies, relativos ao objeto de investigação. Não o descrevemos em termos das impressões que ele [o objeto] deixa nos nossos sentidos, mas em termos dos seus efeitos mais gerais, e das propriedades detectáveis por meios outros que os sentidos humanos. Quanto menos depender de um ponto de vista estritamente humano, tanto mais objetiva é a nossa descrição. É possível seguir esse caminho porque, apesar de os conceitos e ideias empregados por nós ao pensar a respeito do mundo externo estarem sendo aplicados, inicialmente, a partir de um ponto de vista que envolve o nosso aparato perceptual, eles são usados para nos referirmos a coisas além deles mesmos — diante das quais nós temos o ponto de vista fenomênico. Portanto, nós podemos abandoná-lo em favor de outro, e ainda continuar pensando acerca das mesmas coisas.
A própria experiência, contudo, não parece se adequar a esse modelo. A ideia de se mover da aparência para a realidade parece não fazer qualquer sentido aqui. O que é o análogo, neste caso, a se perseguir uma compreensão mais objetiva dos mesmos fenômenos, abandonando-se o ponto de vista subjetivo inicial com respeito a eles, em favor de um outro que é mais objetivo mas que concerne a mesma coisa? Certamente parece improvável que nós nos aproximaremos da natureza real da experiência humana deixando para trás a particularidade do nosso ponto de vista humano, e empenhando-nos em obter uma descrição em termos acessíveis a seres que não poderiam imaginar o que é ser como nós. Se o caráter subjetivo da experiência é completamente compreensível somente de um ponto de vista, então qualquer deslocamento em direção a uma objetividade maior — isto é, menos vinculada a um ponto de vista específico — não nos leva mais próximo da natureza real do fenômeno: leva-nos para mais longe dela.
Num certo sentido, as sementes dessa objeção à redutibilidade da experiência já são detectáveis em casos bem sucedidos de redução. Descobrindo-se que o som é, na realidade, um fenômeno ondulatório no ar ou em outro meio, nós deixamos para trás um ponto de vista para adotar outro, e o ponto de vista auditivo, humano ou animal, que nós deixamos para trás permanece sem ser reduzido. Membros de espécies radicalmente diferentes podem entender os mesmos eventos físicos em termos objetivos, e isso não requer o entendimento das formas fenomênicas nas quais tais eventos aparecem aos sentidos dos membros das outras espécies. Assim, uma condição para referirem-se a uma realidade comum é que seus pontos de vista mais particulares não sejam parte da realidade comum que ambos apreendem. A redução pode ter sucesso apenas se o ponto de vista específico a uma espécie for omitido do que é para ser reduzido.
Mas embora estejamos corretos em deixar esse ponto de vista de lado na busca de uma compreensão mais completa do mundo externo, não o podemos ignorar permanentemente, pois ele é a essência do mundo interno, e não um mero ponto de vista sobre ele. A maior parte do neobehaviorismo da psicologia filosófica recente resulta do esforço para substituir um conceito objetivo de mente pela coisa real, a fim de nada deixar para trás que não possa ser reduzido. Se nós admitimos que uma teoria física da mente deve levar em conta o caráter subjetivo da experiência, temos que admitir que nenhuma concepção presentemente disponível nos dá uma pista de como isso poderia ser feito. O problema é único. Se os processos mentais são, de fato, processos físicos, então há algo que, intrinsecamente, [11] é como [it is like to] ser submetido a certos processos físicos. Permanece um mistério o que é para tal coisa ser o caso.
Qual a moral que poderia ser tirada dessas reflexões, e o que deveria ser feito em seguida? Seria um erro concluir que o fisicalismo tem de ser falso. Nada é demonstrado pela inadequação das hipóteses fisicalistas que assumem uma errônea análise objetiva da mente. Seria mais verdadeiro dizer que o fisicalismo é uma posição que não podemos entender porque nós não temos, no presente, qualquer concepção sobre como ele poderia ser verdadeiro. Talvez se possa pensar que não é razoável exigir tal concepção como condição para a compreensão. Afinal, deve ser dito, o significado do fisicalismo é claro o bastante: estados mentais são estados corporais, eventos mentais são eventos físicos. Nós não sabemos quais estados e eventos físicos os estados e eventos mentais são, mas isso não nos impede de compreender a hipótese. O que poderia ser mais claro do que as palavras “é” e “são”?
Eu acredito, contudo, que é enganosa precisamente essa clareza aparente da palavra “é”. Usualmente, quando nos é dito que X é Y, nós sabemos de qual maneira supõe-se que isso seja verdadeiro, mas isso depende de uma base conceitual ou teórica a qual não é expressa pelo “é” somente. Nós sabemos como X e Y referem, e os tipos de coisas às quais eles referem. Temos uma ideia aproximada [rough] de como os dois trajetos de referenciação podem convergir numa mesma coisa, seja um objeto, uma pessoa, um processo, evento, ou o que for. Mas quando os dois termos da identificação são muito díspares, pode não ser tão claro como isso poderia ser verdadeiro. Podemos não ter nem mesmo uma ideia grosseira de como dois trajetos de referenciação poderiam convergir, ou sobre que tipo de coisas eles poderiam convergir, e uma estrutura teórica pode ter que ser suprida para nos permitir compreender isso. Sem a estrutura, um ar de misticismo envolve a identificação.
Isso explica o sabor mágico das apresentações populares das descobertas científicas fundamentais, divulgadas como proposições as quais se deve aprovar sem compreendê-las realmente. Por exemplo, diz-se para as pessoas em uma certa idade precoce, que toda matéria é, na realidade, energia. Mas apesar do fato de elas saberem o que significa “é”, muitas delas nunca chegam a formar uma concepção sobre o que torna tal sentença verdadeira, pois lhes falta a base teórica.
No momento atual, o status do fisicalismo é similar àquele que teria a hipótese segundo a qual “matéria é energia”, se tivesse sido pronunciada por um filósofo pré-socrático. Nós não temos os rudimentos de uma concepção de como isso poderia ser verdadeiro. Para entender a hipótese de que um evento mental é um evento físico, precisamos mais do que o entendimento da palavra “é”. Falta-nos a ideia de como um evento mental e um evento físico podem referir-se à mesma coisa, e as analogias com identificações teóricas em outros campos fracassam em suprir isso. Elas fracassam porque, se nós entendermos a referência de termos mentais a eventos físicos segundo o modelo usual, nós obtemos ou um reaparecimento de eventos subjetivos desconectados [separate] — como efeitos através dos quais a referência mental a eventos físicos é assegurada — ou então nós obtemos uma explicação falsa de como os termos mentais referem (por exemplo, uma descrição behaviorista-causal).
Estranhamente, nós podemos ter evidência da verdade de algo que não podemos realmente compreender. Suponhamos que uma lagarta seja trancada num cofre esterilizado por alguém que tenha pouca familiaridade com as metamorfoses dos insetos. Semanas depois o cofre é aberto, revelando uma borboleta. Se a pessoa sabe que o cofre esteve trancado o tempo todo, tem razões para acreditar que a borboleta seja, ou tenha sido, a lagarta, sem ter nenhuma ideia de como isso possa ser assim. (Uma possibilidade seria que a lagarta tivesse um parasita alado minúsculo que a tivesse devorado inteiramente e crescido transformando-se numa borboleta).
É concebível que nós estejamos em uma posição como essa em relação ao fisicalismo. Donald Davidson defendeu que se os eventos mentais têm causas e efeitos físicos, então eles têm que ter descrições físicas. Ele sustenta que temos razões para acreditar nisso, mesmo que ainda não tenhamos — e, de fato, não poderíamos ter — uma teoria psicofísica geral [12]. O argumento dele se aplica aos eventos mentais intencionais, mas eu acho que também temos alguma razão para acreditar que as sensações sejam processos físicos, sem estar em uma posição adequada para compreender como. A posição de Davidson é a de que certos eventos físicos têm propriedades mentais irredutíveis e, talvez, seja correta alguma posição descrita dessa maneira. Mas atualmente nada de que possamos formar uma concepção corresponde a isso; e não temos nenhuma ideia de como seria uma teoria que nos permitisse conceber isso [13].
Muito pouco se tem trabalhado sobre a questão básica (da qual a menção ao cérebro pode ser inteiramente omitida): faz algum sentido dizer que experiências têm um caráter objetivo? Em outras palavras, faria algum sentido perguntar como minhas experiências realmente são, em oposição a como elas me parecem? Nós não podemos genuinamente entender a hipótese de que a natureza delas possa ser capturada por uma descrição física, a não ser que entendamos a ideia mais fundamental de que elas têm uma natureza objetiva (ou que os processos objetivos possam ter uma natureza subjetiva) [14].
Eu gostaria de concluir com uma proposta especulativa. Pode ser possível abordar de uma outra direção o problema da lacuna entre objetivo e subjetivo. Deixando de lado, temporariamente, a relação entre a mente e o cérebro, nós podemos perseguir um entendimento mais objetivo do mental nos seus próprios termos [in its own right]. Presentemente, nós estamos completamente desprovidos de meios para pensar a respeito do caráter subjetivo da experiência sem apoiarmo-nos na imaginação — sem adotar o ponto de vista do sujeito que experimenta. Isso deve ser considerado como um desafio para se formar novos conceitos e arquitetar um novo método — uma fenomenologia objetiva que não dependesse de empatia ou da imaginação. Embora, presumivelmente, isso não captaria tudo, sua finalidade seria a de descrever, ao menos em parte, o caráter subjetivo das experiências, de uma forma compreensível a seres incapazes de ter aquelas experiências.
Nós teríamos que desenvolver tal fenomenologia para descrever as experiências de sonar dos morcegos; mas também seria possível começar pelos humanos. Poder-se-ia tentar, por exemplo, desenvolver conceitos que seriam usados para explicar, para uma pessoa cega desde o nascimento, como é ver. Poder-se-ia chegar, ao final, a um obstáculo intransponível [blank wall], mas deve ser possível arquitetar um método para expressar, em termos objetivos, muito mais do que podemos presentemente, e com muito mais precisão. As vagas analogias intermodais — por exemplo, “o vermelho é como o soar de um trompete” — que aparecem em discussões sobre esse assunto, são de pouca utilidade. Isso deveria ser claro para qualquer um que já tenha ouvido o trompete e também visto o vermelho. Mas as características estruturais da percepção poderiam ser mais acessíveis a uma descrição objetiva, mesmo que algo fosse deixado de lado. E conceitos alternativos aos que nós aprendemos na primeira pessoa podem mesmo nos permitir chegar a um tipo de compreensão da nossa própria experiência. Essa compreensão nos é negada pela própria facilidade [ease] da descrição e pela falta de distanciamento proporcionada pelos conceitos subjetivos.
Além do seu próprio interesse, uma fenomenologia que fosse objetiva nesse sentido poderia permitir que questões a respeito da base física [15] da experiência assumissem uma forma mais inteligível. Os aspectos da experiência subjetiva que admitissem esse tipo de descrição objetiva talvez sejam melhores candidatos para explicações objetivas de um tipo mais familiar. Mas sendo ou não correto esse palpite, parece improvável que qualquer teoria física da mente possa ser contemplada até que mais reflexão seja devotada ao problema geral do subjetivo e do objetivo. De outra forma, nós não poderíamos nem mesmo colocar o problema mente-corpo sem nos desviarmos dele [16].
♣ [Nota dos tradutores: “What is it like to be a bat?” In: Rosenthal, D. (ed.) The Nature of Mind. New York: Oxford University Press, 1991, p. 422-28. Este artigo foi publicado, originalmente, em 1974. A expressão ‘what is it like…’ adquiriu um caráter quase que técnico na literatura anglo-saxônica de filosofia da mente, para referir-se à consciência ou à experiência fenomênica. Em inglês, esta expressão sugere uma analogia com a nossa própria fenomenologia (o que poderia recomendar uma tradução mais literal, do tipo “Como se parece ser um morcego?”). Porém, o próprio autor, na nota 6 abaixo, adverte que essa leitura ‘analógica’ da expressão nos faz incorrer no erro de achar que a experiência particular de um sujeito (especialmente um alienígena, ou um indivíduo de uma outra espécie) poderia ser compreendida ou capturada por referência ao nosso próprio caso. Por isso, a nossa escolha recaiu sobre a tradução “como é ser um morcego” que, além de mais legível, não possui essas conotações indesejáveis. Os tradutores agradecem os comentários feitos a esta tradução pelo Prof. Michael Wrigley que, evidentemente, não pode ser responsabilizado pelos problemas que porventura permaneçam].
- São exemplos: J. J. Smart, Philosophy and Scientific Realism (London, 1963); David K. Lewis, “An Argument for the Identity Theory”, Journal of Philosophy, LXIII (1966), republicado com adendo In: David M. Rosenthal, Materialism & the Mind-Body Problem (Englewood Cliffs, N. J., 1971); Hilary Putnam, “Psychological Predicates” In: Capitan and Merrill, Art, Mind, & Religion (Pittsburgh, 1967), republicado In: Rosenthal, op. cit., como “The nature of Mental States”; D. M. Armstrong, A Materialist Theory of the Mind (London, 1968); D. C. Dennett, Content and Consciousness (London, 1969). Eu estive ex-pressando dúvidas prematuras em “Armstrong on the Mind”, Philosophical Review, LXXIX (1970), 394-403; “Brain Bisection and the Unity of Consciousness” Synthèse, 22 (1971); e numa resenha de Dennett, Journal of Philosophy, LXIX (1972). Ver também Saul Kripke, “Naming and Necessity” In: Davidson & Harman, Semantics of Natural Language (Dor-drecht, 1972), esp. pp. 334-342; e M. T. Thornton, “Ostensive Terms and Materialism”, The Monist, 56 (1972).
- Talvez não possa haver, na realidade, tais robôs. Talvez, qualquer coisa complexa o bastante para se comportar como uma pessoa tenha experiências. Mas isso, se verdadeiro, é um fato que não pode ser descoberto pela mera análise do conceito de experiência.
- [O caráter subjetivo da experiência] não é equivalente àquilo sobre o qual somos incorrigíveis, tanto porque nós não somos incorrigíveis a respeito da experiência mas também porque a experiência está presente nos animais sem linguagem e pensamento, os quais não têm nenhuma crença sobre suas experiências.
- Cf. Richard Rorty, “Mind-Body Identity, Privacy, and Categories”. The Review of Metaphysics, XIX (1965) esp. pp. 37-38.
- Por “nosso próprio caso” eu não quero significar apenas “meu próprio caso”, mas as ideias mentalistas que nós aplicamos, sem problemas, a nós mesmos e a outros seres humanos.
- A forma analógica da expressão do inglês “what is it like” nos induz ao erro. A expressão não quer dizer “o que (na nossa experiência) se parece”, mas sim, “como é para o próprio sujeito”. [Ver a nota ♣ dos tradutores].
- Quaisquer seres extraterrestres inteligentes diferentes de nós.
- Talvez, transcender as barreiras entre espécies com a ajuda da imaginação seja mais fácil do que suponho. Por exemplo, as pessoas cegas podem detectar objetos próximos a elas por um tipo de sonar, usando sons agudos vocais ou toques com uma bengala. Talvez se alguém soubesse como é isso, poderia, por extensão, imaginar grosseiramente como seria possuir o sonar muito mais sofisticado do morcego. A distância entre cada um de nós e as outras pessoas, ou entre nós e as outras espécies, pode situar-se em qualquer ponto de um continuum. Mesmo para outras pessoas, o entendimento de como é ser o que são é apenas parcial, e quando se passa a espécies muito diferentes da nossa própria, pode-se ter um grau ainda menor dessa compreensão parcial. A imaginação é extraordinariamente flexível. O meu ponto, contudo, não é que nós não podemos conhecer como é ser um morcego. Eu não estou levantando esse problema epistemológico. O meu ponto é que mesmo para formar uma concepção de como é ser um morcego (e, a fortiori, conhecer como é ser um morcego), é preciso adotar o ponto de vista do morcego. Se se pode adotar esse ponto de vista grosseira ou parcialmente, então a concepção também é precária ou parcial. Ou isso é o que parece no nosso estado atual de compreensão.
- O problema que vou levantar pode ser, portanto, colocado mesmo se a distinção entre descrições ou pontos de vista mais objetivos ou mais subjetivos puder ser feita apenas dentro de um ponto de vista humano mais amplo. Eu não aceito esse tipo de relativismo conceitual, mas ele não precisa ser refutado para se defender a posição segundo a qual a redução psicofísica não pode ser acomodada pelo modelo subjetivo-para-objetivo, familiar em outros casos.
- O problema não é apenas que quando eu vejo a “Mona Lisa” minha experiência visual tem uma certa qualidade, da qual nenhum vestígio pode ser encontrado por alguém que esteja olhando dentro do meu cérebro. Pois mesmo que ele observasse lá uma imagem minúscula da “Mona Lisa”, ele não teria nenhuma razão para identificá-la com a experiência.
- A relação, portanto, não seria contingente como aquela entre uma causa e seu diferente efeito. Seria necessariamente verdadeiro que um certo estado físico fosse sentido de uma determinada maneira. Saul Kripke (op. cit.) argumenta que as análises behavioristas-causais, e análises do mental a estas relacionadas, fracassam [em fundar essa necessidade metafísica] porque interpretam, e. g., “dor” como um nome meramente contingente para as dores. O caráter subjetivo de uma experiência (Kripke o chama de “sua qualidade fenomenológica imediata”(p. 340)) é a propriedade essencial deixada de lado por tais análises, e aquela em virtude da qual, necessariamente, a experiência é o que é. Minha visão está intimamente relacionada a essa. Assim como Kripke, eu acho que a hipótese de que um certo estado cerebral tenha necessariamente um certo caráter subjetivo é incompreensível sem explicações adicionais. Nenhuma explicação desse tipo emerge de teorias que veem a relação mente/corpo como contingente, mas talvez haja outras alternativas ainda não descobertas.
Uma teoria que explicasse como a relação mente-cérebro é necessária, ainda nos deixaria com o problema de Kripke de explicar porque essa relação, mesmo assim, ainda parece contingente. Essa dificuldade parece-me intransponível, da seguinte maneira: nós podemos imaginar algo representando-o para nós mesmos perceptualmente, empaticamente [sympathetically] ou simbolicamente. Eu não tentarei dizer como funciona a imaginação simbólica, mas parte do que ocorre nos outros dois casos é o seguinte: para imaginar algo perceptualmente, nós nos colocamos em um estado consciente parecido com aquele em que nós estaríamos se estivéssemos percebendo. Para imaginar algo empaticamente, nós nos colocamos no estado consciente parecido com a própria coisa. (Este método só pode ser usado para imaginar eventos e estados mentais, os nossos ou os dos outros.) Quando nós tentamos imaginar um estado mental ocorrendo sem um estado cerebral associado, primeiramente nós imaginamos empaticamente a ocorrência do estado mental, isto é, nos colocamos em um estado que, mentalmente, se parece com esse [estado mental]. Ao mesmo tempo, nós tentamos imaginar perceptualmente a não ocorrência do estado físico associado, colocando-nos em um outro estado não conectado ao primeiro: um estado parecido com o que nós estaríamos se percebêssemos a não ocorrência do estado físico. Onde a imaginação das propriedades físicas é perceptual, e a imaginação das propriedades mentais é empática, parece-nos que podemos imaginar qualquer experiência ocorrendo sem o estado físico associado, e vice-versa. A relação entre elas parecerá contingente, ainda que seja necessária, devido à independência entre os tipos diferentes de imaginação.
(O solipsismo resulta, incidentalmente, de se interpretar incorretamente a imaginação empática como se ela funcionasse como a imaginação perceptual: pareceria então impossível, nesse caso, imaginar qualquer experiência que não fosse a nossa própria). - Ver “Mental Events” In: Foster e Swanson, Experience and Theory (Amherst, 1970); eu não compreendo, entretanto, o argumento contra as leis psicofísicas.
- Observações similares se aplicam ao meu artigo “Physicalism”, Philosophical Review LXXIV (1965), 339-356, reimpresso In: John O’ Connor, Modern Materialism (New York, 1969). Ver tradução em Português, In: Teixeira, J. (org.) Cérebros, máquinas e consciência. São Carlos: Editora da UFSCar, 1996.
- Essa questão se situa também no coração do problema das outras mentes, cuja conexão próxima com o problema mente/corpo, frequentemente, não é vista. Se se entendesse como a experiência subjetiva poderia ter uma natureza objetiva, se entenderia a existência de outros sujeitos além de nós.
- Eu não defini o termo “físico”. Obviamente, ele não se aplica apenas ao que pode ser descrito pelos conceitos da física contemporânea, já que esperamos desenvolvimentos futuros. Pode-se pensar que não há o que impeça que fenômenos mentais venham a ser reconhecidos, em última instância, como físicos de pleno direito [in their own right]. Mas qualquer coisa adicional que possa ser dita a respeito do físico tem de ser objetiva. Então, se a nossa ideia do físico vier a se expandir de modo a incluir os fenômenos mentais, ela terá que lhes atribuir um caráter objetivo — quer isso seja feito analisando-os em termos de fenômenos já considerados como físicos, quer não. Parece-me mais provável, contudo, que as relações mental-físico venham a ser expressas, ao final, em uma teoria cujos termos fundamentais não possam ser claramente localizados em nenhuma das duas categorias.
- Eu li versões deste texto para várias audiências, e estou em débito para com muitas pessoas pelos seus comentários.