Aforismos para a Sabedoria de Vida

Arthur Schopenhauer

Le bonheur n’est pas chose aisée: il est très difficile de le trouver en nous, et impossible de le trouver ailleurs.

[a felicidade não é uma questão fácil; é muito difícil encontrá-la em nós mesmos, e impossível encontrá-la em outro lugar. (Chamfort)]

Introdução

Nestas páginas falo da sabedoria de vida no sentido imanente, como a arte de percorrer a vida do modo mais agradável e feliz possível; as instruções para isso também podem ser denominadas eudemonologia, pois ensinam como ter uma existência feliz. Tal existência talvez possa ser definida como uma que, vista de uma perspectiva puramente objetiva, ou após uma reflexão fria e madura — pois a questão necessariamente envolve considerações subjetivas —, seria sem dúvida preferível à não-existência; implicando que devemos nos apegar a esta por si mesma, e não apenas pelo medo da morte; assim, que gostaríamos de vê-la durar para sempre. Se a vida humana corresponde, ou poderia corresponder, a tal concepção de existência, é uma questão que, como sabemos, é respondida negativamente pela minha filosofia; entretanto, na eudemonologia, deve ser respondida afirmativamente. Demonstrei, no segundo volume de minha obra capital, capítulo 49, que isso se baseia num erro fundamental. Assim, para poder tratar de uma questão dessa natureza, tive de abandonar completamente o ponto de vista ético e metafísico mais elevado, ao qual minha filosofia conduz. Logo, tudo que será discutido tem por base um certo comprometimento, na medida em que parte da perspectiva do dia-a-dia, conservando seus equívocos. Seu valor será apenas condicional, pois mesmo a palavra eudemonologia não passa de um eufemismo. Ademais, não reclamo completude, em parte porque o tema é inesgotável, e em parte porque teria de repetir o que já foi dito por outros.

Recordo-me somente de um livro escrito com o mesmo propósito que anima esta coleção de aforismos, De utilitate ex adversis capienda [Da Utilidade da Adversidade] de Cardanus, que merece leitura e pode ser empregado como suplemento à presente obra. É verdade que Aristóteles também apresentou uma breve eudemonologia no quinto capítulo de sua Retórica; mas aquilo que disse não chega a muito. Como compilação não é minha área, não me vali desses predecessores; especialmente porque, no processo de compilar, perde-se a coerência e a unidade de vista, os quais constituem o âmago das obras desse gênero. Em geral, os sábios de todos os tempos sempre disseram o mesmo, e os tolos — isto é, a grande maioria de todos os tempos — sempre fizeram o mesmo, ou seja, o oposto; e sempre será assim. Pois, como diz Voltaire, Nous laisserons ce monde-ci aussi sot et aussi méchant que nous l’avons trouvé en y arrivant [partiremos deste mundo tão tolos e maus quanto o encontramos na nossa chegada].

Capítulo I

Divisão fundamental

Aristóteles (Ética a Nicômaco, I. 8) dividiu os bens da vida humana em três classes: aqueles que vêm de fora, aqueles da alma e aqueles do corpo. Preservando dessa divisão somente o número três, observo que as diferenças fundamentais na sina dos homens podem ser reduzidas a três classes distintas:

(1) O que um homem é, ou seja, sua personalidade no sentido mais amplo. Isso inclui saúde, força, beleza, temperamento, caráter moral, inteligência e educação.

(2) O que um homem tem, ou seja, propriedades e posses em todos os sentidos.

(3) O que um homem representa; sabemos que por meio dessa expressão entende-se o que um homem é aos olhos dos demais e, portanto, como é representado por esses. Consiste, assim, na opinião desses ao seu respeito, e pode ser dividida em honra, posição e glória.

As diferenças a serem consideradas em relação à primeira classe são aquelas que a própria natureza estabeleceu entre os homens. Disso pode-se inferir que sua influência sobre a felicidade ou infelicidade da humanidade será muito mais fundamental e radical que aquela abarcada pelas outras duas classes, que são apenas o efeito de decisões e resoluções humanas. Comparados com vantagens pessoais genuínas, como uma grande mente ou um grande coração, todos os privilégios de posição, nascimento, mesmo um nascimento nobre, riqueza e assim por diante, não passam de reis de teatro em comparação com reis na vida real. O mesmo foi dito há muito por Metrodoro, o primeiro discípulo de Epicuro, que deu o seguinte título a um capítulo: majorem esse causam ad felicitatem eam, quae est ex nobis, eâ, quae ex rebus oritur [a causa da felicidade que provém de nós mesmos é maior que aquela proveniente das coisas]. (cf. Clemente de Alexandria, Stromata, II, 21, 362 da edição Würzburg de obras polêmicas). E é óbvio que o elemento principal no bem-estar de um indivíduo — de fato, de todo o seu modo de existir — é aquilo que o constitui, que ocorre dentro dele próprio. Pois isso constitui a fonte imediata de sua satisfação ou insatisfação íntima, que resulta de todo o seu sentir, desejar e pensar. Por outro lado, tudo que o cerca exerce somente uma influência indireta; por esse motivo, os mesmos eventos ou circunstâncias afetam diferentemente cada um de nós; e até com ambientes exatamente iguais, cada qual vive em seu próprio mundo. Pois um homem apenas preocupa-se diretamente com suas próprias ideias, sentimentos e volições; o mundo exterior somente pode influenciá-lo na medida em que traz vida a esses. O mundo em que cada qual vive depende principalmente de sua própria interpretação desse e, assim, mostra-se diferentemente a homens diferentes; para um é pobre, insípido e monótono, para outro é rico, interessante e importante. Por exemplo, apesar de muitos invejarem os acontecimentos interessantes que ocorreram ao longo da vida de um homem, deveriam, em vez disso, invejar seu dom de interpretação que imbuiu tais eventos com a significância que exibem enquanto os descreve. O mesmo evento que parece interessante ao homem de gênio seria somente uma cena monótona e fugidia do mundo corriqueiro quando concebida pela mente superficial de um homem comum. Isso se evidencia no mais elevado grau nos poemas de Goethe e Byron, que obviamente se baseiam em fatos reais. É possível que o leitor tolo inveje o poeta por tantas coisas encantadoras lhe terem sucedido em vez de invejar o grandioso poder imaginativo que foi capaz de transformar uma experiência corriqueira em algo tão notável e belo. Do mesmo modo, um homem de disposição melancólica vê uma cena trágica onde outro, de temperamento sanguíneo, vê apenas um conflito interessante, e uma alma fleumática vê algo trivial e insípido. Isso tudo se deve ao fato de que toda realidade, isto é, todo momento de experiência factual, consiste de duas metades, o sujeito e o objeto, apesar dessas estarem conectadas de modo tão íntimo e necessário como oxigênio e hidrogênio na água. Assim, quando a metade objetiva é exatamente a mesma, mas a subjetiva é diferente, a realidade presente é tão distinta aos olhos de cada indivíduo como se os fatores objetivos fossem diferentes; a melhor e mais encantadora metade objetiva, com uma metade subjetiva embotada e inferior, resulta numa realidade inferior, como uma paisagem magnífica com um clima carregado ou uma reflexão de uma camera obscura ruim. Em palavras claras, todos estão confinados à sua própria consciência assim como estão confinados à sua própria pele; logo, a ajuda externa não é de grande valia. No teatro, um homem é um príncipe, outro é um ministro, um terceiro é um servo, um soldado ou um general, e assim por diante. Tais diferenças, todavia, existem apenas superficialmente; no interior, como o âmago de tal fenômeno, encontramos o mesmo em todos, ou seja, um pobre ator com seus desejos e preocupações. Sucede exatamente o mesmo na vida. Diferenças de posição e riqueza determinam o papel de cada homem, mas certamente não existe uma diferença interna de felicidade e satisfação correspondente a esse papel. Pelo contrário, também aqui há em todos o mesmo pobre-diabo, com suas preocupações e suas misérias. Materialmente, esses podem ser diferentes em cada indivíduo, mas em sua forma — e, portanto, em sua natureza essencial — são basicamente os mesmos, com graus de intensidade que, sem dúvida, variam, mas que de forma alguma correspondem à posição e à riqueza, isto é, ao papel que cabe do indivíduo. Como tudo que existe ou acontece para um homem existe somente em sua consciência e só acontece para esta, a coisa mais essencial para um homem é a constituição de sua consciência, a qual na maior parte dos casos é muito mais importante que as formas que se apresentam nesta. Toda a pompa e prazer do mundo, espelhados na consciência embotada de um tolo, são muito pobres quando comparados com a imaginação de Cervantes escrevendo Don Quixote numa prisão miserável. A metade objetiva da realidade presente está nas mãos do destino, que toma formas diversas em cada caso; a metade subjetiva somos nós próprios, que essencialmente permanece sempre a mesma. Portanto, a vida de todo homem, do princípio ao fim, carrega o mesmo caráter, independentemente de toda mudança exterior, e é comparável a uma série de variações sobre um mesmo tema. Ninguém é capaz de ir além de sua própria individualidade. Um animal, quaisquer sejam as circunstâncias às quais esteja submetido, permanece confinado a um pequeno círculo irrevogavelmente determinado pela natureza, de tal forma que, por exemplo, nossos esforços para agradar um animal de estimação devem sempre se manter dentro dessas fronteiras exatamente devido aos limites de sua verdadeira natureza, restritos ao que esse pode sentir. Acontece o mesmo com o homem; a medida de sua felicidade possível é determinada de antemão por sua individualidade. Particularmente, os limites de seus poderes mentais fixaram em definitivo sua capacidade para prazeres de natureza mais elevada. (cf. O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap. 7) Se tais poderes forem pequenos, nenhum esforço exterior, nada que seus companheiros ou que seu destino fizer será suficiente para elevá-lo além do grau habitual de felicidade humana e prazer meio-animais. O que lhe resta são os prazeres dos sentidos, uma confortável e alegre vida familiar, má companhia e passatempos vulgares. Mesmo a educação, no todo, não pode oferecer muito, se é que oferece algo, para ampliar seu horizonte. Pois os prazeres mais elevados, variados e duradouros são os do espírito, independentemente do quanto nos enganamos em relação a isso na juventude; mas tais prazeres dependem principalmente de nossos poderes intelectuais inatos. É óbvio, portanto, o quanto nossa felicidade depende daquilo que somos, de nossa individualidade, embora normalmente levemos em consideração apenas nossa sorte ou destino, apenas aquilo que possuímos ou representamos. Nossa sorte, nesse sentido, pode melhorar; mas, se formos interiormente ricos, não pediremos muito dela. Por outro lado, um tolo permanece um tolo, um estúpido permanece um estúpido, até o fim de sua vida, mesmo se rodeado por houris no paraíso. Por isso Goethe diz:

Volk und Knecht und Überwinder,
Sie gestehn zu jeder Zeit:
Höchstes Glück der Erdenkinder
Sei nur die Persönlichkeit.

[Povo, servo e mestre, Todos juntos reconhecem, Que o supremo bem dos mortais, É só sua personalidade. (Westöstlicher Diwan)]

Tudo confirma que o subjetivo é incomparavelmente mais essencial à nossa felicidade e prazer que o objetivo, desde dizeres como Fome é o melhor tempero, Juventude e Idade não podem viver juntas, até a vida do gênio e o santo. A saúde sobrepuja os demais bens externos de tal forma que se pode dizer que um mendigo saudável é mais feliz que um rei enfermo. Um temperamento sereno e alegre, feliz em gozar de uma saúde perfeita, uma compreensão nítida, vivaz e penetrante, que vê as coisas corretamente, uma vontade moderada e suave, e, portanto, uma boa consciência — essas são vantagens que nenhuma posição ou riqueza podem compensar ou substituir. Pois aquilo que um homem é por si mesmo, aquilo que o acompanha em sua solidão e aquilo que ninguém pode proporcionar ou subtrair, obviamente, lhe é mais essencial que tudo o que possui, ou mesmo ao que pode ser aos olhos dos outros. Um homem de intelecto, em completa solidão, encontra um excelente entretenimento em seus próprios pensamentos e imaginação, enquanto a contínua diversidade de festas, peças, excursões e diversões é incapaz de proteger um tolo das torturas do tédio. Um indivíduo bom, moderado, brando pode ser feliz em circunstâncias adversas, enquanto outro, ambicioso, invejoso e malicioso, mesmo sendo o mais rico do mundo, sente-se miserável. De fato, para o homem que desfruta da constante satisfação de uma individualidade extraordinária e intelectualmente eminente, a maioria dos prazeres perseguidos pela humanidade é simplesmente supérflua; são apenas um estorvo e um fardo. Assim, Horácio diz de si próprio:

Gemmas, marmor, ebur, Tyrrhena sigilla, tabellas,
Argentum, vestes Gaetulo murice tinctas,
Sunt qui non habeant, est qui non curat habere;

[Marfim, mármore, berloques, estátuas tirrenas, pinturas, prataria, roupas tingidas de púrpura getuliana, Muitos passam sem tais coisas, outros sequer se importam. (Epistulae, II.2.180.)]

e quando Sócrates viu vários artigos de luxo postos à venda, disse: Quantas coisas há no mundo das quais não preciso!

Assim, para a felicidade de nossa vida, aquilo que somos, nossa personalidade, é absolutamente primária e essencial; no mínimo porque é um fator constante, influente em quaisquer circunstâncias. Ademais, diferentemente dos bens descritos nas outras duas classes, não está sujeita à sorte e não nos pode ser subtraída. Sendo, nesse sentido, dotada de um valor absoluto em contraste com o valor apenas relativo das outras duas. Segue-se disso que controlar um homem externamente é muito mais difícil do que se supõe normalmente. Mas aqui o agente todo-poderoso, Tempo, exercita seu direito, e vantagens físicas e mentais sucumbem lentamente ante sua influência; apenas o caráter moral permanece inacessível. Tendo em vista o efeito destrutivo do tempo, naturalmente pareceria que os bens enumerados nas outras duas classes, os quais o tempo não pode nos roubar diretamente, têm uma vantagem sobre aqueles da primeira. Uma segunda vantagem poderia ser encontrada no fato de que tais bens existem de modo objetivo, de que são acessíveis por natureza, e que todos têm diante de si ao menos a chance de possuí-los, enquanto que o subjetivo não é passível de aquisição, mas introduz-se jure divino [por direito divino] e é fixado permanentemente por toda a vida, de modo que as palavras de Goethe inexoravelmente se aplicam:

Wie an dem Tag, der dich der Welt verliehen,
Die Sonne stand zum Gruße der Planeten,
Bist alsobald und fort und fort gediehen,
Bach dem Gesetz, wonach du angetreten.
So musst du sein, dir kannst du nicht entfliehen,
So sagten schon Sibyllen, so Propheten;
Und keine Zeit und keine Macht zerstückelt
Geprägte Form, die lebend sich entwickelt.

[Como no dia que te deu ao mundo, O sol estava ali para saudar os planetas, Tu também te hás engrandecido sem cessar, Em virtude da lei segundo a qual havias começado. Tal é teu destino; não podes fugir, Assim falaram as Sibilas e os Profetas; Nenhum tempo, nenhum poder quebranta A forma impressa que se desenrola no curso da vida.]

Nesse sentido, a única coisa que permanece ao nosso alcance é tirar o máximo proveito possível de nossa personalidade e, portanto, seguir apenas aquelas tendências com as quais está de acordo, lutando pelo tipo de desenvolvimento apropriado, evitando todo o mais; consequentemente, escolher a posição, ocupação e estilo de vida que sejam adequados.

Um homem de força hercúlea, dotado de poder muscular excepcional, que é levado a desempenhar uma atividade sedentária por circunstâncias externas, realizar tarefas diminutas e intrincadas manualmente ou dedicar-se a estudos e trabalhos mentais que exigem poderes completamente distintos daqueles que possui, consequentemente, deixando em desuso os poderes nos quais se sobressai, nunca em sua vida será feliz. Ainda mais infeliz será o homem dotado de poderes intelectuais de altíssima ordem que precisa deixá-los inexplorados para executar tarefas comuns, nas quais seu emprego é desnecessário, ou mesmo tarefas físicas para as quais sua força é inadequada. Ainda assim, especialmente na juventude, devemos nos policiar quanto a conclusões precipitadas que nos atribuam mais poderes do que possuímos.

Tendo em vista a evidente superioridade dos bens da primeira classe em relação aos das outras duas, segue-se que é mais sábio ter como meta a manutenção de nossa saúde e o cultivo de nossas faculdades que a aquisição de riqueza. Todavia, isso não deve ser entendido no sentido de que devemos negligenciar a aquisição do que é necessário e apropriado. Riqueza, no sentido estrito, isto é, grande superfluidade, pode realizar pouco pela nossa felicidade. Muitas pessoas ricas são infelizes porque carecem de qualquer cultura mental, de qualquer conhecimento e, portanto, de qualquer interesse objetivo que poderia qualificá-las para atividades intelectuais. Aquilo que a riqueza pode proporcionar, além da satisfação de certas necessidades reais e naturais, tem pouca influência sobre nossa felicidade propriamente dita; pelo contrário, esta é perturbada pelas muitas e inevitáveis preocupações envolvidas na preservação de grandes propriedades. Contudo, os indivíduos são mil vezes mais preocupados em se tornarem ricos que na aquisição de cultura, embora seja quase certo que aquilo que somos contribui muito mais à nossa felicidade que aquilo que temos. Então vemos muitos, industriosos como formigas, trabalhando incessantemente para ampliar a riqueza que já possuem. Além do estreito horizonte dos meios para esse fim, não sabem nada; suas mentes estão em branco e, consequentemente, impassíveis de quaisquer outras influências. Os prazeres mais elevados, aqueles do espírito, lhes são inacessíveis e em vão tentam substituí-los pelos fugidios prazeres dos sentidos, aos quais se entregam ocasionalmente com pouco gasto de tempo, mas muito de dinheiro. Com boa sorte, no fim de suas vidas terão como resultado uma enorme quantidade de dinheiro, que então deixam para seus herdeiros, seja para ampliá-la ainda mais ou esbanjá-la. Tal vida, embora exercida com grande seriedade e um ar de importância, é tão tola quanto tantas outras que têm um chapéu de burro como símbolo.

Aquilo que um homem tem em si próprio é, portanto, o elemento mais essencial à sua felicidade. Devido a isso, em regra, a maior parte daqueles que estão à parte da luta contra a penúria no fundo sentem-se tão infelizes quanto os que se encontram engajados nesta. O vazio de suas vidas interiores, a obtusidade de suas consciências, a pobreza de suas mentes os levam à companhia de outros homens como a si mesmos, pois similis simili gaudet [cada qual com o seu igual]. Procuram, então, passatempo e entretenimento em comum, inicialmente em prazeres sensuais, em diversões de toda espécie e, finalmente, no excesso e libertinagem. A origem de tal extravagância deplorável, por meio da qual muitos jovens de famílias abastadas, ao ingressarem na vida com um grande patrimônio, comumente atravessam-na com extrema rapidez, não é outra senão o tédio que emerge da pobreza e vacuidade mentais que acabei de descrever. Esse jovem foi lançado no mundo com riquezas exteriores, mas interiormente pobre, e em vão procurou compensar sua pobreza interna tentando obter tudo do exterior, analogamente a homens idosos que tentam se fortalecer através do fôlego de mulheres jovens. No fim, a pobreza interior também produziu pobreza externa.

É desnecessário enfatizar a importância dos outros dois tipos de bens responsáveis pela felicidade na vida humana. Pois, nos dias de hoje, o valor das posses é reconhecido tão universalmente que dispensa recomendações. Comparada com a segunda classe, a terceira aparenta um caráter muito etéreo, visto que consiste apenas nas opiniões dos demais. Não obstante, todos precisam empenhar-se pela honra, isto é, um bom nome; a posição é aspirada apenas por aqueles que servem o Estado, e a glória por realmente muito poucos. Entretanto, a honra é tida como um tesouro inestimável, e a glória como o bem mais precioso que um homem pode alcançar, o Tosão de Ouro dos eleitos; por outro lado, apenas tolos prefeririam posição à riqueza. Ademais, os bens da segunda e terceira classes agem e reagem entre si na medida em que a máxima de Petrônio habes, habeberis [um homem vale aquilo que possui] estiver correta; em contrapartida, opiniões favoráveis de outrem, em todas as formas, auxiliam-nos na obtenção de posses.

Capítulo II

O que um homem é

Como já vimos em linhas gerais, aquilo que um homem é contribui muito mais à sua felicidade que aquilo que possui ou representa. Essa sempre depende daquilo que o homem é e, portanto, encerra em si próprio; pois sua individualidade o acompanha em todo tempo e lugar, e assim esta colore tudo aquilo que vivencia. Em toda espécie de gozo, o homem encontra prazer principalmente em si próprio; se isso é verdadeiro em relação aos prazeres físicos, então quão mais em relação àqueles do intelecto! As palavras inglesas to enjoy oneself [divertir-se] constituem uma expressão muito adequada; por exemplo, não dizemos he enjoys Paris [ele gosta de Paris], mas he enjoys himself in Paris [ele diverte-se em Paris]. Porém, se a individualidade estiver mal condicionada, todos os prazeres serão como vinhos finos numa boca impregnada de fel. Assim, se deixarmos de lado os casos de grande infortúnio, tanto nas coisas boas quanto nas ruins, importa menos aquilo que acontece conosco que o modo como o encaramos, isto é, nossa natureza e grau de suscetibilidade geral. Aquilo que um homem é e tem em si, ou seja, sua personalidade e seu valor, é o único fator imediato em sua felicidade e bem-estar. Todo o resto é mediato e indireto, de modo que sua influência pode ser neutralizada e frustrada; mas nunca a influência da personalidade. Por tal razão, a inveja incitada por qualidades pessoais é a mais implacável, e também a mais cuidadosamente dissimulada. Ademais, a constituição de nossa consciência é o elemento presente e permanente em tudo que fazemos ou sofremos; nossa individualidade trabalha mais ou menos incessantemente durante toda a nossa vida; todas as outras influências, por outro lado, são temporais, ocasionais, fugazes e sujeitas à variação e à mudança. Aristóteles disse: nam natura perennis est, non opes [a natureza é eterna, não as coisas. (Ética a Eudemo, VII. 2)]. Isso se deve ao fato de que podemos suportar mais facilmente um infortúnio que nos atinge externamente que aquele que criamos para nós mesmos, pois o destino pode mudar, mas nunca nossa própria natureza. Desse modo, bens subjetivos como um caráter nobre, uma mente privilegiada, um temperamento aprazível, uma alma radiante e um corpo bem constituído, perfeitamente são, numa palavra, mens sana in corpore sano [mente sã em corpo são (Juvenal, Sátiras, X. 356)], são os elementos primários e principais à nossa felicidade. Assim, devemos nos preocupar muito mais com a preservação de tais qualidades que com a aquisição de riquezas e honras externas.

E, de todas essas qualidades, aquela que nos torna mais imediatamente felizes é a disposição alegre; pois essa excelente qualidade é sua própria recompensa imediata. Aquele que é alegre e jovial sempre tem uma boa razão para assim ser — o próprio fato de sê-lo. Nada pode compensar tão bem pela perda de qualquer outro bem como essa qualidade, enquanto que ela própria não pode ser substituída por nenhuma outra. Um homem pode ser jovem, belo, rico e estimado; se quisermos saber de sua felicidade, devemos perguntar se é alegre. Por outro lado, se for alegre, não importa se é jovem ou velho, aprumado ou corcunda, rico ou pobre; ele é feliz. Em minha juventude, certa vez abri um velho livro e encontrei estas palavras: Aquele que ri muito é feliz; aquele que chora muito é infeliz, uma observação muito singela, tão evidente que fui incapaz de esquecê-la, não obstante que seja o superlativo de um truísmo. Por isso devemos sempre manter nossas portas abertas à alegria, pois sua presença nunca é inoportuna. Em vez disso, frequentemente hesitamos em deixá-la entrar, pois antes queremos saber se temos motivos suficientes para estarmos contentes; ou porque receamos ser atrapalhados pela alegria quando estamos envolvidos em deliberações sérias e cuidados importantes. Mas aquilo que se ganha com isso é muito incerto, enquanto que a alegria é um ganho imediato. Apenas esta é, por assim dizer, a verdadeira moeda da felicidade e não, como todo o resto, apenas um cheque em branco; pois é a única coisa que pode nos tornar imediatamente felizes no momento presente. Assim sendo, constitui o maior dos bens para seres cuja realidade apresenta a forma de um momento presente infinitesimal situado entre duas eternidades. Assegurar e promover esse bem constitui o objetivo supremo na busca pela felicidade. É certo que nada contribui menos à alegria que a riqueza, e nada contribui mais que a saúde. As classes baixas ou os trabalhadores, especialmente aqueles que vivem no campo, têm as expressões mais alegres e contentes; a rabugice e o mau-humor estão em casa entre os ricos, as classes altas. Consequentemente, devemos fazer todo o possível para manter um alto grau de saúde, pois seu florescer é a própria alegria. Para tal fim, como se sabe, devemos evitar excessos e irregularidades, todas as emoções violentas e desagradáveis, todo o esforço mental demasiado grande ou prolongado, realizar exercícios diários a céu aberto, banhos frios e medidas similares. Pois, sem a quantidade adequada de exercício diário, ninguém pode permanecer saudável; todos os processos vitais requerem exercício para funcionarem corretamente, não apenas as áreas mais diretamente envolvidas, mas também o corpo como um todo. Pois, como Aristóteles corretamente diz, a vida é movimento. A vida consiste de movimento e nisso reside sua própria essência. Movimentos rápidos e incessantes ocorrem em todas as partes do organismo; o coração, com seu complicado movimento duplo de sístole e diástole, bate impetuosamente e incansavelmente; com vinte e oito batidas, conduz a massa inteira de sangue através de todas as artérias, veias e capilares; os pulmões bombeiam incessantemente como uma máquina a vapor; os intestinos se contraem sem cessar em motus peristalticus [movimento peristáltico]; todas as glândulas absorvem e secretam sem interrupção; mesmo o cérebro tem seu próprio movimento duplo com cada batimento cardíaco e cada aspiração do pulmão. Quando há uma ausência quase completa de movimento externo, como ocorre no gênero sedentário de vida de tantos indivíduos, resulta uma notável e perniciosa desproporção entre o repouso externo e o tumulto interno. Pois o constante movimento interno requer auxílio parcial por parte do exterior. Essa falta de proporção é análoga ao caso onde, em consequência de alguma emoção, irrompe dentro de nós algo que somos obrigados a suprimir. Até as árvores, para florescer, precisam ser agitadas pelo vento. Aqui se aplica uma regra que pode ser anunciada de forma mais concisa em latim: omnis motus, quo celerior, eo magis motus [quanto mais rápido é um movimento, tanto mais é movimento]. Para vermos o quanto nossa felicidade depende de uma disposição alegre, e esta do nosso estado de saúde, comparemos a influência que as mesmas circunstâncias externas ou eventos têm sobre nós quando saudáveis e vigorosos com a que se produz quando um estado enfermo nos deixa deprimidos e inquietos. Não são as coisas objetivamente e nelas mesmas, mas o que são para nós e para nossa percepção aquilo que nos torna felizes ou infelizes. Isso é exatamente o que Epíteto diz: commovent homines non res sed de rebus opiniones [não são as coisas que comovem os homens, mas suas opiniões sobre as coisas]. Em geral, nove décimos de nossa felicidade dependem somente da saúde. Com ela, tudo se transforma numa fonte de prazer, enquanto que sem ela não podemos desfrutar de nada, qualquer seja a sua natureza, e mesmo os outros bens subjetivos, como qualidades mentais, disposição e temperamento, são degradados e diminuídos pela saúde precária. Assim, não é sem razão que, quando duas pessoas se encontram, primeiramente perguntam sobre o estado de saúde uma da outra, esperando que estejam bem; porque isso, de fato, é o que há de mais importante para a felicidade. Segue-se que a maior das tolices é sacrificar nossa saúde a qualquer coisa, seja riqueza, carreira, estudos, glória e, especialmente, prazeres sensuais e outros gozos fugidios; em vez disso, deveríamos colocar a saúde em primeiro lugar.

Por maior que seja a contribuição da saúde à alegria, que é tão essencial à felicidade, essa não depende apenas da saúde; porque, mesmo com uma saúde perfeita, podemos ter um temperamento melancólico e uma disposição predominantemente triste. A razão para isso, sem dúvida, encontra-se na constituição primária e, por conseguinte, inalterável do organismo, e mais especificamente na relação mais ou menos normal da sensibilidade com a irritabilidade e o poder de reprodução. Uma sensibilidade excessiva produzirá uma desigualdade de humor, excessos de alegria periódicos e melancolia predominante. Como o gênio é condicionado por um excesso de força nervosa e, assim, de sensibilidade, Aristóteles muito corretamente observou que todos os homens ilustres e eminentes são melancólicos: Todos os homens que se distinguiram na filosofia, na política, na poesia ou nas artes parecem ter sido melancólicos (Problemata, 30, I, Berlin edn.). Essa, sem dúvida, é a passagem que Cícero tinha em mente naquela frase tão citada, Aristoteles ait, omnes ingeniosos melancholicos esse [Aristóteles diz que todos os homens de gênio são melancólicos. (Tusculanae disputationes, I. 33)]. Shakespeare fez uma descrição muito graciosa da grande e inata diversidade do temperamento geral:

Nature hath fram’d strange fellows in her time:
Some that will evermore peep through their eyes,
And laugh, like parrots, at a bag-piper;
And others of such vinegar aspect,
That they’ll not show their teeth in way of smile,
Though Nestor swear the jest be laughable.

[A natureza, agora, confecciona sujeitos bem curiosos: uns, de olhos apertados, riem, como papagaio trepado numa gaita de foles; outros andam com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram à guisa de sorriso, muito embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa. (O Mercador de Veneza, ato I, cena I)]

Essa é exatamente a diferença descrita por Platão com as expressões δύσκολος [de humor difícil] e εὔκολος [de humor fácil], a qual pode ser relacionada à grande diversidade de suscetibilidade exibida por pessoas diferentes perante impressões agradáveis e desagradáveis, em consequência da qual um homem ri daquilo que leva outro ao desespero. Normalmente, quanto mais fraca é a suscetibilidade a impressões agradáveis, maior é para as desagradáveis, e vice versa. Com possibilidades iguais e êxito ou fracasso de um evento, o δύσκολος ficará incomodado ou angustiado se o evento fracassar, mas não se alegrará com o êxito. Por outro lado, o εὔκολος não ficará incomodado ou angustiado se o evento fracassar, mas se regozijará se houver êxito. Se o δύσκολος tiver, em seus empreendimentos, sucesso em nove de dez, não ficará satisfeito, mas contrariado porque um dos empreendimentos fracassou. Por outro lado, o εὔκολος é capaz de encontrar consolo e alegria mesmo num único êxito no empreendimento. Assim como dificilmente encontramos um mal sem compensação, mesmo aqui vemos que o δύσκολος e, portanto, aqueles de caráter sombrio e inquieto, tendem a suportar mais desgraças e sofrimento imaginários, enquanto, em contrapartida, menos desgraças e sofrimentos reais que os de caráter alegre e despreocupado. Pois o homem que vê tudo negro sempre pensa no pior e, assim, tomando precauções, não terá desilusões tão frequentes como aquele que vê as coisas em cores e perspectivas promissoras. Todavia, quando uma afecção mórbida do sistema nervoso ou do aparelho digestório manifesta um δυσκολία [mau humor] inato, isso pode chegar ao grau em que a insatisfação permanente produz um cansaço de viver e, consequentemente, surge uma tendência ao suicídio. Mesmo a menor contrariedade pode provocá-lo; quando o mal atinge o grau mais elevado, a contrariedade nem mesmo é necessária. Pelo contrário, um homem decide cometer suicídio apenas em consequência de uma insatisfação permanente; o suicídio é cometido com deliberação tão fria e resolução firme que o enfermo — nesta etapa, normalmente já sob certa supervisão — se vale do primeiro momento oportuno para recorrer, sem hesitação, sem esforço ou espanto, à forma de alívio que, naquele momento, é tão natural e oportuna. Descrições detalhadas desse estado mental são fornecidas por Esquirol em Des maladies mentales. Mesmo o homem mais saudável, talvez mesmo o mais alegre, pode em certas circunstâncias decidir cometer suicídio, por exemplo, quando a magnitude de seu sofrimento ou desgraça inevitável são maiores que os terrores da morte. A diferença está somente na magnitude do sofrimento necessário, que é inversamente proporcional ao grau de δυσκολία. Quanto maior for esse, tanto menor poderá ser o motivo, até chegar a zero. Pelo contrário, quanto maior for o εὐκολία [bom humor] e a saúde que o sustenta, tanto maior deverá ser o peso do motivo. Há, pois, inumeráveis casos entre os dois extremos do suicídio, entre seu surgimento de uma intensificação mórbida de um δυσκολία inato e de seu surgimento no homem saudável e alegre, oriundo de motivos puramente objetivos.

A beleza é parcialmente análoga à saúde. Apesar de esse bem subjetivo não contribuir diretamente à nossa felicidade, mas apenas indiretamente, pela impressão que produz em outrem, tem, não obstante, uma grande importância até mesmo ao homem. A beleza é uma carta aberta de recomendação que nos conquista corações de antemão; especialmente aqui se aplicam os versos de Homero:

Não se despreza os dons gloriosos dos deuses,
Que eles somente podem dar e que ninguém
Pode aceitar ou recusar por capricho.

(Ilíada, III, 65.)

Uma análise geral evidencia que a dor e o tédio são os dois inimigos da felicidade humana. Ademais, pode-se observar que, na medida em que conseguimos nos afastar de um, nos aproximamos do outro, e vice versa. E assim nossa vida realmente denota uma oscilação mais ou menos violenta entre ambos. Isso se origina do fato de que os dois têm entre si um antagonismo duplo, um exterior ou objetivo, e outro interior ou subjetivo. Externamente, necessidade e privação produzem dor; por outro lado, segurança e abundância engendram tédio. Assim, vemos as classes baixas lutando constantemente contra a privação e, portanto, contra a dor; por outro lado, as classes altas e ricas estão engajadas numa constante e, não raro, desesperada luta contra o tédio. [1] O antagonismo interior ou subjetivo entre a dor e o tédio deve-se ao fato de que, num indivíduo, sua suscetibilidade a um mal é inversamente proporcional à sua suscetibilidade ao outro, visto que isso é determinado pelo seu grau de capacidade intelectual. Porque a obtusidade mental é geralmente acompanhada pela obtusidade das sensações e ausência de sensibilidade, qualidades que tornam o indivíduo menos suscetível às dores e aflições de todo gênero e intensidade. Por outro lado, o resultado dessa obtusidade mental é o vazio interior que se estampa em inúmeros semblantes e que se evidencia por uma constante e vívida atenção a todos os acontecimentos do mundo exterior, mesmo os mais banais. Esse vazio é a verdadeira fonte do tédio, e continuamente almeja excitações externas como pretexto para ocupar sua mente e seus sentidos. O tipo de coisa que indivíduos escolhem para tal fim mostra que não são meticulosos, como evidenciado pelos miseráveis e infelizes passatempos aos quais as pessoas recorrem e também pela natureza de sua sociabilidade e conversação, e não menos pelo grande número de imbecis e mexeriqueiros que andam pelo mundo. O resultado principal desse vazio interior é a busca por reuniões, diversões, prazeres e luxo de toda espécie, conduzindo muitos à extravagância e, assim, à miséria. Nada nos protege mais certamente desses extravios como a riqueza interior, a riqueza do espírito, pois quanto mais eminente esse se torna, menos espaço resta para o tédio. O exercício incessante dos pensamentos, sua atividade constantemente renovada em presença das manifestações diversas do mundo interior e exterior, a força e a capacidade das combinações sempre diferentes, situam um espírito eminente, exceto nos momentos de fadiga, fora do alcance do tédio. Por outro lado, essa inteligência superior é diretamente condicionada por uma sensibilidade elevada e está enraizada numa maior impetuosidade da vontade e, por conseguinte, da paixão. Da união dessas qualidades resulta uma intensidade muito maior de todas as emoções e uma elevada sensibilidade às dores espirituais e também às físicas, uma impaciência ainda maior na presença de obstáculos ou maior rancor pelo empecilho. Tudo isso contribui grandemente para um aumento de todo o espectro de pensamentos e concepções, logo, também de ideias desagradáveis, cuja vivacidade se origina da força da imaginação. Isso se aplica, guardadas as proporções, a todos os estágios intermediários entre os dois extremos, do imbecil mais obtuso até o maior o gênio. Por conseguinte, tanto objetivamente como subjetivamente, quanto mais alguém se aproxima de uma dessas fontes de sofrimento humano, mais se distancia da outra. Sua tendência natural, então, o levará a adaptar, tanto quanto possível, o objetivo ao subjetivo e, dessa forma, precaver-se contra aquela fonte de sofrimento à qual é mais suscetível. Os homens inteligentes e sábios buscarão, primeiramente, se libertar do sofrimento e das moléstias, e encontrar quietude e repouso, isto é, uma vida tranquila e modesta que se resguarda ao máximo de transtornos. Depois de alguma convivência com o que se denomina seres humanos, optarão por uma vida de isolamento ou, no caso de um intelecto elevado, de solidão. Pois quanto mais um homem encontra em si próprio, tanto menos precisa do exterior e menos úteis podem ser as demais pessoas. Por esse motivo, um homem de intelecto elevado tende à insociabilidade. Na verdade, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, talvez valesse a pena viver no vasto mundo; mas, infelizmente, uma centena de tolos aglomerados ainda não produziria um homem inteligente. Por outro lado, assim que a necessidade e a privação permitirem ao homem no outro extremo recuperar o fôlego, buscará a qualquer custo passatempo e companhia, e se acomodará prontamente a qualquer coisa, desejando, acima de tudo, fugir de si mesmo. Na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo. O tolo em trajes finos suspira sob o fardo de sua própria individualidade miserável, da qual não pode se livrar, enquanto o homem de grandes dotes povoa e anima com seus pensamentos a região mais deserta e desolada. Há, pois, muita verdade no que Sêneca diz: omnis stultitia laborat fastidio sui [toda estultice sofre o fastio de si mesma. (Epistulae, 9)], e também na sentença de Jesus de Sirach, A vida de um tolo é pior que a morte. Logo, em geral, constataremos que todos são sociáveis na medida em que são intelectualmente pobres e vulgares. [2] Pois, neste mundo, temos pouca escolha entre a solidão e a vulgaridade. Supõe-se que os seres humanos mais sociáveis são os negros, os quais, sem dúvida, são intelectualmente inferiores. Lembro-me de ter lido num periódico francês (Le Commerce, 19 Outubro 1837) que os negros na América do Norte, tanto os livres quanto os escravos, se reúnem em grande número nos menores espaços, pois nunca se cansam de ver refletidas suas caras negras de nariz achatado. O cérebro, pois, parece ser um parasita ou inquilino do organismo inteiro, e o ócio, isto é, o tempo que cada um tem para desfrutar livremente da própria consciência ou individualidade, é o fruto ou resultado de toda a sua existência, que em geral consiste apenas de trabalho e dor. Mas o que resulta do ócio da maioria dos homens? Tédio e imbecilidade; exceto quando estão ocupados com prazeres sensuais ou desvarios. O modo como tais pessoas desfrutam de seu ócio demonstra que esse não vale nada; é o ozio lungo d’uomini ignoranti [tédio dos homens ignorantes] de Ariosto. O homem vulgar só pensa em como passar o tempo; o homem de talento tenta aproveitá-lo. Indivíduos de inteligência limitada estão tão expostos ao tédio porque seu intelecto não passa de um intermediário dos motivos para sua vontade. Se em certo momento não houver quaisquer motivos particulares para pôr a vontade em ação, essa repousa e seu intelecto tira folga, pois, assim como a vontade, esse requer algo externo para entrar em atividade. O resultado é uma terrível estagnação de todos os poderes do homem por completo, isto é, tédio. Para combatê-lo, os homens se lançam em trivialidades que agradam provisoriamente a fim de estimular a vontade e, assim, por em atividade o intelecto, que terá de interpretá-las. Tais motivos são, pois, em relação aos motivos reais e naturais, aquilo que o papel-moeda é em relação ao dinheiro, visto que seu valor é determinado arbitrariamente. Tais motivos são jogos de cartas e outros, que foram inventados exatamente para esse propósito. Na falta desses, o homem de inteligência limitada por-se-á a batucar e brincar com tudo aquilo que cair em suas mãos. Até mesmo um cigarro é bem-vindo como substituto para o pensamento. Por isso, em todos os países, o principal entretenimento da sociedade é o jogo de cartas; é a medida do valor dessas reuniões e a manifesta bancarrota de todas as ideias e pensamentos. Não tendo nenhuma ideia para trocar, trocam cartas, e tentam ganhar o dinheiro uns dos outros. Que espécie deplorável! Para não ser injusto, não deixo de dizer que, em defesa dos jogos de carta, poderia ser explicado como um treinamento preliminar para a vida no mundo dos negócios, na medida em que é uma maneira de aprender a aproveitar-se inteligentemente das circunstâncias invariáveis estabelecidas pelo azar (das cartas, neste caso) a fim de extrair delas o máximo possível. Para tal finalidade, precisamos aprender um pouco de dissimulação e como dar uma cara boa a um mau negócio. Exatamente por isso, o jogo de cartas tem um efeito desmoralizante, visto que o espírito do jogo é ganhar aquilo que outro possui através de quaisquer meios, truques e estratagemas. Mas o hábito de proceder dessa forma, adquirido no jogo, se arraiga, se infiltra na vida prática e, nas questões do dia-a-dia, o homem gradualmente passa a proceder da mesma maneira quando se trata de meum e tuum, considerando justificáveis quaisquer vantagens que tiver em mãos, conquanto sejam permitidas legalmente. Os acontecimentos vulgares provam-no todos os dias. Como disse, o ócio livre é a flor, ou melhor, o fruto da existência de todo indivíduo, visto que apenas esse o coloca em posse de si próprio. Devemos, pois, julgar felizes aqueles que preservam em si próprios algo de valor; mas, para a maioria, o ócio resulta somente numa criatura imprestável que é terrivelmente entediada e um fardo para si mesma. Alegremo-nos, pois, meus queridos irmãos, de ser filhos não de escravas, mas de mães livres. (Gálatas 4:31)

Ademais, assim como o país mais feliz é aquele que tem pouca ou nenhuma necessidade de importação, também o homem mais afortunado é aquele a quem basta sua própria riqueza interior e que requer para seu entretenimento e diversão pouco ou nada do exterior. Pois importações são custosas, tornam-nos dependentes, implicam perigos, ocasionam problemas e incômodos e, no fim, são apenas um substituto inferior para a nossa própria produção. Não devemos esperar muito dos outros ou do mundo exterior em geral. Aquilo que um homem pode ser para outro não é grande coisa; no fim, todos acabam sozinhos, e a grande questão é quem está sozinho. A esse propósito, Goethe observou (Dichtung und Wahrheit, vol. III, p. 474) de maneira geral que, essencialmente, em todas as coisas, cada qual está reduzido a si próprio, ou, como diz Oliver Goldsmith:

Still to ourselves in ev’ry place consign’d,
Our own felicity we make or find.

[Reduzidos em qualquer lugar a nós mesmos, criamos ou encontramos nossa felicidade. (O Viajante, II. 431 e seg.)]

Cada qual deve, por si próprio, ser e proporcionar-se o melhor e o mais importante. Quanto mais esse for o caso, quanto mais o indivíduo encontrar em si próprio as causas de seus prazeres, mais feliz será. Portanto, com razão Aristóteles diz: a felicidade pertence àqueles que se bastam a si mesmos (Ética a Eudemo, VII. 2). Pois todas as fontes externas de felicidade e prazer são, por natureza, extremamente incertas, precárias, fugidias e sujeitas a mudança; portanto, mesmo sob as circunstâncias mais favoráveis, podem facilmente se esgotar; com efeito, isso é inevitável, pois nem sempre estão ao nosso alcance. Em idade avançada, quase todas essas fontes de felicidade inevitavelmente se exaurem, pois somos abandonados pelo amor, humor, prazer das viagens e da equitação, aptidão para relações sociais; amigos e parentes também nos são tomados pela morte. Aquilo que se possui em si mesmo adquire, neste período, importância capital, pois é a única coisa que resistirá ao tempo; em qualquer idade, isso é e permanece a única fonte genuína e duradoura de felicidade. Não há muito a se ganhar com o mundo; a miséria e a dor preenchem-no; se um homem escapar-lhes, o tédio estará à espreita em cada canto. Ademais, são a baixeza e a perversidade que governam o mundo, e a tolice predomina. O destino é cruel e a humanidade é desprezível. Em um mundo dessa natureza, o indivíduo rico em si mesmo é como uma habitação iluminada, quente e alegre em meio à neve e ao gelo de uma noite de dezembro. Por conseguinte, o destino mais afortunado nesta terra é, sem dúvida, possuir uma individualidade distinta e rica, e, particularmente, bons dotes intelectuais; esse é o destino mais feliz, embora talvez não seja, no fim, o mais brilhante. Havia muita sabedoria na observação que a Rainha Cristina de Suécia, aos dezenove anos, fez sobre Descartes, a quem só conhecia por meio de um ensaio e de relatos verbais e que então vivera na Holanda por vinte anos na mais profunda solidão. Mr. Descartes est le plus heureux de tous les hommes, et sa condition me semble digne d’envie [Descartes é o mais feliz de todos os homens, e sua condição me parece digna de inveja. (Vie de Descartes, Baillet, VII, 10)]. Naturalmente, como foi o caso com Descartes, as circunstâncias externas devem ser favoráveis o bastante para permitir que um homem seja seu próprio mestre, satisfeito com aquilo que é. Por isso, Eclesiastes (7:11) diz: Tão boa é a sabedoria como a herança, e dela tiram proveito os que veem o sol. O homem ao qual a natureza e o destino concederam o dom da sabedoria velará e cuidará para assegurar que a fonte interior de sua felicidade permaneça acessível, e as condições para isso são a independência e o ócio. E os obterá, de bom grado, pelo preço da moderação e da parcimônia, visto que não está, como outros, restrito às fontes exteriores de prazer. Por isso a perspectiva dos cargos, do dinheiro, do favor e da aprovação do mundo não o induzirão a renunciar a si próprio a fim de adaptar-se às perspectivas sórdidas ou ao gosto vulgar dos homens. [3] Quando esse for o caso, seguirá o conselho dado por Horácio em sua epístola a Mecenas: Nec somnum plebis laudo, satur altilium, nec Otia divitiis Arabum Liberrima muto [não faço elogio ao sono da plebe nem troco meu ócio pelos tesouros da Arábia (I, 7)]. É uma grande tolice sacrificar o interior em troca do exterior, isto é, abdicar, em todo ou em parte, da quietude, do ócio e da independência pelo esplendor, a posição, a pompa, os títulos e as honras. Entretanto, foi o que Goethe fez; pessoalmente, meu gênio me tem conduzido decididamente ao caminho oposto.

A verdade aqui examinada, de que a principal causa da felicidade humana vem de dentro de nós próprios, também é confirmada pela observação muito acertada de Aristóteles em Ética a Nicômaco (I. 7; e VII. 13, 14), onde diz que todo prazer pressupõe algum tipo de atividade e, portanto, a aplicação de alguma forma de força, sem a qual não pode existir. Esse ensinamento aristotélico, de que a felicidade do homem consiste no livre exercício de suas faculdades mais elevadas, também é apresentado por Estobeu em sua exposição da moral peripatética (Eclogae ethicae, II, 7), por exemplo: felicitatem esse functionem secundum virtutem, per actiones successus compotes [a felicidade consiste em exercer as próprias virtudes em trabalhos que atingem os resultados desejados]; explica também que por ἀρέτη [virtude] designa toda forma de maestria. Assim sendo, o propósito original dessas forças que a natureza proveu ao homem é a luta contra a necessidade e a privação, que o assaltam por todas as partes. Quando essa luta cessa, suas forças sem emprego se transformam em um fardo, e então precisa jogar com elas, isto é, usá-las sem qualquer objetivo, pois, do contrário, expõe-se à outra fonte de sofrimento humano, o tédio. Assim, são as classes altas, os ricos, as maiores vítimas desse mal, e Lucrécio nos forneceu uma descrição de sua condição lamentável. A verdade desta descrição ainda pode ser reconhecia nos dias de hoje em todas as grandes cidades:

Exit saepe foras magnis ex aedibus ille,
Esse domi quem pertaesum est, subitoque reventat;
Quippe foris nihilo melios qui sentiat esso.
Currit, agens mannos, ad villam praecipitanter,
Auxilium tectis quasi ferre ardentibus instans:
Oscitat exemplo, tetigit quum limina villae;
Aut abit in somnum gravis, atque oblivia quaerit;
Aut etiam properans urbem petit, atque revisit.

[Frequentemente sai dos grandes palácios aquele que está aborrecido de estar em casa, e volta em um momento porque não se sente melhor que em casa. Ou corre desesperadamente à sua casa de campo como se levasse socorro a uma casa incendiada. Mas assim que cruza os umbrais, boceja de tédio ou cai num sono profundo buscando esquecer a si próprio, a não ser que prefira retornar à cidade. (De natura Deorum, III, 1060—7.)]

Em sua juventude, esses indivíduos provavelmente tiveram uma abundância de força muscular e reprodutora. Com o passar dos anos, restam apenas os poderes mentais; se houver falta desses ou dos materiais necessários à sua atividade, sua condição é miserável. Visto que a vontade é a única força inesgotável, tentam estimulá-la excitando as paixões, por exemplo, com grandes apostas em jogos de azar, esse vício deveras degradante. Pode-se dizer que, em geral, todo indivíduo desocupado escolherá uma atividade adequada ao exercício de suas forças predominantes; pode ser jogo de bilhar ou xadrez, caça ou pintura, corrida de cavalos ou música, jogos de carta ou poesia, a heráldica ou a filosofia, e assim por diante. Poderíamos investigar tais interesses metodicamente, reduzindo-os à raiz das três forças fisiológicas fundamentais. Temos, pois, de considerá-los em seu exercício sem objetivo, no qual se manifestam como a origem de três tipos possíveis de prazer. Dentre esses, cada homem escolherá o que lhe é mais adequado segundo a predominância nele de uma ou outra dessas forças. Primeiramente, temos os prazeres da força reprodutiva, que consistem na comida, na bebida, na digestão, no descanso e no sono. Há mesmo nações inteiras nas quais esses são considerados prazeres nacionais. Depois, temos os prazeres da irritabilidade, que consistem na caminhada, corrida, luta, dança, esgrima, equitação e jogos atléticos de todo gênero, incluindo também a caça e até os combates de guerra. Finalmente, temos os prazeres da sensibilidade, que consistem no contemplar, pensar, sentir, fazer poesia, tocar música, estudar, ler, meditar, inventar, filosofar etc. Sobre o valor, o grau e a duração de cada um desses tipos de prazer podem ser feitas muitas observações, mas deixo tal cuidado aos leitores. Mas todos constatarão claramente que, quanto mais nobre é a natureza da força que condiciona nosso prazer, maior esse será; isso porque é condicionado pelo emprego de nossas próprias forças e nossa felicidade consiste na repetição frequente desse prazer. Ninguém negará, nesse respeito, que a sensibilidade, cujo predomínio decidido estabelece a distinção entre o homem e as demais espécies animais, tem primazia sobre as outras duas forças fisiológicas fundamentais, que existem no animal no mesmo grau ou talvez em grau mais enérgico que no homem. Nossas forças cognitivas estão relacionadas à sensibilidade; assim, sua preponderância nos qualifica para aquilo que se denominam prazeres espirituais, que consistem no entendimento; e tais prazeres serão, de fato, tanto maiores quanto mais acentuada for essa preponderância. [4] O homem normal, vulgar, só nutre um interesse vívido por algo na medida em que excita sua vontade, ou seja, na medida em que é um interesse pessoal. Mas a excitação contínua da vontade nunca é um bem puro, ou seja, envolve dor. Os jogos de cartas, essa ocupação universal da “boa sociedade” em todos os países, são um meio de proporcionar esse tipo de excitação, e isso através de interesses tão ínfimos que não podem acarretar mais que dores momentâneas e ligeiras, nunca dores permanentes e sérias. O jogo de cartas, na verdade, pode ser considerado como simples cócegas da vontade. [5] Por outro lado, o homem dotado de grande força intelectual é capaz — e tem necessidade — de interessar-se vivamente pelas coisas no caminho da inteligência pura, sem qualquer mescla de vontade. Esse interesse o transporta então a uma região onde a dor é essencialmente estranha; transporta-o, por assim dizer, à atmosfera onde os deuses vivem fácil e serenamente, Θεῶν ῥεῖα ζωόντων [dos deuses que vivem com leveza]. Entretanto, a vida das massas transcorre no entorpecimento, visto que seus pensamentos e desejos se dirigem para interesses mesquinhos do bem-estar pessoal, com suas misérias de toda espécie. Por tal razão, um tédio intolerável se apodera deles desde o momento em que tais objetivos estejam satisfeitos, e ficam reduzidos a si mesmos, sendo que apenas o fogo selvagem da paixão pode incitar ação nas massas embotadas e indolentes. Pelo contrário, a existência do homem dotado de faculdades intelectuais excepcionais é rica em ideias e cheia de vida e significado. Objetos dignos e interessantes ocupam-no assim que tiver a liberdade para devotar-se a eles, carregando dentro de si um manancial dos prazeres mais nobres. O estímulo exterior lhe vem das obras da natureza e da contemplação da atividade humana, assim como das muitas e variadas produções dos espíritos mais eminentes de todos os tempos e de todos os países; apenas tal homem será capaz de desfrutar tais obras completamente, pois é o único que pode compreendê-las e senti-las em sua plenitude. Logo, foi apenas para ele que os grandes espíritos viveram; para ele se dirigiram realmente; o resto não passa de ouvintes ocasionais que entendem uma coisa ou outra pela metade. Naturalmente, o homem de intelecto tem mais necessidades que os outros homens, a necessidade de aprender, de ver, de estudar, de meditar, de praticar e, consequentemente, também a necessidade de ócio. Pois, como Voltaire observou exatamente, il n’est de vrais plaisirs qu’avec de vrais besoins [não há verdadeiros prazeres sem verdadeiras necessidades]; e essa necessidade é a condição para alcançar os prazeres que sempre serão inacessíveis aos demais. De fato, para esses últimos, mesmo quando estão rodeados de belezas da natureza e da arte, de obras intelectuais de toda espécie, tais coisas no fundo lhes são aquilo que cortesãs são para um velho. Como resultado, um homem assim privilegiado tem duas vidas, uma pessoal e uma intelectual. E essa última gradualmente chega a ser seu verdadeiro fim, para o qual a primeira não foi considerada mais que um meio, enquanto que para o resto dos homens sua própria existência, superficial, vazia e atormentada, deve ser tida como um fim em si mesmo. O homem superior terá essa vida intelectual como principal ocupação. Através da constante expansão de seu juízo e conhecimento, essa vida intelectual, como uma obra de arte em vias de formação, adquire uma consistência, uma intensidade permanente, uma unidade cada vez mais completa. Comparada com esta, as vidas puramente práticas dos demais traçam uma contraste penoso, dirigidas unicamente ao conforto pessoal, uma vida que pode se alargar, mas nunca se aprofundar. Não obstante, como disse, para os demais tal vida deve ser considerada como um fim em si mesmo, enquanto que para o homem de intelecto é apenas um meio.

Nossa vida prática, real, quando as paixões não a agitam, é tediosa e monótona; quando a agitam, torna-se dolorosa. Por isso só são felizes aqueles que houverem recebido como patrimônio uma soma de inteligência que excede a medida que o serviço de sua vontade reclama. Porque assim podem levar, além de sua vida efetiva, uma vida intelectual que os ocupa e diverte sem dor, podendo mantê-la vivaz e atarefada. O simples ócio, isto é, a inteligência desocupada a serviço da vontade, não basta; é preciso um excedente de força, pois apenas isso nos torna aptos para uma ocupação puramente espiritual que não esteja a serviço da vontade. Pelo contrário, otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [o ócio sem os estudos é morte e sepultura do homem vivo. (Sêneca, Epistulae, 82)]. Na medida desse excedente, a vida intelectual que existe ao lado da vida real apresentaria inumeráveis gradações, desde os trabalhos do colecionador que descreve os insetos, os pássaros, os minerais, as moedas, até as mais elevadas produções da poesia e da filosofia. Uma vida intelectual como esta protege não só contra o tédio, mas também contra suas perniciosas consequências. Resguarda, com efeito, contra as más companhias e contra os numerosos perigos, as desgraças, as perdições e as extravagâncias a que se está exposto ao buscar sua felicidade apenas no mundo externo. Quanto a mim, por exemplo, minha filosofia nunca me faz ganhar nada, mas me poupou de muitas perdas.

O homem normal, pelo contrário, está limitado, quanto aos prazeres da vida, às coisas exteriores, tais como a riqueza, a posição, a esposa, os filhos, os amigos, a sociedade etc.; nisso se funda a felicidade de sua vida. De modo que tal felicidade se desmorona quando essas coisas são perdidas ou o desiludem. Podemos caracterizar essa relação dizendo que seu centro de gravidade está fora dele. Por isso seus desejos e seus caprichos são sempre variáveis; quando seus meios permitirem, comprará prontamente coisas como casas de campo ou cavalos, dará festas ou empreenderá viagens; em geral, levará uma vida suntuosa, tudo isso precisamente porque busca em qualquer parte uma satisfação vinda de fora. É como um homem extenuado que espera encontrar em soluções e em remédios a saúde e o vigor cujo verdadeiro manancial é própria a força vital. Para não passar imediatamente ao extremo oposto, tomemos agora um homem dotado de uma potência intelectual que, sem ser excessiva, excede, todavia, a medida comum e estritamente suficiente. Veremos esse homem, quando as fontes exteriores de prazer esgotarem-se ou deixarem de satisfazê-lo, cultivar de modo obcecado algum ramo das belas artes, ou então alguma ciência, tal como botânica, mineralogia, física, astronomia, história etc., e encontrar nela grande prazer e diversão. Por tal razão, podemos dizer que seu centro de gravidade está parcialmente dentro dele. Não obstante, o mero diletantismo na arte ainda está muito distante da faculdade criadora, e o mero conhecimento científico deixa de lado as relações dos fenômenos entre si, não sendo capazes de absorver completamente o homem comum; não podem ocupar todo o seu ser e, por conseguinte, entrelaçar-se tão estreitamente na trama de sua existência que se veja incapaz de nutrir interesse por todo o resto. Isso está reservado exclusivamente à suprema eminência intelectual, comumente denominada gênio; somente ela toma como assunto, íntegra e absolutamente, a essência e a existência das coisas. Depois, segundo sua tendência individual, trabalhará para expressar suas profundas concepções a esse respeito por meio da arte, da poesia ou da filosofia. Assim, apenas para um homem desse gênero é uma necessidade irresistível a ocupação permanente consigo mesmo, com seus pensamentos e com suas obras; para ele, a solidão é bem-vinda, o ócio é o bem supremo e todo o mais é supérfluo; na verdade, quando o possui, muitas vezes é um fardo. Somente em relação a esse homem podemos afirmar que seu centro de gravidade está completamente dentro dele. Isso explica-nos, ao mesmo tempo, por que esses homens de uma espécie tão rara, mesmo os de melhor caráter, não conferem aos seus amigos, à sua família, à comunidade em geral esse interesse íntimo e ilimitado de que muitos outros são capazes. Porque podem, em último caso, prescindir de tudo, contanto possuam a si próprios. Existe, pois, neles um elemento isolante, cuja ação será tanto mais enérgica na medida em que os demais homens não puderem satisfazer-lhes plenamente. Desse modo, não podem ver esses outros como seus iguais; na verdade, sentindo constantemente a dessemelhança de sua natureza em tudo e por tudo, habituam-se gradualmente a vagar entre os demais homens como se fossem seres de espécie distinta e, em suas meditações sobre os demais, a servir-se da terceira e não da primeira pessoa do plural. As virtudes morais beneficiam principalmente os outros; as virtudes intelectuais, por outro lado, beneficiam primariamente aqueles que a possuem; portanto, a primeira faz com que sejamos largamente estimados, a segunda, ignorados.

Considerado a partir desse ponto de vista, o homem mais bem dotado intelectualmente por natureza será o mais feliz, de modo que sem dúvida o subjetivo está mais próximo de nós que o objetivo; pois o efeito desse último, seja qual for sua natureza, nunca trabalha senão por intermédio do primeiro, isto é, do subjetivo, sendo a ação do objetivo apenas secundária. É o que escreve Luciano nestes belos versos:

A riqueza da alma é a única riqueza;
Os demais bens trazem mais problemas que vantagens.
(Epigrammata, 12.)

Um homem interiormente rico não pede ao mundo exterior mais que um dom negativo, a saber, ócio para poder cultivar e desenvolver as faculdades de seu espírito e para poder desfrutar de suas riquezas interiores. Reclama, pois, unicamente, toda a sua vida, todos os dias e todas as horas, ser ele mesmo. Para o homem destinado a imprimir a marca de seu espírito na humanidade inteira, não existe mais que uma só felicidade e uma só desgraça, isto é, poder aperfeiçoar suas habilidades e completar suas obras ou não. Todo o resto lhe é insignificante. Por isso, vemos os grandes espíritos de todos os tempos concederem o maior valor ao ócio. Porque o ócio de um homem vale tanto quando ele próprio. Videtur beatitudo in otio esse sita [a felicidade está no ócio], diz Aristóteles (Ética a Nicômaco, X. 7), e Diógenes Laércio (II.5.31) menciona também que Socrates otium ut possessionum omnium pulcherrimam laudabat [Sócrates exaltava o ócio como a mais bela das riquezas]. Essa também é a compreensão de Aristóteles quando declara que a vida mais bela é a do filósofo (Ética a Nicômaco, X, 7, 8, 9). Mesmo aquilo que disse em Política (IV. II) é relevante: exercer livremente seu talento, seja qual for, é a verdadeira felicidade. E Goethe em Wilhelm Meister: wer mit seinem Talent zu einem Talent geboren ist, findet in demselben sein schönstes Dasein [quem nasceu com um talento, para um talento, encontra no mesmo a sua mais bela existência]. Todavia, possuir ócio não só está fora do destino comum, senão também da natureza comum do homem, pois seu destino natural é empregar o tempo em adquirir o necessário para sua existência e para sua família. Esse é um filho da miséria e da privação, não um espírito livre. Por conseguinte, o ócio converte-se rapidamente em um peso — e, logo, num martírio — para o homem vulgar assim que não puder ocupá-lo com medidas artificiais e fictícias de todo tipo: com o jogo, com passatempos ou com hobbies de qualquer gênero. Por isso mesmo, o ócio traz também perigos, e disse-se com razão que difficilis in otio quies [difícil é a quietude no ócio]. Por outro lado, uma inteligência que excede em muito a medida normal é igualmente um fenômeno anormal e, por conseguinte, inatural. No entanto, uma vez que exista, o homem dotado dela, para encontrar a felicidade, necessita precisamente desse ócio que, para os demais, é imediatamente inoportuno ou pernicioso, de modo que, sem ócio, não seria mais que um Pégaso tolhido e, portanto, desgraçado. Entretanto, se essas duas anomalias, uma exterior e outra interior, se encontram reunidas, sua união produz um caso de suprema felicidade, porque o homem assim favorecido levará então uma vida de ordem superior, uma vida que se subtrai das duas fontes opostas de sofrimento humano, livre da necessidade e do tédio, livre do cuidado penoso de dedicar-se a sustentar sua existência e da incapacidade de suportar o ócio (i.e. a existência livre propriamente dita). O homem não pode esquivar-se desses dois males senão quando esses se neutralizam e se eliminam mutuamente.

Tendo em vista tudo que foi exposto acima, devemos considerar, por outro lado, que as grandes faculdades intelectuais, em consequência de uma atividade preponderante dos nervos, produzem uma grande sensibilidade à dor, em todas as suas formas. Ademais, o temperamento apaixonado que condiciona tais dons e, ao mesmo tempo, a maior vivacidade e perfeição de todas as imagens e concepções, que são inseparáveis deles, conferem às emoções produzidas uma violência incomparavelmente mais enérgica, enquanto que, em geral, há mais emoções dolorosas que agradáveis. Por fim, devemos lembrar também que as elevadas faculdades intelectuais fazem de seu possuidor um homem estranho ao resto da humanidade e às suas atividades. Isso porque, quanto mais possui em si mesmo, menos pode encontrar nos outros, e cem objetos, nos quais os demais sentem um prazer infinito, lhe parecem insípidos e repugnantes. Talvez dessa maneira a lei de compensação, que reina em tudo, domine igualmente aqui. Já se afirmou com frequência, e não sem alguma razão, que no fundo o homem mais limitado de espírito é mais feliz, embora ninguém o inveje por tal felicidade. Não quero antecipar ao leitor a solução definitiva dessa controvérsia, ainda porque o próprio Sófocles emitiu dois juízos diametralmente opostos:

Sapere longe prima felicitatis pars est.

[O saber é a parte principal da felicidade. (Antígona, 1328.)]

E, em outra parte, diz:

Nihil cogitantium jucundissima vita est.

[Na falta de inteligência consiste a vida mais agradável. (Ajax, 550.)]

Tampouco os filósofos do Antigo Testamento entendem-se entre si. Temos: A vida de um tolo é pior que a morte! (Jesus de Sirach, 12:12); em contrapartida: Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor (Eclesiastes, 1:18). Entretanto, não quero deixar de mencionar aqui que o homem sem necessidades espirituais, em virtude da medida escassa e estritamente normal de suas forças intelectuais, é o que se designa por filisteu. É uma expressão exclusivamente própria da língua alemã, proveniente das universidades; mas, posteriormente, foi empregada em um sentido mais elevado, ainda que análogo ao sentido original, que denota o oposto dos filhos das Musas. Assim, o filisteu é e permanece um ἄμουσος ἀνήρ [homem abandonado pelas musas]. Colocando-me em um ponto de vista mais elevado, gostaria de definir os filisteus dizendo que são pessoas constante e seriamente ocupadas com uma realidade que não é realidade. Entretanto, essa definição de natureza transcendental não se adequaria à perspectiva popular que adotei neste ensaio; poderia, por conseguinte, não ser compreendida por todos os leitores. A primeira definição, pelo contrário, admite mais facilmente uma elucidação especial e designa bastante bem a essência da questão, a raiz de todas aquelas qualidades que caracterizam o filisteu. Esse é, como temos dito, um homem sem necessidades espirituais. Disso segue-se que, no que diz respeito a ele próprio, nunca terá prazeres espirituais, segundo a máxima já citada, il n’est de vrais plaisirs qu’avec de vrais besoins [não há prazeres verdadeiros sem necessidades verdadeiras]. Nenhuma aspiração em adquirir conhecimento e juízo por eles próprios anima sua existência, tampouco qualquer aspiração aos prazeres estéticos, porque essas duas aspirações estão estritamente unidas. Quando a moda ou alguma outra autoridade lhe impõe esses prazeres, desvencilha-se deles o mais rapidamente possível, como alguém condenado ao trabalho forçado. Os únicos prazeres para ele são os sensuais, com os quais se sente compensado pela falta dos demais. Assim, ostras e champanhe são o fim supremo de sua existência, e o objetivo de sua vida é proporcionar para si mesmo tudo que contribua ao bem-estar corporal. É feliz na medida em que esse fim o ocupe inteiramente. Porque, se esses bens lhe foram outorgados de antemão, é imediatamente vítima do tédio, contra o qual se vale de todos os meios imagináveis, como bailes, teatros, sociedades, jogos de cartas, jogos de azar, cavalos, mulheres, bebidas, viagens etc. E, não obstante, tudo isso não basta para espantar o tédio quando a ausência de necessidades intelectuais torna impossíveis os prazeres intelectuais. Assim sendo, é uma característica própria do filisteu uma seriedade grave e seca, semelhante à do animal. Nada o alegra, nada o comove, nada desperta seu interesse; pois os prazeres sensuais se esgotam prontamente, e as sociedades, sendo compostas de tais filisteus, tornam-se logo tediosas; por fim, até o jogo de cartas acaba por aborrecê-lo. Seja como for, resta-lhe ainda desfrutar, à sua maneira, dos prazeres da vaidade. Esses consistem em exceder os demais em riqueza, posição, ou influência e poder, conquistando com isso seu apreço; ou então cuidará de, ao menos, rodear-se daqueles que transbordam essas vantagens, para assim aquecer-se no reflexo de seu esplendor (um snob). Dessa natureza fundamental do filisteu que acabamos de expor, segue-se que, no que diz respeito aos outros, como não possui necessidades intelectuais, mas apenas físicas, buscará os homens que possam satisfazer essas últimas e não as primeiras. A última coisa que espera de seus amigos é a posse de qualquer espécie de capacidade intelectual. Pelo contrário, quando as encontra, excitam sua antipatia e até seu ódio. Porque não sente em sua presença mais que uma inoportuna inferioridade e uma inveja surda e secreta, que oculta com o maior cuidado, dissimulando-a inclusive para si mesmo; embora, precisamente por isso, converte-se às vezes em uma raiva muda. Desse modo, nunca pensa em medir seu apreço ou sua consideração pelas faculdades do espírito, mas restringe-se exclusivamente à posição e à riqueza, ao poder e à influência, que aos seus olhos constituem as únicas qualidades verdadeiras, nas quais também deseja se distinguir. Tudo isso decorre do fato de que são homens sem necessidades espirituais.

Uma grande aflição para todos os filisteus é que as idealidades não os entretêm, e que, para se esquivarem do tédio, precisam sempre recorrer às realidades. Essas, por um lado, se esgotam rapidamente e, então, em vez de divertir, fatigam; por outro, arrastam consigo desgraças e males de toda espécie. Já as idealidades, por sua vez, são inesgotáveis e, em si mesmas, inofensivas e inocentes.

Em todas essas observações sobre as qualidades pessoais que contribuem à nossa felicidade, levei em conta as condições físicas e, principalmente, as qualidades intelectuais. Para uma explicação sobre influência direta e imediata da perfeição moral sobre nossa felicidade, remeto o leitor ao meu ensaio premiado Sobre o Fundamento da Moral, §22.

  1. A vida nômade, que representa o estágio mais baixo da civilização, pode também ser encontrada no mais elevado, onde todos são turistas ocasionalmente. O primeiro nasceu da necessidade, o segundo, do tédio.
  2. Aquilo que torna as pessoas sociáveis é exatamente sua pobreza interior.
  3. Esses alcançam sua prosperidade à custa de seu ócio; mas que benefício poderia haver na prosperidade se, para alcançá-la, devo abrir mão da única coisa que a torna desejável, a saber, o ócio?
  4. A natureza exibe um contínuo progresso, primeiro a atividade mecânica e química do mundo inorgânico, prosseguindo ao vegetal, com seu gozo surdo de si próprio, desse para o mundo animal, onde surgiu a aurora da inteligência e da consciência. A partir desse precário início, sobe grau por grau, cada vez mais alto, e, no último e supremo passo, chega ao homem. Em seu intelecto, a natureza alcança o ponto culminante e o fim de suas criações, fornecendo assim o mais perfeito e mais difícil presente que é capaz de produzir. Todavia, mesmo no interior da espécie humana, o entendimento apresenta numerosas diferenças observáveis de grau, e apenas em casos extremamente raros alcança o grau mais elevado, uma inteligência realmente eminente. Esse é, pois, em seu sentido mais estrito e rigoroso, o produto mais difícil e supremo da natureza e, consequentemente, o mais raro e precioso que o mundo pode oferecer. Em tal inteligência, apresenta-se o conhecimento mais sóbrio e nela se reflete o mundo de modo mais claro e completo que em qualquer outro objeto. Assim, o ser que está dotado de tal inteligência possui o mais nobre e delicado que há na terra, possui um manancial de prazeres em comparação com o qual todos os demais são ínfimos. Dessa forma, não pede nada do mundo exterior senão ócio para desfrutar em paz de seu bem e polir seu diamante. Pois todos os demais prazeres não-intelectuais são de natureza baixa; todos conduzem a movimentos da vontade, tais como anseios, esperanças, temores e ambições, seja qual for sua natureza. Nada disso se realiza sem dor; ademais, no caso das conquistas, surge a decepção mais ou menos como uma regra, ao passo que com os prazeres intelectuais a verdade se faz cada vez mais clara. Nenhuma dor existe no domínio da inteligência, nele tudo é conhecimento. Por isso, os prazeres intelectuais são acessíveis a todos por meio — e, portanto, na mesma medida — da própria inteligência; pois tout l’esprit qui est au monde, est inutile à celui qui n’en a point [toda a inteligência que há no mundo é inútil àquele que não tem nenhuma (La Bruyère)]. Entretanto, uma desvantagem que sempre acompanha esse privilégio é que, em toda a natureza, a suscetibilidade à dor aumenta à medida que se eleva o grau de inteligência, chegando ao seu apogeu na inteligência mais elevada.
  5. A vulgaridade consiste, no fundo, no tipo de consciência na qual a vontade predomina completamente sobre o intelecto, onde o último não faz mais que estar a serviço de sua soberana, a vontade. Quando tal serviço não exige inteligência, quando não existem motivos nem grandes nem pequenos, o entendimento cessa por completo e sobrevém uma vacuidade absoluta de pensamentos. A vontade sem intelecto é a coisa mais comum e vulgar que há; algo que todo bronco possui e manifesta quando cai. Esse estado constitui, pois, a vulgaridade, no qual os únicos elementos ativos são os órgãos dos sentidos e a pequena quantidade de intelecto necessária para apreender os dados dos sentidos. Por conseguinte, o homem vulgar sempre está receptivo a todas as impressões e percebe instantaneamente tudo que se passa ao seu redor, de modo que o menor som, qualquer circunstância, por insignificante que seja, desperta imediatamente sua atenção, assim como ocorre com os animais. Essa condição mental revela-se em seu semblante e no todo de sua aparência exterior; daí resulta a aparência vulgar cuja impressão é ainda mais repulsiva quando, como é frequente, sua vontade — o único fator de sua consciência — é baixa, egoísta e má.

Capítulo III

O que um homem tem

Epicuro, o grande doutor em felicidade, dividiu de modo admirável e judicioso as necessidades humanas em três classes. Primeiramente, as necessidades naturais e necessárias que, se não satisfeitas, produzem dor. Compreendem, pois, apenas o victus et amictus [comida e vestimenta] e são fáceis de satisfazer. Depois, as necessidades naturais que não são necessárias, isto é, as necessidades de satisfação sexual, ainda que Epicuro não a afirme em relação a Laércio; (reproduzo, no geral, toda essa doutrina de forma sutilmente modificada e corrigida). Essas necessidades são mais difíceis de satisfazer. Finalmente, as que não são naturais nem necessárias, as necessidades do luxo, da abundância, da pompa e do esplendor, que são infindáveis e muito difíceis de satisfazer. (cf. Diógenes Laércio, X, c. 27, §149 e §127, e Cícero, De finibus, I, c. 14 e 16).

É difícil, senão impossível, definir o limite de nossos desejos razoáveis em relação à fortuna. Porque a satisfação quanto a isso não repousa em uma quantidade absoluta, mas relativa, a saber, na relação entre os desejos e a fortuna. Assim, pois, considerar as posses em si mesmas é algo tão desprovido de sentido como considerar o numerador de uma fração sem denominador. A ausência de certos bens aos quais um homem nunca pensou em aspirar não lhe faz falta alguma, e ficará perfeitamente satisfeito sem eles; enquanto outro, que possui cem vezes mais que o primeiro, se sentirá desgraçado porque lhe falta exatamente o objeto que deseja. Nesse respeito, cada qual tem também seu próprio horizonte do que lhe é possível conseguir, e suas pretensões não ultrapassam esses limites. Quando um objeto, situado dentro de seus limites, se lhe apresenta de tal maneira que possa estar seguro de consegui-lo, se sentirá feliz; pelo contrário, se sentirá desgraçado se obstáculos o despojarem dessa perspectiva. O que está além desse horizonte não exerce nenhuma influência sobre ele. Por isso a grande fortuna do rico não incomoda o pobre; por outro lado, quando fracassa em seus planos, o homem rico não é consolado por todas as riquezas que já possui. A riqueza é como a água do mar; quanto mais se bebe, mais sede produz; o mesmo ocorre também com a glória. Após a perda de riqueza ou posição, nosso humor habitual não diferirá muito do que antes nos era próprio, assim que a dor inicial for superada. O motivo disso é que, havendo o destino diminuído nossas posses, nós próprios reduzimos nossas pretensões na mesma medida. No caso de uma desgraça, essa operação é extremamente dolorosa; uma vez verificada essa operação, a dor se faz cada vez menos intensa e acaba por desaparecer; a ferida se cicatriza. Contrariamente, no advento de um acontecimento feliz, nossas pretensões se elevam e se dilatam; nisso consiste o prazer. Porém, esse não dura mais que o tempo necessário para que essa operação seja realizada. Habituamo-nos à escala ampliada de nossas pretensões e nos fazemos indiferentes às riquezas que lhe são correspondentes. É isso que afirma a passagem de Homero, Odisseia, XVIII. 130—7, cujos dois últimos versos são:

Tal é o espírito dos homens terrestres, semelhantes aos dias concedidos pelo Pai de todos os homens e de todos os deuses.

A origem de nossa insatisfação está em nossos esforços sempre renovados para elevar o fator de nossas pretensões, enquanto que o outro fator permanece fixo e impede que isso aconteça.

Com uma raça tão pobre e cheia de necessidades, não surpreende que a riqueza seja estimada, e até venerada, mais intensa e sinceramente que qualquer outra coisa, e mesmo o poder não é considerado senão como um meio para atingir a fortuna. Não nos surpreende tampouco ver os homens porem de lado ou passarem por cima de qualquer outra consideração quando se trata de adquirir riquezas, por exemplo, quando vemos os próprios professores de filosofia se aproveitarem da filosofia para enriquecer.

Os homens são frequentemente acusados por seus desejos dirigirem-se principalmente ao dinheiro e por o amarem acima de tudo. Não obstante, é muito natural, e mesmo inevitável, amar aquilo que, como um Proteu infatigável, a qualquer momento está pronto a tomar a forma do objeto atual de nossos desejos cambiantes ou de nossas necessidades tão diversas. Isso porque qualquer outro bem não pode satisfazer mais que um só desejo, mais que uma só necessidade; por exemplo, os alimentos não valem senão para aquele que tem fome, o vinho para aquele que está sóbrio, os medicamentos para o enfermo, um cobertor durante o inverno, as mulheres para a juventude etc. Todas essas coisas são boas apenas para um propósito específico, isto é, são relativamente boas. Apenas o dinheiro é o bem absoluto, porque não satisfaz uma única necessidade in concreto, senão a necessidade em geral, in abstracto.

A fortuna disponível deve ser considerada como um baluarte contra o grande número de males e desgraças que podem suceder. Não devemos considerá-la como uma permissão e ainda menos como uma obrigação de ter que buscar os prazeres do mundo. As pessoas que, sem terem fortuna patrimonial, chegam por seu talento a porem-se em condições de ganhar muito dinheiro quase sempre são vítimas da ilusão de acreditar que seu talento é um capital permanente e que o dinheiro que esse talento produz é, por conseguinte, o interesse capital. Assim, não reservam nada daquilo que ganham para consolidar um capital duradouro, mas gastam na mesma medida em que ganham. Segue-se que, comumente, caem na pobreza quando seus ganhos diminuem ou cessam por completo, porque seu próprio talento, passageiro por natureza, por exemplo, o talento para quase todas as belas artes, se esgota, ou bem as circunstâncias especiais que lhe faziam produtivo desaparecem. Alguns artesãos podem, de fato, levar essa existência, porque as capacidades exigidas para seu ofício não se perdem facilmente ou podem ser supridas pelo trabalho de seus obreiros, ademais, seus produtos são objetos de necessidade, cuja demanda está sempre assegurada; um provérbio alemão diz com razão Ein Handwerk hat einen goldenen Boden [um trabalho manual vale como ouro]. Entretanto, não ocorre o mesmo com os artistas e com os virtuosi de toda espécie, exatamente por isso são tão bem pagos. Assim sendo, aquilo que ganham deveria tornar-se seu capital, porém, em sua presunção, o consideram como se não fosse mais que os juros e, assim, rumam à sua ruína. Em contrapartida, as pessoas que possuem fortuna patrimonial sabem muito bem, desde o princípio, distinguir entre um capital e os juros. Assim, pois, a maioria tratará de assegurar seu capital, e não o hipotecará em caso algum; e até reservará, se possível, pelo menos um oitavo dos juros para aliviar uma crise eventual; dessa forma conseguem preservar sua riqueza. Nada do que acabamos que dizer se aplica aos comerciantes, para os quais o dinheiro é, em si mesmo, o instrumento da ganância, o utensílio profissional, por assim dizer. Disso segue-se que, ainda quando o dinheiro é adquirido por seu próprio trabalho, buscarão conservá-lo e aumentá-lo através do modo como o empregam. Assim, em nenhuma outra classe a riqueza é tão habitual como na dos comerciantes.

Em geral, se observará que, comumente, os que já vivenciaram verdadeira necessidade e privação as temem menos e estão mais inclinados à extravagância que os que não conhecem esses males senão por referência. À primeira categoria pertencem todos os que, por qualquer sorte ou por habilidades especiais, tenham passado rapidamente da pobreza ao bem-estar; à outra, os que tenham nascido com fortuna e a conservaram, e que comumente se preocupam mais com o porvir e, portanto, são mais econômicos que os primeiros. Daí se poderia deduzir que a necessidade, vista desse ângulo, não é uma coisa tão má como parece. Não obstante, a verdadeira razão talvez seja que, para o homem nascido com uma fortuna patrimonial, a riqueza parece algo indispensável, como o elemento da única existência possível, como o ar. Logo, cuidará dela como sua própria vida e será, geralmente, ordeiro, prudente, precavido e econômico. Pelo contrário, para aquele que, desde seu nascimento, viveu na pobreza, esta lhe parecerá o estado natural; mas a riqueza que, de algum modo, adquirir posteriormente, será considerada uma coisa supérflua, útil apenas para desfrutar dela e esbanjá-la. Pois, quando a houver perdido, saberá sair do apuro sem ela como antes, e ainda se livrará de um peso. As coisas são como Shakespeare diz em Henrique VI (III, I, 4):

The adage must be verified
That beggars mounted run their horse to death.

[deve cumprir-se o adágio, que o mendigo montado faz seu cavalo galopar até a morte.]

Acrescentemos que essas pessoas possuem, não tanto em sua cabeça como em seu coração, uma firme e excessiva confiança por uma parte em sua sorte e, por outra, em seus próprios recursos, que os têm ajudado a escapar das necessidades e da indigência. Assim, diferentemente dos ricos de nascimento, não consideram a miséria como um abismo sem fundo, senão como o chão de um pântano no qual basta pisar para que se remonte à superfície. Por esta mesma particularidade humana se pode explicar como algumas mulheres, pobres antes de seu matrimônio, são, muito comumente, mais pretensiosas e mais extravagantes que as que receberam um bom dote. Pois, na maioria dos casos, as mulheres ricas não só ostentam a fortuna, senão também mais agudeza e, por assim dizer, mais instinto hereditário para conservá-la que as pobres. Não obstante, os que quiserem sustentar a tese contraria encontrarão uma autoridade para sua visão na primeira sátira da Ariosto. Por outro lado, o doutor Johnson se junta à minha opinião: A woman of fortune being used to the handling of money, spends it judiciously; but a woman who gets the command of money for the first time upon her marriage, has such a gusto in spending it, that she throws it away with great profusion. [uma mulher rica, que está acostumada a manejar dinheiro, o gasta com moderação; porém, uma mulher que em seu matrimônio toma pela primeira vez o cargo da administração da fortuna tem tal gosto em gastá-lo que esbanja o dinheiro com grande profusão. (Boswell, Life of Johnson, ann. 1776, aetat, 67.)] Em todo caso, aconselharia a quem se casa com uma mulher pobre que deixasse não um capital, mas uma simples renda e, sobretudo, que velasse para que a fortuna dos filhos não caia em suas mãos.

Não creio de maneira alguma fazer nada que seja indigno de minha pena ao recomendar aqui o cuidado de conservar sua fortuna, adquirida ou herdada. Porque é uma vantagem inapreciável possuir uma fortuna, ainda quando não baste mais que para permitir viver comodamente, só e sem família, em uma verdadeira independência, isto é, sem ter necessidade de trabalhar. Nisso consiste a imunidade que exime das misérias e dos tormentos da vida humana, essa é a emancipação da escravidão universal, que é o destino dos filhos da terra. Só por esse favor se é um homem nascido verdadeiramente livre; apenas com essa condição se é realmente sui juris [seu próprio senhor], senhor de seu tempo e de suas forças, e pode dizer a cada manhã: A jornada é minha. Pelo mesmo motivo, a diferença entre o homem que tem mil de renda por ano e outro que tem cem é infimamente menor que entre o primeiro e aquele que não tem nada. Porém, a fortuna patrimonial alcança seu valor mais elevado quando ele tem a sorte de, dotado de forças intelectuais superiores, perseguir projetos cuja realização não se acomoda a um trabalho feito para ganhar a vida. Colocado nessas condições, esse homem está duplamente dotado de sorte, pois pode viver a serviço de seu gênio e pagará o cêntuplo de sua dívida para com a humanidade, produzindo o que nenhum outro poderia produzir e criando algo que contribuirá para o bem de todos e ao mesmo tempo para a honra da sociedade humana. Outro, colocado em uma situação tão favorável, merecerá o bem da humanidade por suas obras filantrópicas. Enquanto que, possuindo um patrimônio, não produz nada semelhante, ainda que seja a título de ensaio, ou que por meio de estudos sérios não cria ao menos a possibilidade de fazer progredir uma ciência, é um homem desprezível. Tampouco será feliz, porque a tentativa de redimir-se da necessidade o transporta ao outro pólo da miséria humana, o tédio, que lhe atormente de tal maneira que seria muito mais feliz se a necessidade lhe houvesse imposto uma ocupação. Esse tédio lhe fará lançar-se facilmente a extravagâncias que minarão essa fortuna da qual não era digno. Na verdade, uma multidão de pessoas está na indigência por haver gasto o dinheiro que tinham a fim de proporcionarem-se um alívio momentâneo do tédio que os consumia.

Algo muito distinto ocorre quando o fim que se persegue é elevar-se em serviço do Estado, quando se trata, por conseguinte, de obter favor, amigos, relações, por meio dos quais se possa subir de grau em grau e chegar talvez algum dia aos postos mais elevados. Em tal caso, no fundo, mais valeria ter chegado ao mundo sem a menor fortuna. Para um indivíduo que não é da aristocracia e que tem algum talento, ser um pobre indigente constitui uma vantagem real. Porque o que cada qual busca e ama, antes de tudo, tanto na simples conversa como forçosamente no serviço público, é a inferioridade do outro. Assim sendo, somente um miserável está convencido e penetrado de sua inferioridade profunda, positiva e indiscutível, de sua completa insignificância e de sua nulidade, convenientemente às circunstâncias. Só um miserável se inclina muito frequentemente e por muito tempo, e sabe encurvar sua espinha dorsal em reverências de noventa graus bem contados; só ele sofre com um sorriso nos lábios; só ele reconhece que os méritos não têm valor algum; só ele apregoa como obras mestras, publicamente, em voz alta, ou em grossos caracteres impressos, as inépcias literárias de seus superiores ou dos homens influentes em geral; só ele sabe mendigar; por conseguinte, só ele pode iniciar-se a tempo, isto é, desde sua juventude, nesta verdade oculta que Goethe nos revelou nestes termos:

Ueber’s Niederträchtige
Niemand sieh belklage;
Denn es ist das Mächtige,
Was man dir auch sage.
(Westöstlicher Diwan)

[Nada se queixe da inferioridade, porque é o que move o mundo, diga-se o que se quiser.]

Aquele que, pelo contrário, herda de seus pais uma fortuna suficiente para viver será, em geral, recalcitrante; está acostumado a caminhar tête levée [com a cabeça erguida]; não aprendeu todas essas artes de mendigo. Talvez até se vanglorie de ostentar certas habilidades que possui, mas deveria compreender quão insuficientes são perante o médiocre et rampant [medíocre e rasteiro]. Por fim, é bem capaz de observar a inferioridade dos que estão colocados sobre ele; e se, além disso, as coisas chegarem a ser indignas, se faz contemplativo e misantropo. Não se vence com isso no mundo. Pelo contrário, poderá dizer, finalmente, como o descarado Voltaire: Nous n’avons que deux jours à vivre: ce n’est pas la peine de les passer à ramper sous des coquins méprisables [Não temos mais que dois dias de vida; não vale a pena passá-los rastejando aos pés de patifes desprezíveis]. Desgraçadamente, o termo coquin méprisable é um atributo que se pode aplicar a muitos indivíduos neste mundo. Vemos, pois, que as palavras da Juvenal

Haud facile emergunt, quorum virtutibus obstat
Res angusta domi,

[É difícil abrir passagem onde as condições miseráveis da casa são obstáculo ao desenvolvimento dos altos dotes. (Sátiras, III. 164.)]

se aplicam melhor à carreira das pessoas ilustres que à das pessoas mundanas.

Entre as coisas que um homem possui, não se considerou mulher e filhos, porque na verdade o indivíduo é possuído por eles. Com mais razão poderíamos incluir os amigos, porém também aqui o proprietário deve ser do mesmo modo propriedade do outro.

Capítulo IV

O que um homem representa

O que representamos, isto é, nossa existência na opinião dos demais, se aprecia excessivamente, em geral, devido a uma debilidade particular de nossa natureza; ainda que a menor reflexão possa ensinar-nos que isso, em si, não tem importância alguma para nossa felicidade. Assim, pois, é trabalhoso explicar o motivo da grande satisfação interior que experimenta todo homem sempre que observa um rastro de opinião favorável dos demais e sua vaidade, de algum modo, é agradada. Um gato se põe a miar quando é acariciado; e, tão infalivelmente, se um homem é elogiado, vê-se refletir um doce êxtase em seu semblante; especialmente quando o elogio está na esfera de suas pretensões, o elogio pode ser uma mentira palpável. Os sinais de aprovação dos demais lhe consolam, às vezes, de uma desgraça real ou da escassez com que fluem para eles as fontes principais da felicidade de que temos tratado até agora. Reciprocamente, é assombroso ver como se repugna de uma maneira infalível, e muitas vezes se sente dolorosamente afetado por qualquer lesão de sua ambição, em qualquer sentido, grau ou circunstância, e por todo desdém, por toda negligência, pela menor falta de consideração. Enquanto que serve de base ao sentimento de honra, essa característica pode exercer uma influência saudável sobre a boa conduta de muitas pessoas, como substituto de sua moralidade; porém, quanto à sua ação sobre a verdadeira felicidade do homem e especialmente sobre o repouso e a independência da alma, seu efeito é mais perturbador e prejudicial que favorável. Por isso, deste nosso ponto de vista, é prudente impor limites a essa característica e moderar tanto quanto possível, por meio de reflexões e uma apreciação exata do valor dos bens, essa grande suscetibilidade a respeito da opinião do outro, não apenas quando é agradada, mas também quando é ferida, porque ambos os casos têm a mesma origem. Do contrário, permanecemos escravos da opinião e do sentimento dos demais.

Sic leve, sic parvum est, animum quod laudis avarum
Subruit ac reficit.

[Quão leve, quão insignificante é o que abate ou reconforta meu espírito, ávido de elogio. (Horácio, Epistulae, II. I. 179.)]

Por conseguinte, uma justa comparação do valor daquilo que se é em e por si mesmo com o que se é aos olhos dos demais contribuirá muito à nossa felicidade. O primeiro termo da comparação compreende tudo que ocupa o tempo de nossa própria existência, o conteúdo íntimo desta e, portanto, todos os bens que temos examinado nos capítulos intitulados Aquilo que um homem é e Aquilo que um homem tem. Porque o lugar de onde se situa a esfera de atividade de tudo isso é a própria consciência do homem. Pelo contrário, o lugar de tudo o que somos para os demais é a consciência de outrem; é a figura pela qual nos aparecemos a ela, assim como as noções que a ela se referem. [1] Pois bem, essas são coisas que sem dúvida não existem diretamente para nós, mas apenas indiretamente, isto é, enquanto determinam a conduta dos demais para conosco. E isso mesmo não é levado em consideração senão enquanto influi sobre o que poderia modificar o que somos em e por nós mesmos. A parte isso, o que passa em uma consciência alheia nos é perfeitamente indiferente; e, por sua vez, nos faremos indiferentes na medida em que conhecermos bastante bem a superficialidade e a futilidade dos pensamentos, os limites estreitos das visões, a mesquinhez dos sentimentos, o absurdo das opiniões e o número de erros que se combina em quase todos os cérebros. Nos tornaremos indiferentes às opiniões dos outros quando, por nossa própria experiência, aprendermos com que desrespeito se fala em certas ocasiões de cada um de nós, assim que não houver motivo para receio, ou quando se crê que não o saberemos; mas, sobretudo, quando ouvirmos com que desdém meia dúzia de imbecis fala do homem mais distinto. Então compreenderemos que atribuir grande valor à opinião dos homens é honrá-los demasiado.

Em todo caso, está numa posição bastante ruim todo homem que não encontra a felicidade nas classes de bens de que já falamos, mas a busca nesta terceira, isto é, no que somos, não na verdade, mas na imaginação dos demais. Em tese geral, nossa natureza animal é a base de nosso ser e, por conseguinte, de nossa felicidade; o essencial para o bem estar é, pois, a saúde e depois os meios necessários para nossa manutenção e, por conseguinte, uma existência livre de cuidados. A honra, o esplendor, a grandeza, a glória, por muito valor que se lhes atribua, não podem substituir nem competir com esses bens essenciais, em favor dos quais, em circunstâncias adversas, não hesitaríamos em abrir mão dos primeiros. Assim, será muito útil para nossa felicidade compreender a tempo o singelo fato de que cada qual vive principal e efetivamente em sua própria pele e não na opinião dos demais e que, como é natural, nossa situação real e pessoal, tal como está determinada pela saúde, temperamento, faculdades intelectuais, renda, esposa, família, amigos, habitação etc. é cem vezes mais importante para nossa felicidade que o que os demais possam pensar de nós. A noção oposta nos tornará infelizes. Gritar enfaticamente que a honra é mais importante que a própria vida é equivalente a afirmar que a vida e a saúde não são nada e que a verdadeira questão é aquilo que os demais pensam de nós. Em suma, essa máxima pode ser considerada como uma hipérbole, cujo fundamento é a prosaica verdade de que a honra, isto é, a opinião dos demais sobre nós, é às vezes de uma utilidade indispensável para nossa vida e para avançarmos entre os homens. Voltarei posteriormente a este assunto. Pelo contrário, quando se vê como quase tudo que os homens perseguem durante sua vida inteira, à custa de esforços incessantes, de mil perigos e de mil dissabores, tem por objetivo último elevar sua reputação; que não se busca apenas os empregos, os títulos e as condecorações, senão também a riqueza e até a ciência [2] e as artes principalmente com esse único fim, quando se vê que o resultado definitivo que se procura conseguir é obter mais respeito dos demais, tudo isso então evidencia a enormidade da estupidez humana. Conceder demasiado valor à opinião é uma superstição universalmente dominante. Talvez tenha suas raízes em nossa própria natureza ou tenha surgido em consequência do nascimento das sociedades e da civilização. De qualquer modo, é certo que exerce em toda a nossa conduta uma influência desproporcional e hostil à nossa felicidade. Podemos traçar essa influência desde a ansiosa e servil deferência pelo qu’en dira-t-on [o que dirão?] até o caso em que Virgínio crava no peito de sua filha o punhal, ou bem leva o homem a sacrificar sua glória póstuma, seu repouso, sua fortuna, sua saúde e até sua vida. Essa ideia errônea oferece um recurso cômodo, é verdade, àquele que está encarregado de controlar ou guiar as pessoas; assim, pois, o preceito de manter em guarda ou estimular o sentimento de honra ocupa uma parte principal em todos os ramos da arte de dirigir os homens. Mas, em relação à própria felicidade do indivíduo, que aqui nos ocupa, ocorre outra coisa muito distinta; pelo contrário, devemos nos guardar de conceder demasiado valor à opinião dos demais. A experiência cotidiana, todavia, nos ensina que isso acontece diariamente, e que a maioria das pessoas atribui a maior importância precisamente àquilo que os outros pensam a seu respeito. Preocupam-se mais com isso do que com aquilo que existe imediatamente para elas porque isso ocorre em suas próprias consciências. Assim, revertem a ordem natural das coisas e a opinião dos demais se lhes apresenta como a parte real de sua existência, sendo sua própria consciência apenas a parte ideal. Fazem daquilo que é derivado e secundário o objeto principal, e a imagem de sua natureza íntima nas mentes alheias lhes satisfaz mais que sua própria natureza. Essa apreciação direta do que não existe diretamente para nós constitui essa loucura à qual se há dado o nome de vaidade, vanitas, para indicar com isso a natureza vazia e o quimérica dessa tendência. Também é fácil compreender a partir das observações acima que a vaidade, como a avareza, nos faz esquecer o fim pelos meios.

Com efeito, o valor que concedemos à opinião alheia e nossa constante preocupação a esse respeito vão mais além do racional, de tal maneira que essa preocupação pode ser considerada como uma espécie de mania universalmente disseminada, ou melhor, inata. Em tudo que fazemos ou deixamos de fazer, consideramos a opinião dos demais quase como superior a tudo, e dessa preocupação vemos nascer, depois de um profundo exame, quase a metade dos tormentos e das angústias que temos sentido. Pois essa preocupação está na raiz de todo o nosso amor próprio — tantas vezes ferido devido à sua mórbida sensibilidade —, de todas as nossas vaidades e pretensões, como também no fundo de nossa suntuosidade e nossa ostentação. Sem essa preocupação, sem esse furor, o luxo não seria a décima parte do que é. Toda forma de orgulho, point d’honneur e puntiglio, de qualquer espécie que seja e a qualquer esfera que pertença, deve-se à opinião dos demais, e quanto sacrifício exige às vezes! Revela-se já na criança, logo em cada idade da vida, mas alcança toda a sua força na idade madura, pois nesta época, como a capacidade para os prazeres sensuais se esgotou, a vaidade e o orgulho não têm que compartilhar seu reino mais que com a avareza. Esse furor se observa mais nitidamente nos franceses, entre os quais reina endemicamente, manifestando-se às vezes pela ambição mais estúpida, pela vaidade nacional mais ridícula e pela fanfarronice mais desavergonhada. Mas seus esforços se anulam exatamente por isso, porque se tornaram motivo de riso para as outras nações, recebendo o apelido de la grande nation. Para explicar mais claramente o que temos exposto até aqui sobre a demência que consiste em preocupar-se excessivamente com a opinião alheia, quero mencionar um exemplo assombroso dessa loucura arraigada na natureza humana. Este exemplo está favorecido por um efeito luminoso resultante do encontro de circunstâncias propícias e de um caráter apropriado, e isso nos permitirá calcular a força desse ridículo motor das ações humanas. É a seguinte passagem do informe sobre a recente execução do chamado Thomas Wix, publicado pelo The Times em 31 de março de 1846. Wix, um operário, havia assassinado seu patrão por vingança. “Na manhã do dia marcado para a execução, o reverendo capelão do cárcere se apresentou em sua habitação, mas Wix, ainda que muito tranquilo, não escutava suas exortações, e sua única preocupação era conseguir demonstrar um valor extremo em presença da multidão que assistiria seu ignominioso fim. — E o conseguiu. Chegando ao pátio da cadeia que tinha de atravessar para subir ao patíbulo, elevado frente à fachada do cárcere, exclamou: Pois bem, como dizia o doutor Dodd, vou conhecer o grande mistério. Mesmo com os braços atados, o miserável subiu ao cadafalso sem a menor ajuda e, chegando à cúspide, virou à direita e à esquerda, saudando os espectadores, o que repercutiu em formidáveis aclamações da multidão reunida abaixo.” Esse é um excelente exemplo de um homem com a morte em vista, na forma mais dolorosa, e com a eternidade por detrás, que se preocupa unicamente com o efeito que produzirá sobre a massa de idiotas congregados e com a impressão que deseja deixar em seus cérebros! Lecomte, no mesmo ano, foi guilhotinado na França por tentativa de regicídio. Durante seu julgamento, lamentava principalmente não poder apresentar-se vestido decentemente ante a Câmara dos Pares; até no momento da execução, seu grande pesar era não terem lhe permitido fazer a barba. O mesmo sucedia no passado, como podemos ver na introdução (declaracion) de que Mateo Alemán faz preceder sua célebre novela Guzman de Alfarache, onde menciona que muitos criminosos extraviados usaram suas últimas horas, que deveriam ser dedicadas exclusivamente à salvação de suas almas, para terminar e aprender de memória um breve sermão que desejavam pronunciar no alto do patíbulo. Nesses traços podemos ver nosso próprio reflexo, porque os casos extremos sempre nos dão as explicações mais claras. Todas as nossas preocupações, nossos desgostos, cuidados, cóleras, inquietudes, esforços etc. têm em conta, na maioria das vezes, a opinião dos demais, e são tão absurdos como os dos pobres diabos que citamos. Em grande parte, nossa inveja e ódio derivam da mesma raiz.

É óbvio que nossa felicidade, composta principalmente de paz na alma e contentamento, dificilmente poderia ser mais bem promovida que pela limitação e moderação desses motivos a proporções razoáveis, que provavelmente seriam um quinto daquilo que são no presente, e assim arrancar de nossa carne esse espinho que sempre nos causa dor. Não obstante, isso é coisa muito difícil, pois estamos preocupados com uma debilidade natural e inata. Etiam sapientibus cupido gloriae novissima exuitur [a sede de glória é a última de que se despojam os sábios. (Historiae, IV. 6)], disse Tácito. O único meio de nos livrarmos dessa loucura universal seria reconhecê-la como tal e, assim, nos darmos conta muito claramente até que ponto a maioria das opiniões, no cérebro dos homens, são no mais das vezes falsas, errôneas e absurdas, sendo, pois, indignas de nossa consideração. Ademais, a opinião dos demais exerce pouca influência real sobre nós na maioria dos casos e das coisas. Ainda, tais opiniões são geralmente tão desfavoráveis que quase todos seriam tomados pela cólera se ouvissem tudo que dizem a seu respeito ou em que tom falam. Por fim, mesmo a honra não tem, propriamente, mais que um valor indireto, nunca direto. Se pudéssemos obter a cura dessa loucura universal, ganharíamos infinitamente em tranquilidade de ânimo e em contentamento, e adquiriríamos, ao mesmo tempo, um porte mais firme e seguro, muito mais solto e natural. A influência benéfica de uma vida reservada sobre nossa tranquilidade de alma e sobre nossa satisfação, em grande parte, deve-se ao fato de que nos retira a obrigação de viver constantemente diante do olhar dos demais e, por conseguinte, nos livra da incessante preocupação quanto à opinião que possam vir a ter; consequentemente, seu efeito faz o homem voltar a ser si mesmo. Similarmente, evitaremos muitas desgraças reais, às quais somos levados por aspirações puramente ideais ou, mais corretamente, por essa loucura deplorável. Também nos proporcionará a faculdade de prestar mais atenção aos bens reais, e desfrutá-los sem distrações. Mas, como dizem, χαλεπὰ τὰ καλά [aquilo que é nobre é difícil].

Essa loucura de nossa natureza, que acabamos de descrever, faz brotar três ramos principais, a ambição, a vaidade e o orgulho. Entre esses dois últimos, a diferença consiste em que o orgulho é a convicção firmemente adquirida de nosso grande valor próprio em certo sentido; a vaidade, pelo contrário, é o desejo de fazer nascer essa convicção nos demais e, em geral, com a esperança secreta de poder mais tarde apropriar-se dela também. Assim, o orgulho é a elevada estima de si mesmo, proveniente do interior e, por conseguinte, direta; a vaidade, por outro lado, é a tentativa de adquiri-la do exterior e, portanto, indiretamente. Por isso a vaidade nos torna falantes, enquanto o orgulho nos torna reservados e reticentes. Entretanto, o homem vaidoso deveria saber que a elevada opinião de outrem, à qual aspira, se obtém muito mais prontamente e mais seguramente guardando silêncio que falando, mesmo quando se tem a dizer as melhores coisas do mundo. Aquele que finge orgulho não é necessariamente orgulhoso, no máximo pode vir a ser; mas esse deixaria isso de lado rapidamente, como acontece com todo papel plagiado. Porque o que torna realmente orgulhoso é unicamente a firme, a íntima, a inquebrantável convicção de méritos e de um valor elevado. Essa convicção pode ser errônea ou fundar-se em méritos simplesmente exteriores e convencionais; pouco importa ao orgulho, contanto que a convicção seja real e séria. Assim sendo, como o orgulho tem sua raiz na convicção, estaria, como toda noção, fora de nossa vontade livre. Seu pior inimigo, quero dizer, seu maior obstáculo, é a vaidade, que mendiga a aprovação de outro para depois fundar sobre esta a elevada opinião de si mesmo, enquanto que o orgulho supõe uma opinião já firmemente estabelecida.

Ainda que o orgulho seja execrado e reprovado em geral, não obstante, suspeito que isso provenha principalmente dos que não têm nada de que possam se orgulhar. Tendo em vista a impudência e a estúpida arrogância da maioria dos homens, todo ser que possui alguns méritos fará muito bem em ostentá-los, a fim de não deixá-los cair num esquecimento completo. Pois aquele que os ignora sutilmente e se porta com as pessoas como se fosse em tudo seu semelhante não tardará em ser sinceramente considerado como um de seus iguais. Gostaria de recomendar que agissem assim principalmente aqueles cujos méritos são de ordem mais elevada, méritos reais e, por conseguinte, puramente pessoais, supondo-se que esses não possam, como as condecorações e os títulos, ser evocados a cada instante por uma impressão dos sentidos; do contrário, verão muito frequentemente realizar-se o sus Minervam [o porco dando lição a Minerva. (Cícero)]. Um excelente provérbio árabe diz: Brinque com o escravo; te mostrará as costas muito prontamente, e não devemos desdenhar a máxima de Horácio: sume superbiam, quaesitam meritis [ostenta a soberba permitida pelo mérito. (Od. III. 30. 14.)]. A modéstia é uma virtude inventada em favor dos idiotas; pois exige que cada qual fale de si como se fosse um; isso estabelece uma igualdade de nível admirável, fazendo parecer que no mundo não existe nada além de idiotas.

Por outro lado, o orgulho em sua forma mais reles é o orgulho nacional; naquele que está acometido disso revela-se a ausência das qualidades individuais de que possa orgulhar-se, porque do contrário não haveria recorrido às que compartilha com tantos milhões. Todo aquele que possui méritos pessoais distintos, pelo contrário, reconhecerá mais claramente os defeitos de sua própria nação, já que os têm em vista constantemente. Mas todo imbecil miserável, que não tem no mundo nada de que possa orgulhar-se, se refugia nesse último recurso, em vangloriar-se da nação à qual pertence por acaso. Com isso se justifica e, em sua gratidão, está disposto a defender, πὺξ καὶ λάξ [com unhas e dentes], todos os defeitos e todas as tolices próprias dessa nação. Assim, de cinquenta ingleses, por exemplo, dificilmente se encontra somente um que concorde conosco quando falamos com justo desprezo do fanatismo estúpido e degradante de sua nação; mas só esse indivíduo será seguramente um homem de grande inteligência. Os alemães não possuem o orgulho nacional e demonstram assim sua honradez, que é bem conhecida; em contrapartida, quão desonestos são aqueles que, numa afetação ridícula, fingem ter orgulho de seu país. É o que demonstram principalmente os Deutsche Brüder [irmãos alemães] e os democratas, que bajulam o povo a fim de seduzi-lo. Supõe-se que os alemães inventaram a pólvora, mas não sou dessa opinião. Lichtenberg apresenta a pergunta: Por que um homem que não é um alemão não se faria passar por tal, mas por francês ou inglês, quando quer fazer-se passar por algo? No mais, a individualidade em todo homem é algo mais importante que a nacionalidade e merece ser tomada em consideração mil vezes mais que esta última. Visto que o caráter nacional diz respeito à multidão, nenhum grande bem jamais poderá ser dito honestamente em seu favor. Pelo contrário, é mais propriamente a mesquinhez de espírito, a irracionalidade e a perversidade da espécie humana as únicas que, sob formas distintas, ressaltam em cada país, e isso se denomina o caráter nacional. Repugnados de um, elogiamos outro, até o momento em que esse nos inspire o mesmo sentimento. Cada nação zomba das outras, e todas têm razão.

O assunto deste capítulo, que é aquilo que representamos no mundo, isto é, o que somos aos olhos dos demais, pode ser dividido, como temos dito, em honra, posição e glória.

Para nossos propósitos, a posição pode ser lançada por terra em poucas palavras, por importante que pareça aos olhos da multidão e dos filisteus, e por grande que possa ser sua utilidade como engrenagem da máquina do Estado. É um valor convencionado ou, mais precisamente, um valor fingido; sua ação tem por resultado uma consideração dissimulada, e a coisa toda é uma farsa para a multidão. As condecorações são letras de câmbio tiradas da opinião pública; seu valor se funda no crédito do girador. Entretanto, e sem falar de todo o dinheiro que poupam ao Estado como um substituto para as recompensas pecuniárias, não deixam de ser uma instituição das mais felizes, supondo que sua distribuição seja feita com discernimento e justiça. Com efeito, a multidão tem olhos e ouvidos, mas pouco além disso, muito pouco juízo, e sua própria memória é limitada. Muitos méritos estão fora da esfera de sua compreensão; outros são compreendidos e aclama-se a sua aparição, mas são prontamente esquecidos. Sendo assim, julgo muito conveniente que uma cruz ou uma estrela proclamem à multidão, em qualquer lugar e sempre: Este homem não é vosso semelhante; tem méritos! Entretanto, as condecorações perdem seu valor quando são distribuídas de forma injusta, irracional ou excessiva. Assim, um príncipe deveria ter tanta cautela em concedê-las como um comerciante em firmar letras de câmbio. A inscrição pour le mérite [pelo mérito] em uma condecoração é um pleonasmo; toda condecoração deveria ser pour le mérite, ça va sans dire [pelo mérito, supõe-se].

A questão da honra é muito mais difícil e ampla que a da posição. Primeiramente temos de defini-la. Se a esse propósito dissesse que a honra é a consciência exterior e a consciência é a honra interior, talvez essa definição pudesse agradar alguns; mas seria uma explicação mais pomposa que clara e fundamentada. Portanto, afirmo que, objetivamente, a honra é a opinião que os demais têm sobre nosso valor e, subjetivamente, o respeito que temos por essa opinião. Segundo essa visão, ser um homem de honra exerce uma influência muito salutar sobre o indivíduo, mas de modo algum puramente moral.

A raiz e a origem do sentimento de honra e de vergonha, inerente a todo homem que não esteja completamente corrompido, e o grande valor atribuído ao primeiro, serão expostas nas considerações seguintes. O homem, por si só, pode muito pouco, como um Robinson Crusoé numa ilha deserta; unicamente em sociedade com os outros é e pode muito. Torna-se ciente dessa condição assim que sua consciência, ainda que pouco, começa a desenvolver-se e desperta nele o desejo de ser considerado como um membro útil da sociedade, capaz de exercer seu papel como homem, pro parte virili, e que tem direito assim a participar das vantagens da sociedade humana. Consegue ser um membro útil da sociedade executando, primeiro, aquilo que se exige e espera de qualquer homem em qualquer posição, e depois aquilo que se exige e espera dele na posição particular que ocupa. Entretanto, percebe rapidamente que o importante não é ser um homem útil em sua própria opinião, mas na dos demais. Essa é a origem do ardor com que mendiga a opinião favorável dos outros e do valor elevado que lhe atribui. Ambas as tendências se manifestam com a espontaneidade de um sentimento inato, que se denomina o sentimento de honra e, em certas circunstâncias, o sentimento de pudor (verecundia). Esse é o sentimento que faz o indivíduo corar ante o pensamento de perder na opinião dos demais, ainda que seja inocente, e ainda quando a falta revelada não seja mais que uma infração relativa, isto é, assumida arbitrariamente. Por outro lado, nada fortalece mais sua coragem e sua determinação que a certeza adquirida ou renovada da boa opinião dos homens, porque lhe assegura a proteção e o socorro das forças reunidas do conjunto, que constitui um baluarte infinitamente mais poderoso contra os males da vida que suas forças sozinhas.

A variedade de relações nas quais um homem pode se situar ante os demais de modo a obter sua confiança, isto é, uma boa opinião, origina muitas espécies de honra. Essas relações são principalmente o meum e o tuum, depois o cumprimento das obrigações e, por último, a relação sexual. A essas correspondem a honra burguesa, a honra do cargo e a honra sexual, cada uma das quais apresentando ainda subdivisões.

A honra burguesa possui a esfera mais extensa; consiste na pressuposição de que respeitaremos absolutamente os direitos de cada um, e que, por conseguinte, nunca empregaremos em nosso proveito meios injustos ou ilícitos. É a condição para a nossa participação em todas as relações pacíficas com os homens. Basta, para perdê-la, uma só ação que seja enérgica e manifestamente contrária a essas relações pacíficas, algo que acarrete punições legais, com a condição de que o castigo tenha sido justo. Entretanto, em última análise, a honra repousa sempre sobre a convicção da imutabilidade do caráter moral, em virtude do qual uma só má ação é um indicador seguro da mesma natureza moral de todas as ações subsequentes, desde que se apresentem circunstâncias semelhantes. É o que indica também a expressão inglesa character, que significa renome, reputação, honra. Por isso, a perda da honra é irreparável, a menos que se deva a uma calúnia ou a falsas aparências. Assim, pois, há leis contra a calúnia, contra a difamação e contra as injúrias; porque a injúria, o simples insulto, é uma calúnia sumária, sem indicação de motivos. Em grego, se poderia muito bem reproduzir desta forma: ἔστι ἡ λοιδορία διαβολὴ σύντομος [a injúria é uma calúnia abreviada], máxima que não se encontra, todavia, expressa em nenhuma outra parte. É evidente que aquele que insulta não tem nada de real nem verdadeiro a produzir contra o outro, do contrário o enunciaria na forma de premissas e deixaria tranquilamente aos que lhe escutam o cuidado de tirar a conclusão; em vez disso, apresenta a conclusão e omite as premissas. Conta com a suposição de que procede assim somente em favor da brevidade. A honra burguesa toma seu nome, é verdade, da classe burguesa, porém sua autoridade se estende a todas as classes indistintamente, sem excetuar sequer as mais elevadas. Ninguém pode prescindir dela, sendo uma questão das mais sérias que merece a precaução de não ser considerada superficialmente. Todo aquele que viola a fé e a lei será, para sempre, um homem sem fé e sem lei, haja o que houver, seja o que for, os frutos amargos que essa perda traz consigo não tardarão em produzir-se.

A honra tem, em certo sentido, um caráter negativo, por oposição à glória, cujo caráter é positivo. Porque a honra não é a opinião que se enuncia sobre certas qualidades especiais, pertencentes a um só indivíduo, mas a que se enuncia sobre qualidades comumente pressupostas, que esse indivíduo se vê obrigado a possuir igualmente. A honra afirma apenas que esse sujeito não é uma exceção, enquanto que a glória afirma que é uma. A glória deve, pois, ser adquirida; a honra, pelo contrário, só necessita não ser perdida. Por conseguinte, ausência de glória é obscuridade, algo negativo; ausência de honra é vergonha, algo positivo. Porém, não devemos confundir essa condição negativa com a passividade; pelo contrário, a honra tem um caráter puramente ativo. Com efeito, procede unicamente de seu sujeito; está fundada em suas ações, e não em ações de outros ou em fatos exteriores; é, portanto, parte daquilo que depende de nós. Essa é, como veremos a seguir, a marca distintiva entre a verdadeira honra e a honra cavalheiresca ou falsa honra. A honra não pode ser atacada exteriormente senão pela calúnia, e o único meio de defesa é uma refutação acompanhada da publicidade necessária para desmascarar o caluniador.

O respeito que se atribui à idade parece fundamentar-se em que a honra dos jovens, ainda que admitida por suposição, não tenha sido posta à prova; por conseguinte, não existe, propriamente falando, mais que o crédito. Porém, homens de mais idade puderam comprová-la no curso da vida, se por sua conduta souberam conservar sua honra. Porque nem os anos em si, visto que os animais chegam também a uma idade avançada e às vezes mais avançada que a do homem, nem tampouco a experiência como simples conhecimento mais íntimo da marcha do mundo, justificam o respeito dos mais jovens pelos mais velhos, algo que se exige universalmente. A simples debilidade senil daria mais direito ao desdém que à consideração. É notável, todavia, que haja no homem certo respeito inato, realmente instintivo, pelos cabelos brancos. As rugas, sinal muito mais infalível da velhice, não inspiram esse respeito. Nunca se fez menção às rugas respeitáveis, mas sempre aos veneráveis cabelos brancos.

O valor da honra é apenas indireto; porque, como se explicou no começo deste capítulo, a opinião dos demais a nosso respeito não pode ter valor para nós senão na medida em que determina, ou pode eventualmente determinar, sua conduta para conosco. Ainda assim, isso se aplica apenas enquanto estivermos entre os homens. Isso porque, como no estado de civilização devemos inteiramente à sociedade nossa segurança e nossa propriedade, como ademais necessitamos dos outros em qualquer empreendimento, e como devemos conquistar sua confiança para que entrem em relação conosco, sua opinião será de grande valor aos nossos olhos, mesmo que esse valor seja sempre indireto — e não vejo como poderia ser direto. Nesse sentido, disse também Cícero: De bona autem fama Chrysippus quiden et Diogenes, detracta utilitate, ne digitum quidem, ejus causa, porrigendum esse dicebant. Quibus ego vehementer assentior [Crisipo e Diógenes diziam que uma boa reputação, fora sua utilidade, não merecia que se levantasse um dedo por ela. Concordo inteiramente com eles. (De finibus, III, 17.)]. Do mesmo modo, Helvécio desenvolve extensamente essa ideia em sua obra capital De l’esprit (discurso III, capítulo XIII) e chega a esta conclusão: Nous n’aimons pas l’estime pour l’estime, mais uniquement pour les avantages qu’elle procure [não amamos o apreço pelo apreço, senão unicamente pelas vantagens que proporciona]. Como os meios não podem ter mais valor que o fim, a máxima a honra é mais importante que a vida, como temos dito, é um exagero.

Isso no que diz respeito à honra burguesa. A honra do cargo é a opinião geral de que um homem incumbido de um emprego possui efetivamente todas as qualidades exigidas e cumpre estritamente as obrigações de seu cargo. Quanto mais importante e ampla é a esfera de influência de um homem no Estado, mais elevado e influente é o posto que ocupa e mais elevada deve ser também a opinião que se tem das qualidades intelectuais e morais que o fazem digno desse posto. Por conseguinte, possui um grau de honra correspondentemente superior, como evidenciado pelos seus títulos, condecorações etc., e também pelo comportamento diferenciado dos demais para com ele. Em mesma escala, a posição de um homem é a que determina o grau particular de honra que se lhe deve, mesmo que esse grau possa modificar-se em função da capacidade das massas em compreender a importância dessa posição. Mas sempre se atribuirá mais honra ao que tem obrigações especiais a cumprir que ao simples burguês, cuja honra se funda principalmente em qualidades negativas.

A honra do cargo exige, ademais, que aquele que ocupa um posto faça respeito à causa de seus colegas e de seus sucessores. Isso é realizado através do rígido cumprimento de seus deveres e também pelo fato de nunca deixar impune nenhum ataque contra o posto ou contra si mesmo, enquanto funcionário; em outras palavras, não permitindo que se chegue a dizer que não cumpre meticulosamente os deveres de seu cargo ou que esse não tem qualquer utilidade para o país. Pelo contrário, deve provar através de punições legais que tais ataques eram injustos.

Como subdivisões dessa honra, encontraremos a do empregado, do médico, do advogado, de todo professor público, de todo graduado, em suma, de todo aquele que foi publicamente declarado capaz de realizar algum trabalho intelectual, tendo, desse modo, se comprometido a executá-lo; em uma palavra, a honra de todos os que se comprometeram publicamente com alguma tarefa. Nesta categoria deve incluir-se também a verdadeira honra militar; esta consiste no fato de que todo homem que se comprometeu a defender sua pátria possui realmente as qualidades necessárias para tal, principalmente o valor, a bravura e a força, e que está realmente disposto a defendê-la até a morte e a não abandonar a bandeira, à qual prestou juramento. É dada aqui à honra do cargo uma significação muito mais ampla que a normal, em que designa o respeito devido pelos cidadãos ao próprio cargo.

Parece-me que a honra sexual exige ser examinada com maior profundidade, e seus princípios devem ser indagados até sua raiz. Isso virá a confirmar ao mesmo em tempo que toda honra se baseia, no fundo, em considerações de utilidade.

Considerada em sua natureza, a honra sexual se divide em honra das mulheres e honra dos homens, e constitui, por ambas as partes, um bem entendido esprit de corps [espírito de sindicato]. A primeira é a mais importante delas, porque, na vida das mulheres, as relações sexuais são o essencial. Desse modo, a honra feminina é, quando se fala de uma moça, a opinião geral de que não se entrega a nenhum homem e, tratando-se de uma mulher casada, de que não se entrega senão ao seu marido. A importância dessa opinião se funda nas considerações seguintes. O sexo feminino exige e espera absolutamente tudo do sexo masculino, tudo que deseja e tudo o que lhe é necessário; o sexo masculino não exige do outro, antes de tudo e diretamente, mais que uma só coisa. Fez-se, assim, um acordo tal que o sexo masculino não pudesse obter essa única coisa senão com a condição de cuidar de tudo, incluindo os filhos que nascessem dessa união. O bem-estar de todo o sexo feminino baseia-se nesse dever. Para que o acordo possa ser levado adiante, é necessário que todas as mulheres mantenham-se firmes e demonstrem esprit de corps. Apresentam-se então como um todo, em filas compactas, ante a massa inteira do sexo masculino como ante um inimigo comum que está em posse de todas as coisas boas sobre a terra devido à sua superioridade natural de poderes físicos e mentais. O sexo masculino deve ser vencido e conquistado, de modo que o sexo feminino, por meio disso, venha a possuir todos esses bens. Com esse fim, a máxima de honra de todo o sexo feminino é que toda relação fora do matrimônio será proibida em absoluto aos homens, a fim de que cada um deles se veja forçado a tomar o matrimônio como uma espécie de capitulação, e que assim sejam mantidas todas as mulheres. Esse resultado só pode ser alcançado plenamente pela observação rigorosa da máxima supramencionada; assim, pois, todo o sexo feminino vela pelo verdadeiro esprit de corps para que todos os seus membros o cumpram fielmente. Em consequência, toda moça que pelo concubinato se faça culpável de traição no sexo é rechaçada pelo sindicato inteiro e marcada com estigma da infâmia, porque seria perigoso ao bem-estar da sociedade se a conduta se generalizasse; ela perdeu sua honra. Nenhuma mulher deve respeitá-la; passa a ser evitada como uma praga. A mesma sorte espera a mulher adúltera, porque violou a capitulação consentida pelo marido; e porque esse exemplo dissuade os homens de celebrar contratos; mesmo porque deles depende a salvação de todas as mulheres. Ademais, como uma ação dessa natureza implica um engano e uma grosseira falta à palavra, a mulher adúltera perde não só a honra sexual, mas também a honra burguesa. Por isso se pode dizer “uma jovem perdida”, porém nunca se dirá “uma mulher perdida”. No primeiro caso, o sedutor pode restaurar a honra da jovem pelo matrimônio, mas isso o adúltero nunca poderá fazer depois que a esposa tiver se divorciado. Depois dessa exposição tão clara, reconheceremos que a base do princípio da honra feminina é um esprit de corps saudável, até necessário, porém bem calculado e fundado no interesse, e poderemos atribuir-lhe a mais elevada importância na vida de uma mulher, como um grande valor relativo, mas nunca um valor absoluto, superior ao da vida com seus destinos, que deva ser pago ao custo da existência. Assim, nunca se poderão aprovar os feitos extravagantes de Lucrécia e Virgínio, que degeneram em farsas trágicas. Há algo tão repulsivo no fim do drama de Emilia Galotti que deixamos o teatro nos sentindo mal. Por outro lado, e a despeito da honra sexual, não se pode deixar de simpatizar com Clara em Egmont. Essa maneira de levar ao extremo o princípio da honra feminina equivale, como tantos outros, ao esquecimento do fim pelos meios. Com tais exageros, se atribui à honra sexual um valor absoluto, sendo que, mais que qualquer outra, só possui um valor relativo. Poderíamos até dizer que seu valor é puramente convencional quando lemos Thomasius em sua obra De concubinatu, onde se demonstra que, até a reforma de Lutero, em quase todos os países e em todos os tempos, o concubinato tem sido um estado permitido e reconhecido pela lei, e a concubina continuava sendo respeitável; sem falar de Militta de Babilônia (Heródoto, livro I, c. 199), e assim por diante. Naturalmente, há também circunstâncias sociais que tornam impossível a formalidade exterior do matrimônio, especialmente nos países católicos onde o divórcio não existe. A meu juízo, os soberanos sempre demonstram ações mais morais quando têm uma querida que quando contraem um matrimônio monogâmico cujos descendentes podem reclamar seus direitos no caso em que chegasse a extinguir-se a descendência legítima. Disso resulta a possibilidade, ainda que muito remota, de uma guerra civil. Ademais, o matrimônio monogâmico, isto é, celebrado a despeito de todas as circunstâncias exteriores, no fundo é uma concessão feita às mulheres e aos sacerdotes, duas classes às quais devemos ter a precaução de conceder o mínimo possível. Consideremos também que qualquer homem, em seu país, pode casar-se com a esposa que quiser, exceto aquele ao qual esse direito natural é negado; esse pobre homem é o soberano. Sua mão pertence ao país, não pode dá-la senão tendo em conta as razões do Estado, ou seja, o interesse da nação. Não obstante, esse príncipe é humano, e anseia poder seguir as inclinações de seu coração. É injusto e ingrato, digno de espíritos tacanhos, proibir o soberano de viver com sua querida, ou acusar-lhe disso; desde que, naturalmente, não lhe seja permitido exercer qualquer influência sobre os negócios. Por sua parte, essa querida, com respeito à honra sexual, é uma exceção, à parte de uma regra universal. Ela não se entregou a mais que um homem, ama e é amada por esse homem que, todavia, nunca poderá tomá-la como esposa. Entretanto, em geral, os muitos sacrifícios sangrentos realizados em nome do princípio de honra feminina, como o infanticídio e o suicídio das mães, são evidência de que esse princípio não tem uma origem puramente natural. Uma jovem que se entrega ilegitimamente viola, é verdade, a fé do sexo inteiro, porém essa fé foi presumida tacitamente, não jurada. E como, na maioria dos casos, seu próprio interesse é o maior prejudicado, então sua tolice é infinitamente maior que sua depravação.

A honra sexual dos homens é consequência da honra sexual das mulheres, como o esprit de corps oposto. Todo homem que se submeta ao matrimônio, isto é, a essa capitulação tão vantajosa para a outra parte, contrai a obrigação de velar sucessivamente pelo que respeita a capitulação, a fim de que esse mesmo pacto não chegue a perder sua solidez se tomasse o costume de guardá-lo com negligência, e não convém que os homens, depois de abrirem mão de tudo, não possam assegurar-se da única coisa que estipularam em troca, a saber, a posse exclusiva da esposa. A honra do marido exige então que vingue o adultério de sua mulher e o castigue ao menos com a separação. Se o tolera com os olhos abertos, a sociedade masculina se cobre de vergonha. Porém, essa vergonha não é tão penetrante como a da mulher que perdeu sua honra sexual; pelo contrário, é apenas um levioris notae macula [um borrão de pouca importância], porque as relações sexuais são um assunto secundário para o homem, dada a multiplicidade e a importância das demais relações. Os dois grandes poetas dramáticos de todos os tempos modernos tomaram duas vezes como assunto essa honra masculina; Shakespeare em Otelo e em Conto de uma noite de inverno, e Calderón em El medico de sua honra e A secreto agravio secreta venganza. No mais, esta honra não exige mais que o castigo da mulher e não do amante, algo que seria uma opus supererogationis [questão de justiça excessiva]. Confirma-se, assim, a afirmação de que tal honra tem origem no esprit de corps dos homens.

A honra, como a consideramos até agora em suas espécies e em seus princípios, é universalmente aceita por todos os povos e em todas as épocas, ainda que se possa descobrir algumas modificações locais e temporais nos princípios da honra feminina. Porém, existe um gênero de honra completamente distinto que se propagou universalmente por todo lugar, honra de que não tinham a menor ideia nem os gregos nem os romanos, como tampouco os chineses, os hindus e os maometanos até agora. Isso porque nasceu na Idade Média e só se aclimatou na Europa cristã; e mesmo aqui não penetrou senão em uma fração mínina da população, a saber, entre as classes superiores da sociedade e entre seus próximos. É a honra cavalheiresca ou point d’honneur. Como seus princípios fundamentais diferem totalmente daqueles de que temos tratado até agora e, em alguns pontos, são opostos a ela, visto que aquela faz um homem respeitável, e esta, pelo contrário, faz um homem de honra, vou expor aqui separadamente seus princípios na forma de código ou espelho da honra cavalheiresca.

(1) A honra não consiste na opinião de outrem sobre nosso mérito, senão unicamente nas expressões dessa opinião, independentemente do fato de essa opinião expressa realmente existir ou não, sem dizer do fato de possuir ou não fundamentos ou razões. Por conseguinte, o mundo pode ter a pior opinião sobre nós, pode nos depreciar tanto quanto desejar; desde que não se permita que o digam em voz alta, isso em nada prejudica nossa honra. Porém, inversamente, se nossas qualidades e nossas ações obrigassem todos os outros a nos estimar muito (porque isso não depende mais que de sua opinião ou livre-arbítrio), bastará que um só indivíduo, ainda que seja o mais inútil e o mais imbecil, enuncie seu desdém sobre nós para que, de repente, nossa honra se sinta violada, perdida para sempre, se não a repararmos. Um fato que demonstra bem e claramente que não se trata da opinião mesma, senão unicamente de sua manifestação exterior, é que as palavras ofensivas podem ser retiradas, ou, se necessário, pode-se pedir perdão, e que isso então equivale a nunca tê-las pronunciado. É indiferente se a opinião que provocou os insultos foi alterada e por que motivo; apenas a expressão é anulada e, com isso, está tudo bem. Por conseguinte, o objetivo a que se aspira não é merecer o respeito, senão conquistá-lo.

(2) A honra de um homem não depende do que faz, senão do que sofre, daquilo que acontece com ele. Segundo os princípios de honra que temos discutido e que reinam em todo lugar, isso depende única e exclusivamente daquilo que o homem, em si mesmo, diz ou faz. Por outro lado, a honra cavalheiresca depende do que outrem diz ou faz. Assim, está nas mãos, e mesmo na ponta da língua, de todos, e se algum indivíduo decide aproveitar a oportunidade, a honra pode ser perdida para sempre, a menos que o ofendido retribua a violência através do método que veremos a seguir. Não obstante, este procedimento só pode ser realizado em risco da vida, da liberdade, da fortuna e da paz da alma. Consequentemente, ainda que a conduta de um homem fosse a mais nobre e mais respeitável, sua alma fosse a mais pura e seu cérebro o mais eminente, isso não o impediria de perder sua honra assim que um indivíduo qualquer se sentisse inclinado a insultá-lo. O insultante só não pode ter violado os preceitos da honra, porém, no mais, pode ser o patife mais vil, o bronco mais estúpido, um vagabundo, um jogador, um homem cheio de dívidas, em suma, um ser indigno de qualquer consideração por parte de outro homem. Na maioria dos casos, tal indivíduo será uma criatura a quem agrada insultar, porque, como Sêneca observou corretamente, ut quisque contemtissimus et ludibrio est, ita solutissimae linguae est [quanto mais desprezível e ridículo é um homem, menos freio tem sua língua. (De constantia, II)]. Tal criatura se irritará com a maior facilidade pelo homem que temos descrito acima, pois homens de preferências contrárias odeiam-se, e a vista das qualidades superiores comumente faz nascer uma raiva calada na alma dos miseráveis. Por isso Goethe disse:

Was klagst du über Feinde?
Sollten solche je werden Freunde,
Denen das Wesen, wie du bist,
Im stillen ein ewiger Vorwurf ist?

[Por que te queixas de teus inimigos? Poderiam jamais ser amigos teus homens para os quais uma natureza como a tua é, em secreto, uma acusação eterna? (Westöstlicher Diwan)]

Vemos o quanto as pessoas dessa classe devem gratidão ao princípio da honra, visto que as põe ao nível das que lhes são superiores em todos os sentidos. Se um indivíduo assim lança uma injúria, isto é, atribui ao outro alguma qualidade má, esta é considerada provisoriamente um juízo verdadeiro e fundado, um decreto com toda a força da lei; de fato, o insulto permanece verdadeiro e válido para sempre, a não ser que seja imediatamente lavado com sangue. Assim, o insultado permanece (aos olhos de todos os “homens de honra”) aquilo que o insultante (ainda que esse seja o mais depravado dos homens) afirmou a seu respeito; porque “engoliu a afronta” (esse é o terminus technicus). Desde logo, “os homens de honra” o desprezarão profundamente e o evitarão como a uma praga; por exemplo, se negarão, em voz alta e publicamente, a ir a uma reunião onde esse seja bem recebido, e assim por diante. Creio que posso com certeza fazer remontar a origem desse louvável sentimento ao fato de que na Idade Média até o século XV (segundo C. G. von Wächter em Beiträge zur deutschen Geschichte, besonders des deutschen Strafrechts, 1845), nos processos criminais, não era o acusador quem tinha de provar a culpa do acusado, mas o acusado quem tinha de provar sua própria inocência. Isso poderia ser realizado através do juramento de purgação, o qual, não obstante, necessitava de testemunhas (consacramentales). Estas juravam estar convencidas de que o acusado seria incapaz de um perjúrio. Se o acusado não tivesse testemunhas, ou se o acusador não as admitisse, então intervinha o juízo de Deus, que comumente consistia em um duelo. O acusado, pois, se convertia em um desgraçado [bescholten] e devia se redimir. Eis aqui a origem dessa noção de desgraça e de todo esse procedimento que mesmo hoje ainda se pratica entre os “homens de honra”, exceto pelo juramento. Isso nos explica também a profunda indignação com a qual os “homens de honra” recebem a acusação de mentira, pela qual exigem uma vingança sangrenta. Isso parece algo muito estranho tendo em vista que a mentira é coisa do dia-a-dia, mas o fato elevou-se à altura de uma superstição profundamente arraigada, especialmente na Inglaterra. (Todo aquele que ameaça de morte aquele que lhe acusa de mentira deveria, na realidade, não haver mentido nunca em sua vida.) Assim, nesses processos criminais da Idade Média, havia um procedimento ainda mais breve, e consistia em o acusado replicar que acusador era um mentiroso, sendo que então se apelava imediatamente ao juízo de Deus. Está, pois, escrito no código da honra cavalheiresca que a acusação de mentira deve ser imediatamente seguida de um apelo às armas. Isso basta em relação aos insultos. Há algo ainda pior que o insulto, tão terrível que devo me desculpar aos “homens de honra” pela sua simples menção neste código de honra cavalheiresca. Sei que apenas pensar nisso faz com que sintam a pele arrepiar e o cabelço eriçar, visto que é o summum malum, o maior de todos os males da terra, mais terrível que a morte e a condenação. Desse modo, horribile dictu, pode acontecer de um indivíduo dar em outro um tapa ou um golpe. É uma catástrofe tão terrível e produz uma extinção tão completa da honra que, apesar de todas as outras lesões à honra poderem ser curadas pelo derramamento de sangue, esta exige como cura um golpe mortal.

(3) A honra não se preocupa com o que pode ser o homem em si e por si, nem com a questão de saber se a natureza moral pode vir a modificar-se algum dia ou quaisquer outros questionamentos pedantes do gênero. Pelo contrário, quando a honra foi violada ou perdida provisoriamente, pode ser restaurada pronta e integralmente, com a condição de que se parta à ação rapidamente através da solução universal, o duelo. Entretanto, se o agressor não pertencer às classes sociais que professam o código de honra cavalheiresco; ou se houver violado esse código em alguma ocasião, há uma medida segura a empreender, especialmente quando a violação foi um golpe, mas mesmo se tiverem sido somente palavras, que consiste em deitá-lo abaixo no mesmo instante, se estivermos armados, ou no máximo uma hora depois; dessa maneira se restaura a honra. Porém, se desejarmos evitar essa medida por receio de consequências desagradáveis, ou se não estivermos seguros de que o ofensor está sujeito às leis da honra cavalheiresca, temos um paliativo na avantage. Consiste em retribuir a grosseria com ainda mais acentuada grosseria; se para esse fim os insultos não bastam, recorre-se aos golpes, e eis o clímax na recuperação de nossa honra. Assim, pois, golpes podem ser resolvidos com pauladas, e esses com açoitadas; mesmo contra esse último há pessoas que recomendam, como de uma solução infalível, cuspir à cara do oponente. Apenas quando esses procedimentos não bastam é que temos de recorrer, sem falta, ao derramamento de sangue. A razão para esse paliativo encontra-se na máxima seguinte.

(4) Do mesmo modo que ser insultado é uma vergonha, assim também insultar é uma honra. Por exemplo, suponhamos que meu oponente tenha a verdade, o direito e razão de seu lado; porém, insulto-o ao ponto em que se vá ao diabo com todos os seus méritos, então o direito e a honra estão do meu lado. Assim, provisoriamente, terá perdido sua honra, até que a recupere não pelo emprego do direito e da razão, mas pela pistola ou pela espada. Logo, a grosseria, em questões de honra, é uma qualidade que substitui todas as outras, se não as supera. O mais grosseiro sempre tem razão; quid multa? [o que mais se quer?] Independentemente de quão estúpido, mau ou perverso um homem tenha sido, tudo isso é quitado e legitimado pela grosseria. Se numa discussão, ou em uma simples conversa, o outro demonstra um conhecimento mais exato da questão, um amor mais severo da verdade, um juízo mais são e uma compressão superior à nossa, ou seja, se exibe qualidades intelectuais obscurecem as nossas próprias, então podemos de um só golpe eliminar todas essas qualidades superiores e também a inferioridade que através disso revelamos, e podemos então ser até superiores através da grosseria e dos insultos. Pois a grosseria vence todo argumento e eclipsa qualquer inteligência. Assim sendo, se nosso adversário não entra na disputa e replica com uma grosseria ainda maior, em cujo caso chegamos à nobre competição pela avantage, saímos vitoriosos e a honra está do nosso lado. Verdade, instrução, juízo, inteligência, sagacidade, tudo isso parte em retirada ante a divina grosseria. Desse modo, assim que um homem emite uma opinião distinta ou demonstra mais inteligência do que podem exercitar, os “homens de honra” se preparam para montar em seus cavalos; quando, em uma controvérsia, carecem de contra-argumentos, buscam alguma grosseria que sirva ao mesmo propósito e que seja mais fácil de encontrar, e então saem triunfantes. Depois do que acabamos de expor, deve ser óbvio que se tem razão em aplaudir esse princípio de honra por enobrecer o tom da sociedade. Essa máxima se funda em outra que, por sua vez, constitui o coração e a alma de todo o código.

(5) O tribunal supremo de justiça, ao qual podemos apelar em todas as diferenças tocantes à honra, é a força física, isto é, animalidade. Porque toda grosseria é, em verdade, um apelo à animalidade, visto que é uma declaração da incompetência das forças intelectuais e do direito moral para a decisão. Em seu lugar, coloca-se a força física e, no caso da espécie humana, que Franklin definiu como um tool-making animal [animal que fabrica utensílios], essa luta se realiza por meio de armas particulares à espécie, produzindo uma decisão irrevogável. Essa máxima fundamental, como se sabe, é designada pela sentença direito da força, uma expressão irônica análoga àquela denominada razão anedótica. Portanto, a honra cavalheiresca deveria ser chamada honra da força.

(6) Se, ao tratar da honra burguesa, constatamos muitos escrúpulos relacionados ao meum e ao tuum, às obrigações contraídas e à palavra dada, em contrapartida, o código que estamos discutindo exibe em todos esses pontos os princípios mais nobremente liberais. Portanto, só há uma palavra à qual não se deve faltar, a palavra de honra, isto é, a palavra pela qual dissemos “pela honra!” — resultando daí a presunção de que se possa faltar a qualquer outra palavra. Porém, mesmo no caso em que se houver violado sua palavra da honra, esta ainda pode ser resgatada por meio daquela solução universal, o duelo, em que se disputa com aqueles que afirmam termos dado a nossa palavra de honra. Ademais, há apenas uma dívida que precisa ser paga sem falta, a dívida de jogo, que, por esse motivo, também é chamada “dívida de honra”. Quanto às demais dívidas, poderíamos enganar judeus e cristãos, e isso não prejudicaria em nada a honra cavalheiresca [3].

À primeira vista, todo leitor de boa fé reconhecerá que esse estranho, bárbaro e ridículo código de honra não pode ter sua origem na essência da natureza humana ou numa visão sensata das relações entre os homens. Ademais, isso é confirmado também pela esfera muito limitada de sua autoridade, que se restringe à Europa a partir da Idade Média, e aqui mesmo não abarca mais que a nobreza, a classe militar e seus parecidos. Porque nem os gregos, nem os romanos, nem os povos asiáticos muito civilizados de tempos antigos ou modernos, souberam sequer a primeira letra dessa honra e de seus princípios. A única honra que todos esses povos conheceram foi a primeira que analisamos, a honra burguesa. Entre eles, o homem não tem outro valor senão aquele proclamado por sua conduta, e não aquele dito por qualquer má língua a seu bel-prazer. Entre todos esses povos, o que um indivíduo diz ou faz pode aniquilar sua própria honra, mas nunca a de outro. Em todos esses povos, um golpe não é mais que um golpe, e nisso qualquer cavalo ou asno pode ser mais perigoso ainda; em certas ocasiões, um golpe poderá despertar a cólera ou incitar uma retaliação imediata; isso, porém, não tem nada em comum com a honra. Essas nações não têm livros onde se enumerem os golpes ou os insultos, e tampouco as “satisfações” que deram ou deixaram de dar. Pois em bravura e desprezo pela morte certamente não perdem em nada às raças da Europa cristã. Os gregos e os romanos eram seguramente heróis completos; porém ignoravam plenamente o point d’honneur. Entre eles o duelo não era assunto das classes nobres, mas de gladiadores mercenários, escravos abandonados, criminosos condenados que, juntamente com animais selvagens, punham-se a matar uns aos outros para a diversão do povo. Com o advento do cristianismo, os jogos de gladiadores foram abolidos, porém seu lugar, nos tempos cristãos, foi ocupado pelos duelos por intermédio do juízo de Deus. Se os primeiros eram um sacrifício cruel oferecido à ânsia pública por espetáculos, o duelo é também um sacrifício cruel oferecido ao preconceito universal, mas não de criminosos, escravos e prisioneiros, senão de homens livres e nobres.

Muitos traços que a história nos preservou são evidências de que esse preconceito era completamente ignorado pelos antigos. Por exemplo, quando um chefe teutão desafiou Mário a um duelo, esse herói lhe respondeu de modo a dar a entender que se estivesse cansado da vida, poderia simplesmente enforcar-se; não obstante, apresentou-lhe um gladiador veterano com o qual poderia batalhar a gosto (Freinsheim, Supl. Tito Livio, l. LXVIII, c. 12). Lemos em Plutarco (Temístocles, 11) que Euribíades, o comandante-chefe da armada, ao discutir com Temístocles, levanta o bastão para acertá-lo. Todavia, não vemos esse último sacar sua espada, senão dizer: acerta, porém escuta. Que indignação deve sentir o leitor “de honra” ao verificar que não há menção de que o corpo de oficiais atenienses declara imediatamente não querer servir mais às ordens desse Temístocles! Assim, disse com razão um escritor francês moderno: Si quelqu’un s’avisait de dire que Démosthène fut un homme d’honneur, on sourirait de pitié; — Cicéron n’était pas un homme d’honneur non plus [se alguém se aventurasse a dizer que Demóstenes foi um homem de honra, se sorriria de compaixão; — Cícero não era tampouco um homem de honra. (Soirées littéraires, de C. Durant, Rouen, 1828, vol. II, p. 300.)]. Ademais, a passagem de Platão (De legibus, IX, as seis últimas páginas e XI, p. 131, ed. Bip.) discorre extensamente sobre os golpes ou ataques, provando claramente que os antigos desconheciam completamente qualquer conexão entre tais questões e algum sentimento de honra cavalheiresca. Sócrates, em consequência de suas numerosas discussões, esteve muitas vezes exposto a receber golpes, que suportava com tranquilidade. Um dia, quando recebeu uma patada, a aceitou sem incomodar-se, e disse a alguém que se surpreendeu disso: Se um asno me houvesse acertado, iria pedir-lhe satisfações? (Diógenes Laércio, II. 21) Noutra ocasião, alguém lhe perguntou: Esse indivíduo não lhe injuria e insulta?, e sua resposta foi: Não, porque aquilo que disse não se aplica a mim (ibid. 36). Estobeu (Florilegium, ed. Gaisford, vol. I, pp. 327-330) nos conservou uma grande passagem de Musonio que nos permite observar o que os antigos pensavam a respeito dos insultos. Não conheciam outro meio de obter satisfação senão recorrendo à lei, e até isso os sábios desdenhavam. Pode-se ver em Górgias de Platão (p. 86, ed. Bip.) que essa era a única reparação exigida para uma bofetada, onde encontramos também reproduzida a opinião de Sócrates (p. 133). O mesmo pode ser visto claramente no registro de Gelio (XX, I) sobre um tal Lucio Veracio que, sem motivo algum, tinha a ousadia de esbofetear os cidadãos romanos que encontrava pelo caminho. Para evitar muitas complicações, se fazia acompanhar de um escravo portando um saco de moedas de cobre, que imediatamente pagava ao transeunte assombrado a indenização legal de vinte e cinco centavos. Crates, o célebre filósofo cínico, havia recebido do músico Nicodromo uma bofetada tão terrível que seu rosto estava inchado e roxo; então este gravou em sua testa a inscrição Nicodromus fecit [Nicodromo o fez]. Com o que cobriu de vergonha aquele flautista (Apul. Flor., p. 126, ed. Bip.) por haver cometido tal brutalidade a um homem a quem Atenas reverenciava como um Deus. (Diógenes Laércio, VI. 89.) Em uma carta para Melesipo, Diógenes de Sinope diz que foi espancado por atenienses bêbados; mas acrescentou que isso não lhe importava absolutamente nada. (Cf. nota de Casaubon, Diog, Laert., VI. 33.) Sêneca, em seu livro De constantia sapientis, do capítulo X até o fim, trata detalhadamente do contumelia, insulto ou ultraje, para demonstrar que o sábio o despreza. No capítulo XIV, diz: At sapiens colaphis percussus, quid faciet? Quod Cato, cum illi os percussum esset: non excanduit, non vindicavit injuriam: nec remisit quidem, sed factam negavit [O que fará um sábio quando esbofeteado? Aquilo que Catão fez quando lhe feriram o rosto; não se incendiou de cólera, não vingou a injúria tampouco revidou, simplesmente ignorou-a].

Sim, exclamais, mas esses eram homens sábios! E vós sois tolos? Precisamente.

Vemos, pois, que todo esse princípio de honra cavalheiresca era desconhecido dos antigos, precisamente porque permaneceram fiéis à visão natural e imparcial das coisas, sem deixar-se influenciar por tolices viciosas e abomináveis. Assim, os antigos não viam em um golpe na cara nada mais do que é em realidade, um prejuízo físico; enquanto que, para os modernos, tornou-se uma catástrofe e um tema de tragédias, como, por exemplo, na Cid de Corneille, ou em um drama alemão mais recente intitulado Die Macht der Verhältnisse [A força das circunstâncias], que deveria chamar-se Die Macht des Vorurtheils [A força do preconceito]. Porém, se alguém na Assembleia Nacional de Paris recebe uma bofetada, então a Europa inteira se agita. As situações clássicas, assim como os exemplos da antiguidade, mencionados acima, certamente devem ter incomodado os homens “de honra”; portanto, recomendo-lhes, como antídoto, a leitura da história do senhor Desglands na obra mestra de Diderot, Jacques le fataliste. É um espécime excepcional de honra cavalheiresca moderna que talvez julguem agradável e edificante. [4]

De tudo o que precede, fica suficientemente claro que o princípio de honra cavalheiresca não pode ser um princípio primitivo e baseado na própria natureza do homem. É, pois, artificial, e sua origem não é difícil de descobrir. Sua existência obviamente data da época em que se usavam mais os punhos que os cérebros, em que os sacerdotes mantinham a razão acorrentada, da louvável Idade Média e seu sistema de cavalheirismo. Naquela época, Deus não só tinha de velar por nós, mas também julgar por nós. Assim, os processos judiciais complicados eram decididos pelas ordenações ou juízos de Deus, que consistiam, com poucas exceções, nos duelos, não só entre cavalheiros, senão até entre cidadãos normais. Há um belo exemplo disso em Henrique VI, de Shakespeare (Parte II, ato II, cena III). Podia-se sempre apelar de toda sentença judicial através do duelo como uma instância superior, isto é, o juízo de Deus. Dessa maneira, no lugar da razão, eram a força e a destreza físicas — ou, em outras palavras, a natureza animal — que se erigiam em tribunal, e não era o que um homem havia feito, senão o que lhe havia acontecido, o que decidia se tinha ou não razão, exatamente como procede o princípio de honra cavalheiresco, ainda hoje em vigor. Se restarem dúvidas sobre esta origem do duelo e de suas formalidades, bastaria, para dissipá-las, a leitura da excelente obra de J. G. Mellingen, The History of Duelling, 1849. Ainda em nossos dias, encontramos pessoas que conformam sua vida a esses preceitos, as quais, como se sabe, no geral, não são precisamente nem as mais instruídas, nem as mais racionais, para quem o resultado do duelo representa, efetivamente, a sentença divina a respeito da disputa; essa é, evidentemente, uma opinião nascida de uma transmissão hereditária e tradicional.

À parte essa origem do princípio de honra cavalheiresco, deve estar bastante claro que o objetivo central desse princípio é empregar a ameaça da força física com o fim de extorquir uma aparência de respeito, cuja conquista real é considerada muito difícil ou supérflua. É mais ou menos como se um indivíduo aquecesse com sua mão o bulbo de um termômetro e quisesse demonstrar, pela ascensão da coluna de mercúrio, que sua habitação está bem aquecida. Examinando-o mais de perto, o coração do assunto é que, do mesmo modo que a honra burguesa, que tem por objetivo as relações pacíficas dos homens entre si, consiste na opinião de que merecemos confiança, visto que respeitamos escrupulosamente os direitos de cada qual, assim também a honra cavalheiresca consiste na opinião de que somos de temer, pois estamos decididos a defender até a morte nossos próprios direitos. O princípio de que é mais importante inspirar temor que confiança não seria tão falso, tendo em vista quão pouco se pode confiar na justiça dos homens, se vivêssemos no estado natural em que cada qual deve proteger a si mesmo e estabelecer seus direitos diretamente. Porém não tem aplicação em nossa época de civilização, em que o Estado se encarrega de proteger o indivíduo e sua propriedade. Permanece, como os castelos e as torres de vigília da época em que o direito era a força, um objeto inútil e abandonado em meio a campos bem cultivados, estradas frequentadas e mesmo ferrovias. Assim, a aplicação da honra cavalheiresca, que ainda professa tal princípio, confina-se a esses pequenos prejuízos pessoais que o Estado não castiga senão ligeiramente ou não castiga em absoluto, em função do princípio de minimis lex non curat [a lei não cuida das coisas ínfimas], pois são apenas delitos insignificantes, às vezes cometidos como simples zombarias. A consequência da aplicação limitada desse princípio resultou num respeito exagerado pelo indivíduo, que é desproporcional à natureza, à constituição e ao destino do homem. [5] Tendo elevado esse valor a uma espécie de santidade, considera muito insuficientes as penas infligidas pelo Estado contra as ofensas insignificantes. Encarrega-se, pois, de castigá-las por si mesmo, sempre com castigos corporais e até com a morte do ofensor. Isso tudo, sem dúvida, funda-se numa arrogância desmesurada que, esquecendo-se completamente da verdadeira natureza do homem, tenta torná-lo absolutamente imune a todo ataque ou mesmo censura. [6] Porém todo homem decidido a manter tais princípios pela violência e que professa a máxima: quem me insulta ou me ataca deve perecer, merece por isso ser expulso de qualquer país. É verdade que se levanta toda espécie de pretexto para defender esse orgulho desmedido. Se dois indivíduos intrépidos se cruzam e nenhum deles cede, a mais ligeira colisão pode levá-los às injúrias, logo aos golpes e, por fim, ao assassinato. É, pois, preferível, por respeito à decência, omitir os graus intermediários e recorrer diretamente às armas. O apelo às armas tem suas próprias formalidades específicas, e estas culminaram em um sistema rígido e pedante, com leis e regras, que constituem a farsa mais solene do mundo, um templo de honra dedicado à tolice. Mas o princípio em si é falso; pois, nas coisas de mínima importância (ficando sempre os assuntos importantes reservados aos tribunais), um dos dois indivíduos intrépidos, naturalmente, cederá, a saber, o mais prudente, e concordarão em desviar. Encontramos a prova disso no povo, ou, melhor dizendo, em todas as classes sociais que não professam o princípio de honra cavalheiresca, deixando as diferenças seguirem seu curso natural. Entre esses o homicídio é cem vezes mais raro que na classe que submete a ele, constituindo talvez um de cada mil da comunidade; até golpes são raros. Afirma-se que os costumes e as maneiras da boa sociedade se baseiam nesse princípio de honra que, com seu sistema de duelos, constitui um baluarte contra os ataques da grosseria e da brutalidade. Não obstante, em Atenas, em Corinto, em Roma, havia boa e até muito boa sociedade, maneiras elegantes e bons costumes, sem que tivesse sido necessário implantar o espantalho da honra cavalheiresca. Pode-se dizer, com verdade, que na sociedade antiga as mulheres não ocupavam uma posição proeminente, como entre nós. Tal situação dá às conversas um caráter superficial e pueril, excluindo dela todo o discurso sério que distinguia os antigos. A presença das mulheres em nossa sociedade certamente contribuiu, em grande parte, como demonstrado pela boa sociedade de nossa época, à preferência da valentia pessoal acima de todas as outras qualidades. A valentia pessoal é, realmente, uma qualidade muito subordinada, a marca distintiva de um subalterno, uma simples virtude na qual os próprios animais nos são superiores; do contrário, não se diria valente como um leão. Longe de ser o alicerce da sociedade, a honra cavalheiresca é frequentemente um refúgio seguro para a desonestidade e perversidade em questões sérias, assim como para a grosseria, imprudência e insolência nas questões pequenas. Por isso, muitos casos de grosseria são tolerados em silêncio simplesmente porque ninguém se dispõe a arriscar seu pescoço para censurá-los. Em testemunho, vemos o duelo em todo o seu apogeu, praticado com a seriedade mais sanguinária, precisamente nesta nação que, em suas relações políticas e financeiras, revelou uma falta de honradez verdadeira. Questões sobre a natureza das relações na vida privada nesta nação podem ser mais bem respondidas pelos indivíduos com mais experiência neste campo. Mas, no que concerne a sua urbanidade e sua cultura social, são de longa data célebres pela sua ausência.

Não há, portanto, qualquer verdade nesses pretextos. Poderia afirmar-se com mais razão que, assim como o cão rosna quando se lhe rosna e bajula quando se lhe agrada, assim também está na natureza do homem devolver hostilidade com hostilidade e exasperar-se e irritar-se com as manifestações de desdém ou de ódio. Como disse Cícero: habet quendam aculeum contumelia, quem pati pudentes ac viri boni difficillime possunt [o insulto e a injúria têm certo aguilhão que mesmo os homens prudentes e bons dificilmente podem suportar]; pois em nenhuma parte do mundo (se excetuarmos algumas seitas piedosas) se sofrem com calma e compostura as injúrias, e com maior razão os golpes. Não obstante, a natureza não nos ensina senão uma retaliação adequada à ofensa, certamente não nos ensina a matar aquele que nos acuse de mentira, de estupidez ou de covardia. A antiga máxima alemã sangue por um soco é uma superstição cavalheiresca repulsiva. Em todo caso, a retribuição ou a retaliação de insultos é uma questão de cólera, não de honra ou de dever, como o princípio da honra cavalheiresca nos leva a acreditar. O fato é que, quanto maior for a verdade, maior será a injúria; é óbvio que a menor insinuação que acerta a ferida será muito mais ofensiva que a mais terrível acusação desprovida de qualquer fundamento. Por conseguinte, todo aquele que tem a consciência segura de não haver merecido uma acusação pode e vai desprezá-la. Pelo contrário, o princípio de honra exige que se demonstre uma suscetibilidade que não se sente e que se vingue com sangue ofensas que não ferem de modo algum. Um homem precisa ter uma opinião desprezível de seu próprio valor para tratar de sufocar toda observação ofensiva a fim de que não seja ouvida. Um homem dotado de uma verdadeira autoestima se fará indiferente aos insultos; se não conseguir permanecer indiferente, a prudência e a educação virão auxiliá-lo a salvar as aparências e dissimular sua cólera. Se, ademais, chegarmos a nos livrar dessa superstição de princípio de honra cavalheiresca, da ideia de que esta é destruída quando somos insultados e de que pode ser restaurada se retribuirmos o insulto; se os indivíduos deixassem de pensar que o erro, a brutalidade e a insolência podem ser justificados pela prontidão em prestar satisfações, isto é, de lutar em sua defesa, chegaríamos todos rapidamente a compreender que grosserias e injúrias são como uma batalha na qual o perdedor vence, e que, como disse Vicenzo Monti, insultos são como procissões de igrejas, pois sempre retornam ao ponto de partida. Se pudéssemos levar os indivíduos a considerar o insulto sob essa perspectiva, não precisaríamos dizer alguma grosseria para provar que estamos certos. Mas, hoje, se quisermos avaliar seriamente qualquer questão, temos primeiramente que considerar se essa opinião não ofende de algum modo os espíritos limitados, que comumente se alarmam e se ressentem do menor sinal de inteligência. Pois é possível que a mente dotada de juízo e compreensão tenha de se lançar contra as cabeças ocas que abrigam somente mesquinhez e tolice. Então a superioridade intelectual realmente obteria na sociedade a primazia que merece e que hoje se dá à superioridade física e coragem para brigas, ainda que de uma maneira disfarçada. O resultado seria que os homens mais eminentes teriam um motivo a menos para se excluírem da sociedade. Uma mudança dessa natureza abriria o caminho para boas maneiras genuínas e para uma verdadeira boa sociedade, assim como, sem dúvida, existiram em Atenas, Corinto e Roma. A quem quiser conhecer um exemplo, recomendo a leitura do Banquete, de Xenofonte.

O último argumento de defesa do código cavalheiresco será, sem dúvida, dizer: Por que um homem poderia, Deus nos guarde, dar um golpe em outro homem! — ao qual poderia responder sucintamente que, de mil pessoas, as novecentas e noventa e nove que não obedecem a esse código deram e receberam golpes muitas vezes, sem que isso tivesse consequências fatais, enquanto que para seus adeptos um golpe geralmente significa a morte de uma das partes. Mas quero examinar a questão mais detalhadamente. Tentei muitas vezes encontrar alguma razão sustentável, ou ao menos plausível, fundamentada não em frases feitas, mas redutíveis a noções claras, para a convicção arraigada em uma parcela da sociedade humana de que um golpe é algo tão terrível. Procurei-a em vão na natureza animal e na natureza racional do homem. Um golpe não é, e nunca será, mais que um mal físico insignificante, que qualquer homem pode ocasionar a outro, e com isso não demonstra nada, apenas que era mais forte ou hábil, ou que o outro não estava em guarda. Uma análise da questão não nos mostra nada além disso. Porém, vejo esse mesmo cavalheiro, para o qual um golpe desferido por uma mão humana é o maior de todos os males, receber de seu cavalo um golpe dez vezes mais violento, e garantir, enquanto manca e dissimula a dor, que isso não tem a menor importância. Então cheguei à conclusão de que a culpa era da mão humana; não obstante, em batalha, vejo o cavalheiro receber pancadas e estocadas dessa mesma mão, e ainda assim assegurar que seus ferimentos não têm a menor importância. Mais tarde, ouço que golpes com a prancha da espada não são tão terríveis quanto os de um bastão; de modo que, há pouco tempo, os cadetes estavam sujeitos aos primeiros, mas nunca aos segundos; ainda mais, que a maior das honras é a acolada. E é aqui que esgoto todos os meus motivos psicológicos e morais, e não me resta mais que considerar a coisa como uma antiga superstição profundamente arraigada, como um novo exemplo, ao lado de tantos outros, de que se pode levar os homens a crer em qualquer coisa. Isso também é confirmado pelo fato conhecidíssimo de que na China os golpes com bambu são uma forma comum de castigo empregada em civis, e mesmo em oficiais de todas as classes, demonstrando que a natureza humana, mesmo altamente civilizada, não percorre o mesmo caminho aqui e na China. [7] Ademais, se examinarmos a natureza humana com imparcialidade, veremos que golpear e bater são tão naturais ao homem quanto morder é aos animais de rapina e chifrar é às bestas de chifres. O homem é simplesmente animal que golpeia. Por isso nos chocamos nos raros casos em que sabemos de um homem mordeu outro, enquanto é perfeitamente natural e frequente dar ou receber golpes. É evidente que, com mais esclarecimento e inteligência, de bom grado dispensamos os golpes em favor do autocontrole mútuo. Entretanto, é uma crueldade fazer uma nação, ou mesmo só uma classe, acreditar que receber um golpe é uma desgraça terrível, cuja consequência inevitável é a morte e o assassinato. Há demasiados males reais neste mundo para que se permita aumentar seu número através de males imaginários que, por sua vez, trazem outros reais; é isso o que essa superstição estúpida e perigosa faz. Como consequência, sou levado a condenar os governos e corpos legislativos quando promovem tal superstição ao trabalhar vivamente em favor da abolição de todo castigo corporal, no civil como no militar. Com isso, acreditam trabalhar em interesse da humanidade, quando, pelo contrário, trabalham para fortalecer essa superstição inumana e abominável que já sacrificou tantas vítimas. Para todas as ofensas, exceto a mais grave, infligir golpes é o primeiro castigo que ocorre ao homem, sendo, portanto, natural; quem não se submete à razão, se submeterá aos golpes. É razoável e natural que um homem receba castigos corporais quando, por não possuir posses, não possa ser multado, e tampouco ser privado de sua liberdade quando seus serviços são necessários. Não há quaisquer argumentos contra isso, exceto a invocação da “dignidade do homem”; e esta, por sua vez, não é baseada em noções claras, mas apenas naquela superstição perniciosa já mencionada, que constitui o âmago da questão, como veio comprovar um exemplo quase risível. Nos exércitos de muitos países, as pauladas foram recentemente substituídas pela condenação ao leito de pau, que, assim como as primeiras, produz dor física, mas não é considerada ofensiva à honra ou à dignidade. Todavia, ao estimular essa superstição, estão de mãos dadas com o princípio de honra cavalheiresca e, portanto, do duelo; enquanto, ao mesmo tempo, está tentando, ou finge tentar, aboli-lo através de leis. [8] Como resultado, vemos esse fragmento de direito do mais forte, transportado através dos tempos, da selvagem Idade Média até o século XIX, exibir-se ainda hoje como um escândalo público. É tempo de expulsá-lo com armas e bagagens.

Hoje em dia, não é permitido incitar cães ou galos a lutar uns contra os outros (na Inglaterra, ao menos, esses passatempos são punidos); todavia, homens são, contra sua vontade, incitados uns contra os outros em combates de morte por meio da ridícula superstição do princípio de honra cavalheiresca e de seus representantes e campeões miseráveis, que os forçam a lutar como gladiadores pela primeira banalidade que ocorra. Proponho aos puristas alemães que adotem a expressão ritterhetze [combate de cavalheiros] em vez de duelo, que provavelmente vem não do latim duellum, mas do espanhol duelo — significando sofrimento, pena, queixa. O modo pedante com que se conduz essa loucura certamente garantirá que tenhamos do que rir. Não deixa de ser revoltante que esse princípio e seu código absurdo estabeleçam um estado dentro do Estado, um imperium in imperio, que não reconhece outro direito senão o do mais forte. Este tiraniza as classes sociais que estão sob seu domínio, estabelecendo um tribunal da Santa-Vehme ante o qual todos podem ser chamados a comparecer sob os pretextos mais fúteis para serem julgados em questão de vida ou morte. Naturalmente, este se torna o esconderijo no qual todo vilão, desde que pertença a essas classes, poderá ameaçar e mesmo exterminar os homens mais nobres e eminentes que são, inevitavelmente, aqueles a quem odeiam. Hoje a justiça e a polícia têm ganhado bastante autoridade para que um malandro não possa nos barrar o caminho e gritar: o dinheiro ou a vida! Seria tempo para que o bom senso exercesse também bastante autoridade para que o primeiro malandro não pudesse interromper nossa existência mais pacífica gritando: a honra ou a vida! Deve-se retirar das classes superiores o peso que as aflige devido ao fato de que, em qualquer instante, podem ser chamadas a pagar com suas vidas o gosto de um indivíduo pela brutalidade, grosseria, estupidez ou perversidade. É uma atrocidade que dois jovens tolos e impulsivos tenham de se ferir, mutilar ou mesmo assassinar simplesmente porque tiveram uma pequena discussão. A força desse estado tirânico dentro do Estado, da força da superstição, pode ser medida pelo fato de que indivíduos incapazes de restaurar sua honra cavalheiresca devido à posição demasiado elevada ou demasiado ínfima de seu agressor, ou qualquer outra desproporção que impossibilitasse o duelo, em completo desespero, frequentemente tiraram suas próprias vidas, culminando neste resultado tragicômico. Tudo que é falso e absurdo se revela quando, no fim, floresce como uma contradição. De igual maneira, no caso atual, a contradição se manifesta sob a forma da mais clara antinomia; assim, o duelo está proibido ao oficial e, não obstante, este será castigado com a destituição se, quando desafiado, recusa-se a participar.

Já que estou nisso, quero ser ainda mais franco. Examinada com cuidado e sem pretensão, esta grande diferença que se faz pregar em voz tão alta, entre matar seu adversário em um combate ao ar livre e em armas iguais ou por emboscada, está fundada simplesmente em que, como temos dito, este estado no Estado que não reconhece outro direito exceto aquele do mais forte elevou-o à altura de juízo de Deus e fez disso a base de seu código. Pois, ao matar um inimigo numa luta justa, não demonstramos senão que somos mais fortes ou habilidosos. A justificativa que se busca quando nos envolvemos num duelo pressupõe, pois, que o direito do mais forte é realmente um direito. Porém, na verdade, a circunstância de que meu adversário defenda-se mal me dá a possibilidade, mas não o direito, de matá-lo. Pelo contrário, esse direito e, portanto, minha justificativa moral só pode sustentar-se nos motivos para terminar-lhe a vida. Mesmo admitindo que esses motivos existam e sejam suficientes, não há razão alguma para que isso dependa da habilidade para atirar ou para defender, então se torna indiferente o modo como o mato, seja de frente ou por trás. Porque, moralmente, o direito do mais forte não tem mais peso que o do mais astuto, que é o empregado nas mortes por emboscada. Portanto, o direito da força e o direito da astúcia têm pesos iguais; ademais, notemos que, mesmo no duelo, praticam-se ambos os direitos, porque uma finta é apenas um eufemismo para engano. Se me considero moralmente justificado em dar fim à vida de um homem, é uma tolice deixar que isso dependa da habilidade no manuseio das armas; porque, neste caso, não apenas terá me ofendido, mas também tomado a minha vida. Rousseau é da opinião de que se deve vingar uma ofensa não pelo duelo, mas pelo assassinato. Emite essa opinião na nota 21, tão misteriosamente concebida, do IV livro de Émile (p. 173, ed. Bip.). Está sob tamanha influência da superstição cavalheiresca que se considera justificado em assassinar um homem que o acusasse de mentira; embora devesse reconhecer que todos, principalmente ele próprio, mereceram essa acusação inumeráveis vezes. É evidente que esse preconceito que autoriza matar o ofensor, com a condição de que o combate se faça ao ar livre e com armas iguais, considera o direito da força como se fosse realmente um direito, e o duelo como um juízo de Deus. Por outro lado, o italiano que, inflamado pela cólera, lança-se contra seu oponente assim que o encontra e o mata sem cerimônia, ao menos age de modo consistente e natural; é mais astuto, porém não menos perverso que o duelista. Se objetarem que, ao matar meu adversário no duelo, estou justificado pelo fato de que este estava igualmente disposto a matar-me, respondo que, ao desafiá-lo, coloquei sobre ele a necessidade de legítima defesa. Ao colocarem-se intencionalmente tal necessidade, os dois duelistas estão apenas buscando um pretexto plausível para o assassinato. Uma justificativa por meio do princípio volenti non fit injuria [a quem consente não se comete injúria (Aristóteles, Ética a Nicômaco, l. V. c. 15.)] seria mais plausível no sentido de que ambos concordaram em arriscar suas vidas. Porém, a isso se pode objetar que a parte ofendida não foi ofendida volens; foi esse princípio tirânico da honra cavalheiresca, com seu código absurdo, que conduziu ambos, ou ao menos um dos combatentes, perante esse tribunal da sanguinária Santa-Vehme.

Estendi-me bastante sobre a honra cavalheiresca; porém, o fiz com boa intenção, pois a filosofia é o único Hércules que pode combater os monstros morais e intelectuais que existem na terra. Há principalmente duas coisas que distinguem as condições sociais da época moderna e aquelas da antiguidade, e isso em detrimento da primeira, visto que deram a essas um aspecto sério, sombrio e sinistro, algo que não existia na antiguidade, clara e serena como a aurora da vida. Refiro-me ao princípio de honra cavalheiresca e às doenças venéreas, par nobile fratrum! [nobre parentesco de irmãos! (Horácio, Sátiras, II. 3. 243)]. Juntas, ambas envenenaram a νεῖκος καὶ φιλία [a discórdia e a amizade] da vida. Na verdade, a influência da doença venérea é muito mais extensa do que parece à primeira vista, porque essa influência não só é física, mas também moral. A partir do momento em que o Cupido passou a levar flechas envenenadas, as relações entre os sexos passaram a apresentar um elemento estranho, hostil e mesmo diabólico. Consequentemente, tais relações são permeadas por uma desconfiança sombria e receosa; os efeitos indiretos dessa alteração no fundamento de toda a sociedade humana repercutem, em diversos graus, em todas as demais relações sociais. Porém, sua análise detalhada me levaria demasiado longe de meus propósitos presentes. Análoga, ainda que de natureza distinta, é a influência do princípio de honra cavalheiresca, essa farsa solene que era estranha aos antigos, que torna a sociedade moderna rígida, lúgubre e tímida, já que toda palavra, por menor que seja, é analisada e ruminada. Mas isso não é tudo! Esse princípio é um Minotauro universal, ao qual se deve sacrificar anualmente um grande número de filhos de boas famílias, eleitos não em um só país, como para o monstro antigo, senão em todos os países da Europa. Já é tempo de lançar um ataque sério sobre esse sistema estúpido, como acabo de fazer. Que esses dois monstros modernos sejam exterminados no século XIX! Não abandonaremos a esperança de que os médicos consigam exterminar o primeiro por meio da profilaxia. Porém, abolição do segundo é trabalho da filosofia através da reforma de ideias, visto que os governos, até o momento, falharam em fazê-lo por meio de leis; ademais, apenas através da filosofia o mal é atacado em sua raiz. Entretanto, se os governos querem seriamente abolir o duelo, e se o escasso êxito de seus esforços provém de sua impotência ante esse mal, então lhes proponho uma lei cuja eficácia posso garantir; ademais, pode ser empregada sem a necessidade de operações sangrentas, patíbulos, forcas ou prisões perpétuas. É, pelo contrário, um remédio insignificante, um pequeno remédio homeopático dos mais fáceis; assim, pois, todo aquele que desafiar outro ou adotar uma postura hostil para com ele receberá, em plena luz do dia, em frente à casa de guarda, doze pauladas à la chinoise [à moda chinesa]; os desafiados e as testemunhas devem receber seis. Caso o duelo já tenha ocorrido, devem ser adotados os procedimentos criminais de costume. Talvez um homem de modos cavalheirescos objete que, após haverem sofrido tal punição, muitos “homens de honra” serão capazes de atirar na própria cabeça. A isso respondo que é melhor que tais tolos atirem em si próprios que nos outros. Mas, no fundo, sei muito bem que os governos não estão seriamente interessados na abolição do duelo. Os salários dos empregados civis, e especialmente os dos oficiais (a não ser em graus elevados), são muito inferiores ao valor de seus serviços. A deficiência é compensada por meio da honra, que é representada por títulos, condecorações e, em geral, pelo sistema de posições e distinção. Pois bem, para essa honra o duelo é um excelente aliado, de modo que a disciplina já começa nas universidades. Assim, as vítimas pagam com o próprio sangue pela deficiência em seus salários.

Para completar a discussão, mencionemos também a honra nacional. É a honra de toda uma nação considerada como um membro da comunidade de nações. Não reconhecendo essa comunidade outro meio que a força, e tendo cada membro, portanto, de proteger seus próprios direitos, a honra de uma nação não só consiste na opinião bem fundamentada de que merece confiança (crédito), senão também na de que é bastante forte para que seja temida. Assim, uma nação não deve deixar impune qualquer atentado contra os seus direitos; essa combina, portanto, a honra burguesa e a honra cavalheiresca.

A glória foi a última coisa que mencionamos dentro daquilo que um homem representa, ou seja, aquilo que é aos olhos do mundo; então nos falta ainda examiná-la. Honra e glória são gêmeas; porém, à maneira dos Dióscuros, sendo Pollux imortal enquanto Castor era mortal; a honra é a irmã mortal da imortal glória. Evidentemente, isso não deve entender-se senão da glória mais elevada, da glória verdadeira e genuína; há seguramente muitas espécies efêmeras de glória. A honra só diz respeito às qualidades que o mundo exige de todos os que se encontram em condições semelhantes; a glória diz respeito àquelas que não se pode exigir de ninguém. A honra só se refere a méritos que cada qual pode atribuir a si próprio publicamente; a glória se refere àqueles que ninguém pode atribuir a si próprio. Enquanto a honra é limitada pelo conhecimento que se tem a nosso respeito, a glória vai além, e faz com que sejamos conhecidos sempre que possível. Todos podem aspirar à honra; à glória, só as exceções, porque não pode ser alcançada senão através de realizações excepcionais. Essas realizações podem ser atos ou obras; são os dois caminhos para a glória. Um grande coração é uma qualificação especial para o caminho dos atos, enquanto uma grande mente nos abre o caminho das obras. Cada um deles tem suas vantagens e seus inconvenientes próprios, e a diferença principal é que as ações passam, enquanto as obras permanecem. Das ações resta somente uma memória que gradualmente se torna mais fraca, distorcida e insignificante, até lentamente deixar de existir, a não ser que a história a conduza à posteridade petrificada, na forma de uma estátua. As obras, por outro lado, são imortais em si mesmas e, especialmente se forem escritas, podem sobreviver através das eras. O feito mais nobre tem apenas uma influência temporal, enquanto a obra de gênio vive e tem um efeito benéfico e edificante para todo o sempre. De Alexandre o Grande nos restam somente o nome e os registros; porém, Platão e Aristóteles, Homero e Horácio, em si mesmos, ainda existem, vivem e têm um efeito direto. Os Vedas e seus Upanishads existem, porém não chegaram às nossas mãos quaisquer informações sobre as ações que foram realizadas em sua época. [9] Outra desvantagem das ações é que dependem de uma oportunidade que lhes possibilite a chance de ocorrer. Em conexão, temos o fato de que sua glória não se deve direta e exclusivamente ao seu valor intrínseco, mas às circunstâncias que lhes conferem brilho e importância. Ademais, assim como nas guerras, as ações são puramente pessoais, e sua glória depende dos relatos de um reduzido número de testemunhas oculares que, entretanto, nem sempre estão presentes e, quando estão, nem sempre se mostram justas e imparciais. Por outro lado, sendo as ações algo prático, têm a vantagem de estar ao alcance da faculdade de juízo de todos os homens; de modo que, uma vez que os fatos se mostrem verdadeiros, a justiça lhes é feita imediatamente, a menos que os motivos não possam ser conhecidos claramente ou avaliados com justiça senão posteriormente; porque, para que se compreenda uma ação, é necessário conhecer seu motivo. No que se refere às obras, ocorre o contrário; sua produção não depende da ocasião, mas unicamente de seu autor, e, enquanto existirem, permanecem o que são em si mesmas e por si mesmas. Por outro lado, nesse caso existe a dificuldade em julgá-las, e, quanto mais elevado for seu caráter, tanto maior será essa dificuldade; muitas vezes faltam juízes competentes, outras vezes faltam juízes imparciais e honestos. Ademais, não é uma só instância que decide sua glória; pode-se sempre apelar a outros juízes. Pois, como temos dito, só a memória das ações chega à posteridade, e chega tal como os contemporâneos a transmitiram; as obras, pelo contrário, chegam elas mesmas e tais como são, salvo os fragmentos perdidos. Aqui há, pois, uma menor possibilidade de distorção dos dados, e posteriormente também desaparecem quaisquer influências indesejáveis do ambiente no qual foram produzidas. Na realidade, é comum que apenas após certo tempo surja um reduzido número de juízes verdadeiramente competentes que são, eles próprios, uma exceção, os quais se põem a julgar outros seres ainda mais excepcionais. Depositam sucessivamente na urna seus votos significativos, e com isso se estabelece, depois de alguns séculos, um juízo plenamente fundamentado que o decorrer do tempo não pode desmentir; como se vê, a glória das obras é segura, infalível. Por outro lado, o fato de um autor desfrutar de sua glória em vida é algo que depende do acaso e de circunstâncias externas; quanto mais sofisticadas e difíceis forem suas obras, mais raramente será o caso. Assim, Sêneca disse, com beleza incomparável (Epistulae, 79), que o mérito é seguido pela glória tão infalivelmente quanto o corpo é seguido pela sombra; ainda que, como a sombra, caminhe por vezes à frente e também atrás, e depois de haver desenvolvido esse pensamento, acrescenta: etiamsi omnibus tecum viventibus SILENTIUM LIVOR INDIXERIT, venient qui sine offensa, sine gratia judicent [ainda que a inveja impusesse silêncio a todos os teus contemporâneos, virão aqueles que julguem sem ofensa e sem indulgência]. Essa passagem nos demonstra que a arte de suprimir perversamente os méritos ignorando-os e através do silêncio, com o objetivo de ocultar do público o que é bom em proveito do que é mau, já era praticada mesmo pela canalha da época em que vivia Sêneca, assim como pela canalha de nossa época, e em ambos os casos a inveja lhes fecha a boca. Como regra, a glória é tanto mais tardia quanto mais durável há de ser, porque a excelência amadurece com lentidão. A glória destinada a ser eterna é como o germe que cresce lentamente em sua semente; a glória fácil e efêmera se assemelha às plantas que florescem em um ano, depois morrem; enquanto que a glória falsa é como essas ervas daninhas que crescem a olhos vistos e que podem ser facilmente extirpadas. Isso se deve ao fato de que, quanto mais um homem pertence à posteridade, i.e. à humanidade inteira em geral, mais alheio é à sua época, porque o que produz não está destinado especialmente a esta como tal, senão na medida em que constitui parte da humanidade. Desse modo, suas obras não são afetadas pela cor local de sua época; mas, em decorrência disso, ocorre frequentemente que a época contemporânea as deixa passar despercebidas. Pelo contrário, sua época valoriza as obras que tratam de coisas fugidias de seu próprio tempo, ou que servem ao espírito do momento e, portanto, lhe pertencem por completo, vivendo e morrendo com ela. Assim, pois, a história da arte e da literatura nos ensina geralmente que as mais elevadas produções do espírito humano têm sido, quase sempre, recebidas com desfavor, e têm ficado desprezadas até a chegada de alguns espíritos elevados que se impressionaram e reconheceram seu valor. Posteriormente, preservam tal posição em virtude da autoridade que isso lhes concedeu. Em última análise, tudo isso se deve ao fato que de cada qual não pode compreender e avaliar senão aquilo que diz respeito à sua própria natureza. Pois bem, o homem limitado aprecia o que é limitado, o homem medíocre, a mediocridade, o espírito difuso, o difuso e o indistinto, e o tolo insensato, o absurdo, e todos apreciam principalmente as suas próprias obras, na medida em que estão de acordo com sua própria natureza. Essa é uma verdade tão velha quanto Epicarmo, poeta fabuloso, que assim cantava:

Nada surpreende que fale segundo minha visão,
E os que se comprazem com si mesmos, em vão imaginam
Serem dignos de louvor. Para um cão o cão
Parece a mais bela das coisas, para o boi, o boi,
Para o asno, o asno, e para o porco, o porco.

O braço mais vigoroso, quando lança um corpo leve, não pode comunicar-lhe bastante movimento para que voe longe e atinja o alvo. O corpo logo cairá ao chão porque carecia de substância material própria para absorver a força externa. Tal será também a sorte dos pensamentos elevados e belos, das obras mestras do gênio, quando, para recebê-las, há apenas cérebros insignificantes, débeis ou equivocados.

Isso é o que os sábios de todos os tempos, em uníssono, têm deplorado sem cessar. Por exemplo, disse Jesus, filho de Sirach: Quem fala com louco, fala com um que dorme. Quando houver acabado, esse pergunta: Que há? E Hamlet diz: A Knavish speech sleeps in a fool’s ear [um discurso eloquente dorme no ouvido de um tolo]. Goethe, por sua vez:

Das glücklichste Wort, es wird verhöhnt,
Wenn der Hörer ein Schiefohr ist.

[o ouvido de um tolo zomba da palavra mais sábia.]

Novamente:

Du wirkest nicht, Alles bleibt so stumpf.
Sei guter Dinge!
Der Stein in Sumpf
Macht keine Ringe.

[Teu esforço é vão, tudo permanece inerte. Não te desconsoles! Nenhum sino dobra quando se joga pedras na lama.]

E Lichtenberg diz: Quando uma cabeça e um livro colidem, e produz-se um som oco, isso provém sempre do livro? Novamente: Tais obras são como espelhos; quando um macaco olha nelas, não se pode ver um apóstolo. O belo e comovente lamento do velho Geller também merece ser lembrado:

Daß oft die allerbesten Gaben
Die wenigsten Bewundrer haben,
Und daß der größte Teil der Welt
Das Schlechte für das Gute hält;
Dies Übel sieht man alle Tage;
Allein wie wehrt man dieser Pest?
Ich zweifle, daß sich diese Plage
Aus unsrer Welt verdringen läßt.
Ein einzig Mittel ist auf Erden;
Allein es ist unendlich schwer.
Die Narren müßten weise werden,
Und seht, sie werdens nimmermehr.
Nie kennen sie den Wert der Dinge.
Ihr Auge schließt, nicht ihr Verstand;
Sie loben ewig das Geringe,
Weil sie das Gute nie gekannt.

[Quantas vezes as melhores qualidades encontram menos admiradores. Quantos homens tomam por bom o mau! Esse é um mal que se observa todos os dias, porém, como evitar essa peste? Duvido que possa ser erradicada desse mundo. Não há mais que um só meio na terra, porém é infinitamente difícil. Que os tolos se façam sábios. Porém, como? Isso nunca serão. Desconhecem o valor das coisas. Julgam pela vista, não pela razão. Elogiam constantemente o que é pequeno, porque nunca conheceram o que é bom.]

A essa incapacidade intelectual dos homens que faz, como disse Goethe, que seja menos raro ver nascer uma obra grandiosa que vê-la reconhecida e apreciada, se acrescenta sua depravação moral manifesta na forma de inveja. Porque a glória conquistada por um homem o eleva acima de sua espécie, que é, nessa medida, rebaixada; assim, todo mérito extraordinário alcança a glória à custa dos que não possuem nenhum.

Wenn wir Andern Ehre geben
Müssen wir uns selbst entadeln.

[Quando honramos os demais, devemos depreciar a nós mesmos.(Goethe, Westöstlicher Diwan)]

Isso explica por que a excelência, em todas as suas formas, é imediatamente confrontada com a numerosa mediocridade da maioria, que se une e conjura para impedi-la e, se possível, suprimi-la. Sua senha secreta é: À bas le mérite [abaixo o mérito]. Porém, mesmo os que já possuem mérito e glória não querem ver o surgimento de uma nova glória cujo brilho ofuscará o seu; o mesmo diz Goethe:

Hätt’ ich gezaudert, zu werden,
Bis man mir’s Leben gegönnt,
Ich wäre noch nicht auf Erden,
Wie ihr begreifen könnt,
Wenn ihr seht, wie sie sich gebärden,
Die, um etwas zu scheinen,
Mich gerne möchten verneinen.

[Se houvesse esperado para nascer até que me fosse concedida a vida, não estaria ainda neste mundo, como se compreende ao ver com que gosto me ignoram para se fazerem importantes.]

Assim, enquanto a honra, na maioria das vezes, encontra um juiz justo e não é vítima da inveja, sendo mesmo concedida a todo homem de antemão, a glória deve ser conquistada a despeito de toda a inveja, e o tribunal que entrega a coroa de louros é composto de juízes decididamente injustos. Podemos e queremos compartilhar a honra com cada um; porém, a glória adquirida por outro diminui a nossa ou nos torna mais difícil sua conquista. Ademais, a dificuldade de chegar à glória por meio das obras está em razão inversa do número de indivíduos que compõem o público dessas obras; os motivos são fáceis de compreender. Portanto, as obras que se propõem a instruir exigem muito mais trabalho que as que se propõem a entreter; a dificuldade é maior para as obras de filosofia porque a instrução prometida é, por um lado, duvidosa e incerta, e, por outro, inútil do ponto de vista material. Desse modo, tais obras se dirigem, para começar, a um público que consiste exclusivamente de rivais e competidores. A partir das dificuldades mencionadas para se chegar à glória, fica óbvio que se aqueles que produzem obras imortais não o fizessem pelo próprio amor às suas obras e pela própria satisfação, mas precisassem do estimulante da glória, a humanidade teria visto nascer poucas obras imortais ou nenhuma. Ademais, todo aquele que há de produzir o bom e o verdadeiro e evitar o mau deve desafiar e desprezar o juízo das massas e de seus porta-vozes. Nisso consiste a verdade da observação de Osório (De gloria) a esse respeito, de que a glória foge dos que a buscam e busca os que dela fogem; pois os primeiros se adaptam aos gostos e seus contemporâneos, enquanto os últimos os desafiam.

Por tal razão, sendo tão difícil alcançar a glória, é muito fácil preservá-la. Nisso também contrasta com a honra, com a qual todos são creditados; pois têm apenas de defendê-la. Porém, esse é o problema, visto que a honra pode ser perdida definitivamente por uma única ação indigna. A glória, pelo contrário, nunca pode ser realmente perdida; pois o feito ou a obra pela qual foi conquistada subsiste eternamente, e seu autor preserva a glória, ainda que não realize mais nada. Não obstante, se a glória realmente definha e morre, essa não era genuína, ou seja, não a merecia e surgiu de um cálculo exagerado e passageiro de seu mérito; era uma glória como a de Hegel, que Lichtenberg descreveu como proclamada a trompetes por um círculo de amigos interesseiros e repercutida pelo eco de cabeças ocas; — mas como sorrirá a posteridade quando, um dia, batendo à porta desses edifícios de palavras exageradas, desses ninhos de uma glória desaparecida, desses viveiros de convenções mortas, encontrar tudo completamente vazio, sem nenhum pensamento que responda com confiança: entre!

Na verdade, a glória consiste no que um homem é em comparação com os demais. É, portanto, algo essencialmente relativo, que só pode possuir um valor relativo. Desapareceria completamente se os demais se tornassem aquilo que é um homem famoso. O valor absoluto só diz respeito àquilo que permanece o mesmo sob todas as circunstâncias e, portanto, àquilo que o homem é diretamente e por si mesmo. Em consequência, o valor e a felicidade de um grande coração e de uma grande mente consistem exatamente nisso. O importante não é a glória, mas o mérito pelo qual a alcançamos. Pois esse é, por assim dizer, a substância, não sendo a glória mais que o acidente; de fato, isso afeta o homem famoso principalmente como um sintoma exterior, pelo qual obtém uma confirmação da própria opinião elevada que tem de si mesmo. Pode-se dizer que, assim como a luz só é visível quando refletida por um corpo, toda superioridade só adquire a plena consciência de si mesma através da reputação. Entretanto, esse sintoma não é infalível, visto que temos a glória sem mérito e o mérito sem glória; daí a inteligente observação de Lessing: Há homens que alcançam a glória e outros que a merecem. Ademais, seria miserável a existência daquele cujo valor ou sua falta dependessem de como se apresentam aos olhos dos demais. Mas tal seria a vida do herói e do gênio se seu valor consistisse na glória, isto é, na aprovação do outro. Pelo contrário, todo homem vive e existe por conta própria e, portanto, essencialmente em si e por si mesmo. Aquilo que um homem é em si, de qualquer modo que seja, fica antes e acima de tudo; se, nesse aspecto, não é digno de apreço, tampouco o será em geral. Pelo contrário, a imagem de sua natureza refletida nas mentes dos demais é algo secundário, derivado, sujeito à mudança, referindo-se apenas muito indiretamente a essa natureza. Ademais, os cérebros das massas são um lugar demasiado miserável para que neles encontremos nossa verdadeira felicidade; não se pode encontrar nisso mais que uma felicidade imaginária. E que companhia mesquinha encontramos nesse templo da glória universal: generais, ministros, charlatães, trapaceiros, bailarinos, cantores, milionários e judeus! De fato, nesse templo os méritos de todas essas pessoas são muito mais apreciados, alcançam mais estime sentie [apreço sincero] que os méritos intelectuais, especialmente os de ordem superior, dos quais a maior parte não conseguiria mais que estime sur parole [apreço verbal]. Desse ponto de vista eudemonológico, a glória não é, portanto, senão a mais rara e mais saborosa guloseima servida ao nosso orgulho e vaidade. Porém, na maioria dos homens, isso existe em excesso, ainda que se dissimule; talvez sejam mais fortes naqueles que, de algum modo, merecem a glória. No mais das vezes, tais homens terão de enfrentar um longo período de incerteza a respeito de seu elevado valor até que tenham a ocasião de colocá-lo à prova e vê-lo reconhecido. Até então, têm a sensação de sofrer uma secreta injustiça. [10] Em geral, como temos dito no começo deste capítulo, o valor que se atribui à opinião alheia é completamente irracional e desmedido. É verdade que Hobbes tem algumas opiniões fortes a esse respeito, mas talvez esteja justificado em afirmar: omnis animi voluptas, omnisque alacritas in eo sita est, quod quis habeat quibuscum conferens se, possit magnifice sentire de se ipso [todo prazer da alma, toda satisfação provém de que, ao comparar-se com os demais, se possa ter uma elevada opinião de si mesmo. (De cive, l. I, c. 5)]. A partir disso podemos explicar o grande valor que comumente se atribui à glória e os sacrifícios que se fazem com a única esperança de um dia conquistá-la:

Fame is the spur that the clear spirit doth raise
(That last infirmity of noble minds)
To scorn delights and live laborious days.

[A glória (essa última enfermidade das almas nobres) é o espinho que aferroa os espíritos eminentes a desprezar os prazeres e viver dias laboriosos. (Milton, Lycidas.)]

E em outra parte:

How hard it is to climb
The steep where Fame’s proud temple shines afar!

[Que difícil é subir às alturas donde resplandece à distância o suntuoso templo da Glória! (Beattie, The Minstrel.)]

Podemos ver por que a mais vaidosa das nações tem sempre na boca a palavra la gloire e a considera como o principal motivo das grandes ações e das grandes obras. Todavia, não há dúvida de que a glória é algo secundário, um simples eco, o reflexo, a sombra ou o sintoma do mérito, e de que, em última instância, aquilo que se admira deve ter mais valor que a admiração. Segue-se que o que faz o homem verdadeiramente feliz não reside na glória, senão no que torna a sua conquista possível, no próprio mérito ou, falando com mais exatidão, no caráter e nas qualidades que fundamentam o mérito, tanto na ordem moral como na ordem intelectual. Porque o melhor que um homem pode ser, deve sê-lo necessariamente por si mesmo; o que se reflete sobre seu ser no cérebro dos demais e o que vale em sua opinião é algo de interesse secundário. Por conseguinte, aquele que merece a glória, ainda quando não a consiga, possui abundantemente o principal e tem que consolar-se do que lhe falta. Pois não é o fato de ser considerado grandioso por uma multidão de desiludidos sem discernimento, mas o fato de que é grandioso aquilo que o faz digno de inveja. A suprema felicidade não é tampouco seu nome passar à posteridade, senão produzir pensamentos que mereçam ser reconhecidos e meditados em todos os séculos. Ademais, essa felicidade não pode ser tirada dele; é τῶν ἐφ’ ἡμῖν [o que está em nosso poder], enquanto que a glória é τῶν οὺκ ἐφ’ ἡμῖν [o que não está em nosso poder]. Quando, pelo contrário, a admiração mesma é o objeto principal, a coisa admirada não é digna dela; isso ocorre com a falsa glória, i.e. glória não merecida. Os que possuem esse tipo de glória vivem dela sem realmente possuir os méritos dos quais essa deveria ser um sintoma ou um reflexo. Porém, às vezes, se repugnaria dessa própria glória quando chega um momento em que, a despeito da ilusão sobre si mesmo que a vaidade lhe proporciona, sentirá a vertigem dessas alturas que não está apto a habitar, ou verá a si próprio como uma moeda de cobre. É consumido pelo medo de ser desmascarado e humilhado como merece, especialmente quando já pode antever o veredicto da posteridade estampada na face dos mais sábios. É como um homem que possui uma propriedade em virtude de um falso testamento. A glória mais genuína, isto é, a póstuma, nunca chega a ser conhecida pelo homem que a possui, mas ainda assim esse é tido como feliz. Sua felicidade, portanto, consistia nas próprias qualidades elevadas, por meio das quais atingiu a glória, e no fato de que teve a oportunidade de desenvolvê-las, de haver podido ocupar-se somente dos assuntos que lhe agradavam ou lhe divertiam; pois apenas obras nascidas sob essas condições alcançam a glória póstuma. Por conseguinte, sua felicidade consistia em sua grande alma ou mesmo na riqueza de sua inteligência, cujos traços em suas obras recebem a admiração dos séculos futuros. Consistia nas próprias ideias, cuja meditação fará o estudo e o prazer das mentes mais nobres de um futuro imensurável. O valor da glória póstuma, portanto, consiste em havê-la merecido; essa é sua própria recompensa. O fato de as obras que alcançaram a glória também receberem o louvor dos contemporâneos do autor é algo que depende de circunstâncias fortuitas e que não tem grande importância. Porque os homens carecem, em geral, de juízo próprio e, sobretudo, não têm as faculdades necessárias para apreciar as produções de ordem elevada e difícil, sendo mais comum que sigam a autoridade de outrem; a glória suprema consiste, em noventa e nove de cada cem casos, na simples fé dos admiradores. Por isso, para aquele que pensa, a vociferante aprovação dos contemporâneos tem pouco valor, visto que consiste no eco de poucas vozes que, em si mesmas, não são mais que um produto do momento. Um músico se comprazeria pelos aplausos de aprovação de seu público se soubesse que, com a exceção de um ou dois, esse consiste inteiramente de pessoas surdas que, para esconder umas das outras sua debilidade, aplaudem ruidosamente assim que veem os únicos que podem ouvir movendo suas mãos? E supondo-se que, além disso, soubesse que essas exceções podem ser subornadas para proporcionar o aplauso mais estrondoso ao violinista mais miserável! Isso nos explica por que é tão raro que a glória contemporânea transforme-se em glória póstuma. Em sua magnífica descrição do templo da glória literária, D’Alembert diz: O interior do tempo não é habitado mais que por mortos que, durante suas vidas, não estavam ali, e por alguns vivos que, em sua maioria, serão lançados fora quando morrerem. Diga-se de passagem, erigir um monumento a um homem em vida é declarar que, pelas suas conquistas, nada ficará à posteridade. Quando, entretanto, um homem vive para confirmar que sua glória há de ser póstuma, isso dificilmente ocorrerá senão numa idade avançada. Talvez entre os artistas e os poetas haja algumas exceções a essa regra; mas são ínfimas entre os filósofos. Uma prova disso é fornecida pelas fotos dos homens que se tornaram célebres por suas obras, pois na maioria dos casos foram tiradas apenas após sua celebridade estar consolidada. Em geral, são representados como velhos de cabelos brancos, especialmente se forem filósofos. Do ponto de vista da eudemonologia, isso está perfeitamente justificado; porque ter glória e juventude de uma vez é muito para um mortal. Nossa existência é tão pobre que seus bens devem ser distribuídos com mais economia. A juventude tem suficiente riqueza própria, e pode contentar-se com o que possui. Na velhice, quando gozos e prazeres estão mortos como as árvores no inverno, a glória floresce oportunamente como uma árvore verdejante. Também pode ser comparada aos frutos que crescem durante o verão, mas só podem ser consumidos no inverno. Não há melhor consolo para o velho que o sentimento de ter incorporado toda a força de sua juventude às suas obras, que nunca hão de envelhecer.

Se quisermos examinar mais detidamente os caminhos pelos quais se atinge a glória nos ramos de conhecimento que nos dizem respeito mais diretamente, as seguintes regras podem ser formuladas. Pode-se, em geral, afirmar que a superioridade intelectual denotada pela glória consiste em formular teorias, isto é, novas combinações de certos fatos. Esses últimos podem ser de espécies muito diversas, porém a glória atribuída à sua combinação será tanto maior e mais extensa quanto mais universalmente conhecidos e mais acessíveis a todos forem esses fatos. Se consistirem, por exemplo, de números ou curvas, de questões específicas da física, zoologia, botânica ou anatomia, ou de passagens desfiguradas de autores antigos, inscrições meio apagadas ou cujo alfabeto nos falta, ou pontos obscuros de história, a glória que se adquirirá através de sua combinação correta não se estenderá para muito além dos estudiosos do assunto; por conseguinte, um pequeno número de indivíduos que vivem em retiro e invejam aqueles que alcançam a glória em seu ramo de conhecimento. Se, pelo contrário, os dados são conhecidos por toda a humanidade; se são, por exemplo, características essenciais e universais do espírito ou do coração humano, ou forças naturais cuja ação passa constantemente ante vossa vista, ou o bem conhecido curso na natureza em geral, então a glória de havê-las trazido à luz por uma combinação nova, importante e evidente se propagará com o tempo ao todo da humanidade civilizada. Porque se os fatos são acessíveis a todos, na maioria dos casos sua combinação também será. Não obstante, a glória estará sempre em relação com a dificuldade a ser superada; assim, quanto mais numerosos forem os homens que conhecem esses dados, mais difícil será combiná-los de uma maneira nova e exata, visto que uma infinidade de espíritos o tentaram e esgotaram as combinações possíveis. Por outro lado, os fatos inacessíveis à maioria do público e cujo conhecimento só se alcança com grande dificuldade e esforço sempre admitirão novas combinações. Quando um homem as aborda com uma compreensão clara e um juízo são, isto é, com uma modesta capacidade intelectual, é bastante possível que tenha a sorte de chegar a uma combinação nova e exata. Porém a glória alcançada dessa forma não se estende muito além daqueles que possuem o conhecimento dos fatos em questão. Porque a solução dos problemas dessa natureza, sem dúvida, exige muito estudo e trabalho tão-somente para que se adquira o conhecimento do fato; mas, em relação aos problemas da primeira espécie, com os quais se há de alcançar a glória mais elevada e mais vasta, os fatos são fornecidos gratuitamente, sem qualquer estudo ou trabalho. Todavia, na medida em que esse tipo de problema exige menos trabalho, requer mais talento e até gênio; e com isso não há trabalho ou estudo que se compare, seja pelo mérito próprio ou pelo valor que se lhe atribui.

Resulta daí que os que sentem que estão dotados de uma capacidade intelectual sólida e de um juízo são, mas não das forças mentais mais elevadas, não devem recuar ante os estudos extensos e os estudos laboriosos. Pois, através disso, poderão se elevar acima da massa de homens que têm ante seus olhos os fatos bem conhecidos; e então penetrar em regiões remotas, acessíveis somente à atividade e ao trabalho dos eruditos. Porque aqui o número de competidores é infinitamente menor, e mesmo um homem de inteligência modesta logo encontrará a ocasião para uma combinação nova e exata. De fato, o mérito de sua descoberta será baseado na dificuldade de alcançá-la. Mas os aplausos de seus colegas de ciência — que são os únicos familiarizados com a questão — não serão percebidos pela multidão mais que de longe. Prosseguindo até o término do caminho aqui indicado, pode-se alcançar o ponto em que os próprios fatos, sem necessidade de combinação, bastam para estabelecer a glória pela sua extrema dificuldade de aquisição. Esse é o caso em relação a viagens a países remotos e pouco visitados, onde um homem se torna célebre pelo que viu, não pelo que pensou. A grande vantagem desse tipo de glória está no fato de que é muito mais fácil comunicar aos demais as coisas que foram vistas que as coisas que foram pensadas, e sucede o mesmo com a compreensão do público. Assim, encontraremos muito mais leitores para as primeiras que para as últimas; como Asmus já disse:

Wenn jemand eine Reise thut,
so kann er was erzählen.

[Quando se volta de uma viagem se tem muitas coisas para contar.]

Mas resulta também que, quando se conhece pessoalmente os viajantes célebres, se recorda frequentemente da observação de Horácio:

Coelum, non animun, mutant qui trans mare currunt.

[Os que cruzam os mares mudam de clima, não de caráter. (Epistulae, I, 11,27)]

Contudo, o homem dotado de grandes faculdades intelectuais, o único que pode se aventurar na solução dos problemas mais difíceis, que tratam do aspecto universal e total das coisas, fará bem em alargar seu horizonte o máximo possível, porém estendendo-o igualmente em todas as direções, sem perder-se em alguma região particular conhecida por poucos indivíduos, isto é, sem penetrar muito profundamente em um ramo de conhecimento específico e muito menos dedicar-se a detalhes mínimos. Porque não necessita dedicar-se às coisas dificilmente acessíveis para fugir da multidão de competidores; aquilo que está ao alcance de todos lhe proporcionará o material para combinações novas, importantes e verdadeiras. Por isso mesmo, seu mérito poderá ser apreciado por todos aqueles que conhecem esses fatos, que constituem a maior parte da humanidade. Nisso reside a grande distinção entre a glória conquistada pelos estudiosos de física, química, anatomia, mineralogia, zoologia, filologia, história, e aquela reservada aos homens que lidam com as grandes questões da humanidade, os poetas e os filósofos.

  1. Em seu fausto, em sua pompa e esplendor, em sua magnificência e sua ostentação de toda espécie, as classes mais elevadas podem dizer: nossa felicidade está completamente fora de nós; seu lugar é o cérebro dos demais.
  2. Scire tuum nihil est, nisi te scire hoc sciat alter [aquilo que se sabe de nada vale se outros não souberem disso].
  3. Aqui está o código. Quando reduzido a noções e expressões claras, esses princípios produzem uma imagem deveras estranha e grotesca. Mesmo hoje, na Europa cristã, são seguidos por todos aqueles que pertencem ao que se chama de boa sociedade com seus bons costumes. Muitos dos quais a quem esses princípios foram inculcados desde sua tenra juventude, pela palavra e pelo exemplo, acreditam mais firmemente neles que em qualquer catecismo. Nutrem-lhe a veneração mais profunda e genuína, e estão dispostos, em qualquer momento, a sacrificar em seu nome sua felicidade, sua paz, sua saúde e sua vida. Estão convencidos de que a raiz desses princípios está na própria natureza humana, que são inatos, que existem a priori e estão acima de toda análise. Não pretendo ferir seus corações, porém devo confessar que isso não diz muito em favor de sua inteligência. Assim, pois, esses princípios são os menos adequados à classe que está destinada a representar a inteligência, a ser o sal da terra; à classe que deveria se preparar para essa nobre missão e, portanto, à juventude acadêmica que, na Alemanha, professa esses princípios mais que qualquer outra classe. Em vez de chamar a atenção dos jovens estudantes sobre as consequências funestas ou imorais desses princípios — essa juventude que foi educada com as obras da Grécia e de Roma (como se fez, quando ainda era parte dela, pelo lastimável filosofastro J. G. Fichte em uma declamatio ex cathedra, um homem ainda honestamente considerado filósofo pela Alemanha esclarecida) —, me limitarei a dizer o que se segue. Vós, cuja juventude foi alimentada com o idioma e a sabedoria da Grécia e de Roma, cuja inteligência jovem se tem tido a boa precaução de ilustrar em idade precoce com raios luminosos emanados dos sábios e dos nobres da gloriosa Antiguidade, como é que quereis começar a vida tomando por regra de conduta esse código da estupidez e da brutalidade? Vedes esse código, quando se lhe reduz a noções claras, como o fiz, como está estendido ante a vossa vista em sua lamentável nulidade, e fazei dele a pedra de toque não de vosso coração, mas a de vossa razão. Se essa não o rechaça, então vossa cabeça não é apta para cultivar um campo onde as qualidades indispensáveis são uma força enérgica de juízo que rompa facilmente os laços do preconceito e uma razão perspicaz que saiba distinguir claramente o verdadeiro do falso, ainda onde a diferença esteja profundamente oculta, e não, como aqui, onde está palpável. Sendo assim, meus bons amigos, buscai algum outro meio honrado de fugir do apuro do mundo; fazei-vos soldados ou aprendei algum ofício, porque todo oficio é ouro.
  4. A história do senhor Desglands é apresentada por Schopenhauer, no Esboço de uma breve dissertação sobre a honra, como se segue:

    Dois homens de honra, um dos quais se chamava Desglands, cortejavam a mesma mulher. Estavam sentados à mesa um junto ao outro e em frente à dama, cuja atenção Desglands tentava atrair com as mais animadas conversas; mas ela fingiu não ouvi-lo, e continuava olhando constantemente seu rival. O ciúme provocou em Desglands, que tinha na mão um ovo, uma contração involuntária, fazendo com que a casca se quebrasse e o conteúdo saltasse à cara do rival. Vendo este levantar a mão, Desglands aproveita e sussurra: Senhor, o tenho por dado. Se faz um profundo silêncio. No dia seguinte, Desglands se apresenta com a bochecha direita coberta por um grande emplastro negro. Verificou-se o duelo e o rival de Desglands foi ferido gravemente, porém não mortalmente. Desglands então diminuiu um pouco o tamanho de seu emplastro. Depois da recuperação de seu rival, houve um segundo duelo e, novamente, Desglands derramou seu sangue, e reduziu o tamanho de seu emplastro. Isso aconteceu cinco ou seis vezes; após cada duelo, Desglands diminuía o tamanho de seu emplastro, até a morte de seu oponente.

    Ó nobre espírito do velho cavalheirismo! Mas, a sério, todo aquele que comparar essa história característica com as anteriores será levado a admitir, como em muitas outras ocasiões, quão grandiosos eram os antigos e quão pequenos são os modernos!

  5. O que significa dizer que ofendemos alguém? Que o fizemos duvidar da elevada opinião que tem de si mesmo.
  6. A honra cavalheiresca é filha do orgulho e da loucura. (A verdade oposta a esses princípios está claramente expressa por Calderón em Principe constante com as palavras esa es la herencia de Adan — a herança de Adão é a necessidade.) É chocante que esse orgulho extremado só se observe entre os adeptos da religião que prega a extrema humildade. Não obstante, não se deve atribuir a causa disso à religião, senão ao regime feudal, no qual todo nobre se considerava como um pequeno soberano que não reconhecia entre os homens nenhum juiz que estivesse sobre ele. Com isso, aprendeu a atribuir à sua pessoa uma inviolabilidade e uma santidade absolutas; por isso todo atentado contra sua pessoa, como um golpe ou uma injúria, lhe parecia um crime hediondo. Assim, o princípio da honra cavalheiresca e o duelo eram, no começo, uma questão que só dizia respeito aos nobres e, posteriormente, estendeu-se aos militares que se uniram, porém não completamente, às outras classes mais elevadas, com o fim de não sofrer menosprezo. Apesar de os duelos serem um produto dos antigos juízos divinos, esses não são o fundamento, mas a consequência e a aplicação do princípio de honra. Todo homem que não reconhece em nenhum homem o direito de julgar-lhe apela ao divino. Os juízos divinos, todavia, não pertencem exclusivamente ao cristianismo, mas também podem ser encontradas no hinduísmo, especialmente em épocas remotas; se bem que ainda hoje restem vestígios.
  7. Vingt ou trente coups de canne sur le derrière, c’est, pour ainsi dire, le pain quotidien des Chinois. C’est une correction paternelle du mandarin, laquelle n’a rien d’infamant, et qu’ils reçoivent avec action de grâces. — Lettres édificantes et curieuses, 1819, edn. vol. II, p. 454. [Vinte ou trinta golpes nas costas com a vara são, por assim dizer, o pão de cada dia dos chineses. É uma correção paternal do mandarim que, em si mesma, não tem nada de infame, e que recebem com gratidão.]
  8. O verdadeiro motivo pelo qual os governos aparentemente tentam proibir duelos, coisa muito fácil, especialmente nas universidades, resultando na impressão de que não têm a intenção de fazê-lo, é o seguinte. O Estado não está em condições de pagar os serviços de seus oficiais e de seus empregados civis o seu valor integral em dinheiro e, desse modo, faz consistir a outra metade de seus emolumentos em honra, representada por títulos, uniformes e condecorações. Para conservar o alto nível dessa indenização ideal pelos seus serviços, é preciso alimentar e intensificar, por todos os meios, o sentimento de honra; este deve ser algo fantástico e extravagante. Como, para tal fim, a honra burguesa não basta, pela evidente razão de que é a propriedade comum de todos, se apela ao auxílio da honra cavalheiresca, que se estimula como temos demonstrado. Na Inglaterra, onde os emolumentos dos militares e dos civis são muito mais elevados que no continente, não se necessita desse recurso. Assim, o duelo foi quase completamente erradicado desse país, especialmente nos últimos vinte anos, e agora ocorre muito raramente. Nas poucas ocasiões em que ocorre, ri-se dele como de uma loucura. É certo que a grande Anti-duelling Society, que conta entre seus membros uma multidão de lordes, de almirantes e de generais, contribuiu grandemente para esse resultado. O Moloch terá de se virar sem suas vítimas.
  9. Assim, pois, é um elogio infeliz quando alguém, como está na moda hoje em dia, imagina honrar uma obra chamando-a de atos; pois as obras são, por essência, de natureza superior. Um ato nunca é mais que uma ação baseada em um motivo e, por conseguinte, algo isolado, transitório; diz respeito ao elemento universal e original do mundo, ou seja, à vontade. Por outro lado, uma obra grande e bela é algo permanente porque sua importância é universal. Procede da inteligência, dessa inteligência pura, imaculada, que se eleva como um perfume sobre esse mundo mesquinho da vontade.

    Uma vantagem da glória das ações está no fato de que essa, geralmente, produz-se como uma grande explosão, tão grande que às vezes a Europa inteira se agita; ao passo que a glória das obras não chega senão lenta e gradualmente; no começo, é tênue; depois, torna-se cada vez maior e, às vezes, não alcança toda a sua força mais que ao fim de um século. Porém, então subsiste durante milhares de anos, porque as obras subsistem também. Pelo contrário, após a primeira explosão, a glória das ações se debilita lentamente, sendo conhecida por menos e menos indivíduos, até acabar por existir somente na história, como um fantasma.

  10. Nosso maior prazer consiste em sermos admirados; mas os demais muito dificilmente consentem em admirar-nos, ainda quando a admiração está plenamente justificada. Daí resulta que é mais feliz aquele que, de algum modo, chega a admirar-se sinceramente a si mesmo. Só não deve permitir que os demais o façam duvidar disso.

Capítulo V

Conselhos e máximas

Nestas páginas, menos que em qualquer parte, desejo ser completo; do contrário, teria de repetir as numerosas, algumas excelentes, regras de vida dadas pelos pensadores de todos os tempos, desde Teógnis e Salomão até La Rochefoucauld; não poderia evitar tampouco muitos dos lugares-comuns. Ademais, renunciei quase por completo a toda ordem sistemática. Que o leitor se console, porque em tais assuntos um tratado completo e sistemático conduziria inevitavelmente ao tédio. Não registrei senão o que primeiro me ocorreu, o que me pareceu digno de ser comunicado e o que, até onde sei, ainda que não foi dito, ao menos sob essa mesma forma. Portanto, escrevi apenas um suplemento àquilo que outros já alcançaram nesse imenso campo.

Não obstante, para introduzir um pouco de ordem nesta grande variedade de opiniões e de conselhos relativos ao presente assunto, os classificarei em  máximas gerais, em máximas referentes à nossa conduta para conosco, para com os outros e, por último, frente à marcha do mundo e frente ao destino.

a) gerais

[1] Considero como a regra suprema de toda a sabedoria de vida a sentença enunciada por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco (VII. 12): ὁ φρόνιμος τὸ ἄλυπον διώκει, οὺ τὸ ἡδύ (quod dolore vacat, non quod suave est, persequitur vir prudens. A versão em latim é fraca; uma melhor talvez seja a seguinte: o sábio busca a ausência de dor, não o prazer.) A verdade dessa sentença se fundamenta no fato de que todo prazer e toda felicidade são de natureza negativa, e a dor é, pelo contrário, de natureza positiva. Pode-se encontrar um exame detalhado do assunto em minha obra capital, vol. I, §58; não obstante, quero ilustrá-lo também por um fato de observação cotidiana. Quando nosso corpo inteiro está saudável e intacto, exceto por uma parte insignificante ferida ou dolorida, a consciência cessa de perceber a saúde do conjunto, e a atenção se dirige constantemente à dor da parte lesionada, e todo o conforto e prazer da vida desvanecem. Do mesmo modo, quando todos os nossos negócios andam bem, a não ser um só que vá mal, esse nos persegue constantemente o cérebro, ainda que seja de mínima importância. Pensamos sobre ele constantemente e damos pouca atenção às demais coisas mais importantes que andam a nosso gosto. Em ambos os casos, a vontade está lesionada, no primeiro, tal como se objetiva no organismo, no segundo, tal como se objetiva nos esforços e aspirações do homem. Vemos em ambos os casos que a satisfação da vontade sempre se produz negativamente e que, em consequência, não é sentida diretamente de modo algum; no máximo, chegamos a ter consciência disso através da reflexão. Por outro lado, o que obstrui a vontade é algo positivo e, portanto, sua presença faz-se sentir. Todo prazer consiste apenas em suprimir essa obstrução, em libertar-se dela e, por conseguinte, não pode ser senão de curta duração.

É nisso, portanto, em que se fundamenta a excelente regra de Aristóteles reproduzida anteriormente, a qual afirma que devemos concentrar nossa atenção não nos grandes prazeres e diversões da vida, senão nos meios de evitar, na medida do possível, os seus inumeráveis males. Se esse caminho não fosse o verdadeiro, o aforismo de Voltaire Le bonheur n’est qu’un rêve, et la douleur est reelle [a felicidade é apenas um sonho e a dor é real] seria necessariamente tão falso quanto, na verdade, é exato. Assim, quando se quer fazer o balanço da vida em termos eudemonológicos, não se deve levar em conta os prazeres que se tem saboreado, senão os males que se tem evitado. Na verdade, a eudemonologia deve começar por ensinar-nos que seu próprio nome é um eufemismo e que quando dizemos “viver feliz” deve-se entender somente “ser menos desgraçado”, ou seja, levar uma vida tolerável. E em realidade a vida não é algo a ser desfrutado, mas vencido, superado. Isso pode ser visto em muitas expressões, tais como degere vitam, vita defungi [vive a vida, a vida se acaba]; em italiano, si scampa così [se ao menos escapássemos]; em alemão, man muss suchen, durchzukommen [levar a vida do melhor modo possível]; er wird schon durch die Welt Kommen [passar a vida] e outras semelhantes. Na velhice é um consolo saber que se tem detrás de si o trabalho de viver. O homem mais feliz é, pois, aquele que passa a vida sem grandes dores, tanto moral como fisicamente, e não aquele que experimentou as alegrias mais vivas ou os gozos mais intensos. Querer medir por meio disso a felicidade de uma existência é recorrer a uma medida falsa. Pois os prazeres são e permanecem negativos; pensar que nos tornam felizes é uma ideia errônea cultivada apenas pelos invejosos, em seu próprio detrimento. A dor, pelo contrário, é sentida positivamente; logo, sua ausência é a medida da felicidade. Se a um estado livre de dor acrescenta-se a ausência de tédio, então se alcança a felicidade na terra no que tem de essencial; o resto não é mais que quimera. Segue-se daí que nunca se devem comprar prazeres à custa de dores, tampouco do risco, visto que isso seria pagar algo negativo e quimérico com algo positivo e real. Em contrapartida, há benefício em sacrificar prazeres para evitar dores. Em ambos os casos, é indiferente se as dores seguem ou precedem os prazeres. Não existe verdadeiramente loucura maior que querer transformar este teatro de misérias e lamentos em um lugar de prazer e buscar prazeres e alegrias, como tantos fazem, em vez de tratar de evitar a maior quantidade possível de dores. Há alguma sabedoria naquele que, com um olhar sombrio, considera este mundo como uma espécie de inferno, e não se ocupa senão de proporcionar-se um abrigo onde esteja a salvo das chamas. O tolo corre atrás dos prazeres da vida e colhe desilusões; o sábio evita os seus males. Quando, apesar desses esforços, não se consegue evitá-los, a culpa é do destino, não da própria tolice; porém, na medida em que o consiga, não será desiludido, porque os males que houver evitado são muito reais. Ainda que seu esforço em evitá-los tenha sido excessivo, sacrificando prazeres desnecessariamente, não perdeu nada realmente; pois todos os prazeres são ilusórios, e lamentar por sua perda seria mesquinho, e mesmo ridículo. A incapacidade — encorajada pelo otimismo — de apreender essa verdade é a fonte de muitas desgraças. Assim, nos momentos em que estamos livres de dores, desejos inquietos fazem brilhar à nossa vista as quimeras de uma felicidade que não tem existência real e nos seduzem a persegui-las; com isso atraímos a dor, que é indiscutivelmente real. Então lamentamos a perda desse estado de ausência de dor que, como um paraíso perdido, ficou para trás, e em vão tentamos reverter o que está feito. Parece que um espírito maligno, com visões de nossos desejos, ocupa-se constantemente em nos distanciar do estado de ausência de sofrimento, da felicidade suprema e real. O jovem irrefletido imagina que o mundo existe para ser desfrutado; que é a morada de uma felicidade positiva; que os homens não a alcançam porque são incapazes de superar as dificuldades. Sua crença é reforçada pelos romances e poesias, e por essa hipocrisia que o mundo exibe onde quer que seja e sempre em favor das aparências, assunto ao qual retornarei em breve. Daí em diante, sua vida é uma busca mais ou menos deliberada de uma felicidade positiva que, como tal, diz-se consistir de prazeres positivos. Não devemos esquecer os perigos aos quais se expõe nessa busca pela felicidade. Isso leva à persecução de coisas que não existem de maneira alguma e, em regra, acaba por conduzir a uma desgraça muito real e positiva, que se manifesta como dores, sofrimentos, enfermidades, perdas, cuidados, pobreza, desonra e outras mil calamidades. O desengano chega tarde demais. Se, pelo contrário, se obedece à regra aqui exposta, se o projeto de vida é dirigido com o fim de evitar o sofrimento, ou seja, se manter afastado da necessidade, da enfermidade e de qualquer outra moléstia, então o objetivo é real. Assim, será possível alcançar algo, e tanto mais na medida em que o plano não for atrapalhado pela persecução dessa quimera da felicidade positiva. Isso concorda com a passagem de Goethe, em Wahlverwandtschaften [as afinidades eletivas], na qual Mittler, que sempre tenta levar felicidade aos demais, diz: Aquele que quer livrar-se de um mal sempre sabe o que quer; aquele que busca mais do que tem é mais cego que um acometido pela catarata. O que recorda este belo adágio francês: le mieux est l’ennemi du bien [o melhor é inimigo do bem]. Daí se pode deduzir igualmente a ideia fundamental do cinismo, como demonstrei em minha obra capital, volume II, capítulo 16. Pois o que os levava a rechaçar todos os prazeres senão o pensamento das dores que os acompanham? Evitar a dor lhes parecia muito mais importante que obter prazer. Estavam profundamente penetrados e convencidos da natureza negativa do prazer e da natureza positiva da dor. Faziam todo o possível para evitar os males; mas, para tal fim, julgavam necessário rejeitar íntegra e intencionalmente os prazeres, que consideravam como armadilhas que nos conduziam ao sofrimento.

Sem dúvida, nascemos todos em Arcádia, como disse Schiller; isto é, começamos a vida cheios de aspirações à felicidade, ao prazer, e abrigamos a insensata esperança de realizá-las. Entretanto, em regra, chega o ponto em que o destino nos agarra bruscamente e nos ensina que nada é nosso, senão seu, visto que tem um direito indiscutível não apenas sobre tudo o que possuímos e adquirimos, sobre mulher e filhos, mas até sobre nossos braços e pernas, nossos olhos e ouvidos, e até sobre o nariz no meio da cara. Em todo caso, a experiência não tarda em fazer-nos compreender que felicidade e prazer são uma fata Morgana que, visível somente de longe, desaparece quando nos aproximamos. Em contrapartida, compreendemos que o sofrimento e dor são uma realidade, a qual faz sua presença ser sentida sem qualquer intermediário, sem necessidade de ilusões ou expectativas. Se a lição dá seus frutos, desistimos de correr atrás da felicidade e do prazer, dedicando-nos a nos assegurar dos ataques da dor e do sofrimento. Reconhecemos, então, que o melhor que esse mundo pode oferecer-nos é uma existência sem dores, tranquila, tolerável, na qual restringimos nossos anseios àquilo que estamos mais certos de poder alcançar. Porque o meio mais seguro para não chegar a ser muito infeliz é não desejar ser muito feliz. Merck, o amigo de juventude de Goethe, reconheceu essa verdade, posto que escreveu: Tudo neste mundo é desgraçado pela ânsia excessiva à felicidade, numa medida que, de fato, corresponde aos nossos sonhos. Aquele que pode livrar-se dela e só aspira ao que tem diante de si, esse poderá abrir passagem entre a ralé (Briefe na und von Merck, p. 100). É, pois, prudente reduzir a proporções muito modestas nossas pretensões aos prazeres, às riquezas, às posições, às honras etc., porque essa disputa e luta pela felicidade, pelo esplendor e pelos prazeres é o que nos traz os maiores infortúnios. Reduzir nossas pretensões é prudente e desejável porque é bastante fácil ser completamente desgraçado, enquanto não é apenas difícil ser muito feliz, mas completamente impossível. O poeta da sabedoria de vida disse com razão:

Auream quisquis mediocritatem
Diligit, tutus caret obsoleti
Sordibus tecti, caret invidenda
Sobrius aula.
Saevius ventis agitatur ingens
Pinus: et celsae graviore casu
Decidunt turres: feriuntque summos
Fulgura montes.

[Todo aquele que escolhe a áurea mediana está livre dos cuidados de um teto miserável, e não inveja, sóbrio, os esplendores dos palácios. Acometidos pela tempestade, o alto pinheiro é agitado pelos ventos, as mais elevadas torres desmoronam com estrondo e os cimos dos montes são feridos pelos raios. (Horácio, Odes, II. 10. 5-12.)]

Aquele que, imbuído dos ensinamentos da minha filosofia, sabe que toda nossa existência é uma coisa que melhor fora que não existisse e que a suprema sabedoria consiste em negá-la e em rejeitá-la, não nutrirá grandes expectativas em relação a coisa alguma; não perseguirá com paixão nada no mundo, e tampouco levantará grandes queixas quando falhar em qualquer empreendimento. Pelo contrário, reconhecerá a profunda veracidade das palavras de Platão: Nenhuma das coisas humanas é digna de tanta urgência (República, X. 604). Vejamos o lema do Gulistan de Saadi, o poeta persa, traduzido por Graf:

Ist einer Welt Besitz für dich zerronnen,
Sei nicht in Leid darüber, es ist nichts;
Und hast du einer Welt Besitz gewonnen,
Sei nicht erfreut darüber, es ist nichts.
Vorüber gehn die Schmerzen und die Wonnen,
Geh an der Welt vorüber, es ist nichts.

[Hás perdido o império do mundo? Não te aflijas; isso não é nada. Hás conquistado o império do mundo? Não te regozijes; isso não é nada. Dores e felicidades, tudo passa, passa ao lado do mundo; isso não é nada. (Anwari Soheili)]

O que aumenta particularmente a dificuldade de chegar a essas perspectivas tão elevadas é a hipocrisia do mundo, já mencionada acima, e nada seria tão útil como desmascará-la ainda na juventude. Em sua maioria, as magnificências são, como decorações de teatro, puras aparências, e falta a própria essência da coisa. Navios decorados com bandeiras hasteadas, saudações de canhão, iluminações, tambores e trombetas, gritos de alegria, aplausos etc., tudo isso é o sinal exterior, o indício, a sugestão, o hieróglifo do júbilo ou alegria. Mas é bem aqui onde raramente se encontra a alegria; só ela se recusou a comparecer ao festival. Onde realmente se apresenta, chega, comumente, sem ser convidada ou anunciada, vem por si mesma e sans façon [sem cerimônias]. Frequentemente, introduz-se, em silêncio, nas ocasiões mais insignificantes e banais, nas circunstâncias mais corriqueiras do dia-a-dia; isto é, em qualquer lugar, exceto na companhia do brilho e da glória. Como o ouro na Austrália, encontra-se dispersa aqui e acolá, segundo o capricho do acaso, sem regra nem lei, as mais das vezes em pequenos grãos, e muito raramente em grandes quantidades. Mas o objetivo de tudo isso é fazer os demais acreditarem que alegria deu as caras; produzir essa ilusão em suas mentes é a intenção. Sucede com a tristeza o mesmo que com a alegria. Como são tristes e melancólicas as longas e vagarosas procissões funerais! Uma fila interminável de carruagens. Porém, olhemos um pouco no interior; estão todas vazias, e o defunto é escoltado até a sepultura apenas pelos coveiros da cidade. Uma imagem eloquente da amizade e da consideração neste mundo! Isso é o que chamo falsidade, indignidade e hipocrisia da conduta humana. Temos também um exemplo nas recepções solenes com os numerosos convidados em trajes finos; isso quase nos faz acreditar que se trata de companhias nobres e distintas. Mas, em vez disso, os verdadeiros convidados são a compulsão, a dor e o tédio; porque onde há muitos convidados, há muita gentalha, ainda que todos carreguem estrelas no peito. Com efeito, a verdadeira boa sociedade em todo lugar é necessariamente muito restrita. Entretanto, em geral, essas festas espalhafatosas e diversões barulhentas sempre levam em si algo que soa oco, ou, melhor dizendo, que soa falso, pois contradizem escandalosamente a miséria e a aridez de nossa existência, e o contraste ressalta a verdade. Não obstante, visto de fora, tudo isso surte efeito, e é exatamente esse o objetivo. Chamfort fez a excelente observação de que la société, les cercles, les salons, ce qu’on appelle le monde, est une pièce misérable, un mauvais opéra, sans intérêt, qui se soutient un peu par les machines, les costumes et les décorations. [A sociedade, os círculos, os salões, o que se chama alta sociedade, é uma peça miserável, uma ópera ruim, sem interesse, que se sustenta somente pelas máquinas, pelos trajes e as decorações]. Sucede o mesmo em relação às academias e às cadeiras de filosofia; essas são os sinais, o simulacro exterior da sabedoria; mas esse é outro convidado que recusou o convite, e encontra-se num lugar bastante diverso. O constante repique de sinos, os trajes sacerdotais, o porte piedoso e as gesticulações grotescas são o simulacro exterior, o semblante falso da devoção, e assim por diante. Assim, quase todas as coisas deste mundo podem ser chamadas nozes vazias; a noz é rara por si mesma, e ainda mais raro é encontrá-la dentro da casca. Temos de buscá-la em outros lugares; normalmente só a encontramos por acaso.

[2] Se quisermos avaliar a condição de um homem do ponto de vista de sua felicidade, não devemos questionar sobre o que lhe diverte, senão sobre o que lhe incomoda; pois, quanto mais insignificante for em si mesmo aquilo que o aflige, mais feliz será o homem. Ser sensível a banalidades implica bem-estar, visto que no infortúnio não as sentimos absolutamente.

[3] Devemos tomar o cuidado de não construir a felicidade de nossas vidas sobre grandes alicerces através de grandes pretensões. Sobre tais fundamentos, a felicidade se desmantela com maior facilidade, visto que oferece mais oportunidades para acidentes, que ocorrem o tempo todo. Nesse respeito, a estrutura de nossa felicidade opõe-se àquelas que são tanto mais estáveis quanto mais vastas forem suas bases. Assim, o caminho mais seguro para evitar grandes desgraças é reduzir nossas pretensões ao menor grau possível em proporção com os recursos de toda espécie.

Em geral, fazer grandes preparativos para a vida, de qualquer maneira que seja, é uma das maiores e mais disseminadas loucuras. Tais preparativos pressupõem, em primeiro lugar, uma vida longa, a plena e completa duração dos anos designados ao homem, que poucas pessoas alcançam. Mesmo quando se vive uma existência tão longa, o tempo se mostra demasiado curto para os planos que foram concebidos, visto que sua execução sempre requer muito mais tempo do que se supunha. Ademais, como tudo que é humano, tais planos estão sujeitos a tantos fracassos e tantos obstáculos que muito raramente são realizados. Por fim, mesmo quando se consegue realizá-los por completo, observa-se que as modificações que o tempo produz em nós não foram consideradas. Não se refletiu que nossas capacidades para as realizações e para os prazeres não duram a vida inteira. Resulta que frequentemente trabalhamos em função de coisas que, uma vez obtidas, já não nos servem; e que os anos gastos nos preparativos de uma obra nos subtraem insensivelmente as forças necessárias para sua conclusão. Do mesmo modo, muitas vezes não somos capazes de desfrutar da riqueza que conquistamos ao custo de grandes esforços e riscos, e vemos que temos trabalhado para os demais. Resulta também disso que não estamos em condições de ocupar um posto que foi finalmente alcançado depois de longos anos de aspiração e esforço; as coisas chegaram demasiado tarde para nós. Ou, contrariamente, fomos nós que chegamos demasiado tarde para as coisas; especialmente quando se trata de obras ou de produções, o gosto da época mudou; surgiu uma nova geração sem qualquer interesse por tais assuntos; outros tomaram atalhos e chegaram antes de nós, e assim sucessivamente. Horácio tinha todas essas coisas em mente quando disse:

quid aeternis minorem
Consiliis animun fatigas?

[Por que fatigas teu espírito débil com planos eternos? (Odes, II. XI.)]

A causa desse frequente equívoco deve-se à inevitável ilusão óptica dos olhos do espírito, em virtude da qual a vida, quando vista do início, parece infinita, mas, quando revista no fim da jornada, parece muito curta. Essa ilusão, todavia, tem um lado bom, pois sem ela não produziríamos nada grande.

Na vida somos geralmente como o viajante para o qual os objetos, na medida em que avança, tomam formas distintas das que exibiam à distância; esses se transformam, por assim dizer, à medida que se aproxima deles. Isso ocorre principalmente em relação aos nossos desejos. Muitas vezes encontramos algo diverso, às vezes melhor do que buscávamos. Às vezes também encontramos aquilo que buscávamos em um caminho completamente distinto do primeiro que, em vão, percorremos. Outras vezes, ali onde buscávamos encontrar um prazer, uma felicidade, uma alegria, encontramos um ensinamento, uma explicação, um conhecimento, isto é, um bem duradouro e real em vez de um bem passageiro e ilusório. Essa é a ideia que permeia todo o Wilhelm Meister de Goethe como uma nota grave; nessa obra temos um romance de natureza intelectual e, portanto, superior a todas as outras, mesmo às de Walter Scott, que são obras morais, ou seja, consideram a natureza humana sob a perspectiva da vontade. Encontramos igualmente em Die Zauberflöte — grotesco, mas ainda assim significante e até hieroglífico — essa mesma ideia fundamental simbolizada em grandes traços grosseiros como os de decorações de teatro. A simbolização seria completa se, no fim, Tamino fosse curado de seu desejo de possuir Tamina [i.e. Pamina] e recebesse, em vez dela, apenas uma iniciação no templo da sabedoria. Por outro lado, seria adequado que Papageno, sua contraparte necessária, tivesse êxito em conseguir sua Papagena. Os homens nobres e superiores não tardam em perceber que estão nas mãos do destino, e de bom grado consentem em ser moldados por ele. Compreendem que o fruto da vida é a experiência, não a felicidade; então habituam-se a trocar a esperança pelo conhecimento e, no fim, se contentam, dizendo como Petrarca:

Altro diletto che’mparar, non provo.

[Não sinto outra felicidade senão aprender. (Trionfo d’Amore, I. 21.)]

Pode mesmo ser que, em certo grau, ainda sigam seus velhos desejos e objetivos como distrações e para manter as aparências, enquanto que, na verdade e na seriedade de seus corações, não esperam senão a instrução; uma postura que lhes reveste de um sublime, contemplativo toque de gênio. Nesse sentido, pode-se também dizer que somos como alquimistas que, enquanto buscavam o ouro, descobriram a pólvora, a porcelana, medicamentos e até leis naturais.

b) sobre a nossa conduta para conosco

[4] O operário, ajudando a elevar um edifício, não conhece o plano do todo ou não o tem sempre à vista. Similarmente, enquanto um homem conduz sua vida através dos dias e das horas, dá pouca atenção ao seu curso total ou ao seu caráter como um todo. Se houver algum mérito ou importância vinculada à carreira de um homem, se dedica-se sistematicamente à execução de alguma obra especial, será necessário e benéfico que dedique ocasionalmente alguma atenção ao plano, isto é, que tenha em mente um esboço em pequena escala de seus objetivos gerais. Para tal fim, é preciso que já esteja iniciado no conhece-te a ti mesmo; deve saber, pois, o que realmente deseja acima e antes de tudo, o que é essencial à sua felicidade, e o que só vem em segundo ou terceiro lugar. Também deve ter uma consciência geral de sua vocação, de seu papel e de sua relação com o mundo. Se tudo isso é importante e elevado, então a visão de seu plano de vida em escala reduzida lhe fortalecerá, sustentará e elevará mais que qualquer outra coisa; servirá de estímulo ao trabalho e o ajudará a manter distância dos caminhos que possam lhe extraviar.

Assim como o viajante só tem uma visão completa dos caminhos que seguiu, com seus rodeios e sinuosidades, quando chega ao topo da colina, apenas no fim de um período de nossa existência, e às vezes da vida inteira, reconhecemos a verdadeira conexão entre nossas ações, conquistas e obras, sua exata consistência, sua concatenação e seu valor. Com efeito, enquanto estamos absortos em nossa atividade, trabalhamos somente de acordo com as propriedades fixas de nosso caráter, sob a influência dos motivos e dentro dos limites de nossas faculdades, isto é, por uma necessidade absoluta, visto que não fazemos, em um dado momento, senão o que naquele momento nos parece correto e conveniente. Somente o porvir nos permite vislumbrar o resultado; e apenas quando lançamos um olhar retrospectivo ao todo do curso da vida que nos é revelado o como e o porquê desta. Assim, no momento em que estamos realizando os maiores feitos ou criando obras imortais, não temos consciência disso como tal. Pelo contrário, as consideramos como algo adequado aos nossos objetivos atuais, que corresponde às nossas intenções do momento e, portanto, temos a impressão de que fizemos exatamente o que deveria ser feito. Apenas posteriormente, a partir de nossa vida como um todo, nosso caráter e nossas habilidades emergem em sua verdadeira luz. Então vemos como, num caso particular, guiados pelo gênio, seguimos, como que por inspiração, o único caminho verdadeiro entre outros mil caminhos tortuosos. Tudo isso se aplica tanto à teoria quanto à prática e, igualmente, no sentido oposto, aos feitos inúteis e mal-sucedidos. A importância do momento presente é raramente reconhecida no próprio momento; apenas muito depois.

[5] Uma questão importante na sabedoria de vida consiste na proporção correta entre a atenção que damos ao presente e ao futuro, a fim de que um não nos faça perder o outro. Muitas pessoas vivem demasiado no presente, são pessoas frívolas; outras vivem demasiado no porvir, são as tímidas e as inquietas. Raramente se consegue preservar a proporção entre ambas as partes. Aqueles que, movidos a anseios e esperanças, vivem somente no futuro, com o olhar sempre fixo à frente, antecipando impacientemente as coisas futuras — coisas que hão de lhes trazer a verdadeira felicidade —, enquanto deixam o presente escapar sem desfrutá-lo, são, apesar de seus objetivos astutos, comparáveis àqueles asnos que se veem na Itália, cujo passo pode ser apressado colocando um bastão com um fardo de feno pendurado diante de sua cabeça. Veem o feno diante de si e têm a esperança de alcançá-lo. Esses homens se enganam durante toda sua existência, visto que sempre estão vivendo apenas ad interim — até que estejam mortos. Assim, pois, em vez de nos ocuparmos única e exclusivamente de planos e inquietudes do futuro ou de nos entregarmos à nostalgia do passado, nunca deveríamos nos esquecer de que somente o presente é real e certo, e que o futuro, por outro lado, quase invariavelmente se mostra diferente daquilo que pensávamos e que o próprio passado foi diferente. Na verdade, no todo, ambos têm muito menos importância do que nos parece. Porque a distância, que torna os objetos pequenos à vista, faz com que pareçam grandes ao pensamento. Apenas o presente é verdadeiro e efetivo; é o tempo realmente ocupado no qual se funda exclusivamente nossa existência. Assim, devemos sempre considerá-lo digno de uma boa recepção, e conscientemente desfrutá-lo como tal em toda hora suportável e livre de incômodos ou dores presentes. Ou seja, não obscurecê-lo com desilusões do passado ou apreensões quanto ao porvir. Pois é completamente insensato rechaçar uma boa hora presente ou perdê-la sem motivo por desgosto do passado ou inquietude quanto ao futuro. Sem dúvida, um certo tempo deve ser dedicado à premeditação e mesmo ao arrependimento; porém, depois disso, devemos pensar daquilo que se passou:

Ainda que tenha nos mortificado, deixemos que o passado seja passado; e ainda que nos seja muito difícil, é preciso suprimir a inquietude em nossos corações (Homero, Ilíada, XVIII. 112 seg.)

e daquilo que há de vir:

Tudo isso descansa no colo dos deuses, (Homero, Ilíada, XVII. 514.)

mas, quanto ao presente: singulos dies singulas vitas puta [considera cada dia como uma vida isolada (Sêneca, Epistulae, 101, 10.)], e tornemos esse tempo o mais agradável possível, pois é o único que verdadeiramente possuímos.

Os únicos males futuros que devem, com razão, alarmar-nos, são aqueles cuja chegada e cujo momento são seguros. Porém esses são muito poucos; porque os males são ou simplesmente possíveis, no máximo prováveis, ou são certos; o tempo de sua chegada, todavia, é incerto. Assim, se cedermos a esses dois males, já não teremos sequer um momento de paz. Portanto, para que não percamos a tranquilidade devido a males incertos e indefinidos, devemos nos acostumar a considerar o primeiro como algo que provavelmente nunca ocorrerá e o segundo como algo que provavelmente ocorrerá, mas não em breve.

Porém, quanto menos nossa paz é incomodada pelo medo, mais somos agitados por desejos, cobiças e pretensões. O verdadeiro sentido da tão conhecida canção de Goethe, Ich hab’ mein’ Sach auf nichts gestellt [não depositei minhas esperanças em nada], é que apenas após ter se livrado de todas as possíveis pretensões, retornando à existência tal como é, o homem pode alcançar a tranquilidade que constitui a base da felicidade humana. Porque essa calma é necessária para que o presente seja suportável e, portanto, a vida inteira. Para tal fim, deveríamos sempre ter em mente que o hoje só vem uma vez e nunca mais. Porém, imaginamos que voltará amanhã; todavia, amanhã é outro dia que também só virá uma vez. Esquecemos que cada dia é uma parte integral e, por conseguinte, insubstituível da vida, e a encaramos como se fosse uma noção ou nome coletivo em que não há prejuízo se um dos indivíduos que abarca for destruído. Também apreciaríamos e desfrutaríamos melhor o presente se, nos dias de bem-estar e saúde, não deixássemos de refletir sobre como, durante a enfermidade ou a aflição, as lembranças das horas que decorreram sem dor e privação nos pareceram dignas de inveja — como um paraíso perdido, um amigo esquecido ao qual não demos o merecido valor. Porém, vivemos nossos bons dias sem percebê-los; só quando chegamos aos dias ruins desejamos recuperá-los. Deixamos passar mil horas alegres e agradáveis sem conceder-lhes um sorriso, e depois suspiramos por elas quando os tempos são sombrios. Em vez disso, deveríamos aproveitar cada momento presente que seja suportável, mesmo o mais corriqueiro, que deixamos passar com indiferença ou mesmo apressamos impacientemente. Deveríamos sempre ter em mente que tais momentos no mesmo instante estão se precipitando na apoteose do passado, onde a memória os preservará transfigurados e brilhantes com uma luz imortal, e representarão a nossos olhos o objeto de nossos anseios mais profundos quando, especialmente nas horas de infortúnio, a recordação vem a levantar o véu.

[6] Toda limitação torna feliz. Quanto mais restritos forem nosso círculo de visão, nossa esfera de ação e nossos pontos de contato, mais felizes somos; quanto mais vastos forem, mais comumente nos sentimos atormentados e inquietos. Porque, por meio deles, nossos cuidados, anseios e aflições são aumentados e intensificados. Por esse motivo os cegos não são tão desgraçados como poderíamos crer a priori; e isso pode ser evidenciado pela calma suave, quase jovial, de suas feições. Outro motivo pelo qual a limitação torna feliz é que a segunda metade de vida mostra-se mais melancólica que a primeira. Com efeito, no decorrer de nossa existência, o horizonte de nossas vistas e de nossas relações se torna cada vez mais amplo. Na infância está limitado à vizinhança mais imediata e às relações mais íntimas; na adolescência se estende consideravelmente; na idade adulta o horizonte abarca todo o curso de nossas vidas e se estende muitas vezes mais até as relações mais remotas, até os estados e as nações; na velhice, abarca a posteridade. Pelo contrário, toda limitação, ainda nas coisas do espírito, é proveitosa à nossa felicidade; pois quanto menos a vontade for excitada, menos sofrimento haverá; e sabemos que o sofrimento é positivo e a felicidade simplesmente negativa. A limitação da esfera de ação tira da vontade os motivos exteriores para a excitação; a limitação do espírito tira os interiores. Essa última só tem a desvantagem de abrir espaço para o tédio, que se converte na origem indireta de inumeráveis sofrimentos; porque, para afastá-lo, os homens recorrem a qualquer coisa, distrações, reuniões, luxo, jogo, bebida e muitas outras coisas que acarretam toda espécie de prejuízo, ruína e desgraça. Difficilis in otio quies [difícil é a quietude no ócio]. Por outro lado, a limitação exterior é benéfica, e mesmo necessária, à felicidade humana, ao menos na medida em isso nos é possível. Vemos isso no fato de que o único gênero de poesia que se dedica a descrever seres felizes, o idílio, sempre os representa essencialmente numa situação e num círculo extremamente limitados. Esse mesmo sentimento produz também o prazer que sentimos no que se chamam quadros de gênero. Em consequência, encontraremos felicidade na maior simplicidade possível de nossas relações e até na monotonia de nosso modo de viver, desde que não acarretem o tédio. Pois, em tais circunstâncias, sentimos menos a vida em si mesma e seu fardo inseparável. Nossa existência fluirá calmamente como um riacho, sem ondas ou turbilhões.

[7] Em relação à nossa felicidade ou à nossa desgraça, o que importa, em última análise, é o que preenche e ocupa nossa consciência. Nesse sentido, trabalhos puramente intelectuais, para os espíritos capazes disso, em regra, servirão muito mais à felicidade que qualquer forma de vida prática, com suas alternâncias constantes de êxitos e de fracassos, com suas sacudidas e tormentos. Mas, naturalmente, para tal trabalho são necessárias habilidades intelectuais preponderantes. Quanto a isso, devemos notar também que, por um lado, assim como uma vida voltada ao exterior nos distrai e nos diverte do estudo, e também priva nosso espírito daquela concentração calma que é indispensável à atividade desse gênero, também, por outro lado, a ocupação contínua do espírito nos torna mais ou menos inaptos aos objetivos tumultuosos da vida real. É, pois, prudente suspender essa ocupação por certo tempo quando surgirem circunstâncias que exijam, de algum modo, uma atividade enérgica e prática.

[8] Para viver com prudência e sensatez perfeitas e para extrair da própria experiência todos os ensinamentos que encerra, muitas vezes é necessário voltar por meio do pensamento e recapitular o que fizemos e vivenciamos e quais eram nossos sentimentos, e comparar nossos juízos anteriores com os presentes, nossos planos e aspirações com o sucesso e a satisfação que produziram. Isso equivale à repetição de aulas particulares dadas a todos pela experiência. Nossa própria experiência pode ser considerada como um texto do qual a reflexão e o conhecimento constituem o comentário. Muita reflexão e conhecimento com pouca experiência lembram aquelas edições cujas páginas contêm duas linhas de texto e quarenta de comentário. Muita experiência com pouca reflexão e escasso conhecimento são como as editiones Bipontinae, que não têm notas e contêm muitas passagens ininteligíveis.

O conselho apresentado aqui também foi aludido pela regra de Pitágoras de que, toda noite, antes de dormir, devemos passar em revista tudo que fizemos durante o dia. O homem que, no tumulto dos negócios ou dos prazeres, não pensa no que há de vir, nunca rumina sobre seu passado, e que se contenta com seguir o novelo da vida, é completamente destituído de prudência e reflexão. Seu espírito se converte em um caos e certa confusão penetra em seus pensamentos, algo evidenciado pela natureza abrupta e fragmentária de sua conversa que parece, por assim dizer, carne moída. Esse estado será tanto mais pronunciado quanto maior for a excitação exterior e a soma de impressões, e quanto menor for a atividade interna de seu próprio espírito.

Pode-se observar que, após as circunstâncias que nos influenciaram desaparecerem com o passar do tempo, somos incapazes de reviver e renovar a disposição e o sentimento que então produziram em nós. Entretanto, somos capazes de recordar nossas próprias observações nessa ocasião, que constituem o resultado, a expressão e a medida daqueles eventos. Por conseguinte, devemos preservar com cuidado a memória ou o registro de tais observações a respeito de épocas importantes de nossas vidas. Para tal fim, diários são muito úteis.

[9] Bastar-se a si próprio, ser um todo em tudo por si mesmo e poder dizer omnia mecum porto mea [levo comigo tudo que tenho] é, seguramente, a qualificação mais favorável à nossa felicidade. Daí a máxima de Aristóteles: felicitas sibi sufficientium est [a felicidade é dos que bastam a si mesmos (Ética a Eudemo, 7, 2)], que nunca devemos nos cansar de repetir. (No fundo, é a mesma ideia presente na sentença muito bem torneada de Chamfort, posta como epígrafe neste livro.) Pois não se pode contar com certeza mais que consigo mesmo; ademais, as dificuldades e as desvantagens, os perigos e os inconvenientes que a sociedade traz consigo são inumeráveis e inevitáveis.

Não há caminho que nos distancie mais da felicidade que a grande vida, a vida de festas e banquetes, a high life; porque seu objetivo é transformar nossa miserável existência em uma sucessão de alegrias, de delícias e de prazeres, um processo que inevitavelmente culmina na decepção e na desilusão; assim como seu acompanhamento obrigatório, o hábito das pessoas de mentir umas para as outras. [1]

Toda sociedade envolve necessariamente, como condição básica de sua existência, a acomodação e a restrição mútuas por parte de seus membros; assim, quanto mais numerosa é, mais insípida se torna. O homem só pode ser si mesmo por completo enquanto estiver sozinho; por conseguinte, quem não ama a solidão, não ama a liberdade; pois o homem só é livre quando está sozinho. A restrição e a ânsia por liberdade são companheiras inseparáveis de toda sociedade; e os sacrifícios que exige serão tanto mais custosos quanto mais acentuada for a própria individualidade do homem. Por conseguinte, cada qual evitará, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor de seu próprio ser. Porque na solidão o mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o espírito elevado toda a magnitude de sua grandeza; em suma, cada qual sente aquilo que é. Ademais, quanto mais elevada for a posição que um homem ocupa na hierarquia da natureza, mais solitário será; isso é essencial e inevitável. Mas será benéfico a esse homem que a solidão física esteja em acordo com sua solidão intelectual, do contrário a frequente relação com seres de natureza distinta exerce sobre ele um efeito inquietante e mesmo prejudicial, visto que roubam-no de si mesmo, e não têm nada para oferecer-lhe em troca. Ademais, enquanto a natureza estabeleceu as maiores diferenças, tanto morais como intelectuais, entre os homens, a sociedade, a despeito disso, os têm como iguais ou, melhor dizendo, substitui essa desigualdade natural com as distinções e os graus artificiais de posição e categoria, que muitas vezes são completamente opostos à hierarquia estabelecida pela natureza. Como resultado, essa disposição eleva aqueles que a natureza colocou muito abaixo e rebaixa os poucos colocados muito acima. Decorre que os últimos, em geral, se retiram da sociedade, onde a vulgaridade prevalece assim que se torna numerosa. O que ofende os espíritos superiores na sociedade é a igualdade de direitos e de aspirações que se derivam dela frente à desigualdade das faculdades e das produções (sociais) dos demais. A chamada boa sociedade admite os méritos de todas as classes, exceto os intelectuais, que são como um contrabando. Impõe o dever de manifestar uma paciência ilimitada para toda tolice, toda loucura, todo absurdo, toda estupidez. Os méritos pessoais, pelo contrário, se veem forçados a mendigar seu perdão ou a ocultarem-se; pois a superioridade intelectual fere por sua simples existência, sem que nisso haja qualquer intenção. Ademais, essa suposta boa sociedade não só tem o inconveniente de nos pôr em contato com pessoas incapazes de conquistar nosso louvor ou afeição, senão que não nos permite que sejamos nós mesmos segundo nossa natureza. Pelo contrário, nos obriga, em nome da harmonia, a nos apequenarmos e até a nos deformarmos. Conversas e ideias intelectuais só servem à sociedade intelectual; na sociedade vulgar são detestadas por completo, porque para se agradar nessa é imprescindível ser completamente insípido e limitado. Portanto, em tal sociedade, devemos praticar uma severa abnegação, abrindo mão de três quartos de nossa própria personalidade para nos assemelharmos aos demais. É certo que, em troca, temos os demais; porém, quanto mais mérito se tem, mais se verá que aqui o ganho não cobre o prejuízo, e que isso redunda em nosso detrimento. Porque as pessoas são, em regra, falidas; isto é, não têm em seu trato nada que possa indenizar-nos do tédio, das fadigas e dos desgostos proporcionam nem do sacrifício de si mesmo que exigem. Resulta que quase toda a sociedade é composta de tal modo que quem a troca pela solidão sempre faz um bom negócio. Ademais, há o fato de que, para substituir a verdadeira superioridade, i.e. intelectual, que é difícil de se encontrar, mas intolerável quando encontrada, a sociedade adotou por capricho uma falsa superioridade, de natureza convencional. Baseada em princípios arbitrários, é transmitida como uma tradição entre as classes elevadas e, como uma senha, sujeita a alterações. É o que se denomina bon ton, fashionableness [o bom tom, a distinção]. Não obstante, quando entra em conflito com a verdadeira superioridade, a debilidade da primeira não tarda em manifestar-se. Ademais, quand le bon ton arrive, le bon sens se retire [quando o bom tom chega, o bom senso se retira].

Em geral, não se pode estar em uníssono perfeito mais que consigo mesmo, não se pode estar com o amigo, tampouco com a mulher amada. Porque as diferenças da individualidade e do caráter produzem sempre uma dissonância, por menor que seja. Assim, pois, a paz verdadeira e profunda do coração e a perfeita tranquilidade do espírito, esses bens supremos na terra depois da saúde, não se encontram mais que na solidão e, para ser permanente, apenas na reclusão mais profunda. Então, quando se é elevado e rico, se desfruta do estado mais feliz que se pode encontrar neste mundo miserável. Sim, sejamos francos; por mais íntimos que sejam os laços da amizade, do amor e do matrimônio, o homem só preza honestamente pelo seu próprio bem-estar; no máximo, pelo de seu filho. Por conseguinte, quanto menos um homem for levado, devido a condições objetivas ou subjetivas, a entrar em contato com outros, melhor se encontrará. O isolamento e a solidão têm seus males, mas, apesar de não podemos senti-los de uma só vez, ao menos podemos investigá-los. A sociedade, pelo contrário, é insidiosa; oculta males imensos, às vezes irreparáveis, detrás de uma aparência de passatempos, de conversas, de entretenimentos sociais e outras coisas semelhantes. Um estudo importante para a juventude seria aprender a suportar a solidão, visto que é a fonte de felicidade e de paz de espírito. De tudo que acabamos de expor, resulta que aquele que leva a melhor parte é o que só conta consigo mesmo e que pode ser si mesmo no todo. Até Cícero disse: Nemo potest non beatissimus esse qui est totus aptus ex sese, quique in se uno ponit omnia [não se pode senão ser muito feliz quando se é apto por si mesmo e se põe em si todas as coisas. (Paradoxa, II)]. Ademais, quanto mais o homem tem em si, menos podem servir-lhe os demais. Esse sentimento de autossuficiência é o que impede o homem de valor e mérito intrínsecos de realizar os consideráveis sacrifícios exigidos pela vida em comum, ainda mais de buscá-la à custa de uma evidente abnegação de si mesmo. É o sentimento oposto que torna os homens vulgares tão sociáveis e tão acomodados; visto que é mais fácil suportarem os demais que a si mesmos. Além disso, devemos lembrar que, neste mundo, aquilo que tem valor real não é apreciado e o que se aprecia não tem valor. Encontramos a prova e o resultado disso na vida retirada de qualquer homem de mérito e distinção. Portanto, demonstrará verdadeira sabedoria de vida aquele que, possuindo algum valor em si mesmo, restringe, se for preciso, as suas necessidades a fim de preservar ou ampliar sua liberdade e, assim, guarda-se o máximo possível da intimidade com os demais, visto que o contato com os homens é inevitável.

Por outro lado, o que faz os homens sociáveis é sua incapacidade de suportar a solidão e a sua própria companhia. Seu vazio interior, fadiga e tédio os conduzem a buscar a sociedade e a empreender viagens a países estrangeiros. Seus espíritos carecem da elasticidade necessária para se imprimirem movimento próprio. Tentam melhorar sua situação por meio do vinho e, desse modo, muitos deles acabam se tornando bêbados. Por esse mesmo motivo, necessitam constantemente da excitação exterior e mesmo da mais forte, i.e. produzida por seres de sua espécie, sem a qual seus espíritos cedem sob seu próprio peso e caem em uma dolorosa letargia. [2] Pode-se dizer igualmente que cada qual deles não é mais que uma pequena fração da Ideia da humanidade, necessitando ser complementados com muitos outros para que, de algum modo, surja uma consciência humana inteira. Pelo contrário, aquele que é um homem completo, um homem par excellence, representa uma unidade inteira, não uma fração e, por conseguinte, se basta a si mesmo. Nesse sentido, pode-se comparar a sociedade vulgar a essas orquestras russas compostas exclusivamente de trombetas, nas quais cada instrumento só tem uma nota, e a música é produzida quando todos soam ao mesmo tempo. Pois o temperamento e a mentalidade da maioria dos homens são tão monótonos como essas trombetas de apenas uma nota. Neles parece realmente não haver senão um único pensamento, sem espaço para qualquer outro. Isso explica, por sua vez, não apenas por que são tão entediados, mas também por que são tão sociáveis e preferem andar em bandos: the gregariousness of mankind [a gregariedade humana]. É a monotonia de seu próprio ser o insuportável a cada um deles: omnis stultitia laborat fastidio sui [a estupidez sofre com o cansaço de si mesma (Sêneca, Epistulae, 9.)]. Só juntos e unidos chegam a ser algo; como esses tocadores de trombetas. O homem de inteligência, pelo contrário, é comparável a um virtuoso que executa seu concerto por si só; é como um piano. Assim como esse instrumento é por si só uma pequena orquestra, o homem de inteligência é um pequeno mundo; e aquilo que os demais só conseguem em conjunto, este apresenta na unidade de uma só consciência. Assim como o piano, não é parte da sinfonia, mas voltado ao solo e à solidão. Quando precisa cooperar com os demais, isso não pode ser mais que como voz principal com acompanhamento, também como o piano; ou para dar o tom na música vocal, sempre como o piano. Entretanto, aqueles que gostam da sociedade poderão extrair da analogia anterior a regra de que a falta de qualidade pode, até certo ponto, ser compensada pela quantidade. Um homem de inteligência é companhia suficiente; porém, quando não se encontra mais que homens vulgares, será bom que haja um grande número deles, de modo que algo possa resultar de sua variedade e cooperação — analogamente à já mencionada música de trombetas; e que o céu nos conceda a paciência!

Mas esse vazio interior e essa nulidade das pessoas podem também ser atribuídas ao fato de que, quando alguns homens de ordem superior se agrupam com o intuito de um fim nobre e ideal, o resultado será quase sempre que, das grandes massas humanas — que, como insetos, recobrem todas as coisas e estão sempre dispostas a apoderar-se de tudo indiscriminadamente com o objetivo de aliviar seu tédio ou outros defeitos de sua natureza — sempre haverá alguns que conseguem se infiltrar ou invadir essa sociedade. Em pouco tempo, destruirão a obra por completo, ou a modificarão de tal forma que se torna praticamente o oposto da intenção original.

A gregariedade também pode ser considerada como uma forma de aquecimento mental análogo ao aquecimento corporal produzido quando se aglomeram em dias frios. Porém, aquele que possui muito calor intelectual não necessita de tais aglomerações. No último capítulo do segundo volume desta obra [Parerga e Paralipomena, § 396], o leitor encontrará um conto que ilustra a questão. A consequência de tudo isso é que a sociabilidade de cada qual está em razão inversa de seu valor intelectual; dizer que alguém “é muito insociável” significa mais ou menos “é um homem dotado de elevadas faculdades”.

A solidão confere uma vantagem dupla ao homem de intelecto superior; a primeira de estar consigo mesmo, e a segunda de não estar com os demais. Essa última será altamente valorizada se tivermos em mente quanta restrição, inconveniência e mesmo perigo estão envolvidos em toda sociedade. La Bruyère disse: tout notre mal vient de ne pouvoir être seuls. [todo nosso mal vem de não podermos estar sós]. A gregariedade ou sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas, e mesmo fatal, porque nos põe em contato com seres que, em grande maioria, são moralmente maus e intelectualmente limitados ou pervertidos. O homem insociável é aquele que não tem necessidade das pessoas; ter o bastante em si mesmo para que não se precise da sociedade é, portanto, uma grande felicidade. Pois quase todos os nossos males derivam da sociedade, e a paz de espírito que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial de nossa felicidade, é colocada em perigo por ela, de modo que não pode existir sem uma quantidade significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciaram a todas as posses para desfrutar da alegria proporcionada pela paz de espírito; aquele que, com o mesmo fim, renuncia à sociedade, escolhe o caminho mais prudente. Bernardinho de Saint-Pierre disse com beleza e razão: La diète des alimens nous rend la santé du corps, et celle des hommes la tranquillité de l’âme [a dieta dos alimentos nos proporciona a saúde do corpo, e a dos homens, a tranquilidade da alma]. Assim, aquele que cedo desenvolveu amizade ou mesmo afeto pela solidão adquiriu uma mina de ouro; todavia, isso não é possível a todos. Pois, assim como a miséria e a privação são o que primeiro aproxima os homens, também mais tarde, livres da necessidade, são unidos pelo tédio. Sem esses dois motivos, cada qual provavelmente permaneceria sozinho, ainda quando só fosse porque na solidão o ambiente que nos rodeia corresponde ao sentimento de importância exclusiva que cada qual possui aos seus próprios olhos, mas que é reduzido a nada pela corrente tumultuosa do mundo, recebendo a cada passo uma dolorosa démenti [contestação]. Nesse sentido, a solidão é o estado natural de todos os indivíduos, na qual o homem, como um novo Adão, desfruta da felicidade original permitida pela sua natureza.

Mas, naturalmente, Adão não tinha pai nem mãe! Por isso, num sentido diverso, a solidão não é natural ao homem, visto que em sua chegada não se encontra só, mas em meio a pais, irmãos e irmãs, isto é, numa comunidade. Por conseguinte, o amor pela solidão não pode existir como uma inclinação primitiva, mas deve nascer como um resultado da experiência e da reflexão; se produzirá sempre em relação com o desenvolvimento da força intelectual própria e em proporção ao avanço da idade; segue-se que, em geral, o instinto social do homem estará em relação inversa à sua idade. A criança pequena lança gritos de medo e aflição assim que é deixada sozinha por alguns momentos. Para os jovens, estarem sozinhos é uma severa penitência. Os adolescentes se reúnem entre si; unicamente os dotados de uma natureza mais nobre já buscam às vezes a solidão; não obstante, passar o dia inteiro sozinhos ainda lhes é difícil. Por outro lado, para o homem maduro é coisa fácil; pode estar muito tempo sozinho, e tanto mais quanto mais avança na vida. O ancião, único sobrevivente de gerações desaparecidas, morto para os prazeres da vida, encontra na solidão seu verdadeiro elemento. Porém, em cada indivíduo, o aumento na inclinação ao retiro e à solidão sempre ocorrerá na medida de seu valor intelectual. Porque, como temos dito, não é uma inclinação puramente natural, provocada diretamente pela necessidade; é somente o efeito da experiência adquirida e da reflexão a esse respeito, especialmente da compreensão da natureza miserável, tanto moral como intelectual, da grande maioria dos homens. O pior que há nessa condição é que as imperfeições morais e intelectuais do indivíduo conspiram e trabalham em conjunto, produzindo os fenômenos mais repulsivos, que tornam desagradável e mesmo intolerável a convivência com a maioria dos homens. E ainda que haja neste mundo tantas coisas más, a sociedade é a pior delas, de modo que até Voltaire, o francês sociável, chegou a dizer: La terre est couverte de gens qui ne méritent pas qu’on leur parle [a terra está coberta de pessoas que não merecem que se lhes fale]. O terno Petrarca, um espírito tão vivo e constante em seu amor à solidão, dá o mesmo motivo:

Cercato ho sempre solitaria vita
(Le rive il sanno, e le compagne e i boschi),
Per fuggir quest’ ingegni sordi e loschi,
Che la strada del ciel’ hanno smarrita.

[Sempre busquei uma vida solitária (os ribeiros o sabem e as campinas e os bosques) para escapar desses espíritos disformes e míopes que perderam o caminho do céu. (Soneto 221.)]

No mesmo sentido, amplia a questão em seu belo livro De Vita solitaria, que parece haver servido de modelo a Zimmermann em sua célebre obra intitulada Da Solidão. Com sua maneira sarcástica, Chamfort expressa exatamente essa origem secundária e indireta da insociabilidade: On dit quelquefois d’un homme qui vit seul, il n’aime pas la société. C’est souvent comme si on disait d’un homme qu’il n’aime pas la promenade sous le prétexte qu’il ne se promène pas volontiers le soir dans la forêt de Bondy [Diz-se algumas vezes de um homem que vive só que não gosta da sociedade. É como se se dissesse de um homem que não gosta de passear sob o pretexto de que não se passeia com gosto à noite no bosque de Bondy.]. [3] Santo Silésio, alma doce e cristã, confessa o mesmo sentimento com sua linguagem mítica que lhe é própria:

Herodes ist ein Feind; der Joseph der Verstand,
Dem machte Gott die Gefahr im Traum (in Geist) bekannt;
Die Welt ist Bethelem, Aegypten Einsamkeit,
Fleuch, meine Seele! fleuch, sonst stirbest du vor Leid.

[Herodes é um inimigo; José é a razão, a quem Deus revela em sono (em espírito) o perigo. O mundo é Belém, o Egito é solidão. Foge, alma minha!, foge ou morrerás de dor.]

Nessa perspectiva, Giordano Bruno expressa a opinião de que tanti uomini che in terra hanno voluto gustare vita celeste, dissero con una voce: “ecce elongavi fugiens et mansi in solitudine” [Todos os homens que na terra quiseram desfrutar a vida celestial, disseram a uma voz: “Eis que fugiria para longe, e pernoitaria no deserto.” (Salmos, 55:7)]. Assim se expressa também, falando de si mesmo, Saadi, o persa, em o Gulistan: Cansado de meus amigos em Damasco, me retirei ao deserto, junto da Jerusalém, para desfrutar da sociedade dos animais. Em suma, a mesma ideia foi expressa por todos aqueles a quem Prometeu deu forma com o melhor barro. Que prazeres esses seres privilegiados podem encontrar na relação com criaturas com as quais não têm nada em comum, senão no que há de mais vil e ignóbil em sua natureza, isto é, naquilo que é lugar-comum, trivial e vulgar? O que podem encontrar naqueles que constituem uma comunidade e que, não podendo elevar-se à altura dos primeiros, não têm outro recurso senão rebaixá-los à sua? No fundo, é um sentimento aristocrático que alimenta a inclinação ao isolamento e à solidão. Todos os desgraçados são sociáveis; que pena. Por outro lado, vemos que um homem é de natureza nobre quando não encontra prazer nos demais; sempre prefere a solidão em vez de companhia. Com o passar dos anos, chega a perceber que, salvo raras exceções, no mundo não há meio termo entre solidão e vulgaridade. Essa verdade, por mais severa que pareça, foi expressa até por Santo Silésio, não obstante sua ternura e caridade cristãs:

Die Einsamkeit ist noth: doch sei nur nicht gemein,
So kannst du überall in einer Wüste sein.

[A solidão é penosa; porém, não sejas vulgar, e poderás encontrar em todo lugar um deserto.]

Em relação aos espíritos ilustres, é muito natural que esses verdadeiros educadores do gênero humano sintam tão pouca inclinação a pôr-se em comunicação frequente com os demais, como pode sentir o pedagogo ao participar das brincadeiras ruidosas das crianças que lhe rodeiam. Porque nasceram para guiar a humanidade através do mar de erros até o céu da verdade e conduzi-la do negro abismo de sua grosseria e vulgaridade até a luz da cultura e do refinamento. É verdade que devem viver entre eles, porém sem nunca pertencer-lhes realmente. Desde sua juventude, sentem-se sensivelmente diferentes dos demais, mas apenas lentamente e com o passar do tempo chegam a compreender com nitidez sua posição. Então cuidam para que seu isolamento intelectual também seja reforçado pela distância física, e para que ninguém se aproxime deles, senão aqueles mais ou menos livres da vulgaridade em geral. Resulta disso tudo que o amor à solidão não se apresenta diretamente e na forma de um impulso primitivo, mas se desenvolve indiretamente, em particular nos espíritos distintos, e apenas gradualmente. Esse desenvolvimento não é alcançado sem que dominemos o instinto natural de sociabilidade, por vezes opondo-lhe a sugestão de Mefistófeles:

Hör’ auf mit deinem Gram zu spielen,
Der, wie ein Geier, dir am Leben frisst:
Die schelechteste Gesellschaft lässt dich fühlen
Dass du ein Mensch mit Menschen bist.

[Cessa de cultivar tua pena que, semelhante a um abutre, te devora a existência; a pior companhia te faz compreender que és um homem entre os demais. (Fausto, Goethe, Parte I., 1281-5.)]

A solidão é o destino de todos os espíritos excepcionais, e isso às vezes lhes entristecerá; porém, sempre a escolherão como o menor dos males. Entretanto, nesse respeito, com o passar dos anos, o sapere aude [atreve-se a saber] torna-se cada vez mais fácil e natural; chegando aos sessenta anos, a inclinação à solidão chega a ser realmente natural, e mesmo instintiva, pois tudo então conspira em seu favor. Os impulsos mais poderosos à socialização, a saber, o amor das mulheres e o impulso sexual, deixam de exercer influência; o desaparecimento do sexo no ancião lança os fundamentos para uma certa autossuficiência que lentamente absorve o instinto social. Mil ilusões e tolices foram superadas; a vida de ação cessou quase por completo. O homem não tem mais expectativas, planos ou intenções. A geração à qual realmente pertence deixou de existir; rodeado de outra que lhe é estranha, já se encontra objetiva e essencialmente sozinho. O passar do tempo se tornou acelerado, e deseja empregá-lo intelectualmente. Porque neste momento, contanto que o cérebro tenha conservado suas forças, a grande quantidade de conhecimento e experiência que adquirimos, a meditação progressivamente aprofundada e a grande habilidade no emprego de nossas forças tornam os estudos de todo tipo mais fáceis e interessantes. Vemos claramente um milhar de coisas que então estavam envoltas numa nuvem de incerteza; alcançamos resultados e sentimos integralmente nossa superioridade. Devido à grande experiência, deixamos de esperar muito dos homens; pois, no todo, não ganhamos em conhecê-los mais de perto. Pelo contrário, sabemos que, salvo algumas raras e felizes exceções, não encontraremos mais que exemplares muito defeituosos da natureza humana, e que mais vale deixá-los em paz. Já não estamos expostos às ilusões comuns da vida, e vemos prontamente o que cada homem vale; raramente sentiremos o desejo de entrar em relação mais íntima. Por fim, o hábito do isolamento e do trato consigo mesmo se arraiga e se torna uma segunda natureza, especialmente se a solidão foi nossa amiga de juventude. Assim, o amor pela solidão, que tivemos de conquistar através da luta com o impulso social, passa a ser natural e simples; na solidão somos como um peixe na água. Por isso, todo homem superior, possuindo uma individualidade distinta das outras e, por conseguinte, ocupando um lugar único, se sentirá oprimido em sua juventude por essa posição completamente isolada, mas aliviado em sua velhice. Sem dúvida, cada qual desfrutará desse verdadeiro privilégio da idade na medida de suas forças intelectuais; e será mais plenamente apreciado pelos espíritos eminentes, apesar de que em menor grau todos os demais o conseguem. Apenas as naturezas extremamente inferiores e vulgares serão na velhice tão sociáveis quanto na juventude. Mas então se tornam um fardo para a sociedade, na qual não se encaixam, e no máximo são tolerados, em vez de ser buscados como antes.

Pode-se também encontrar um aspecto teleológico na relação inversa entre nossa idade e o grau de nossa sociabilidade. Quanto mais jovem é o homem, mais tem que aprender em todos os sentidos. E é durante a juventude que a natureza proporciona um sistema de ensino mútuo, no qual a instrução é transmitida pela simples relação com os seus semelhantes, de modo que podemos considerar a sociedade humana como um grande estabelecimento educacional bell-lancasteriano. Os livros e as escolas são instituições artificiais, pois estão muito distantes do plano da natureza. Desse modo, é muito útil que, em sua juventude, um homem seja um dedicado aluno da instituição de ensino da natureza.

Nihil est ab omni parte beatum [nada é perfeito em todos os sentidos], disse Horácio; e Não há flor sem mácula, diz um provérbio hindu. Assim, também a solidão, com todas as suas vantagens, tem seus ligeiros inconvenientes e incômodos que, não obstante, são mínimos em relação aos da sociedade. De tal forma que um homem que tem valor próprio sempre julgará mais fácil prescindir dos demais que manter relações com eles. Entre os inconvenientes, há um de que não nos damos conta tão facilmente quanto os demais. Assim, como sempre permanecemos fechados em nossas casas, nossos corpos se tornam tão sensíveis às influências externas que a menor brisa resulta efeitos mórbidos. Da mesma forma, devido ao prolongado isolamento e solidão, nosso caráter se torna tão sensível que nos sentimos inquietos, aflitos ou irritados pelos acontecimentos mais insignificantes, por palavras e até por um olhar, enquanto que tais coisas passam despercebidas por aqueles que sempre estão no tumulto da vida.

Quando um homem julga a sociedade desagradável e se sente justificado em fugir para a solidão, comumente mostra-se incapaz de suportar seu vazio, especialmente se é jovem. Aconselho que se habitue a levar à sociedade uma parte de sua solidão, e que aprenda a estar sozinho, até certo ponto, ainda que em companhia. Por conseguinte, que não comunique imediatamente aos demais aquilo que pensa; por outro lado, que não atribua demasiado valor ao que dizem. Pelo contrário, que não espere muito deles, tanto moral como intelectualmente, e que, desse modo, em relação às suas opiniões, exercite aquela indiferença que é o modo mais seguro de sempre praticar uma louvável tolerância. Ainda que esteja entre eles, não estará completamente em sua companhia, conferindo às suas relações um caráter puramente objetivo. Isso o protegerá de contatos demasiado íntimos com a sociedade e, por conseguinte, de todo contágio e, com maior motivo, contra toda agressão. Encontramos uma excelente descrição dramática dessa sociabilidade restrita ou entrincheirada na comédia El Café o sea la comedia nueva, de Moratin, em especial no personagem Don Pedro nas cenas segunda e terceira do primeiro ato. Nesse sentido, a sociedade também pode ser comparada a uma fogueira na qual o homem prudente se aquece de uma distância segura, enquanto o tolo, chegando perto demais, queima-se e foge à gélida solidão, lamentando que o fogo queime.

  1. Assim como nosso corpo está envolto em roupas, nosso espírito está revestido de mentiras. Nossas palavras, nossas ações, toda a nossa natureza é enganosa; e apenas através desse envoltório podemos às vezes adivinhar o que alguém realmente pensa, assim como podemos adivinhar a forma do corpo a partir das roupas.
  2. Todos sabem que os males são aliviados quando os sofremos em comum. Os homens parecem considerar o tédio como um desses males e, por isso, se reúnem para se entediarem em conjunto. Assim como o amor à vida não é no fundo mais que o medo da morte, assim também o instinto social dos homens não é um sentimento direto. Logo, não se baseia no amor à sociedade, senão no medo da solidão, porque não é exatamente a agradável companhia dos demais aquilo que se busca, mas a fuga da aridez e desolação da solidão, assim como da monotonia das suas próprias consciências, que são desocupadas. Para escapar da solidão, suportamos até má companhia e toleramos o fardo e o sentimento de restrição que toda sociedade necessariamente implica. Se, por outro lado, surge um desgosto disso tudo e, como consequência, surge o hábito da solidão e uma preparação contra a primeira impressão que produz, de modo que não produz os efeitos que descrevemos acima, então se pode tranquilamente estar sempre só e sem suspirar pela sociedade. Isso precisamente porque não é uma necessidade direta e porque, por outro lado, já estaremos acostumados às benéficas virtudes da solidão.
  3. No mesmo sentido, disse Saadi em o Gulistan: Desde então, abandonamos a sociedade e trilhamos o caminho do isolamento. Porque a segurança está na solidão.

[10] A inveja é natural aos homens; ao mesmo tempo, também é um vício e uma desgraça. [1] Devemos, pois, considerá-la como uma inimiga de nossa felicidade e tratar de afastá-la como um espírito maligno. Isso nos é recomendado por Sêneca nestas belas palavras: nostra nos sine comparatione delectent; nunquam erit felix quem torquebit felicior [contentemo-nos com o nosso, sem fazer comparações; nunca será feliz aquele a quem atormente que outro seja mais feliz que ele. (De ira, III. 30)], e em outra parte: quum adspexeris quot te antecedant, cogita quot sequantur [ao vermos quantos estão à nossa frente, pensemos em quantos estão para trás. (Epistulae, 15)]. Assim, devemos considerar mais frequentemente aqueles cuja condição é pior que aqueles cuja situação parece melhor que a nossa. Quando formos acometidos por desgraças reais, o consolo mais eficaz, ainda que derivado da mesma origem da inveja, será a contemplação de sofrimentos maiores que os nossos e, além disso, de ter com pessoas que se encontrem na mesma situação, com socii malorum [companheiros de infortúnio].

Isso no que concerne ao aspecto ativo da inveja. Em relação ao lado passivo, devemos lembrar que nenhum ódio é tão implacável como o da inveja. Assim, pois, devemos nos guardar de excitá-la constantemente; pelo contrário, faríamos melhor em renunciar a esse prazer, como a muitos outros prazeres, em vista de suas perigosas consequências.

Existem três tipos de aristocracia: (I) a do sangue e a da posição, (II) a do dinheiro e (III) a do talento. Essa última é, na verdade, a mais distinta, e se faz reconhecer como tal, desde que lhe seja concedido tempo. Até Frederico o Grande disse: les âmes privilégiées rangent à l’égal des souverains [as almas privilegiadas ocupam as hierarquias dos soberanos], e disse ao marechal da corte que se assombrava de que Voltaire fosse chamado a ocupar um posto em uma mesa reservada unicamente aos soberanos e aos príncipes de sangue, enquanto que ministros e generais comiam na mesa do marechal. Cada uma dessas aristocracias está rodeada de um exército de invejosos, secretamente rancorosos contra cada um de seus membros. Quando não estiverem acuados pelo medo, sempre se esforçarão em fazer-lhe entender de mil maneiras que não é melhor que eles. Porém esses esforços evidenciam precisamente sua convicção do contrário. O procedimento a ser seguido por aqueles que são vítimas de inveja consiste em manter certa distância de todos os invejosos, evitando ao máximo todo contado com eles, de modo que fiquem separados por um grande abismo. Quando isso não for possível, o melhor método é suportar seus ataques com grande compostura, pois aquilo que provoca os ataques também os neutraliza. Isso é algo cuja aplicação vemos constantemente. Em contrapartida, os membros de uma aristocracia, em geral, se entenderão muito bem com os membros das outras duas sem sentir inveja, e isso porque cada qual põe na balança suas vantagens e privilégios como equivalentes aos dos demais.

  1. A inveja dos homens demonstra como se sentem desgraçados. Sua constante atenção a tudo que os demais fazem ou deixam de fazer demonstra como são entediados.

[11] Deve-se meditar um projeto profundamente e em muitas ocasiões antes de pô-lo em prática; e ainda depois de havê-lo examinado detidamente, deve-se levar em conta a insuficiência de toda ciência humana. Sempre pode haver circunstâncias que não podemos analisar ou prever e que poderiam falsear o resultado de toda nossa especulação. Essa reflexão sempre afetará o lado negativo da balança, e nos inclinará, nos assuntos importantes, a não mover nada sem necessidade: quieta non movere [não mover o que está em repouso]. Porém, uma vez tomada a decisão e posta em andamento, quando tudo pode seguir seu curso e não temos mais que esperar o resultado, não devemos nos atormentar com constantes reflexões sobre o que se fez e com repetidas inquietações sobre o perigo possível. Pelo contrário, devemos despojar esse assunto do espírito e considerá-lo encerrado ao pensamento, tranquilizados pela convicção de havê-lo examinado com maturidade no momento oportuno. Isso é o que aconselha fazer também o provérbio italiano: legala bene, e poi lascia la andare, que Goethe traduz: du, sattle gut und reite getrost [sela bem, depois deixa correr]. Observe-se, de passagem, que muitas máximas que Goethe intitula Proverbiais são traduções do italiano. Entretanto, quando resulta em fracasso, isso é porque todas as coisas humanas estão sujeitas à mudança e ao erro. Sócrates, o mais sábio dos homens, necessitava de um demônio tutelar para ver a verdade, ou ao menos evitar os passos falsos em seus assuntos pessoais; e isso demonstra que nenhum intelecto está à altura dessa tarefa. Assim, pois, esta sentença, atribuída a um Papa, de que nós mesmos somos culpados, ao menos em parte, das desgraças que nos acontecem, não é absolutamente verdadeira em todos os casos, ainda que o seja em sua grande maioria. Esse sentimento é que faz com que os homens ocultem o máximo possível sua desgraça, e que tratem, enquanto puderem, de exibir uma expressão de satisfação. Temem que sua culpa possa ser inferida de sua desgraça.

[12] Em presença de um acontecimento desgraçado já ocorrido, no qual, por conseguinte, não se pode mudar nada, não devemos nos abandonar à ideia de que poderia ser de outro modo; menos ainda refletir sobre o que poderia ter sido feito para que fosse diferente. Porque isso simplesmente intensifica a dor até o ponto em que se torna insuportável, e assim nos tornamos ἑαυτοντιμορούμενος [aquele que atormenta a si próprio]. Pelo contrário, deveríamos seguir o exemplo do rei Davi que, durante a enfermidade de seu filho, assediava Jeová sem descanso com suas orações e suas súplicas; mas, quando seu filho morreu, estalou os dedos e nunca mais pensou nisso. Aquele que não é bastante leve de espírito para conduzir-se dessa maneira deve refugiar-se no fatalismo e convencer-se da verdade de que tudo que ocorre, ocorre necessariamente e, portanto, inevitavelmente.

Não obstante, essa regra só tem valor em um sentido. Em um caso de infortúnio, é útil para nos proporcionar alívio e consolo imediatos; porém, quando, como acontece muitas vezes, a culpa é de nossa própria negligência ou irreflexão, então a meditação repetida e dolorosa dos meios que poderiam ter impedido o acontecimento é uma autodisciplina saudável que nos serve como lição e aprendizado, isto é, para o futuro. Não devemos tentar desculpar, atenuar ou diminuir as faltas de que somos evidentemente responsáveis, mas confessá-las e trazê-las claramente ante nossos olhos em toda a sua extensão a fim de tomar a firme decisão de evitá-las futuramente. Temos, é verdade, de nos infligir o doloroso sentimento do descontentamento de si mesmos; entretanto, o homem não castigado, não aprende.

[13] Em tudo que concerne nossa felicidade ou nossa desgraça, devemos segurar firmemente as rédeas de nossa fantasia. Acima de tudo, convém não fazer castelos de vento, pois são muito custosos; imediatamente depois temos que demoli-los com muito pesar. Porém, devemos nos guardar ainda mais de nos atormentar e angustiar com a imaginação das desgraças que são meramente possíveis. Porque, caso essas fossem completamente infundadas ou muito improváveis, saberíamos imediatamente, ao despertarmos desse sonho, que tudo isso não era senão ilusão, e deveríamos, por conseguinte, nos alegrar pela realidade que resulta ser melhor, extraindo disso uma advertência contra desgraças muito remotas, ainda que possíveis. Entretanto, esse não é o tipo de coisa que cativa nossa imaginação; no máximo, só constrói reluzentes castelos de vento por pura diversão. O material para seus sonhos sombrios são desgraças que, mesmo remotas, de certo modo nos ameaçam efetivamente. Essa as aumenta, as transforma numa possibilidade muito mais iminente que a real, pintando-as com as cores mais terríveis. Ao despertar, não podemos sacudir esse sonho como o fazemos com um sonho agradável; porque esse último é refutado e desmentido sem demora pela realidade, e não deixa atrás de si mais que uma tênue esperança de realização. Em contrapartida, quando nos abandonamos aos blue devils, às ideias negras, nos aproximamos de imagens e figuras que não desvanecem tão facilmente; porque sempre existe a possibilidade de essas visões se concretizarem, apesar de nem sempre nos encontramos em condições de avaliar seu grau exato. A possibilidade se transforma prontamente em probabilidade, e nos tornamos vítimas da angústia e do desassossego. Portanto, devemos avaliar aquilo que diz respeito à nossa felicidade e à nossa desgraça com razão e juízo, isto é, com uma deliberação fria e desapaixonada; desse modo, devemos trabalhar apenas com conceitos e in abstracto. A imaginação deve ser deixada fora da questão, pois não tem competência para julgar. Pelo contrário, só pode apresentar imagens ou figuras que agitam nossa alma inutilmente, às vezes acarretando grandes dores. Essa regra deveria ser observada mais estritamente durante a noite; porque, assim como a escuridão nos torna medrosos e faz com que vejamos por todas as partes figuras terríveis, também a obscuridade ou confusão de ideias produz um efeito análogo, visto que toda incerteza produz o sentimento de insegurança. Por tal motivo, durante a noite, quando a fadiga envolve nosso entendimento e nossa capacidade de julgar num véu de obscuridade subjetiva, o intelecto encontra-se exausto e θορυβούμενος [conturbado], sendo incapaz de examinar as coisas a fundo. Assim sendo, quando os objetos de nossa meditação dizem respeito às nossas questões pessoais, tomam facilmente um aspecto ameaçador e se transformam em imagens aterrorizantes. Isso é mais comum à noite quando estamos em nossas camas; estando o espírito em repouso, o juízo não tem sua plena força de ação, porém a imaginação ainda está ativa. Pois a noite dá a todas as coisas uma coloração negra. Assim, pois, no momento de dormir ou quando despertamos na noite, nossos pensamentos nos fazem ver os objetos tão desfigurados e tão desnaturalizados quanto em sonho; ademais, quando dizem respeito a circunstâncias pessoais, normalmente são ainda mais negros e até aterrorizantes. Pela manhã, essas aparições terríveis desaparecem como sonhos, tal como diz o provérbio espanhol: noche tinta, blanco el dia. Porém, desde que começa a noite, tão logo a vela está acesa, a razão, assim como olho, vê menos claramente que durante o dia; por conseguinte, esse momento não é favorável às meditações sobre assuntos sérios, e principalmente sobre assuntos desagradáveis, para os quais a manhã é a hora favorável, como em geral para qualquer trabalho, sem exceção, seja intelectual ou físico. Porque a manhã é a juventude do dia; tudo é luminoso, fresco e fácil; sentimo-nos vigorosos e dispomos de todas as nossas faculdades. Não devemos abreviá-la levantando tarde, nem gastá-la em ocupações ou em conversas vulgares; pelo contrário, devemos considerá-la como a quintessência da vida e, por assim dizer, como algo sagrado. Em contrapartida, a tarde é a velhice do dia; estamos abatidos, falantes e atordoados. Cada dia é uma vida em miniatura, onde todo despertar é um pequeno nascimento, cada manhã fresca é uma pequena juventude e cada adormecer na noite é uma pequena morte. Para completar a analogia, poderíamos considerar o desconforto e a dificuldade de despertar como as dores do parto.

Porém, em geral, o estado de saúde, o sono, a alimentação, a temperatura, o clima, o ambiente e outras condições exteriores influenciam grandemente nossa disposição, e essa, por sua vez, nosso pensamento. Decorre que nossa maneira de considerar as coisas e mesmo nossa capacidade para produzir alguma obra estão sujeitas ao tempo e até ao lugar. Portanto,

Nehmt die gute Stimmung wahr,
Denn sie kommt so selten.

[aproveita a boa disposição, porque chega muito raramente. (Goethe, Generalbeichte)]

Não apenas temos de aguardar que as concepções objetivas e ideias originais venham quando convier que venham; senão que também a meditação profunda de uma questão pessoal nem sempre sucede numa hora fixa de antemão e no momento em que nos preparamos para analisá-la. Pelo contrário, ela mesma escolhe seu tempo, e só então se desenvolve espontaneamente a linha conveniente de pensamentos, que seguimos com todo o nosso interesse.

Refrear a imaginação, como recomendamos, também significa não permitir-lhe evocar a memória de injustiças sofridas, injúrias, perdas, insultos, ofensas, humilhações e assim por diante; porque com isso excitamos novamente nossa cólera e indignação dormentes, e todas as paixões odiosas que poluem nossa alma. Segundo uma bela parábola do neoplatônico Proclo, em toda cidade há, ao lado dos nobres e das pessoas distintas, o populacho mais ínfimo (ὄχλος); igualmente, em todo homem, ainda o mais nobre e mais elevado, se encontra, nas profundezas de sua natureza, uma plebe baixa e vulgar que faz dele um animal. Não se deve permitir que esse populacho se revolte ou suba às ventanas, porque seu aspecto é muito feio, e seus demagogos são essas produções da imaginação, de que falamos há pouco. Acrescentemos que a menor contrariedade, provinda dos homens ou das coisas, se nos ocupamos constantemente em ruminá-la e em representá-la com cores vivas e em uma escala exagerada, pode chegar a converter-se num monstro que nos deixa fora de si. Em vez disso, deveríamos adotar uma perspectiva prosaica e fria em relação a tudo que é desagradável, a fim de nos atormentarmos o mínimo possível.

Assim como objetos diminutos, postos muito perto do olho, restringem o campo de visão e ocultam o mundo, assim também os homens e as coisas de nossa vizinhança imediata, até os mais insignificantes e banais, ocuparão frequentemente nossa atenção e nossos pensamentos, deixando pouco espaço para as questões importantes. Devemos reagir contra essa tendência.

[14] Quando vemos algo que não possuímos, dizemos espontaneamente: ah, se isso fosse meu!, e esse pensamento torna a nossa privação penosa. Em vez disso, deveríamos dizer mais vezes: ah, se isso não fosse meu! Com isso quero dizer que deveríamos às vezes imaginar como os bens que possuímos pareceriam depois de havê-los perdido. E isso com os bens de todas as classes, sejam quais forem; riquezas, saúde, amigos, entes queridos, esposa, filhos, cavalos e cães. Porque, na maioria vezes, só a perda dessas coisas nos ensina seu valor. Por outro lado, o método que recomendamos aqui terá como primeiro resultado fazer com que sua posse nos torne imediatamente mais felizes que antes e, em segundo lugar, fará com que nos protejamos por todos os meios contra sua perda. Desse modo, não arriscaremos nossos bens, não irritaremos nossos amigos, não colocaremos à tentação a fidelidade de nossa esposa, cuidaremos da saúde de nossos filhos, e assim sucessivamente. Muitas vezes tentamos espantar o tom sombrio do presente com especulações sobre probabilidades favoráveis e nos imaginamos toda sorte de esperanças quiméricas. Cada uma delas está cheia de decepções que nunca deixam de chegar quando confrontadas com a dolorosa realidade. Mais valeria que escolhêssemos as más possibilidades como temas de nossas especulações. Pois isso nos levaria a tomar medidas preventivas para dissipá-las e nos proporcionaria, às vezes, agradáveis surpresas quando não se realizassem. Não estamos sempre mais alegres depois de sair de uma dificuldade? É até saudável imaginarmos certas grandes desgraças que podem eventualmente vir a ferir-nos, pois isso nos ajuda a suportar mais facilmente males menos graves quando vêm efetivamente nos acometer. Porque então nos consolamos com o pensamento sobre essas grandes desgraças que não se realizaram. Porém, ao praticar essa regra, devemos ter o cuidado de não esquecer a anterior.

[15] Os acontecimentos e os assuntos que nos dizem respeito ocorrem isoladamente, sem ordem e sem relação uns com os outros, no contraste mais chocante, e sem nada em comum exceto pelo fato de que nos dizem respeito. Resulta que, a fim de corresponder aos interesses que os provocaram, nossos pensamentos e cuidados nesse sentido tendem a ser igualmente abruptos. Desse modo, quando empreendemos uma coisa, devemos deixar de lado todo o mais e expulsar o assunto de nossas mentes, a fim de realizar cada coisa a seu tempo, desfrutá-la ou suportá-la, sem qualquer preocupação com o resto. Devemos, por assim dizer, colocar nossos pensamentos num gaveteiro, onde podemos trabalhar em uma enquanto as demais permanecem fechadas. Dessa maneira evitamos que o grande fardo da inquietude nos faça perder todo o prazer presente e toda a paz de espírito; aprendemos com isso que a consideração de uma coisa não suplanta a de outra, que a atenção a uma questão importante não implicará o desprezo de muitos assuntos pequenos, e assim por diante. Em particular, o homem que é capaz de pensamentos nobres e elevados não deve deixar que seu espírito seja completamente preenchido por assuntos pessoais e ocupado com banalidades que bloqueiam o caminho de tais pensamentos; pois isso realmente seria propter vitam vivendi perdere causas [pela vida perder as causas de viver]. Naturalmente, o autocontrole é necessário para isso, assim como para muitas outras coisas. Para tanto, devemos nos fortalecer pelo pensamento de que todos têm de suportar uma grande quantidade de um severo controle exterior, sem o qual a vida seria impossível. Não obstante, um pequeno autocontrole bem aplicado pode evitar posteriormente um grande controle exterior, assim como uma pequena seção de um círculo próxima do centro corresponde a outra cem vezes maior na periferia. Nada nos subtrai melhor ao controle do exterior que controlarmos a nós mesmos; isso é o que Sêneca diz: Si vis tibi omnia subjicere, te subjice rationi [se queres submeter todas as coisas a ti mesmo, te submete primeiro à razão. (Epistulae, 37)]. Ademais, esse controle sobre nós mesmos sempre está em nosso poder; e, em último caso, ou quando toca nosso ponto fraco, temos a escolha de afrouxá-la um pouco. O controle exterior, por outro lado, é ríspido e implacável, destituído de consideração ou compaixão. Por isso é prudente antecipá-lo por meio do autocontrole.

[16] Devemos limitar nossos desejos, refrear nossas ambições, dominar nossa cólera, lembrando continuamente que cada indivíduo nunca pode alcançar mais que uma parte infinitamente pequena do que lhe é desejável, e que em contrapartida males sem número hão de acometer cada qual. Dito de outro modo, abstinere et sustinere [abster-se e suportar] é uma regra que deve ser observada, do contrário nem a riqueza, nem o poder poderão evitar que nos sintamos miseráveis. A esse propósito, disse Horácio:

Inter cuncta leges, et percontabere doctos
Qua ratione queas traducere leniter aevum;
Ne te semper inops agitet vexetque cupido,
Ne pavor, et rerum mediocriter utilium spes.

[Sempre devemos observar as entrelinhas do que fazemos e perguntar aos sábios como passar a vida mais suavemente, para que não sejamos sempre agitados pelo desejo, pelo medo ou pelas esperanças das coisas meramente úteis. (Epistulae, I. 18. 95-9.)]

[17] Ὁ βίος ἐν τῆ κινήσει ἐστί (vita motu constat) [a vida está no movimento], disse Aristóteles, com razão. Do mesmo modo que nossa vida física consiste em um movimento incessante, assim também nossa vida interior e intelectual exige uma ocupação constante, uma ocupação em qualquer coisa, pela ação ou pelo pensamento. Isso é o que demonstra essa mania das pessoas desocupadas que não pensam em nada de se porem imediatamente a tamborilar com os dedos ou a brincar com o primeiro objeto que lhe vier à mão. Essa é a agitação que constitui a essência de nossa existência; uma inação completa se torna rapidamente insuportável, porque engendra o mais terrível tédio. Esse instinto deve ser moderado para que possa ser satisfeito de modo metódico e mais frutuoso. A atividade é essencial à felicidade, sendo preciso que o homem trabalhe, faça algo se lhe é possível ou ao menos aprenda alguma coisa. Suas forças exigem emprego e ele mesmo não trata mais que de ver-lhes produzir um resultado qualquer. Nesse particular, sua maior satisfação consiste em fazer algo, em confeccionar algo, seja um livro ou uma cesta; porém, o que dá felicidade imediata é ver, dia a dia, sua obra crescer sob suas mãos e vê-la chegar à sua perfeição. Uma obra de arte, um escrito ou um simples trabalho manual produzem esse efeito; naturalmente, quanto mais nobre é a natureza do trabalho, mais elevado é o prazer. Nesse respeito, os mais felizes são os homens de dotes superiores que se sentem capazes de produzir as obras mais importantes, mais vastas e elaboradas. Isso difunde em toda sua existência um interesse de ordem superior, comunicando-lhe um sabor que falta aos demais, de modo que a vida desses é insípida ao lado da sua. Para naturezas eminentes, a vida e o mundo têm um interesse especial que supera os interesses comuns do dia-a-dia, compartilhados por tantos; trata-se de algo mais elevado, um interesse formal, no qual se encontra o âmago de suas obras. Assim que sua parcela de misérias terrestres lhes dá um momento de repouso, ocupam-se ativamente em reunir esses materiais no curso de sua existência. Em certo sentido, sua inteligência é dupla; uma parte é para os assuntos corriqueiros (objetos da vontade), sendo similar para todos; a outra é para a concepção puramente objetiva da existência. Desse modo, suas vidas são duplas, visto que são simultaneamente espectadores e atores, enquanto os demais não são mais que atores. Não obstante, é preciso que todo homem se ocupe de algo, na medida de suas faculdades. Durante as longas viagens de recreação, vemos quão perniciosa é a ausência de atividade metódica ou trabalho. Em tais viagens nos sentimos miseráveis porque, privados de toda ocupação real, nos encontramos fora de nosso elemento natural. Os esforços e as lutas contra as dificuldades são naturais para o homem como cavar é natural para uma toupeira. A estagnação que resulta da satisfação completa de um prazer permanente lhe seria intolerável. O verdadeiro prazer de sua existência consiste em superar obstáculos, que podem ser de natureza material, como nos negócios e nos assuntos pessoais, ou de natureza espiritual, como nos estudos e nas investigações. A luta e a vitória fazem o homem feliz. Se lhe falta a oportunidade, esse a cria como puder; segundo o impulso de sua individualidade, caçará ou jogará boliche; ou, arrastado pela inclinação inconsciente de sua natureza, tecerá intrigas, maquinará enganos ou qualquer outra vileza, simplesmente para poder dar fim ao estado de imobilidade que não pode suportar. Difficilis in otio quies [difícil é a quietude no ócio].

[18] Não devemos tomar como guias dos nossos trabalhos as figuras da imaginação, mas conceitos claramente concebidos. Na maioria das vezes, ocorre o contrário. Num exame cuidadoso, verificamos que comumente nossas determinações vêm em último recurso não de conceitos e juízos, mas de figuras da imaginação que as representa e substitui. Em um romance de Voltaire ou Diderot — não me recordo qual —, o herói, colocado como um jovem Hércules na encruzilhada da vida, não consegue conceber outra representação da virtude que seu velho tutor, que tem na mão esquerda sua tabaqueira e na direita um punhado de tabaco e está moralizando; o vício, em contrapartida, sempre aparece sob a forma da camareira de sua mãe. Particularmente durante a juventude, o objetivo de nossa felicidade está sob a forma de certas imagens que se apresentam ante nós e que persistem muitas vezes durante a metade e às vezes durante a totalidade da vida. São como espíritos zombeteiros; pois, quando os alcançamos, desvanecem e vem a experiência a ensinar-nos que não cumprem nada do prometido. Desse gênero são as cenas particulares da vida doméstica, civil e social, as imagens de nossa habitação e de nossas cercanias, as insígnias honoríficas etc.; chaque fou a sa maratotte [cada louco tem sua mania]. Sucede o mesmo com a imagem da mulher amada. É muito natural que assim seja; pois, sendo algo imediato, a coisa percebida intuitivamente tem um efeito mais direto sobre nossa vontade que os conceitos ou o pensamento abstrato. Mas isso nos apresenta o universal sem o particular, e é exatamente o particular que contém a realidade. Portanto, o conceito só pode afetar nossa vontade indiretamente; não obstante, só o conceito cumpre a palavra; assim, pois, é um testemunho de cultura intelectual depositar somente nele toda nossa fé. Naturalmente, por vezes necessitará ser elucidado e parafraseado por meio de algumas imagens, só que cum grano salis [com um grão de sal, i.e. com sabedoria].

[19] A regra anterior pode ser vista como um caso particular desta outra máxima mais universal, de que não devemos nos deixar dominar pelas impressões daquilo que é presente ou por aparências externas. Comparada com o simples pensamento, essa impressão é incomparavelmente mais enérgica, não em virtude de sua matéria e de sua substância, que são com frequência muito limitadas, senão em virtude de sua forma, visibilidade e presença direta, que penetram o espírito, conturbam seu repouso ou lançam por terra suas resoluções. Porque o que é presente e percebido intuitivamente pode ser abarcado facilmente, trabalha sempre de uma só vez e com toda sua força. Pelo contrário, os pensamentos e as razões exigem tempo e tranquilidade para serem meditados; de modo que não podem estar a todo o momento plenamente presentes ao espírito. Por isso, o aspecto de uma coisa agradável nos atrai, mesmo que a tenhamos renunciado por meio de uma cuidadosa reflexão. De maneira análoga, nos sentimos incomodados por uma opinião cuja incompetência absoluta compreendemos; nos zangamos por uma ofensa que claramente não merece mais que desprezo; igualmente, dez razões contra a presença de um perigo são sobrepujadas pela falsa aparência de sua presença real. Nisso tudo vemos claramente a irracionalidade fundamental e primitiva de nossa verdadeira natureza. As mulheres com frequência sucumbem a tais impressões, e poucos homens têm uma razão bastante preponderante para não ter de sofrer seus efeitos. Quando não podemos dominar essa impressão por completo apenas com o pensamento, o melhor que podemos fazer é neutralizá-la com a impressão contrária; por exemplo, neutralizar a impressão de um insulto considerando as pessoas que nos estimam, a impressão de um perigo que nos ameace considerando os meios de evitá-lo. No Nouveaux essais, l. I, c. 2, § 11, Leibniz menciona um italiano que conseguiu resistir às torturas do ecúleo. Para isso, não permitiu que sua imaginação perdesse por um só momento a imagem do patíbulo, pois esse teria sido seu fim se houvesse confessado. Assim, gritava de quando em quando: io ti vedo [eu te vejo], palavras que explicou mais tarde dizendo ao que se referiam. Pela mesma razão, quando todos os que nos rodeiam são de uma opinião diferente da nossa e se comportam em função dela, é muito difícil não nos deixarmos dobrar, mesmo quando estamos convencidos de que estão errados. Para um rei fugitivo, perseguido e viajando estritamente incognito, a postura cerimonial e submissa adotada secretamente pelo seu companheiro e confidente quando estão a sós deve ser quase imprescindível para que não chegue a duvidar de sua própria existência.

[20] Depois de haver enfatizado, no segundo capítulo, o grande valor da saúde como condição primária e mais importante de nossa felicidade, quero indicar aqui algumas regras muito gerais de conduta para fortificá-la e conservá-la.

Para endurecer-se, é preciso, enquanto se desfruta de boa saúde, submeter o corpo, em seu conjunto como em cada uma de suas partes, a muitos esforços e cansaços, e habituar-se a resistir a toda espécie de influências adversas. Por outro lado, quando se manifesta um estado mórbido, seja no todo, seja numa de suas partes, deve-se recorrer imediatamente ao procedimento contrário, e cuidar de todas as maneiras do corpo ou de sua parte enferma; porque o que é delicado e débil não é passível de endurecimento.

Com um emprego vigoroso, os músculos se fortificam, porém os nervos se debilitam. Convém, pois, exercitar nossos músculos com todos os esforços convenientes, mas guardar disso os nossos nervos; por conseguinte, guardemos nossos olhos de toda luz demasiado viva, sobretudo quando é refletida, contra todo esforço à meia-luz e contra o exame prolongado de objetos demasiado pequenos. Preservemos igualmente nossos ouvidos dos ruídos demasiado fortes. Acima de tudo, não devemos expor o cérebro a esforços excessivos, demasiado prolongados ou intempestivos. Desse modo, devemos deixá-lo repousar durante a digestão; pois nesse momento essa mesma força vital que, no cérebro, forma o pensamento, trabalha com todas as suas forças no estômago e no intestino, preparando o quimo e o quilo. Pelo mesmo motivo, nunca devemos utilizar o cérebro durante, ou imediatamente após, um trabalho muscular vigoroso. Porque, nesse respeito, sucede o mesmo com os nervos motores que com os nervos sensoriais; e assim como a dor sentida num membro lesionado tem seu verdadeiro fundamento no cérebro, de igual modo não são as pernas e os braços os que caminham e trabalham, senão o cérebro, ou seja, a porção de cérebro que, por intermédio da medula oblonga e da medula espinhal, excita os nervos desses membros e os faz moverem-se. Por conseguinte, a fadiga que sentimos nos braços ou nas pernas tem seu fundamento real no cérebro; por esse motivo, os músculos que se cansam são aqueles cujo movimento é arbitrário e voluntário, ou seja, proveniente do cérebro, não os que trabalham involuntariamente, como o coração. Portanto, é certamente prejudicial ao cérebro exigirmos dele atividade muscular e intelectual enérgicas simultaneamente, ou depois de um curto intervalo. Isso não está em contradição com o fato de que ao começo de um passeio ou, em geral, durantes curtas marchas, sentimos uma atividade reforçada do espírito; pois ainda não houve fadiga das partes respectivas do cérebro. Por outro lado, essa ligeira atividade muscular, acelerando a respiração, auxilia o fluxo de sangue arterial melhor oxigenado ao cérebro. Porém devemos dar especialmente ao cérebro a quantidade de sono necessária para seu descanso; porque o sono é ao cérebro o que a corda é ao relógio. (Cf. O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, c. 19.) Essa quantidade deve variar de acordo com o desenvolvimento e a atividade do cérebro; não obstante, ir além disso seria desperdiçar tempo, porque o sono perde então em profundidade o que ganha em extensão. (Cf. O mundo como vontade e representação, vol. II, fim do cap. 19.) [1] Em geral, devemos compreender bem o fato de que nosso pensar não é outra coisa que a função orgânica do cérebro e, portanto, no que tange a atividade e o repouso, trabalha de uma maneira análoga a qualquer outra atividade orgânica. Um esforço excessivo estraga os olhos assim como o cérebro. Disse-se com razão que, assim como o estômago digere, o cérebro pensa. A ideia errônea de uma alma imaterial, simples, essencial e constantemente pensante — e, portanto, infatigável, como se estivesse alojada no cérebro e não tivesse necessidade de nada no mundo — tem levado muitos a condutas insensatas e ao embotamento de suas forças mentais. Por exemplo, Frederico o Grande certa vez tentou prescindir em absoluto do sono. Os professores de filosofia fariam bem em não encorajar tal noção, prejudicial até na prática, com sua filosofia ortodoxa para mulheres velhas que tenta se entender com o catecismo. Devemos aprender a considerar as forças intelectuais como funções absolutamente fisiológicas, a fim de saber dirigi-las adequadamente, economizá-las ou empregá-las, e lembrar que todo sofrimento, todo incômodo, toda desordem em qualquer parte do corpo afeta o espírito. Para nos convencermos dessa verdade, devemos ler Cabanis em Des rapports du physique et du moral de l’homme.

Por haverem negligenciado esse conselho, muitos espíritos nobres e muitos grandes sábios padeceram de demência em sua velhice, voltando a uma nova infância e chegando até à loucura. Por exemplo, os célebres poetas ingleses de nosso século, como Walter Scott, Wordsworth, Southey e muitos outros, se tornaram intelectualmente obtusos e incapacitados na sua velhice e ainda desde os sessenta anos; e o motivo dessa imbecilidade encontra-se no fato de que, seduzidos por honorários elevados, exerceram a literatura como um ofício, escrevendo por dinheiro. Isso os levou a esforços inaturais; todo aquele que coloca seu Pégaso no cabresto e apressa sua musa com o açoite terá de pagar por isso da mesma maneira que aquele que rendeu a Vênus um culto forçado. Suspeito que o próprio Kant tenha se entregado a um trabalho excessivo em seus últimos anos, quando já havia se tornado célebre, e com isso provocou uma segunda infância em que viveu seus quatro últimos anos. Por outro lado, os cavalheiros da Corte de Weimar, Goethe, Wieland, Knebel, mantiveram suas forças e atividades até uma idade muito avançada porque não escreviam por dinheiro. Ocorreu precisamente o mesmo com Voltaire.

Cada mês do ano tem uma influência particular sobre nossa saúde, sobre o estado geral de nosso corpo e mesmo de nosso espírito, uma influência que é direta, ou seja, independente do clima.

  1. O sono é uma porção de morte que tomamos antecipadamente, e por meio da qual recobramos e renovamos a vida exaurida durante o dia. Le sommeil est un emprunt fait à la mort [o sono é um prefácio feito à morte]. O sono pede emprestado da morte para conservar a vida; ou são os juros pagos provisoriamente à morte, que é o pagamento integral do capital. O reembolso total se exige em um prazo tanto maior quanto mais elevados são os juros e mais metodicamente se paga.
c) sobre a nossa conduta para com os demais

[21] Par andar pelo mundo é útil levar consigo uma ampla provisão de circunspeção e de indulgência; a primeira nos protege contra os prejuízos e as perdas, a segunda contra disputas e querelas.

Quem está obrigado a viver entre os homens não deve condenar qualquer indivíduo absolutamente, nem mesmo o pior, o mais desprezível ou o mais ridículo, visto que isso é algo já determinado e dado pela natureza. Pelo contrário, tal indivíduo deve ser aceito como algo inalterável que, em virtude de um princípio metafísico inalterável, deve ser tal como é. Nos casos difíceis, devemos nos lembrar das palavras de Goethe: é necessário que haja também dessa espécie. Se adotarmos outra postura, cometemos uma injustiça e desafiamos o outro a um combate de morte. Porque ninguém pode modificar sua verdadeira individualidade, isto é, seu caráter moral, suas faculdades intelectuais, seu temperamento, sua fisionomia etc. Assim, se condenamos seu ser sem reservas, não lhe restará outro recurso senão nos tratar como um inimigo mortal; pois não queremos reconhecer-lhe o direito de existir senão com a condição de chegar a ser distinto daquilo que é, inexoravelmente. Por isso, quando se quer viver entre os homens, devemos deixar cada qual existir e aceitá-lo com a individualidade que tiver, seja qual for; devemos nos preocupar unicamente em utilizá-la enquanto o permitirem sua natureza e seu caráter. Porém, não devemos esperar modificá-la ou condená-la pura e simplesmente pelo que é. Esse é o verdadeiro significado da máxima viva e deixe viver; não obstante, essa tarefa é difícil na mesma medida em que é correta, e afortunado aquele a quem se concede poder evitar para sempre certas individualidades. Para aprender a suportar os homens, devemos exercitar a paciência com os objetos inanimados que, em virtude de uma necessidade mecânica ou de qualquer outra necessidade física, contrariam obstinadamente nossas ações; temos para isso oportunidades todos os dias. Posteriormente, aprendemos a aplicar aos homens a paciência assim adquirida, e nos acostumamos ao pensamento de que eles também, sempre que são para nós um obstáculo, o são obrigatoriamente, em virtude de uma necessidade natural tão rigorosa como aquela em virtude da qual trabalham os objetos inanimados. E que, por conseguinte, é tão insensato indignar-se com sua conduta como zangar-se com uma pedra que venha a cair em nosso caminho. A respeito de muitos indivíduos, o mais prudente é dizer: empregarei em meu favor aquilo que não posso mudar.

[22] É surpreendente ver até que ponto se manifesta na conversa a homogeneidade ou a heterogeneidade de espírito e de caráter entre os homens; se faz perceptível na ocasião mais corriqueira. Mesmo se a conversa for sobre as coisas mais insignificantes, uma das duas naturezas essencialmente diferentes será mais ou menos incomodada por quase todas as frases proferidas pela outra; em certos casos, uma palavra chega a fazê-la encolerizar-se. Indivíduos de temperamentos similares, pelo contrário, sentem prontamente uma certa conformidade em tudo; e, no caso de uma grande semelhança, tal conformidade torna-se uma perfeita harmonia ou mesmo um uníssono. Assim se explica primeiramente por que os indivíduos muito vulgares são tão sociáveis e encontram tão facilmente excelente sociedade — o que denomina “pessoas boas e amáveis”. O contrário ocorre com os homens que não são vulgares; e serão tanto menos sociáveis quanto mais distintos forem; de tal modo que, às vezes, em seu isolamento, podem sentir uma verdadeira alegria em haver descoberto em outro indivíduo uma fibra qualquer, por insignificante que seja, da mesma natureza que a sua. Porque cada qual não pode ser para outro senão o que este outro é para ele. Como as águias, os espíritos realmente superiores fazem seus ninhos nas alturas, solitários. Isso explica, em segundo lugar, como os homens de disposição similar se reúnem tão prontamente como fossem atraídos magneticamente; as almas irmãs se saúdam desde longe. Isso pode ser observado com mais frequência entre as pessoas de sentimentos baixos ou de inteligência débil, porém apenas porque esses se chamam legião; enquanto que os bons e os nobres são e se chamam as naturezas raras. Assim, por exemplo, em alguma vasta associação, fundada com finalidades práticas, dois caras-de-pau se reconhecem mutuamente tão prontamente como se usassem um crachá, e se unem de imediato para tramar algum abuso ou alguma traição. Igualmente, suponhamos, per impossibile, uma sociedade numerosa, composta apenas de homens inteligentes e geniais, exceto por dois imbecis que também façam parte dela; esses dois se sentirão simpaticamente atraídos um pelo outro, e cada um deles se alegrará por ter encontrado ao menos um homem sensível e racional. É realmente notável testemunhar como dois homens, especialmente se foram moralmente e intelectualmente inferiores, se reconhecem à primeira vista, como anseiam profundamente unirem-se, com que amor e alegria se apressam em saudar um ao outro, como se fossem velhos amigos. Isso é tão surpreendente que nos sentimos tentados a admitir, segundo a doutrina budista da metempsicose, que já haviam sido amigos em uma vida anterior.

Não obstante, ainda no caso de grande concordância e harmonia, aquilo que mantém os homens separados e produz entre eles um desacordo temporário é a diversidade de sua disposição no momento. Em todos isso é quase invariavelmente distinto, segundo sua circunstância presente, ocupação, ambiente, estado físico, corrente atual de suas ideias etc. Isso é o que produz dissonâncias entre as personalidades mais harmoniosas. Trabalhar constantemente na correção necessária para a remoção dessa moléstia e estabelecer uma temperatura ambiente uniforme seria a conquista da cultura mais elevada. Aquilo que a uniformidade de disposição pode realizar pela comunhão social pode ser visto no fato de que os membros de uma reunião, ainda que numerosa, são levados a uma viva comunicação e a um sincero interesse com um sentimento geral de prazer assim que algo objetivo os influencia todos simultaneamente e da mesma forma, seja isso um perigo, uma esperança, uma notícia, um raro espetáculo, uma peça, uma música ou outra coisa qualquer. Porque, ao sobrepujar todos os interesses particulares, isso faz nascer a uniformidade geral de disposição. Na falta de tal influência objetiva, em regra recorre-se a qualquer meio subjetivo; desse modo, garrafas de vinhos normalmente são o meio de introduzir numa reunião uma disposição comum. Até o chá e o café sevem ao mesmo propósito.

Porém, esse mesmo desacordo, introduzido tão facilmente em qualquer reunião pela diversidade de humor momentânea, também explica parcialmente por que todos aparecem idealizados e às vezes até transfigurados na memória quando não se está sob o domínio dessa influência perturbadora temporária. A memória age como a lente convexa de uma camera obscura; reduz todas as dimensões e, assim, produz uma imagem muito mais bela que a original. Cada ausência nos proporciona, em certo grau, a vantagem de sermos vistos sob esse aspecto. Pois, ainda que a idealização da memória exija um tempo considerável para realizar seu trabalho, sua ação começa imediatamente. Por isso, é até prudente nos apresentarmos aos nossos amigos e conhecidos apenas após um longo intervalo de tempo; pois então, ao vê-los novamente, notaremos que a memória já fez seu trabalho.

[23] Ninguém pode ver acima de si mesmo; quero dizer com isso que todos veem nos demais apenas aquilo se é em si mesmo; porque cada qual não pode apreender e compreender o outro senão na medida de sua própria inteligência. Se essa é da espécie mais ínfima, nenhum dote intelectual, nem mesmo o mais elevado, lhe impressionará de modo algum; e não observará naquele que o possui nada além dos elementos mais vis em sua natureza individual, isto é, apenas suas fraquezas e todos os seus defeitos de temperamento e de caráter. E disso estará composto o grande homem aos olhos do homem vulgar; suas faculdades intelectuais mais eminentes não existem para o outro, como não existem as cores para o cego. Isso porque o maior talento é invisível para aquele que não possui nenhum; e qualquer valor concedido a uma obra é o produto do valor da obra em si e do alcance do conhecimento daquele que profere sua opinião. Daí resulta que somos reduzidos ao nível de todos aqueles com quem falamos, visto que todas as vantagens que possuímos desaparecem, e mesmo a abnegação de si mesmo necessária para tal permanece completamente ignorada. Se refletirmos sobre quão profundamente vulgares e inferiores, sobre quão completamente medíocres são as pessoas em sua maioria, veremos que é impossível falar com elas sem nos tornamos igualmente medíocres durante esse intervalo (por analogia com a transmissão da eletricidade). Se compreenderá então o significado próprio e a verdade desta expressão alemã: sich gemein machen [parear-se com o companheiro]; e de bom grado evitaremos a companhia daqueles com os quais não podemos nos comunicar senão mediante a partie honteuse [a parte vergonhosa] de nossa natureza. Se compreenderá igualmente que, na presença de tolos e de insensatos, não há mais que uma maneira de demonstrar inteligência: não lhes dirigir a palavra. Porém, é verdade que muitos na sociedade poderão se sentir como um dançarino que foi a um baile onde não há senão aleijados; com quem dançará?

[24] Concedo toda a minha consideração — como a um eleito entre cem — àquele que, estando desocupado, porque espera algo, não se põe imediatamente a golpear ou a batucar com a primeira coisa que lhe vem às mãos, seja com sua bengala, com seu garfo e faca ou com qualquer outro objeto. É provável que esse homem esteja pensando em algo. Por outro lado, é evidente que em muitas pessoas o observar substitui completamente o pensar. Tratam de assegurar sua existência fazendo barulho, a não ser que tenham um cigarro em mãos, que lhes serve ao mesmo propósito. Pela mesma razão, são todos olhos, todos ouvidos para tudo o que passa ao seu redor.

[25] La Rochefoucauld observou muito exatamente que é difícil sentir simultaneamente grande estima e grande afeição por alguém. Assim, devemos escolher entre conquistar o afeto ou o respeito das pessoas. Sua afeição é sempre egoísta, ainda que por motivos diversos; ademais, as condições em que se adquire essa afeição nem sempre são motivo para nos orgulharmos. Antes de tudo, um homem será estimado na medida em que limite suas pretensões à boa vontade e à inteligência dos demais, e isso sinceramente, sem dissimulação — não apenas em virtude de uma indulgência que, no fundo, é uma espécie de desprezo. Isso traz à lembrança uma sentença bem verdadeira de Helvécio: le degré d’esprit nécessaire pour nous plaire, est une mesure assez exacte du degré d’esprit que nous avons [o grau de talento necessário para nos agradar é uma medida bastante exata do grau de talento que temos]; partindo dessas premissas, fica fácil chegar à conclusão. Por outro lado, sucede o contrário quando se trata da estima dos indivíduos; não os fazemos confessá-la senão contra sua vontade, e por esse motivo é frequentemente ocultada. Por isso, comparada com a afeição, a estima nos proporciona uma satisfação interior muito maior; está em relação com nosso valor pessoal, e o mesmo não vale diretamente para a afeição, que é subjetiva em sua natureza, enquanto que a estima é objetiva. Porém, naturalmente, a afeição nos é mais útil.

[26] A maioria dos homens é tão pessoal que, no fundo, nada tem interesse aos seus olhos senão eles próprios exclusivamente. Daí resulta que, de qualquer coisa que se fale, pensam imediatamente em si mesmos, e que tudo aquilo que, ainda que seja por acaso e remotamente, se refira a algo que lhes afeta, atrai e cativa toda a sua atenção. Por tal motivo, não têm liberdade para penetrar na parte objetiva da conversa e, igualmente, não há razões válidas para eles desde o momento em que contrariem seu interesse ou sua vaidade. Assim, pois, se distraem com tanta facilidade, se ofendem ou se afligem tão prontamente que, ainda quando se fala com eles de um ponto de vista objetivo sobre qualquer matéria, não devemos poupar precauções em evitar no discurso tudo que possa ter uma relação possível, talvez incômoda, com o precioso e delicado eu que temos diante de nós. Nada lhes interessa mais que esse eu; e ainda que não possam sentir ou compreender o que há de verdadeiro e de notável ou de belo, de delicado e de genial nas palavras do outro, possuem a mais melindrosa sensibilidade para tudo aquilo que possa, mesmo remota e indiretamente, afetar sua mesquinha vaidade ou referir-se desvantajosamente, de qualquer maneira que seja, ao seu amável eu. Por sua suscetibilidade, se parecem a esses cachorrinhos em cuja pata é tão fácil pisar por descuido e cujos grunhidos temos de suportar depois; ou bem a um enfermo coberto de chagas e de bolhas que devemos evitar tocar com todo o cuidado. Há os que levam isso tão longe que quando se lhes revela inteligência ou entendimento, ou quando esses não são suficientemente ocultados durante uma conversa, os sentem como um verdadeiro insulto; ainda que o dissimulem num primeiro momento. Porém, depois, aquele que carece de experiência de vida reflete e rumina em vão sobre a questão, perguntando-se como pôde ter atraído seu rancor e seu ódio. Porém, em virtude da mesma subjetividade, é também muito fácil adulá-los e conquistá-los. Por conseguinte, seu julgamento é quase sempre corrompido, e não passa de um decreto a favor de seu partido ou de sua classe, e não de algo objetivo e imparcial. Isso provém de que neles a vontade excede em muito a inteligência e de que seu débil entendimento está completamente sujeito ao serviço da vontade, da qual não pode libertar-se por um momento sequer.

A astrologia fornece uma prova esplêndida da desprezível subjetividade dos homens, que faz referirem tudo a si e, partindo de qualquer ideia, retornar, imediatamente e em linha reta, até sua pessoa. A astrologia relaciona o percurso dos corpos celestes ao miserável eu; e também estabelece uma conexão entre os cometas no céu e as querelas e misérias na terra. Sempre foi assim, mesmo nas épocas mais remotas. (cf., por exemplo, Estobeu, Eclogae, l. I, c. 22, § 9, p. 478.)

[27] Quando algum absurdo é dito em público ou na sociedade, impresso em livros e bem acolhido, ou ao menos não é refutado, não devemos nos desesperar, pensando que ficará eternamente consolidado. Pelo contrário, para nosso consolo, pensemos que mais tarde a questão será gradualmente ruminada e elucidada, será meditada, examinada, discutida e, por fim, na maioria das vezes, julgada com justiça. Assim, depois de um transcurso de tempo, variável em razão direta da dificuldade do assunto, quase todos acabarão por compreender aquilo que o espírito lúcido havia enxergado à primeira vista. É verdade que, nesse ínterim, deve-se ter paciência. Porque um homem de juízo justo entre pessoas que estão no erro é semelhante àquele cujo relógio marca a hora certa em uma cidade onde todos os relógios andam desregulados. Apenas ele sabe a hora exata, mas que importa isso? Todos se guiam por relógios que marcam a hora errada; inclusive os que sabem que só o relógio do primeiro mostra a hora correta.

[28] Os homens se parecem com crianças que adquirem maus hábitos quando mimadas; assim, não devemos ser muito indulgentes nem muito amáveis para com ninguém. Em regra, não perderemos um amigo por haver-lhe negado um empréstimo de dinheiro, mas isso poderia ocorrer facilmente caso o concedêssemos. Igualmente, não perderemos um amigo por uma postura orgulhosa e um pouco de negligência, mas não raro ocorre o oposto quando demonstramos um excesso de amabilidade e cortesia, pois isso o torna arrogante e insuportável, e a ruptura não tarde em produzir-se. O que os homens não podem suportar, sobretudo, é ideia de quem alguém necessite deles; segue-se inevitavelmente a arrogância e a insolência. Há algumas pessoas que de fato tornam-se rudes quando entramos em qualquer tipo de relação com elas; por exemplo, ao se conversar sobre assuntos confidenciais frequentemente. Logo imaginam que podem tomar certas liberdades, e tratarão de transgredir os limites da cortesia. Por isso há tão poucos indivíduos que podemos tratar com mais intimidade, e também por isso devemos nos guardar especialmente de qualquer familiaridade com naturezas vulgares. Se um indivíduo dessa classe imagina que tenho muito mais necessidade dele que ele tem necessidade de mim, então experimentará subitamente o sentimento de que lhe roubamos algo; tratará de vingar-se e de reaver sua propriedade. A superioridade em nossas relações com os homens resulta exclusivamente do fato de não necessitarmos deles e de deixarmos isso bem claro. Por tal motivo, é prudente que ocasionalmente façamos todos sentirem, homens e mulheres, que podemos muito bem prescindir deles. Isso fortalece a amizade; na verdade, não haverá problema se, por vezes, deixarmos que se introduza em nossa atitude para com a maioria deles uma partícula de desprezo. Com isso concederão mais valor à nossa amizade: chi non istima vien stimato [quem não estima se faz estimar], disse muito bem um provérbio italiano. Porém, se alguém realmente tem valor segundo nosso juízo, devemos esconder isso dele como se fosse um crime. Ainda que isso não seja exatamente gratificante, em todo caso é certo. Se nem os cães podem suportar demasiada gentileza, que dirão os homens.

[29] É comum que as pessoas de espécie mais nobre e dotadas de faculdades mais eminentes relevem, principalmente em sua juventude, uma surpreendente falta de conhecimento dos homens e de sabedoria de vida, e que assim se deixem facilmente enganar ou extraviar. As naturezas vulgares, por outro lado, sabem muito melhor e mais prontamente sair do apuro do mundo. A razão disso é que, sem experiência, temos de julgar a priori, e que em geral nenhum julgamento a priori está no mesmo nível da experiência. Assim, nas pessoas de natureza vulgar, esse a priori equivale ao seu próprio ponto de vista egocêntrico; mas não ocorre o mesmo com as pessoas de natureza nobre e distinta. Pois é precisamente nisso que se distinguem do resto; e como calculam os pensamentos e ações dos demais de acordo com os seus próprios, o cálculo resulta falso.

Porém, ainda quando um indivíduo nobre houver aprendido a posteriori, isto é, pelas lições de outros e por sua própria experiência, o que deve esperar dos homens, e tiver, portanto, compreendido que cinco sextos deles são constituídos, no moral como no intelectual, de tal forma que aquele que não se vê obrigado pelas circunstâncias a pôr-se em relação com eles faz melhor em evitá-los desde logo e subtrair-se o máximo possível do contato — ainda assim esse indivíduo dificilmente terá alcançado uma noção adequada de sua natureza mesquinha e desprezível. Pelo contrário, durante toda a sua vida, sempre terá de ampliar e completar essa noção, mas até então estará sujeito a muitos erros de cálculo em seu próprio detrimento. Ademais, ainda que munido dos ensinamentos adquiridos, lhe ocorrerá às vezes que, encontrando-se em companhia de pessoas a quem todavia não conhece, se maravilha ao vê-las todas aparentar em suas conversas e modos serem racionais, honestas, sinceras, virtuosas e honradas, e talvez inteligentes e geniais também. Porém, isso não deveria incomodar-lhe, pois provém simplesmente de que a natureza não age como os maus poetas que, quando têm de apresentar um picareta ou um tolo, se enganam quanto a ele tão grosseiramente e com uma determinação tão acentuada que se vê assomar-se, por assim dizer, detrás de cada um desses personagens um autor desautorizando constantemente seus sentimentos e suas palavras, e dizendo em voz alta num tom de advertência: Este é um estúpido; esse outro, um imbecil; não dê ouvidos ao que dizem. A natureza, pelo contrário, trabalha à maneira de Shakespeare e de Goethe, em cujas obras cada personagem, ainda que seja o próprio diabo, enquanto está em cena, fala como deve falar. É interpretado de uma maneira tão objetiva que nos atrai e nos obriga a tomar parte em seus interesses. Pois tais personagens, à semelhança das criações da natureza, são desenvolvidos a partir de um princípio interior em virtude do qual seus discursos e atos parecem naturais e, portanto, necessários. Aquele que espera ver o diabo andar pelo mundo com chifres e os loucos em camisas de força sempre será vítima ou joguete deles. Ademais, há o fato de que, em suas relações, as pessoas agem como a lua e os corcovados, isto é, nos revelam apenas uma face. Na verdade, todos têm um talento inato para fazer de sua fisionomia uma máscara por meio da mímica. Isso os representa exatamente como deveriam ser, e como esse disfarce é cortado exclusivamente na medida de sua natureza individual, se adapta e se ajusta tão bem que a ilusão é completa. Cada qual põe a máscara sempre que a questão é serem bem acolhidos. Não se deve tampouco confiar nele mais que em seu disfarce de pele lustrada, lembrando o excelente provérbio italiano: non è tristo cane che non meni la coda [na há cão tão desgraçado que não abane a cauda].

Guardemo-nos, em todo caso, de formar uma opinião muito favorável de um homem a quem acabamos de conhecer, do contrário, na maioria dos casos, nos sentiríamos desiludidos com tamanha confusão de nossa parte, e talvez em nosso detrimento. As palavras de Sêneca também são dignas de nota: argumenta morum ex minimis quoque licet capere [o homem demonstra seu caráter no modo como lida com banalidades (Epistulae, 52)]. Precisamente nas coisas pequenas, em que o homem baixa sua guarda, revela-se seu caráter; isso servirá como uma boa oportunidade para observarmos o egoísmo ilimitado da natureza humana e sua completa falta de consideração para com os demais; e se tais defeitos se revelam em coisas pequenas, ou simplesmente em seu comportamento geral, veremos que também acompanham seus atos em questões importantes, mesmo que se dissimule. Nunca devemos perder tais oportunidades. Quando, nos pequenos acontecimentos e circunstâncias da vida cotidiana, nas coisas às quais se aplica o de minimis lex non curat [a lei não cuida das coisas ínfimas], um homem se mostra inconsequente, buscando exclusivamente sua própria vantagem e conveniência em detrimento dos demais; quando se apropria daquilo que existe para servir a todos; podemos estar certos de que não há justiça em seu coração, e que seria um picareta mesmo em grande escala se suas mãos não estivessem atadas pela lei e pela autoridade; não devemos permitir que tal homem cruze nossos umbrais. De fato, todo aquele que viola sem escrúpulos as leis de seu próprio círculo também violará as leis do Estado enquanto puder fazê-lo sem perigo [1].

Perdoar e esquecer são o equivalente a jogar pela janela experiências adquiridas com muita dificuldade. Quando um homem com quem estamos em relações mais ou menos íntimas faz algo que nos desagrada ou nos molesta, nos perguntemos se tem ou não bastante valor, em nosso juízo, para que aceitemos de sua parte, uma segunda vez e em ocasiões cada vez mais repetidas, um tratamento semelhante ou ainda mais acentuado. Em caso afirmativo, não há muito a ser dito, pois falar não serviria de nada. Temos, então, de deixar a questão passar, com ou sem represália; porém, devemos ter em mente que, dessa maneira, nos sujeitamos à repetição do problema. Se, pelo contrário, não nos tem qualquer valor, devemos romper imediatamente e para sempre as relações com o querido amigo, e, se for um empregado, despedi-lo. Porque, numa próxima ocasião, fará inevitavelmente e exatamente o mesmo, ou algo completamente análogo, ainda quando neste momento nos jurasse o contrário, em voz alta e com sinceridade. Pode-se esquecer tudo, absolutamente tudo, exceto a si mesmo, exceto sua verdadeira natureza. O caráter é absolutamente incorrigível porque todas as ações humanas partem de um princípio íntimo, em virtude do qual um homem, em circunstâncias similares, deve agir sempre da mesma maneira e não pode agir de modo diverso. Recomendo aqui a leitura cuidadosa de meu ensaio premiado sobre o livre-arbítrio, cujo estudo dissipará quaisquer ilusões que o leitor tenha sobre o assunto. Assim sendo, reconciliar-se com um amigo com o qual se havia rompido é uma fraqueza que terá de ser paga quando esse, na primeira ocasião propícia, volta a fazer exatamente o mesmo que havia produzido a ruptura; e o fará novamente com algo mais de audácia e segurança, porque tem a secreta consciência de ser indispensável. Isso se aplica igualmente aos empregados despedidos que retornam ao serviço. Pelos mesmos motivos, não devemos esperar que um homem, em circunstâncias distintas, se porte da mesma maneira. Pelo contrário, a disposição e a conduta dos homens mudam tão prontamente como seu interesse; as instruções que os movem emitem suas letras de câmbio a vista tão breve que seria necessário ter a vista mais curta ainda para deixá-las passar sem protesto.

Suponhamos agora que pudéssemos saber como agirá uma pessoa em uma situação em que desejamos colocá-la; para isso não deveremos confiar em suas promessas e suas alegações. Porque, ainda supondo que fale sinceramente, nem por isso deixa de falar uma coisa que ignora. Portanto, devemos avaliar qual será sua ação considerando apenas as circunstâncias nas quais se encontrará e do conflito dessas com o seu caráter.

Se quisermos alcançar uma compreensão nítida e profunda — e isso é muito necessário — da verdadeira e triste condição dos homens, será muito instrutivo encarar o modo como agem na literatura como um comentário sobre sua conduta na vida prática, e vice versa. Isso é muito útil para evitarmos ideias errôneas sobre nós próprios ou sobre os demais. Porém nenhum traço de vileza ou estupidez que encontremos, seja na vida ou na literatura, deve ser matéria para nos irritar ou incomodar, mas unicamente para instruir-nos na medida em que nos apresente um complemento do caráter da espécie humana, que será bom não esquecermos. Dessa maneira, examinaremos o assunto como o mineralogista considera um exemplar bem característico de um mineral que lhe chega às mãos. Há exceções, naturalmente, e é difícil compreender como essas surgem e como se manifestam as imensas diferenças entre os indivíduos; porém, em vista do todo, como há muito tempo já se disse, o mundo é mau. Os selvagens devoram uns aos outros e os civilizados se enganam mutuamente; e isso é o que se denomina a marcha do mundo. O que são os Estados, com seus engenhosos mecanismos em questões interiores e estrangeiras, e com suas medidas violentas — o que são senão precauções para trazer limites à ilimitada iniquidade dos homens? Não vemos em toda a história como cada rei, quando se consolidou firmemente e seu país desfruta de alguma prosperidade, aproveita-se para cair com seu exército, como um bando de facínoras, sobre os Estados vizinhos? Não são no fundo todas as guerras atos de bandidagem? Na remota Antiguidade e em certo grau na Idade Média, os vencidos se tornavam escravos dos vencedores, ou seja, no fundo, isso equivale a dizer que tinham de trabalhar para eles. Porém, o mesmo tem de ser feito por aqueles que pagam tributos de guerra; sacrificam o produto de seu trabalho anterior. Dans toutes les guerres il ne s’agit que de voler [em todas as guerras não se trata mais que de roubar], escreveu Voltaire, e o alemães deveriam lembrar-se disso.

  1. Se nos homens, tais como o são em sua maioria, o bom excede o mau, seria mais sensato valer-se de sua justiça, de sua equidade, de sua fidelidade, de seu afeto ou de sua caridade que de seu temor. Porém, como sucede o oposto, o contrário é o mais sensato.

[30] Nenhum caráter é tal que se possa abandoná-lo a si mesmo e deixar-se guiar por completo; todos necessitam ser norteados por opiniões e máximas. Porém, levando as coisas ao extremo, se quiséssemos fazer do caráter não o resultado da natureza inata, mas unicamente o produto de uma deliberação racional, por conseguinte, um caráter integralmente adquirido e artificial, logo veríamos confirmadas as palavras de Horácio:

Naturam expellas furca, tamen usque recurret.

[em vão desterras o natural, outra vez voltará. (Epistulae, I. 10., 24.)]

Como efeito, se poderá compreender facilmente, e mesmo descobrir e formular admiravelmente uma regra de conduta para os demais; não obstante, na vida real, pecaremos desde o princípio contra ela. Entretanto, não devemos ser desencorajados por isso e acreditar que seja impossível guiar nossa conduta de vida segundo regras e máximas abstratas, e que valha mais, por conseguinte, deixar-se levar com indiferença. Pelo contrário, sucede o mesmo com as regras e instruções teóricas que com as práticas; compreender a regra é uma coisa e aprender a aplicá-la é outra. A primeira se adquire de um só golpe por meio da inteligência; a segunda, pouco a pouco, pelo exercício. Ensinamos aos discípulos as várias notas de um instrumento ou as diferentes posições e ataques da esgrima; quando esse comete um erro, algo inevitável, mesmo com a melhor intenção, imagina que é absolutamente impossível observar essas regras na rapidez da leitura musical ou no ardor do combate. Não obstante, pouco a pouco, titubeando, caindo e levando-se, o exercício acaba por ensiná-las. O mesmo ocorre com as regras de gramática, quando se aprende a ler e a escrever o latim. Não é de outro modo que o grosseiro se torna cortesão, o cérebro obtuso se torna um homem distinto do grande mundo, o homem franco se torna reticente ou um nobre se torna sarcástico. Entretanto, essa educação de si mesmo, adquirida por um costume prolongado, trabalhará sempre como um esforço vindo do exterior, ao qual a natureza nunca cessa de opor-se e que às vezes chega a extravasar inoportunamente. Porque toda conduta que tem por modelos máximas abstratas se refere a uma conduta movida pela inclinação primitiva e inata, como um mecanismo feito pela mão do homem, um relógio, por exemplo, em que a forma e o movimento se impõem a uma substância que lhes é estranha, se refere a um organismo vivo, no qual a forma e a substância se penetram mutuamente e se identificam. A afirmação do imperador Napoleão é, portanto, confirmada por essa relação entre o caráter adquirido e o inato. Diz que tout ce qui n’est pas naturel est imparfait [tudo que não é natural é imperfeito]. Em geral, essa regra se aplica a tudo, seja na esfera física ou moral; a única exceção que me ocorre é a aventurina natural, uma substância conhecida pelos mineralogistas, que não se compara à sua forma artificial.

Assim, pois, guardemo-nos de toda e qualquer afetação. Essa sempre provoca o desdém; primeiramente, é um engano, e como tal uma covardia, porque se baseia no medo; ademais, implica condenação de si mesmo por si mesmo, visto que tentamos aparentar o que não somos e, portanto, que nos consideramos melhores do que somos. O fato de fingir uma qualidade, de vangloriar-se dela, é uma confissão de não possuí-la. Quando uma pessoa se gaba de qualquer coisa, seja coragem, instrução, inteligência, gênio, sucesso com as mulheres, posições sociais, se poderá deduzir que é precisamente nesse particular que lhe falta algo. Porque aquele que possui real e completamente uma qualidade não pensa em ostentá-la nem em fingi-la, visto que está perfeitamente tranquilo quanto a isso. Esse é também o sentido do provérbio espanhol: herradura que chacolotea, clavo que le falta [ferradura que chacoalha, prego que lhe falta]. Como temos dito, naturalmente nenhum homem deveria soltar as rédeas e revelar-se plenamente como é, visto que há muitos elementos maus e bestiais de nossa natureza que precisam ser ocultados. Porém isso justifica apenas um ato negativo, a dissimulação, não algo positivo, a simulação. Devemos saber também que se reconhece a afetação em um indivíduo ainda antes de se perceber claramente o que de fato finge. Por fim, isso não pode durar muito e o disfarce acabará por cair um dia. Nemo potest personam diu ferre fictam: ficta cito in naturam suam recidunt [nada pode levar muito tempo o disfarce; tudo que está disfarçado volta rapidamente à sua natureza. (Sêneca, De Clementia, l. I, c. I)].

[31] O homem suporta o peso de seu próprio corpo sem senti-lo, porém sente aquele de todo corpo estranho que quiser mover. Do mesmo modo, só percebe os defeitos e os vícios dos demais, não os próprios. Em vez disso, cada qual possui no outro um espelho no qual pode ver com clareza seus próprios vícios, seus defeitos, seus modos grosseiros e repugnantes de toda espécie. Porém, normalmente, é como o cão que late para sua própria imagem porque não sabe que está vendo a si próprio, mas imagina ver outro cão. Quem encontra defeitos nos demais trabalha em sua própria reforma. Assim, aqueles que têm a tendência e cultivam em segredo o hábito de submeter a uma crítica atenta e severa a conduta dos homens em geral, tudo o que fazem ou não fazem, estão trabalhando em sua própria correção e aperfeiçoamento. Porque terão bastante justiça ou ao menos bastante orgulho e vaidade para evitar fazer o que tantas vezes têm censurado tão severamente. O contrário vale para os que são tolerantes; a saber, hanc veniam petimusque damusque vicissim [é um privilégio que reclamo e que concedo reciprocamente (Horácio, Ars poetica, II)]. O Evangelho moraliza admiravelmente sobre os que veem a palha no olho do vizinho e não veem a viga no seu; porém a natureza do olho consiste em ver o exterior e não a si próprio. Por isso, notar e censurar os defeitos dos demais é um meio adequado para nos tornamos conscientes dos nossos próprios. Precisamos de um espelho para nos corrigirmos.

Essa regra também se aplica em relação ao estilo e à maneira de escrever. Todo aquele que nessas matérias admira uma nova loucura, em vez de censurá-la, acaba por imitá-la. Daí a razão de na Alemanha essas classes de loucura se propagarem tão prontamente; os alemães são muito tolerantes, nota-se. Seu refrão é hanc veniam petimusque damusque vicissim.

[32] Durante sua juventude, o homem de natureza nobre acredita que as relações essenciais e decisivas, as que criam os verdadeiros laços entre os homens, são de natureza ideal, isto é, estão fundadas na conformidade de disposição, modo de pensar, gosto, inteligência etc. Entretanto, posteriormente, descobre que são as reais, isto é, que se fundamentam em algum interesse material. Esse é o fundamento de quase todas as relações; na verdade, a maioria dos homens ignora totalmente a existência de outra. Por conseguinte, cada qual é considerado em razão de seu cargo, de sua profissão, de seu país ou de sua família ou em geral segundo a posição e o papel que lhes tiver sido concedido pela convenção. Desse modo, as pessoas são rotuladas e tratadas como produtos de fábrica. Pelo contrário, o que um homem é em si e por si, como homem, em virtude de suas qualidades pessoais, não é mencionado senão casualmente, como exceção. É algo deixado de lado e ignorado por todos sempre que convém e, portanto, na maioria dos casos. Quanto mais valor um homem tem nesse respeito, menos poderão convir-lhe essas classificações convencionais, e tratará de retirar-se da esfera à qual se aplicam. Não obstante, essa maneira de proceder deve-se ao fato de que neste mundo, onde reinam a miséria e a indigência, os recursos que servem para erradicá-las são o essencial e necessariamente predominante.

[33] Do mesmo modo que o papel moeda circula em vez de prata, assim também, em lugar do apreço e da amizade verdadeiros, circulam as suas demonstrações e suas aparências exteriores, imitadas o mais naturalmente possível. Por outro lado, é verdade que se poderia perguntar se há verdadeiramente pessoas que mereçam o apreço e a amizade sinceros. Seja como for, tenho mais confiança em um cão leal abanando a cauda que em uma centena desses gestos e demonstrações.

A verdadeira amizade pressupõe uma participação enérgica, puramente objetiva e completamente desinteressada na felicidade e na tristeza do outro, e isso supõe, por sua vez, uma verdadeira identificação entre o eu e o objeto da amizade. O egoísmo da natureza humana é de tal maneira oposto a esse sentimento que a amizade verdadeira faz parte da categoria das coisas — como as grandes serpentes marinhas, por exemplo — que ninguém sabe se pertence à fábula ou se realmente existe em algum lugar. Entretanto, há entre os homens muitas relações que, ainda que se fundem essencialmente em motivos secretamente egoístas de diferentes tipos, possuem um grão daquela amizade verdadeira e sincera. Porém, neste mundo, onde tudo é imperfeito, esse grão de sentimento verdadeiro tem um efeito tão enobrecedor que justifica algum direito em chamar tal relação pelo nome de amizade. Elevam-se muito acima das relações cotidianas, cuja natureza é tal que, se ouvíssemos como a maioria de nossos conhecidos fala de nós em nossa ausência, nunca mais lhes dirigiríamos a palavra.

Além dos casos em que se necessitam socorros sérios e sacrifícios consideráveis, a melhor ocasião para testar a sinceridade de um amigo é no momento em que lhe contamos uma desgraça que acaba de nos acometer. Então veremos esboçar-se em suas feições uma aflição verdadeira, profunda e imaculada, ou, pelo contrário, com sua calma imperturbável, por um traço que se esboça fugazmente, confirmará a máxima de La Rochefoucauld: Dans l’adversité de nos meilleurs amis, nous trouvons toujours quelque chose qui ne nous déplaît pas [na adversidade de nossos amigos sempre encontramos algo que não nos desagrada]. Em tais ocasiões, os que comumente se chamam amigos mal conseguem reprimir os traços do ligeiro sorriso de satisfação. Há poucas coisas que deixam as pessoas de tão bom humor como o relato de alguma calamidade que tenha nos acontecido recentemente ou a confissão sincera de alguma fraqueza pessoal. Isso é característico!

A distância e a longa ausência prejudicam qualquer amizade, ainda que não se confesse de bom grado. Pois aqueles que não vemos, ainda que sejam nossos mais queridos amigos, gradualmente, com o transcurso do tempo, se evaporam ao estado de noções abstratas, de tal modo que nosso interesse por eles se torna cada vez mais racional e até tradicional. Por outro lado, conservamos um sentimento vivo e profundo em relação aos que temos à vista, ainda que não sejam mais que animais de estimação. Vê-se como a natureza humana é ligada aos sentidos; confirmam-se, pois, as palavras de Goethe:

Die Gegenwart ist eine mächtige Göttin.

[o momento presente é uma poderosa divindade. (Tasso, ato IV, cena 4.)]

Os amigos da casa recebem esse nome em geral com muita propriedade, pois são mais amigos da casa que de seu dono, de modo que se parecem mais com os gatos que com os cães.

Os amigos se dizem sinceros; os inimigos o são. Assim, para aprender a conhecer-se a si mesmo, se deveria tomar a censura desses últimos como se toma um remédio amargo.

Como se pode dizer que na necessidade os amigos são raros? Pelo contrário; mal nos tornamos amigos de um homem e ele já está na necessidade, querendo que o emprestemos dinheiro.

[34] Como é preciso ser ingênuo para acreditar que relevar intelecto e juízo é um meio para ser bem acolhido na sociedade! Muito pelo contrário, isso desperta na maioria das pessoas um sentimento de ódio e de rancor; e tal rancor é mais amargo, visto que aquele que o sente não tem o direito de protestar contra sua causa; isso é algo que oculta de si mesmo. Aquilo que de fato ocorre é que um homem observa e sente uma grande superioridade intelectual naquele com quem está conversando e conclui, em segredo, sem ter consciência clara disso, que o outro observa e sente no mesmo grau sua inferioridade e suas limitações. Esse modo de raciocinar — um entimema — excita seu ódio, seu rancor, sua raiva mais amarga. (Cf. O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap. 19, onde cito Dr. Johnson e Merck, o amigo de juventude de Goethe.) Assim, Gracián disse com razão: para ser bien quisto, el unico medio es vestirse la piel del más simple de los brutos. (Cf. Oraculo manual, y arte de prudencia, 240. Obras, Amberes, 1702, Pt. II, p. 287) Revelar intelecto e juízo é apenas um meio indireto de acusar os outros de incapacidade e estupidez. Uma natureza vulgar se rebela à vista de uma natureza oposta, e a causa secreta dessa rebeldia é a inveja. Porque, como se pode ver em qualquer ocasião, satisfazer a vaidade é um prazer que, entre os homens, excede qualquer outro; entretanto, não é possível senão através de sua comparação com os demais. Porém, não há qualidades das quais o homem se orgulhe mais que as intelectuais; pois apenas nessas se fundamenta sua superioridade em relação aos animais. [1] Demonstrar uma superioridade intelectual acentuada, sobretudo perante testemunhas, é uma grande ousadia. Isso provoca sua vingança e, em geral, buscarão uma oportunidade para fazê-lo por meio de insultos, porque assim passam do domínio da inteligência ao da vontade, no qual todos são iguais. Se, por um lado, a posição e a riqueza podem contar sempre com a consideração na sociedade, por outro, as qualidades intelectuais não devem contar com ela de modo algum. No melhor dos casos, tais qualidades serão ignoradas; do contrário, são consideradas como uma espécie de impertinência, ou como um bem que seu proprietário adquiriu por meios ilícitos e do qual tem a audácia de vangloriar-se. Assim, todos em segredo tentam humilhá-lo de algum modo, e para isso não esperam mais que uma ocasião propícia. Um homem pode revelar uma atitude das mais humildes, mas isso dificilmente fará com que perdoem o crime de sua superioridade de espírito. Sadi disse em Gulistan: Saiba que no homem ininteligente há cem vezes mais aversão contra o inteligente que deste em relação ao primeiro. Pelo contrário, a inferioridade intelectual equivale a uma carta de recomendação. Porque assim como o calor é benéfico ao corpo, o sentimento de superioridade é benéfico ao espírito; desse modo, cada qual se aproxima do indivíduo que lhe proporciona essa sensação pelo mesmo instinto que o leva a aproximar-se da lareira ou a passar pelo sol. Mas isso significa que será desdenhado devido à sua superioridade; se um homem deseja ser estimado, deve ser decididamente inferior em relação às faculdades intelectuais; e o mesmo vale para as mulheres em relação à beleza. Devemos confessar que é necessário um grande esforço para demonstrar uma inferioridade real e autêntica a todos que encontramos. Em contrapartida, vejamos com que cordial amabilidade vai uma jovem razoavelmente bela ao encontro da que é horrivelmente feia! Entre os homens não se concede grande valor às faculdades físicas, apesar de preferirmos estar ao lado de um homem mais baixo que de um mais alto. Em consequência, entre os homens, os imbecis e os ignorantes e, entre as mulheres, as feias, são os mais buscados e populares em todas as partes. Rapidamente conquistam a reputação de ter um grande coração, pois todos precisam de uma desculpa ou pretexto para justificar sua afeição — um pretexto com o qual cegarão tanto a si próprios quanto os demais para o verdadeiro motivo de sua simpatia. Pela mesma razão, toda espécie de superioridade de espírito é uma qualidade que isola os homens; foge-se dela, é odiada, e, como desculpa, atribui-se defeitos de todas as classes àquele que a possui. [2] A beleza produz entre as mulheres exatamente o mesmo efeito; quando são muito belas, as jovens não encontram amigas, nem sequer companheiras. É melhor que não sonhem em apresentar-se em parte alguma para ocupar o posto de senhorita de companhia; pois, quando se apresentam, o semblante da dama em cuja casa esperam entrar se nublará, porque seja por conta própria, seja por conta de suas filhas, não necessita de modo algum do contraste de uma linda figura. Pelo contrário, não ocorre o mesmo quando se trata das vantagens da posição; porque essas não funcionam, como os méritos pessoais, pelo efeito do contraste e da diferença, senão por meio da reflexão, como as cores do ambiente quando se refletem no semblante.

  1. Pode-se dizer que o homem deu a si próprio a vontade, pois essa é o homem em si mesmo. O intelecto, entretanto, é uma dádiva que recebeu dos céus, isto é, do eterno e misterioso destino e de sua necessidade, da qual sua mãe foi um mero instrumento.
  2. Para se abrir caminho no mundo, amigos e companheiros são o meio mais importante. As grandes capacidades tornam o homem altivo e, com isso, pouco inclinado a elogiar os que só possuem uma capacidade limitada, e ante os quais, por essa mesma causa, deve dissimular e renegar suas altas qualidades. A consciência de uma pequena capacidade intelectual tem exatamente o efeito oposto, sendo muito compatível com uma natureza humilde, afável e complacente, e com o respeito ao que é mau e baixo. Por isso os homens de espécie inferior têm muitos amigos e protetores.

Isso não se aplica somente a cargos públicos, mas também aos empregos honoríficos, às dignidades e até à glória no mundo das ciências. Nas sociedades esclarecidas, por exemplo, a mediocridade — essa qualidade tão aceitável — ocupa sempre o alto posto, enquanto o mérito encontra um reconhecimento tardio, ou não encontra nenhum; o mesmo ocorre em todas as coisas.

[35] A nossa confiança nos demais muitas vezes consiste principalmente de preguiça, egoísmo e vaidade; preguiça, quando, para não examinar, analisar e trabalhar por nós mesmos, preferimos confiar em outrem; egoísmo, quando a necessidade de falar de assuntos pessoais nos leva a fazer alguma confidência; vaidade, quando essas coisas são de tal natureza que nos enchem de soberba. Não obstante, esperamos que nossa confiança seja honrada.

Nunca deveríamos, pelo contrário, irritar-nos pela desconfiança e suspeita dos demais; pois implica um cumprimento à honestidade, a saber, a confissão sincera de sua extraordinária raridade, em virtude da qual pertence a essas coisas cuja existência se põe em dúvida.

[36] A cortesia, essa virtude cardeal dos chineses, baseia-se em duas considerações, uma das quais expus em Os Fundamentos da Moral, e a outra é a seguinte. A cortesia é um acordo tácito para que ignoremos e nos guardemos de apontar uns nos outros as pequenas misérias morais e intelectuais. Desse modo, não se revelam com tanta facilidade, em benefício de ambas as partes.

Cortesia é prudência, descortesia é, pois, tolice. Criar inimigos por grosseria, sem necessidade e com grande satisfação de ânimo é insanidade, como atear fogo à própria casa. Porque a cortesia é sabidamente uma moeda falsa, como fichas de jogo; economizá-la revela falta de inteligência, enquanto que gastá-las com generosidade revela prudência. Todas as nações terminam suas cartas com votre très-humble serviteur, your most obedient servant, suo devotissimo servo. Somente os alemães suprimem o “servo”, porque dizem que não é certo! Pelo contrário, aquele que leva a cortesia até o ponto de sacrificar interesses reais é como um homem que dá moedas de ouro em vez de fichas. A cera, dura e quebradiça por natureza, torna-se tão maleável com um pouco de calor que toma a forma que quisermos dar-lhe. Do mesmo modo, podemos, com um pouco de cortesia e de amabilidade, tornar dóceis e complacentes até homens hostis e rudes. Assim, a cortesia é para o homem aquilo que o calor é para a cera.

A cortesia é verdadeiramente uma árdua tarefa, visto que nos força a demonstrar um grande respeito para todos, sendo que a maioria não merece nenhum. Ademais, exige que finjamos o mais vivo interesse quando deveríamos nos alegrar de não ter nenhum. Combinar a cortesia e a altivez é um golpe de mestre.

Nos zangaríamos muito menos com insultos — que consistem sempre em manifestações de desrespeito — se, por um lado, não nutríssemos uma noção completamente exagerada de nosso próprio valor e dignidade, que é um orgulho desmedido, e se, por outro lado, tivéssemos nos dado conta do que no geral cada qual acredita e pensa a respeito dos demais no fundo de seu coração. Que chocante contraste existe entre a suscetibilidade da maioria das pessoas pela mais ligeira alusão crítica dirigida contra elas e aquilo que ouviriam se os comentários de seus amigos a esse respeito chegassem aos seus ouvidos! Pelo contrário, tenhamos sempre em mente que a cortesia não é mais que um disfarce zombeteiro; não deveríamos soltar gritos de pavor quando o disfarce sai do lugar ou é removido por um instante. Porém, quando um indivíduo se faz francamente grosseiro, é como tivesse tirado todas as suas roupas e se apresentasse in puris naturalibus [em estado de natureza]. Devemos confessar que, como a maioria dos homens nessa condição, apresenta um aspecto muito feio.

[37] Nunca se deve tomar outrem como modelo para o que se deve fazer ou não fazer, porque as situações e as circunstâncias não são sempre idênticas, e porque a diferença de caráter também dá à ação um tom muito distinto. Por isso duo cum faciunt idem, non est idem [quando dois fazem o mesmo, já não é o mesmo]. Depois de uma reflexão madura e de uma meditação séria, devemos agir conforme nosso próprio caráter. Portanto, em questões práticas, a originalidade é indispensável, do contrário não estaríamos de acordo com o que somos.

[38] Não combatamos a opinião de ninguém, pelo contrário, lembremos que se quiséssemos dissuadir as pessoas de todos os absurdos em que creem, não teríamos acabado ainda quando chegássemos à idade de Matusalém.

Durante conversas, guardemo-nos de corrigir as pessoas, ainda que o façamos com a melhor intenção; pois é fácil ofendê-las, mas difícil, se não impossível, corrigi-las.

Quando os absurdos de uma conversa que porventura estivermos escutando começam a irritar-nos, devemos imaginar que assistimos a uma cena de comédia entre dois loucos. Probatum est [está provado]. O homem nascido para instruir o mundo sobre os assuntos mais importantes e mais sérios pode considerar-se afortunado quando escapa são e salvo.

[39] Aquele que deseja que seu juízo tenha crédito deve enunciá-lo friamente e sem paixão; porque qualquer arrebatamento procede da vontade. Assim, quando nosso julgamento é expresso com veemência, os indivíduos podem considerá-lo como um esforço da vontade, não do intelecto, que é por natureza frio e desapaixonado. Sendo a vontade o princípio radical no homem, enquanto o conhecimento é apenas secundário e acessório, as pessoas são muito mais propensas a acreditar que um juízo emitido com grande veemência deve-se ao estado excitado da vontade que a acreditar que a excitação da vontade foi produzida pelo juízo.

[40] Não devemos elogiar a nós próprios, ainda que tenhamos todo o direito. Porque a vaidade é coisa tão comum e o mérito, pelo contrário, é coisa tão rara, que sempre que falamos bem de nós, por indiretamente que seja, todos apostarão cem contra um que o que foi dito por nossa boca é vaidade e que não temos capacidade suficiente para compreender o quanto isso é ridículo. Não obstante, talvez Bacon não estivesse completamente errado quando disse que o semper aliquid haeret [sempre fica algo] aplica-se não apenas à calúnia, mas também ao elogio de si mesmo, e recomenda o último em doses moderadas. (Cf. De augmentis scientiarum, Leiden, 1645, l. VIII, c. 2, PP. 644 seg.) [1]

  1. Schopenhauer refere-se à passagem na obra de Bacon onde é dito: Assim como se diz comumente da calúnia que, quando lançada gravemente, sempre fica algo, pode-se dizer da jactância (quando não é completamente vergonhosa e ridícula) que, quando nos elogiamos abertamente, sempre fica algo.

[41] Quando suspeitarmos que um homem esteja mentindo, devemos fingir acreditar no que diz; pois então, perdendo a vergonha, mente mais gravemente e acaba descoberto. Se notarmos, pelo contrário, que deixou escapar em parte uma verdade que tentou dissimular, devemos nos fazer incrédulos. Tal oposição de nossa parte pode levá-lo a apresentar todas as suas reservas para contrapor nossa incredulidade.

[42] Temos de considerar todas as nossas questões pessoais como segredos, e devemos permanecer completamente desconhecidos, mesmo de nossos bons amigos, em relação a tudo sobre nós que não possam ver com seus próprios olhos. Porque, com o passar do tempo e em circunstâncias distintas, seu conhecimento sobre as coisas mais inocentes pode nos ser prejudicial. Em geral, vale mais manifestar discernimento por tudo que se cala que por tudo que se diz. A primeira é uma questão de prudência, a segunda, de vaidade. As ocasiões de calar-se e as de falar apresentam-se em igual número; porém, muitas vezes preferimos a fugidia satisfação que proporcionam as últimas em vez da vantagem permanente assegurada pelas primeiras. Mesmo o sentimento de alívio que as pessoas nervosas sentem ao falar em voz alta para si mesmas não deve ser encorajado, para que não se torne um hábito. Porque com isso o pensamento estabelece tal proximidade com a palavra que, gradualmente, chegamos a falar com os demais como se pensássemos em voz alta. Pelo contrário, a prudência exige que mantenhamos uma grande distância entre o que pensamos e o que dizemos.

Por vezes imaginamos que os demais são totalmente incapazes de crer em uma coisa que nos afeta pessoalmente, sendo que na verdade nunca lhes ocorreu duvidar dela. Porém, se lhe concedermos a menor oportunidade para a dúvida, passarão a achar absolutamente impossível continuar a acreditar. Mas é comum que sejamos levados a revelar algo simplesmente porque supomos ser impossível deixar de notá-la; do mesmo modo, nos lançamos de uma grande altura devido a uma vertigem, ou seja, porque julgamos impossível permanecer firmes; a angústia causada pela posição é tão pungente que julgamos melhor abreviá-la. Esse tipo de ilusão se chama acrofobia.

Por outro lado, devemos saber que as pessoas, ainda as que só revelam uma perspicácia mediana, são excelentes matemáticos quando se trata dos assuntos pessoais dos demais. Nessas questões, dada uma só quantidade, resolvem os problemas mais complicados. Se, por exemplo, contamos uma história passada suprimindo todos os nomes e todas as demais indicações sobre as pessoas, devemos nos guardar de introduzir na narração o menor detalhe positivo e particular, como a localidade, a data ou o nome de um personagem secundário, ou qualquer outra coisa que tenha com o assunto a conexão mais remota. Pois, uma vez dada uma quantidade positiva, sua perspicácia algébrica deduz o restante. Sua curiosidade nesses assuntos se torna um tipo de entusiasmo: sua vontade instiga seu intelecto e o impulsiona até a obtenção dos resultados mais remotos. Porque, apesar de os homens serem insensíveis e indiferentes às verdades universais, são ávidos pelas individuais e particulares.

Conforme o que foi dito, vemos que todos os doutores em sabedoria de vida são especialmente enfáticos em recomendar a prática do silêncio, apresentando diversos motivos em sua defesa; não há, portanto, necessidade de me estender mais sobre o assunto. Todavia, reproduzo aqui algumas máximas árabes muito enérgicas e pouco conhecidas.

O que teu inimigo não deve saber, não digas ao teu amigo.

Devo guardar meu segredo, é meu prisioneiro; quando o solto, me converto em seu prisioneiro.

Da árvore do silêncio colha o fruto da tranquilidade.

[43] Não há dinheiro melhor aplicado que aquele com o qual nos deixamos roubar; pois com isso compramos diretamente a prudência.

[44] Não guardemos animosidade contra nada, dentro do possível; contentemo-nos em notar os procédés de cada um e os recordemos, para estimar com isso seu valor, ao menos no que nos diz respeito, e para regular, em consequência, nossa atitude e nossa conduta para com as pessoas, nunca perdendo de vista o fato de que o caráter é inalterável. Esquecer uma ação vil é como jogar pela janela dinheiro adquirido a duras penas. Desse modo nos protegemos contra intimidades insensatas e contra amizades tolas.

“Não amar nem odiar” encerra a metade de toda sabedoria; “não dizer nada e não acreditar em nada” encerra a outra metade. De fato, não deveríamos ficar senão satisfeitos em dar as costas a um mundo no qual são necessárias regras como essas e como as seguintes.

[45] Revelar cólera ou ódio em nossas palavras ou gestos é inútil, perigoso, imprudente, ridículo e vulgar. Portanto, não devemos demonstrar cólera ou ódio senão por atos. Os sentimentos serão mais eficientes por meio da ação na medida em que evitarmos exibi-los por outros meios. Apenas animais de sangue frio têm a mordida peçonhenta.

[46] Parler sans accent [falar sem acento]. Essa antiga regra das pessoas do mundo ensina que se deve deixar à inteligência dos demais o cuidado de decifrar o que dissemos. Sua compreensão é lenta e, antes que tenham chegado ao sentido do que dissemos, estaremos muito longe. Pelo contrário, parler avec accent significa dirigir-se aos seus sentimentos, e o resultado é sempre o oposto do que se imagina. Mantendo uma postura cortês e um tom amistoso, há pessoas com as quais podemos ser extremamente rudes sem perigo imediato.

d) sobre a nossa conduta frente à marcha do mundo e frente ao destino

[47] De qualquer forma que analisemos a existência humana, seus elementos sempre são semelhantes, de modo que as condições continuam sendo idênticas, seja vivendo em uma cabana ou em uma corte, seja em um convento ou no exército. Apesar de sua variedade, os acontecimentos, as aventuras, os acidentes felizes ou desgraçados da vida se assemelham aos artigos de confeitaria; as figuras são numerosas e variadas, em formas estranhas e em cores diversas, porém tudo está composto da mesma massa; e os incidentes ocorridos a um indivíduo se parecem aos que sucedem aos outros muito mais do que se pensa ao ouvir as diferentes versões. Os acontecimentos de nossa vida são como as imagens do caleidoscópio, no qual vemos imagens distintas a cada volta, embora seja sempre o mesmo aquilo que temos diante de nossos olhos.

[48] Um antigo disse muito exatamente que três forças dominam o mundo: σύνεσις, κράτος, καὶ τύχη, prudência, força e fortuna. Essa última, em minha opinião, é a mais influente; pois o curso da vida pode ser comparado à marcha de um barco. A sorte, a τύχη, la secunda aut adversa fortuna [próspera ou adversa fortuna], desempenha o papel do vento que rapidamente nos arrasta para frente ou para trás; contra isso nossos próprios esforços e empenhos são de pouca valia. Esses fazem o papel de remadores; se nos fizeram avançar um pouco depois de muitas horas de trabalho, uma repentina lufada de vento pode nos fazer retroceder outro tanto. Se o vento, pelo contrário, é favorável, nos arrasta tão bem que podemos prescindir dos remos. O poder da sorte é expresso de modo admirável por um provérbio espanhol: Da ventura a tu hijo, y echa lo em el mar [dá ventura a teu filho e lança-o no mar].

Porém o acaso é uma força maligna à qual não devemos nos abandonar. E, não obstante, qual é, entre todos os dispensadores de bens, o único que, quando nos dá, indica ao mesmo tempo, sem deixar lugar a engano, que não temos nenhum direito sobre eles; que se devem não aos nossos méritos, senão somente à sua bondade e favor; e que precisamente por causa disso podemos abrigar a feliz esperança de receber com humildade muitos outros bens poucos merecidos? É o acaso — que sabe essa arte régia de fazer compreender que, contrariamente ao seu favor ou à sua graça, qualquer mérito carece de força e de valor.

Quando olhamos para trás no caminho da vida; quando vislumbramos nosso labirinto de erros, vemos tantas sortes fracassadas, tantas desgraças provocadas, que nos inclinamos muito facilmente a exagerar as acusações que dirigimos a nós mesmos. Porque a marcha de nossa existência não é, unicamente, obra própria, mas o produto de dois fatores, a série de acontecimentos e a série de nossas decisões, que agem e se modificam reciprocamente. Ademais, para ambos os fatores, nosso horizonte é sempre muito limitado, visto que não podemos predizer nossas decisões com muita antecedência e menos ainda prever os acontecimentos; na verdade, apenas as decisões e acontecimentos presentes nos são realmente conhecidos. Por isso, enquanto nosso objetivo está ainda distante, não podemos sequer delinear o rumo até ele, e temos de nos dirigir aproximadamente e por probabilidades; muitas vezes precisamos alterar nosso curso. Assim, tudo o que está em nosso poder é tomar nossas decisões de acordo com as circunstâncias presentes, com a esperança de nos aproximarmos do objetivo principal. Nesse sentido, os acontecimentos e nossas metas principais são comparáveis a duas forças que atuam em direções distintas, cuja diagonal resultante representa a marcha de nossa vida. Terêncio disse: In vita est hominum quasi cum ludas tesseris: si illud, quod maxime opus est jactu, non cadit, illud quod cecidit forte, id arte ut corrigas [a vida humana é como um jogo de dados; se não resulta aquilo que desejamos, devemos usar nossa habilidade para aproveitar o que o acaso nos ofereceu. (Adelphi, IV, 7; ll. 739— 41.)]. É provável que tivesse em mente um jogo similar ao gamão. Ademais, podemos dizer que o destino embaralha as cartas e nós jogamos. Porém, para expressar o que quero dizer com isso, a melhor comparação é a seguinte. A vida é como um jogo de xadrez; traçamos um plano, porém esse fica, na partida, subordinado ao adversário e, na vida, ao destino. As modificações que, em consequência, nosso plano sofre são as mais das vezes tão grandes que em sua execução mal reconhecemos muitos de seus traços fundamentais.

Ademais, no transcurso de nossa existência, há algo superior a tudo isso, a saber,  a verdade trivial, tantas vezes confirmada, de que somos com frequência mais tolos do que pensamos. Em contrapartida, também acontece de termos sido mais sensatos do que imaginávamos, mas isso é uma descoberta que só fazem os que realmente se encontram nesse caso; e, ainda assim, apenas depois de um longo tempo. Há em nós algo mais profundo que o cérebro. Com efeito, nos grandes momentos, nos passos importantes da vida, agimos sem conhecimento exato do que nos convém fazer, movidos por um impulso interno, talvez um instinto, nascido das profundezas de nosso ser. Posteriormente, criticamos nossos atos em função de noções precisas, porém às vezes inadequadas, adquiridas, até emprestadas, à luz de regras gerais, do comportamento dos demais, e assim por diante, sem levar em conta que “uma coisa não é para todos”, e assim nos fazemos facilmente injustos para com nós próprios. Porém, ao fim, vemos quem estava com a razão, e apenas o homem que chega à idade da sabedoria é capaz de julgar o assunto tanto subjetiva quanto objetivamente.

Talvez esse impulso interno esteja guiado, sem que nos demos conta dele, por sonhos proféticos, que esquecemos ao despertar. Dessa maneira, dão à nossa vida esse tom sempre harmônico, essa unidade dramática que nunca poderia ser proporcionada pela consciência cerebral, tantas vezes vacilante, instável, errante, tão facilmente variável. Em virtude de tais sonhos, o homem com vocação para grandes obras em um campo específico tem, desde sua juventude, o sentimento íntimo e secreto disso e trabalha nesse sentido, assim como a abelha na construção de sua colmeia. Porém, em cada homem, o que impulsiona é aquilo que Baltasar Gracián chama la gran sindéresis [a grande sindicância], isto é, a grande força de discernimento moral, algo que o homem sente instintivamente como sua salvação, sem o qual estaria perdido. Trabalhar de acordo com princípios abstratos é difícil, e não se consegue senão depois de muita prática, e ainda então, nem sempre; entretanto, muitas vezes esses princípios são insuficientes. Em contrapartida, cada qual possui certos princípios inatos e concretos, encerrados em sua carne e em seu sangue, porque são o resultado de todo seu pensar, sentir e querer. Normalmente, não os conhece in abstracto, e apenas voltando seu olhar à vida passada nota que os tem sempre obedecido e que tem sido guiado por esses princípios como que por um fio invisível. Segundo sua natureza, o conduzirão à próspera ou adversa fortuna.

[49] Nunca se deveria perder de vista a ação exercida pelo tempo e a natureza transitória das coisas. Por conseguinte, em relação a tudo que ocorre atualmente, deveríamos nos imaginar na situação oposta; assim, na felicidade, imaginar vivamente o infortúnio; na amizade, a inimizade; durante o bom tempo, o mau; no amor, o ódio; na confiança e na franqueza, a traição e o arrependimento; e, igualmente, na situação inversa. Isso nos proporcionaria uma fonte permanente de sabedoria para este mundo, pois seríamos sempre prudentes e não nos deixaríamos enganar tão facilmente. Na maioria dos casos não teríamos feito mais que antecipar a ação do tempo. Talvez nenhuma forma de conhecimento seja tão indispensável quanto a experiência pessoal para compreendermos a natureza instável e transitória das coisas mundanas. Assim como cada estado ou situação, no tempo de sua duração, existe necessariamente e, portanto, com pleno direito, cada ano, cada mês, cada dia nos dão a impressão de que têm o direito de existir por toda a eternidade. Porém nada conserva esse direito e só a mudança permanece. O homem prudente é aquele que não é enganado pela aparente estabilidade das coisas e, além disso, prevê a direção em que ocorrerá a próxima mudança. [1] Mas os indivíduos geralmente pensam que as circunstâncias presentes são imutáveis, e que no futuro tudo ocorrerá como no passado. Isso porque, tendo os efeitos em vista, não compreendem as causas; todavia, essas são as que levam em si o germe das mudanças futuras, enquanto que o efeito que existe aos seus olhos não contém germe algum. Atêm-se ao resultado e presumem que as causas, que lhes são desconhecidas, tendo sido capazes de produzir o efeito, serão também capazes de conservá-lo. Nisso têm a vantagem de que, quando se enganam, é sempre em uníssono; de modo que a calamidade que os acomete em função desse erro é sempre universal, enquanto que o pensador, quando se engana, fica, além disso, isolado. Diga-se de passagem, isso confirma o princípio que enunciei em O Mundo como Vontade e Representação (vol. I, § 15), de que o erro sempre consiste em realizar uma inferência incorreta, isto é, em imputar um dado efeito a algo que não o causou. Não obstante, só em teoria convém antecipar o tempo, prevendo seu efeito, e não na prática, e isso quer dizer que não devemos usurpar o porvir, exigindo antes do tempo o que só pode vir com o tempo. Todo aquele que tentar fazê-lo descobrirá que não há agiota pior e mais intratável que o tempo; e que, quando se pede o pagamento adiantado, exige juros mais pesados que qualquer judeu. Por exemplo, por meio da cal viva e do calor, podemos em poucos dias fazer com que brotem de uma árvore suas folhas, suas flores e seus frutos; porém, depois, murcha e perece. Se um jovem tenta exercer a potência genital de um homem, ainda que durantes poucas semanas, e deseja realizar aos dezenove anos o que lhe será fácil aos trinta, o tempo lhe fará o pagamento adiantado, porém uma parte da força de seus anos futuros, uma parte mesma de sua vida, servirá de juros. Há enfermidades das quais não podemos nos recuperar totalmente senão deixando-lhes seguir seu curso natural, após o qual desaparecem por si mesmas sem deixar rastros. Porém, se exigirmos uma recuperação imediata, então o tempo terá de fazer um pagamento adiantado; a enfermidade se retirará, porém os juros serão fraquezas e males crônicos para toda a vida. Quando, em tempos de guerra ou conturbados, precisamos de dinheiro imediatamente, somos obrigados a vender imóveis ou papéis do Estado por um terço de seu valor, e talvez menos, o qual teríamos recebido integralmente se tivéssemos esperado o devido tempo, isto é, se deixássemos passar alguns anos; porém, obrigamos o tempo a fazer adiantamentos. Ou então precisamos de uma soma de dinheiro para uma grande viagem; em um ou dois anos poderíamos retirá-lo de nossa renda. Porém, não se quer esperar; a soma é conseguida por empréstimos ou bem se colhe o capital; em outros termos, o tempo está convocado a fazer um pagamento adiantado. Aqui os juros serão o desequilíbrio de nossas propriedades, um déficit permanente e crescente do qual nunca nos veremos livres. Essa é, pois, a usura praticada pelo tempo; e suas vítimas são todos os que não podem esperar. Devemos, portanto, nos guardar de dever juros ao tempo.

  1. O acaso exerce um papel tão importante em todas as questões humanas que, quando tratamos de evitar, por meio de sacrifícios imediatos, algum perigo que nos ameace remotamente, esse desaparece frequentemente por uma guinada imprevista que tomam os acontecimentos; e não só se perdem os sacrifícios feitos, senão também que a mudança que produziram se faz positivamente desvantajosa em presença das novas circunstâncias. Assim, em nossas medidas preventivas, não devemos penetrar demasiado no porvir, mas considerar também o acaso; e afrontar ferozmente muitos perigos, esperando que desapareçam como tantas nuvens sombrias tempestuosas.

[50] Uma diferença característica que se assinala frequentemente na vida cotidiana entre os homens vulgares e os homens prudentes é que, ao considerar e estimar os perigos possíveis, os primeiros apenas buscam e consideram aquilo que já sucedeu de semelhante; os últimos refletem sobre o que poderá suceder e, portanto, têm em mente as palavras do provérbio espanhol: lo que no acaece en un año, acaece en un rato [o que não acontece em um ano, acontece em um instante]. Além disso, a diferença em questão é muito natural; pois vislumbrar o que pode acontecer requer discernimento, mas ver o que já aconteceu requer apenas os sentidos.

Nossa máxima deve ser: façamos sacrifícios aos espíritos malignos! Com isso quero dizer que um homem não deve hesitar em gastar tempo, esforço ou dinheiro, em abrir mão de seu conforto ou em restringir seus objetivos se com isso puder evitar a possibilidade de uma desgraça. As desgraças mais terríveis são também as mais improváveis e remotas — as que mais dificilmente ocorrem. O exemplo mais contundente dessa regra são as seguradoras; é um sacrifício que todos fazem publicamente no altar dos espíritos malignos.

[51] Nenhum acontecimento deve provocar em nós grandes explosões de júbilo nem muitas queixas, em parte porque todas as coisas mudam, e isso altera sua forma; e em parte porque nosso julgamento quanto ao que é favorável ou prejudicial é enganador. Por tal razão, quase todos, ao menos em algum momento, lamentam por algo que posteriormente resultou ser o mais benéfico para ele, ou se alegram com algo que se tornou a origem de seus maiores sofrimentos. A postura que recomendamos aqui foi expressa por Shakespeare nos belos versos seguintes:

I have felt so many quirks of joy and grief
That the first face of neither, on the start,
Can woman me unto’t.

[Tenho sentido tantas sacudidas de alegria e de dor, que o primeiro aspecto e choque de ambos não me afemina (All’s Well that Ends Well, ato III, cena II.)]

Mas, em geral, o homem que permanece calmo e sereno ante as adversidades demonstra o conhecimento de quão imensos e múltiplos são os males possíveis na vida; e que não considera a desgraça que sobrevém em certo momento senão como uma pequena parcela do que poderia suceder. Esse é o sentimento do estoico, segundo o qual nunca devemos ser conditionis humanae oblitus [esquecidiços da condição humana], senão sempre ter em mente o triste e deplorável destino geral da existência humana, assim como os inumeráveis males aos quais está exposta. Para avivar esse sentimento, não precisamos mais que voltar o olhar ao nosso redor; onde quer que estejamos, veremos a humanidade lutando e chafurdando em tormentas por uma miserável e insignificante existência. Se nos lembrarmos disso, não esperaremos muito da vida, mas aprenderemos a nos a acomodar a um mundo onde tudo é relativo e nada é perfeito; teremos as desgraças sempre em vista, seja para evitá-las ou suportá-las. Porque os reveses, grandes ou pequenos, são o elemento de nossa vida. Entretanto, não deveríamos, por tal razão, nos entregar às lamúrias e, como um δύσκολος [indivíduo descontente], quedar insatisfeitos com Beresford devido às intermináveis Miseries of Human Life [misérias da vida humana], e menos ainda in pulicis morsu Deum invocare [invocar Deus por uma mordida de pulga]. Pelo contrário, como um εὐλαβής [indivíduo prudente e circunspecto], devemos exercitar o cuidado de prevenir e distanciar as desgraças, vindas dos homens ou das coisas, e aperfeiçoar-nos tanto nessa arte que, como uma raposa astuta, evitemos com elegância qualquer infortúnio, grande ou pequeno (que geralmente é nossa própria inépcia disfarçada). Uma desgraça é menos dura de suportar se de antemão a tivermos considerado possível e nos preparado para enfrentá-la. A razão disso pode ser que, quando pensamos com calma em uma desgraça antes que aconteça, como uma simples possibilidade, distinguimos sua magnitude claramente e em todos os sentidos, e então a reconhecemos imediatamente como algo finito e fácil de abarcar de um só golpe. Desse modo, quando chega efetivamente, não pode exercer sobre nós mais que seu verdadeiro peso. Se, pelo contrário, não tivermos tomado essas precauções, se nos pega desprevenidos, o espírito aterrorizado não pode, à primeira vista, medir exatamente sua extensão. Não podendo vê-la de um só golpe, facilmente nos parece imensurável ou, ao menos, muito maior do que é verdadeiramente. Assim, a obscuridade e a incerteza agigantam qualquer perigo. Ademais, sem dúvida, ao considerar de antemão uma desgraça como possível, temos meditado ao mesmo tempo sobre os meios de remediá-la e de nos consolarmos, ou ao menos temos nos acostumado com a ideia.

Porém nada nos fará suportar com mais calma as desgraças que nos acometerem que estarmos convencidos de que tudo que ocorre, do maior ao menor, ocorre necessariamente. [1] Porque o homem sabe prontamente resignar-se ante o que é inevitavelmente necessário; e esse conhecimento o permite considerar todos os acontecimentos, mesmo os produzidos pelos acasos mais estranhos, tão necessários como os que derivam das leis mais conhecidas e se conformam às previsões mais exatas. Remeto o leitor ao que foi dito sobre o efeito calmante exercido pela noção de que tudo é inevitável e necessário (O Mundo como Vontade e Representação, vol. I, § 55). Qualquer homem que tenha se convencido disso começará por fazer aquilo que pode fazer, depois sofrerá aquilo que precisa sofrer. Os pequenos acidentes que nos molestam a todo o momento podem ser tidos como destinados a nos acometer, a fim de que a força necessária para resistir às grandes desgraças não seja completamente dissipada durante a prosperidade. Devemos ser como um Sigurd armado cap-à-pie [da cabeça aos pés] contra as moléstias cotidianas, os atritos e as discórdias nas relações entre os homens, os confrontos banais, a insolência dos demais, suas intrigas, escândalos e assim por diante. Ou seja, não devemos sequer senti-las, ainda menos levá-las no peito e ruminá-las. Pelo contrário, não nos deixemos afetar por nada disso, que deve ser chutado como pedras jogadas em nosso caminho. Nunca façamos de tais coisas um objeto de reflexão e de meditação sérias.

  1. Essa é uma verdade que estabeleci firmemente em meu ensaio premiado sobre o livre-arbítrio (Pt. III, ao fim), onde o leitor encontrará explicações detalhadas sobre seus princípios primeiros.

[52] Na maioria das vezes, o que as pessoas comumente chamam de destino são apenas suas próprias tolices. Portanto, não podemos cultivar o bastante aquela bela passagem de Homero (Ilíada, XXIII.) onde recomenda μῆτις, i.e. circunspecção prudente. Porque, se não se expiam as faltas senão em outro mundo, neste se pagam as tolices, ainda que, ocasionalmente, essas se desculpem em certas circunstâncias.

Não é a ferocidade, mas a astúcia que apresenta um aspecto terrível e ameaçador; sem dúvida, o cérebro do homem é uma arma mais terrível que a garra do leão. O homem do mundo perfeito seria aquele a quem a indecisão nunca faz ficar encolhido e a quem nada aterroriza tampouco.

[53] A coragem é, depois da prudência, uma qualidade essencial à nossa felicidade. Naturalmente, não podemos dar-nos nem uma nem outra; se herda a primeira do pai e a segunda a mãe. Não obstante, aquilo que se possui dessas qualidades pode ser desenvolvido pela resolução firme e pela prática. Neste mundo, onde se joga com dados viciados, precisamos de uma têmpera de aço, armadura contra os golpes do destino e armas contra os homens. Porque toda esta vida não é mais que um combate, cada passo é uma disputa, e Voltaire disse com razão: on ne réussit dans ce monde qu’à la pointe de l’épée, el on meurt les armes à la main [só com a ponta da espada se triunfa neste mundo; morre-se com as armas em mão]. Assim, é coisa de uma alma covarde encolher-se, lamentar e gemer quando as nuvens se agrupam ou simplesmente aparecem no horizonte. Pelo contrário, seja nossa distinção:

tu ne cede malis, sed contra audentior ito.

[não cedas às adversidades, senão, pelo contrário, marcha mais audaz. (Virgílio, Aeneid, VI. 95.)]

Enquanto existirem incertezas quanto a uma questão perigosa para a qual ainda há uma possibilidade sucesso, não hesitemos, não pensemos senão na resistência; assim como não devemos nos desesperar com tempo enquanto ainda houver no céu um canto azul. Devemos chegar a poder dizer:

Si fractus illabatur orbis,
Impavidum ferient ruinae.

[se o globo se desmorona, suas ruínas cairão sobre ele, impávido. (Horácio, Odes, III. 3. 7—8.)]

Nem a própria existência, ainda menos seus bens, merecem, definitivamente, um terror tão covarde e tantas angústias:

Quocirca vivite fortes,
Fortiaque adversis opponite pectora rebus.

[vivei como homens bravos e enfrentai a adversidade com corações valentes. (Horácio, Sátiras, II. 2. 135—6.)]

Não obstante, é possível um excesso, pois a coragem pode degenerar em temeridade. É até necessária uma certa quantidade de medo para nossa existência no mundo, sendo a covardia apenas o excesso dessa medida. Essa verdade foi muito bem expressa por Bacon, em sua explicação do Terror panicus; e a consideração etimológica que nos apresenta sobre seu significado é muito superior à explicação que há muito atrás nos foi conservada por Plutarco (De Iside et Osiride, c. 14.). Bacon a deriva de Pan, a personificação da natureza, e diz: Natura enim rerum omnibus viventibus indidit metum, ac formidinem, vitae atque essentiae suae conservatricem, ac mala ingruentia vitantem et depellentem. Verumtamen eadem natura modum tenere nescia est: sed timoribus salutaribus semper vanos et inanes admiscet; adeo ut omnia (si intus conspici darentur) Panicis terroribus plenissima sint, praesertim humana [A Natureza pôs em todas as coisas viventes o medo e o temor, que conserva a vida e sua essência e evita e afasta os maus acontecimentos. Não obstante, essa mesma natureza não sabe guardar a prudência, mas sempre mescla aos tesouros saudáveis os vãos e infundados, de tal maneira que (se pudéssemos penetrar em seus corações) todos os seres, e especialmente os humanos, estão repletos de terrores pânicos. (De sapientia veterum, l. VI.)]. De resto, o que caracteriza o Terror panicus é que não se dá conta claramente de seus motivos, mas os pressupõe em vez de conhecê-los; e, se necessário, coloca o próprio medo como motivo do medo.

Capítulo VI

Das diferentes épocas da vida

Voltaire disse admiravelmente:

Qui n’a pas l’esprit de son âge,
de son âge a tout le malheur.

[quem não tem o espírito de sua idade tem todas as desgraças de sua idade.]

Para concluir estas considerações eudemonológicas, será apropriado dirigir nosso olhar às modificações produzidas em nós pelas diferentes épocas da vida.

Em todo o curso de nossa vida, não possuímos senão o presente, e nada mais. A única diferença é, em primeiro lugar, que no começo vemos adiante de nós um grande futuro, e ao fim um grande passado detrás de nós. Em segundo lugar, há o fato de que nosso temperamento, porém nunca nosso caráter, sofre uma série de modificações bem conhecidas em função das quais o presente sempre exibe um matiz distinto.

Em minha obra capital (volume II, capítulo 31) demonstrei por que na infância nos inclinamos muito mais ao conhecimento que à vontade. Nisso, precisamente, se fundamenta essa felicidade da primeira quarta parte da vida que veremos, depois, detrás de nós, como um paraíso perdido. Durante a infância temos poucas relações e necessidades limitadas e, por conseguinte, pouca excitação da vontade. Desse modo, a maior parte de nosso ser está ocupada em conhecer. A inteligência, como o cérebro, que aos sete anos alcança toda sua grandeza, se desenvolve precocemente, ainda que não esteja madura. Em sua constante busca por alimento, explora por completo um mundo cuja existência ainda é nova, em que tudo, absolutamente tudo está revestido do verniz brilhante que lhe confere o encanto da novidade. Daí decorre que nossos anos de infância são uma poesia ininterrupta. Porque a natureza essencial da poesia, como de todas as artes, consiste em perceber em cada coisa isolada a ideia platônica, isto é, o essencial e o que é comum à espécie em geral, em função da qual cada objeto nos aparece como representante de sua classe ou família, onde um caso vale por mil. Ainda que pareça que durante nossa infância não nos ocupamos com nada além dos objetos ou acontecimentos individuais que se apresentam a nós de tempos em tempos e só na medida em que interessam e excitam nossa vontade no momento, esse não é realmente o caso. De fato, a vida, com toda a sua significância, se oferece a nós ainda tão nova, tão fresca, com impressões tão pouco amortecidas por sua repetição frequente que, com todos nossos gestos infantis, nos ocupamos secretamente, sem qualquer propósito declarado, em perceber nas cenas e nos acontecimentos isolados a natureza essencial da vida em si mesma, os tipos fundamentais de suas formas e de suas imagens. Vemos todas as coisas e as pessoas sub specie aeternitatis [sob o aspecto da eternidade], como diz Spinoza. Quanto mais jovens somos, mais cada coisa isoladamente representa para nós sua classe ou família inteira. Esse efeito diminui constantemente ano a ano, e isso é o que determina a diferença tão grande entre a impressão produzida em nós pelos objetos na juventude ou na idade madura. Assim, as experiências e os conhecimentos adquiridos durante a infância e a primeira juventude tornam-se depois os tipos constantes e as rubricas de todas as experiências e conhecimentos posteriores, as categorias, por assim dizer, sob as quais classificamos tudo o que encontramos mais tarde, apesar de que nem sempre nos damos conta disso. [1] Desse modo, o fundamento sólido de nossa visão de mundo, sua profundidade ou sua superficialidade, é formado durante os anos de infância. Tal visão é posteriormente elaborada e aperfeiçoada, porém não muda nos pontos essenciais. Portanto, em virtude dessa visão puramente objetiva — e, por conseguinte, poética — que é essencial à infância e está sustentada pelo fato de que a vontade está ainda muito longe de manifestar-se com toda a sua energia, a criança se ocupa muito mais em conhecer que em querer. Daí esse olhar sério, contemplativo de algumas crianças, que Rafael aproveitou tão bem para seus anjos, especialmente para aqueles da Madonna da Capela Sistina. Por tal razão, os anos de infância são tão felizes que sua recordação vem sempre acompanhada de um doloroso sentimento. Enquanto, por um lado, estamos seriamente engajados na primeira compreensão das coisas por meio da percepção intuitiva, a educação, por outro, se ocupa em proporcionar-nos noções que, entretanto, não nos dão o que é realmente essencial; pelo contrário, aquilo que constitui o fundo e o verdadeiro conteúdo de todos os nossos conhecimentos se baseia na compreensão do mundo por meio da percepção intuitiva. Porém, só podemos alcançá-la por nós mesmos; não nos pode ser instilada de modo algum. Daí resulta que nosso valor, tanto o moral como o intelectual, não nos chega do exterior, mas provém do mais profundo de nosso ser; e nem toda a ciência pedagógica de um Pestalozzi chegaria a fazer de um imbecil de nascença um pensador: nunca! Imbecil nasceu e imbecil deve morrer. É a natureza profunda e intensa desse primeiro conhecimento intuitivo do mundo exterior que explica por que as experiências da infância se prendem tão energicamente na memória. De fato, tínhamos nos ocupado exclusivamente dele, nada nos distraía, e havíamos considerado as coisas que víamos como as únicas de sua espécie, ainda mais, como as únicas existentes. Mais tarde, quando descobrimos quantas coisas existem no mundo, esse estado mental primordial desaparece, e com ele nossa paciência. Se quisermos recordar aqui o que expus no capítulo 30 do segundo volume de minha obra capital, a saber, que a existência objetiva de todas as coisas, isto é, sua existência em nossa representação ou imagem mental, é geralmente agradável, enquanto que sua existência subjetiva, que consiste em querer, está repleta de dor e de miséria, então aceitaremos a seguinte sentença como expressão resumida do assunto: todas as coisas são belas no ver, porém horríveis em seu ser. Resulta de tudo que observamos que, durante a infância, os objetos nos são conhecidos muito mais pelo lado da vista, isto é, da representação, da objetividade, que pelo do ser, que é o da vontade. Como o objetivo é o lado agradável das coisas, e como o lado subjetivo e horrível ainda nos é desconhecido, o entendimento jovem considera todas as formas que lhe são apresentadas pela realidade e pela arte como outros tantos seres felizes. Imagina que são tão belas no ver que talvez sejam ainda mais belas no ser. Assim, o mundo que se apresenta ante esse entendimento é como um Éden; essa é a Arcádia onde todos nascem. Um pouco mais tarde, resulta disso a sede pela vida real, a necessidade impulsiva de agir e de sofrer, arrastando-nos irresistivelmente ao tumulto do mundo. Então aprendemos a conhecer a outra face das coisas, a do ser, isto é, da vontade, que nos cruza o caminho a cada passo. Então se aproxima pouco a pouco a grande desilusão, após a qual se chega a dizer: l’âge des illusions est passé [a idade das ilusões passou]; ainda assim, o processo está apenas começando, e continua a expandir seu domínio e a aplicar-se mais e mais ao todo da vida. Por isso podemos dizer que durante a infância a vida se apresenta como uma decoração de teatro vista de longe, enquanto que durante a velhice se apresenta como essa mesma decoração, mas vista de perto.

Por fim, há também uma circunstância que contribui à felicidade da infância. Assim como no começo da primavera toda folhagem tem a mesma cor e a mesma forma, também na primeira infância nos parecemos todos e estamos perfeitamente de acordo. Porém, na puberdade é quando a divergência começa a tornar-se cada vez maior, como as dos raios em um círculo.

O que molesta e torna desgraçados os anos de juventude, o resto dessa primeira metade da vida tão preferível à segunda, é a persecução da felicidade, empreendida com a firme suposição de que pode ser encontrada na existência. Disso surge a esperança constantemente desiludida e também o descontentamento. As imagens enganosas de um vago sonho de felicidade pairam ante nossos olhos sob formas caprichosamente escolhidas, e em vão buscamos seu tipo original. Assim, durante a juventude, estamos quase sempre descontentes com nosso estado e com nossas conquistas, quaisquer que sejam, porque lhe atribuímos o que diz respeito ao vazio e à miséria da vida humana, que conhecemos pela primeira vez neste momento, depois de haver esperado outra coisa muito distinta. Se ganharia muito em destruir, em idade tenra, por meio de conselhos e ensinamentos adequados, essa ilusão própria da juventude de que há grandes coisas a serem vistas neste mundo. Mas ocorre exatamente oposto ao conhecermos a vida pela poesia e não pela realidade. Na aurora de nossa juventude, as cenas que a arte nos descreve exibem-se brilhantes diante de nossa vista, e eis que aqui estamos, atormentados pelos desejos de vê-las realizadas, de alcançar o arco-íris. O jovem espera que o curso de sua vida apresente-se sob a forma de um romance interessante; assim nasce esse desapontamento que descrevi no segundo volume de minha obra já citada. Porque o que empresta encanto a todas essas imagens é precisamente que são imagens e não realidades, e que ao contemplá-las intuitivamente nos encontramos no estado de calma e de satisfação perfeita do conhecimento puro. Realizar-se significa ser dominado pela vontade, e isso inevitavelmente produz sofrimento. Aqui devo remeter também o leitor, ao qual o assunto interesse, ao segundo volume de meu livro, capítulo 37.

Desse modo, se o caráter da primeira metade da vida é uma aspiração inesgotável à felicidade, a segunda metade é a apreensão da desgraça. Porque nesse momento se reconheceu mais ou menos claramente que toda felicidade é quimérica e que apenas o sofrimento é real. Então, os homens, ao menos os prudentes, em vez de aspirar aos prazeres, não buscam mais que uma condição isenta de dores e de moléstias. Quando, em meus anos de juventude, ouvia me chamarem à porta, ficava muito alegre porque pensava: “Ah! finalmente!”; mais tarde, na mesma situação, minha sensação era mais próxima ao terror, e pensava: “Ah! lá vem!”. Porque os seres distintos e bem dotados que, como tais, não pertencem em absoluto ao mundo dos homens e se encontram, em proporção de seus méritos, mais ou menos isolados, experimentam dois sentimentos opostos em relação ao mundo. Em sua juventude, têm a sensação de terem sido abandonados pelo mundo; na idade madura, têm a sensação de terem escapado dele. O primeiro, que é penoso, provém de sua ignorância, enquanto que o segundo, que é agradável, de seu conhecimento do mundo. Como resultado, a segunda metade da vida, como a segunda parte de um período musical, possui menos impetuosidade e ambição, porém mais consolo e tranquilidade que a primeira. Isso acontece simplesmente porque a juventude forja mil castelos de vento sobre a felicidade e o prazer que se pode encontrar no mundo, tendo como única dificuldade alcançá-los, enquanto que a velhice sabe que não há nada a ser encontrado, e assim se encontra tranquila a esse respeito, saboreando qualquer presente suportável e achando deleite nas coisas mínimas.

Aquilo que o homem maduro ganha com a experiência de vida, que faz com que veja o mundo de forma diferente do adolescente e do jovem, é, antes de tudo, a falta de prevenção. Começa, então, a ver as coisas com simplicidade e a tomá-las pelo que são; enquanto que aos olhos do jovem e do adolescente o mundo verdadeiro estava oculto ou distorcido por uma ilusão que eles próprios criaram, composta de fantasias e de caprichos, de preconceitos herdados e de devaneios estranhos. A primeira tarefa que a experiência tem de realizar é despojar-nos dos sonhos, das quimeras e das noções falsas acumuladas durante a juventude. Proteger os jovens contra isso certamente seria a melhor educação que se lhes poderia dar, ainda que fosse simplesmente negativa; porém, é um assunto muito difícil. Para tal propósito, deveríamos começar por reduzir o máximo possível o horizonte da criança, e ainda dentro desse horizonte não proporcionar-lhe mais que noções claras e exatas. Apenas depois que a criança tivesse o conhecimento exato de tudo o que está situado dentro dessa esfera, essa poderia ser ampliada gradualmente, tendo sempre cuidado de que não fique nada de obscuro, nada que haja compreendido pela metade ou equivocadamente. Daí resultaria que suas noções sobre as coisas e sobre as relações humanas, ainda que restritas e simples, seriam, não obstante, claras e verdadeiras, de maneira que não haveria necessidade senão de ampliação, e não de correção; assim se continuaria até que a criança chegasse à juventude. Esse método em particular exige que não se permita a leitura de romances, que devem ser substituídos por biografias convenientemente escolhidas, como, por exemplo, a de Franklin, Anton Reiser [2], de Moritz e outras.

Enquanto somos jovens, imaginamos que os acontecimentos e os personagens importantes de nossas vidas farão sua aparição em nossa existência com tambores e trombetas. Na idade madura, um olhar retrospectivo nos mostra que todos chegaram muito discretamente pela porta dos fundos, quase despercebidos.

Assim, sob a presente perspectiva, podemos comparar a vida a um tecido bordado, do qual cada um vê, na primeira metade de sua existência, apenas o anverso, e, na segunda, o reverso. Esse último lado não é tão belo, porém é mais instrutivo, pois permite reconhecer a trama dos fios.

Mesmo a maior superioridade intelectual não faz valer plenamente sua autoridade na conversa senão depois dos quarenta anos. Porque a maturidade própria da idade e os frutos da experiência podem avantajar-se em muito, porém nunca podem ser substituídos pela inteligência. Essas condições proporcionam, mesmo ao homem mais vulgar, um certo contrapeso às forças do espírito mais elevado, desde que esse ainda seja jovem. Não falo aqui mais que da personalidade, não das obras.

Quando passa dos quarenta anos, todo homem eminente, todos os que não sejam parte dos cinco sextos da humanidade tão miseravelmente dotados pela natureza, dificilmente deixará de possuir um certo toque de misantropia. Porque, como é natural, julgou o caráter dos demais a partir do seu próprio e gradualmente desiludiu-se. Compreendeu que estão bastante atrasados em relação a ele, seja pelo cérebro, seja pelo coração, na maioria das vezes nas duas coisas. Desse modo, de bom grado evita todo contato com eles. Pois, em geral, todo homem amará ou odiará a solidão, isto é, sua própria companhia, na medida em que tenha algum valor em si mesmo. Até Kant discute esse gênero de misantropia na Crítica do Juízo, no final da nota geral do § 29 da primeira parte.

Para um jovem, tanto na perspectiva intelectual quanto moral, é um mau sinal se, com pouca idade, já sabe como lidar com as pessoas e sente-se à vontade com elas, envolvendo-se em seus assuntos como se estivesse preparado de antemão; isso indica vulgaridade. Pelo contrário, uma atitude de assombro, surpresa, desagrado e desconforto é, em tais circunstâncias, o indício de uma natureza de espécie nobre.

A alegria e a vivacidade de nossa juventude devem-se parcialmente ao fato de que estamos subindo a colina da vida e não vemos a morte situada ao pé da outra vertente. Porém, quando chegamos ao cume, vemos com nossos olhos a morte, que até então só conhecíamos por ouvir falar; e como, nesse momento, as forças vitais começam a diminuir, nosso ânimo se abate ao mesmo tempo. Uma seriedade sombria sucede a alegre exuberância juvenil e se imprime em nosso semblante. Enquanto somos jovens, digam o que disserem, acreditamos que a vida não tem fim, e usamos o tempo com prodigalidade. À medida que envelhecemos, nos tornamos mais econômicos; porque, em idade avançada, cada dia da vida que transcorre provoca em nós o sentimento que experimenta o condenado a cada passo que lhe aproxima do cadafalso.

Considerada do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do ponto de vista da velhice, é um passado muito curto. De tal maneira que, a princípio, a vida se nos apresenta como uma imagem na qual os objetos aparecem a uma grande distância, como se os víssemos através de um telescópio invertido; enquanto que, ao fim, como por uma lente de aumento. Temos de haver envelhecido, isto é, haver vivido muito, para reconhecer quão curta é a vida. O próprio tempo, durante a juventude, tem um passo muito mais lento; de modo que a primeira quarta parte de nossa vida não só é a mais feliz, senão também a mais ampla, deixando assim muito mais recordações. Cada homem poderia, em qualquer ocasião, contar dessa primeira quarta parte mais acontecimentos que das seguintes. Na primavera da vida, como na primavera do ano, os próprios dias terminam por se tornar cansativos por sua duração; no outono ambos são curtos, porém mais serenos e constantes.

Quando a vida aproxima-se do fim, não sabemos o que aconteceu com ela. Por que na velhice a vida que se tem detrás de si parece tão breve? Porque a consideramos tão curta como a recordação que conservamos dela. Consequentemente, tudo o que nela foi insignificante e grande parte do que foi doloroso foi esquecido e, portanto, resta muito pouca coisa. Porque do mesmo modo como nossa inteligência, em geral, é muito imperfeita, assim também a memória. Devemos exercitar aquilo que aprendemos com a experiência e ruminar nosso passado se não quisermos que ambos desapareçam lentamente no abismo do esquecimento. Porém, normalmente, não gostamos de ruminar o que foi insignificante, menos ainda aquilo que foi doloroso; não obstante, isso é indispensável se quisermos conservar sua lembrança. As coisas insignificantes se fazem cada vez mais numerosas; porque as repetições são frequentes ao princípio, porém no sucessivo se tornam inumeráveis, e muitos fatos que, à primeira vista, nos parecem importantes, perdem todo o interesse à medida que se repetem; assim, recordamos melhor nossos anos de juventude que os que se seguem. Logo, quanto mais tempo vivemos, menos acontecimentos há que pareçam importantes ou significantes o bastante para que mereçam ser ruminados. Entretanto, esse é o único meio de conservar sua recordação; se apenas passarem, os esquecemos. E por isso o tempo foge, deixando cada vez menos traços. Ademais, não gostamos tampouco de voltar às coisas desagradáveis, especialmente quando ofendem nossa vaidade, e isso é o que ocorre com mais frequência, porque poucas coisas desagradáveis nos ocorrem que não sejam por culpa nossa; esquecemos, pois, igualmente, muitas coisas penosas. Nossa memória se torna muito curta devido à eliminação dessas duas categorias de acontecimentos, e se torna cada vez mais curta à medida que mais material é acrescentado. Os anos transcorridos, com nossas aventuras e nossas ações, são como os objetos situados no litoral, que se tornam cada vez menores e mais difíceis de reconhecer e distinguir à medida que nosso barco se distancia. Ademais, há o fato de que a memória e a imaginação por vezes nos trazem uma cena de nossa vida, desaparecida há muito, com tanta vivacidade que nos parece que data de ontem; de modo que o acontecimento em questão parece se situar muito próximo do presente. Esse efeito resulta de que é impossível representarmos de uma só vez e com a mesma vivacidade o grande espaço de tempo que transcorreu entre então e agora. Não podemos abarcá-lo com o olhar em uma só imagem; além disso, os acontecimentos verificados nesse intervalo foram esquecidos em grande parte. Não nos resta disso mais que um conhecimento geral e abstrato daquilo que vivemos, uma simples noção, não uma imagem direta de alguma experiência particular. Então esse passado distante e isolado se apresenta tão próximo que parece ter ocorrido ontem; o tempo intermediário desaparece e nossa vida inteira nos parece uma brevidade incompreensível. Às vezes, na velhice, esse grande passado que temos detrás de nós e, por conseguinte, nossa própria idade, pode em certos momentos parecer-nos como um milagre. Isso resulta principalmente de que vemos sempre ante nós o mesmo presente fixo e imóvel. Os acontecimentos interiores dessa natureza, entretanto, estão fundados no fato de que não é nosso verdadeiro ser-em-si, senão somente sua aparência fenomênica, aquilo que existe sob a forma de tempo e que o presente é o ponto de contato entre o mundo como sujeito e o mundo como objeto. Ainda assim, por que na juventude a vida que temos diante de nós parece imensuravelmente longa? Porque precisamos encontrar espaço para alojar as esperanças ilimitadas com as quais a povoamos, e para cuja realização mesmo Matusalém teria morrido demasiado jovem. Outra razão é que tomamos por escala de sua medida o reduzido número de anos que já temos detrás de nós, cuja recordação é sempre rica em materiais e, portanto, extensa. Pois a novidade faz todas as coisas parecerem importantes; assim, ruminamos sobre elas, as evocamos em nossa memória repetidamente, e acabamos por fixá-las.

Parece às vezes que desejamos encontrar-nos novamente em um lugar distante, sendo que na verdade não desejamos mais que o tempo que passamos ali quando éramos mais jovens e novos. É assim que o tempo nos engana sob o disfarce do espaço. Se viajarmos ao local desejado nos daremos conta da ilusão.

Para chegarmos a uma idade muito avançada, com a condição sine qua non de possuir uma constituição intacta, há dois meios que podem ser ilustrados pela queima de duas lamparinas. Uma queima muito tempo porque, com pouco óleo, tem uma chama muito pequena; e a outra também, pois tem óleo suficiente para uma grande chama. O óleo é a força vital, a chama é o uso dela de qualquer modo ou para qualquer fim.

No que concerne a força vital, podemos compará-la, até os trinta e seis anos, aos que vivem dos juros de um capital; o que se gasta hoje se reembolsa amanhã. A partir dessa idade, nossa posição é análoga à de um aposentado que começa a gastar seu capital. No princípio, a diminuição não é perceptível; a maior parte do gasto é reembolsado e o insignificante déficit passa despercebido. Porém, pouco a pouco, aumenta e se torna aparente, e seu próprio aumento cresce dia a dia. Dissemina-se cada vez mais; cada hoje é mais pobre que cada ontem, e não há esperança de um retorno à estabilidade. O declínio se acelera rapidamente, como a queda dos corpos, até que não reste mais nada. Um homem está numa situação realmente lamentável quando ambos os termos dessa comparação — a força vital e a riqueza — estão a caminho de desvanecerem simultaneamente. Por tal razão, o amor à propriedade aumenta na proporção da idade. Em contrapartida, em nossos primeiros anos, até a maioridade e algo além, somos, quanto à força vital, semelhante aos que, a partir dos juros, acrescentam algo ao seu capital. Com isso não apenas as finanças se estabilizam, mas também o capital recebe constantes acréscimos. Isso ocorre também às vezes com o dinheiro, graças aos cuidados previdentes de um tutor honrado. Ó juventude afortunada! Ó triste velhice! Apesar de tudo isso, devemos economizar as forças da juventude. Aristóteles observa (Política, livro último, cap. V) que entre os vencedores nos jogos olímpicos não se encontra mais que dois ou três que, vencedores uma primeira vez como jovens, tenham triunfado como homens feitos, porque os esforços prematuros que exigem os exercícios preparatórios esgotam de tal maneira as forças que faltam mais tarde na idade viril. Isso se aplica à força muscular e ainda mais à força nervosa, cujas manifestações são as produções intelectuais. Por isso os ingenia praecocia [talentos precoces], as crianças prodígio, esses frutos de uma educação artificial que assombram em sua idade tenra, chegam a ser mais tarde indivíduos perfeitamente vulgares. De fato, é mesmo muito possível que um excesso de aplicação precoce e forçada ao estudo das línguas antigas seja a causa da posterior debilidade e infância intelectual que recaiu sobre tantos sábios.

É notório que o caráter, na maioria dos homens, pareça adaptar-se mais particularmente a uma das idades da vida, de maneira que nessa idade se apresenta sob seu aspecto mais favorável. Uns são pessoas amáveis durante a juventude, e depois isso passa. Outros, em sua idade madura, são homens enérgicos e ativos, mas que em idade avançada perdem todo seu valor. Outros, por fim, se apresentam mais vantajosamente em sua velhice, durante a qual são mais doces, porque têm mais experiência e mais calma. Isso ocorre com frequência na França, e deve provir do fato de que o próprio caráter tem em si algo de juvenil, viril ou senil, com o qual uma fase particular de nossas vidas se harmoniza ou age como corretivo.

Assim como em um barco não nos damos conta de sua marcha senão porque vemos os objetos situados no litoral se distanciarem e, por conseguinte, se tornarem menores, assim nos damos conta de que estamos envelhecendo por meio do fato de que até os indivíduos mais velhos nos parecem jovens.

Já discutimos como e por que tudo que se viu, todas as ações e todos os acontecimentos, à medida que se envelhece, deixam cada vez menos traços. Nesse sentido, pode-se afirmar que a juventude é a única idade em que vivemos com plena consciência, e que na velhice só se tem uma consciência parcial da vida. Quanto mais velhos nos tornamos, menos conscientemente vivemos; os objetos passam com rapidez diante de nós sem deixar-nos impressão, assim como os objetos de arte depois de os termos visto mil vezes. Fazemos a tarefa que temos de fazer, e depois não sabemos sequer se a fizemos. Como a vida se torna cada vez mais inconsciente, quanto mais caminhamos em direção à completa inconsciência, mais rápida é a passagem do tempo. Durante a infância, a novidade das coisas e dos acontecimentos faz com que tudo se imprima em nossa consciência, de modo que os dias são interminavelmente longos. O mesmo nos ocorre, e pelo mesmo motivo, nas viagens, quando um mês nos parece maior que quatro em casa. Apesar dessa novidade, o tempo, que nos parece maior, se torna, na infância como na viagem, na verdade muito maior que na velhice ou em casa. Porém, com o hábito prolongado de perceber as mesmas coisas, o intelecto gradualmente se torna de tal modo embotado que tudo passa por ele sem produzir qualquer impressão. Desse modo, os dias se tornam cada vez mais insignificantes e, por conseguinte, cada vez mais curtos. As horas da criança são maiores que os dias do ancião. Vemos, pois, que o tempo da vida tem um movimento acelerado como o de uma esfera que rola sobre um plano inclinado. Do mesmo modo como, em um disco que gira, cada ponto corre tanto mais depressa quanto mais distante estiver do centro, assim o tempo passa mais rapidamente para cada qual quanto mais distante estiver do começo de sua vida. Logo, pode-se dizer que, em relação à sensação imediata que o tempo produz sobre nós, a duração de um ano é inversamente proporcional ao número de vezes em que dividirá nossa idade. Por exemplo, aos cinquenta anos, o ano nos parece ter apenas um décimo da duração que teve aos cinco anos. Essa diferença na rapidez do tempo exerce a mais decisiva influência sobre nossa maneira de ser em cada idade da vida. Primeiramente, faz com que a infância, ainda que apenas abarque cerca de quinze anos, pareça o período mais longo da existência e, por conseguinte, o mais rico em recordações. Além disso, quanto mais jovens formos, mais é provável que estejamos submetidos ao tédio. As crianças necessitam constantemente de algum passatempo, seja com jogos ou com trabalho; se a ocupação cessa, são acometidas imediatamente de um tédio terrível. Mesmo os adolescentes estão muito sujeitos a isso, e muitos temem as horas em que estarão completamente desocupados. Na idade viril, o tédio vai desaparecendo cada vez mais. Para os anciãos o tempo é sempre demasiado curto e os dias voam com a rapidez de uma flecha. Entenda-se bem que falo de seres humanos e não de brutos envelhecidos. Na maioria das vezes, a aceleração na marcha do tempo suprime o tédio conforme envelhecemos. Por outro lado, conforme as paixões, com seus tormentos, começam a mitigar-se, o fardo da vida, no todo, resulta mais leve que durante a juventude, desde que estejamos em bom estado de saúde. De modo que os anos que precedem a aparição da debilidade e das enfermidades da velhice se chamam “os melhores anos”. Isso talvez seja verdade do ponto de vista de nossa tranquilidade e conforto; mas, em contrapartida, os anos de juventude, em que nossa consciência se encontra vivamente aberta a toda espécie de impressão, têm a vantagem de ser a estação em que são lançadas as sementes das quais brotam os rebentos — é a primavera do espírito. Com efeito, nela as verdades profundas podem ser discernidas, mas nunca ruminadas; isto é, sua primeira percepção é imediata, provocada por uma impressão momentânea. Essa espécie de conhecimento só pode produzir-se por meio de impressões enérgicas, vivas e profundas. Portanto, nesse respeito, tudo depende do modo como empregamos nossos anos de juventude. Posteriormente, podemos trabalhar melhor sobre os demais, sobre o mundo, porque nossas naturezas estão acabadas e completas e não somos mais dependentes das impressões; o mundo, porém, exerce menos influência sobre nós. Esses anos são, pois, a época de ação e de produção, enquanto que os da juventude são os de compreensão e de conhecimento originais.

Na juventude, predomina a percepção intuitiva; na idade madura, a reflexão; por isso a primeira é a época da poesia, enquanto a segunda é a da filosofia. Em questões práticas sucede o mesmo: durante a juventude as resoluções são formadas principalmente por impressões externas provenientes do mundo; enquanto que, mais tarde, as ações são determinadas pela reflexão. Isso se deve parcialmente ao fato de que apenas na idade madura os casos de percepção intuitiva se apresentam em número suficiente para permitir que sejam classificados segundo as ideias que representam — um processo que, por sua vez, faz com que tais ideias sejam compreendidas mais completamente em toda a sua significância, sendo fixada e determinada sua quantidade exata de valor e crédito; enquanto, ao mesmo tempo, acostumou-se às impressões produzidas pelos vários fenômenos da vida, e seus efeitos sobre si já não são os mesmos. Pelo contrário, na juventude a impressão da percepção intuitiva, o aspecto exterior das coisas, especialmente nos cérebros vivos e imaginativos, é tão poderosa que consideram o mundo como um quadro. Desse modo, preocupam-se com a espécie de figura que esculpem nele muito mais que com a disposição interior que desperta, moral e intelectualmente. Isso já se revela na vaidade pessoal e no gosto por roupas finas, que são características dos indivíduos jovens.

A maior energia e a mais elevada tensão de nossas forças intelectuais se manifestam indubitavelmente durante a juventude e até os trinta e cinco anos, no máximo. A partir dessa época diminuem, ainda que muito lentamente. Não obstante, os anos seguintes e mesmo a velhice não carecem de compensações intelectuais. Nesse momento a experiência e a instrução se tornaram realmente abundantes; tivemos tempo e ocasião para considerar e ponderar as coisas sob todos os seus aspectos. Comparamos uma coisa com outra e descobrimos seus pontos de contato e seus vínculos, sendo que apenas agora compreendemos suas relações corretamente. Tudo está esclarecido e, assim, temos uma compreensão muito mais profunda daquilo que já conhecíamos em nossa juventude, porque para cada noção temos muito mais provas. Aquilo que, em nossa juventude, acreditávamos saber, na idade madura sabemos realmente; além disso, efetivamente sabemos mais e possuímos um conhecimento coerente e consistente, que foi explorado em todas as direções. Em nossa juventude, pelo contrário, nosso saber é sempre defeituoso e fragmentário. Apenas o homem que chegou a uma idade muito avançada terá uma ideia completa e consistente da vida; pois sua vista a abarca em seu todo e em seu curso natural, e, sobretudo, não a vê como os demais, unicamente do lado de entrada, mas também do lado de saída. Desse modo, em especial, reconhece plenamente sua nulidade, enquanto que os demais ainda estão envolvidos pela ideia errônea de que, no fim, tudo dará certo. Em contrapartida, durante a juventude, há mais concepção, e segue-se que somos capazes de produzir mais com o pouco que conhecemos; porém, na idade madura, temos mais discernimento, mais penetração e profundidade. Um espírito privilegiado, já em sua juventude, adquire o material de seu conhecimento, de suas opiniões originais e fundamentais, isto é, de tudo aquilo que está destinado a dar como presente ao mundo; porém apenas muitos anos depois se torna mestre de seu assunto. Verificaremos, desse modo, que na maioria das vezes os grandes escritores não produziram suas obras mestras senão por volta dos cinquenta anos. Não obstante, a juventude permanece como a raiz da árvore do conhecimento, ainda que seja a copa da árvore que produz os frutos. Porém, assim como cada época, ainda a mais lastimável, acredita-se muito mais sábia que todas as que a precederam, de igual maneira a cada idade o homem se crê superior ao que era; entretanto, em ambos os casos, muitas vezes estamos equivocados. Durante os anos de crescimento físico, quando aumentamos diariamente em forças intelectuais e em conhecimento, torna-se um hábito que o hoje veja o ontem com desprezo. Esse costume se arraiga e permanece ainda quando a decadência das forças intelectuais já começou e o hoje deveria olhar o ontem com reverência e respeito. Assim, comumente subestimamos não apenas as produções, mas também os juízos dos nossos anos de juventude. [3]

Devemos notar que, ainda que, em suas qualidades fundamentais, o entendimento ou cérebro, assim como o caráter ou o coração, sejam inatos, o primeiro não permanece de modo algum tão inalterável quanto o último. Pelo contrário, está sujeito a muitas modificações que, em conjunto, se produzem regularmente. Isso se deve, por um lado, ao fato de que o cérebro ou o entendimento tem um fundamento físico e, por outro, que o material com o qual trabalha é fornecido pela experiência. Sendo assim, sua própria força tem um crescimento gradual até atingir seu ponto culminante, após o qual há seu decrescimento contínuo até a imbecilidade. Mas, por outro lado, não devemos perder de vista o fato de que o material que dá emprego a essas forças e as mantêm em atividade — o conteúdo do pensamento e do saber, a experiência, as conquistas intelectuais, o exercício do discernimento e a perfeição que daí resulta — formam elas próprias uma massa que cresce constantemente, até o momento em que se manifesta a debilidade definitiva e tudo é posto de lado e abandonado. O homem consiste de um elemento que é absolutamente inalterável e de outro que varia regulamente de dois modos e em direções opostas. Isso explica a diversidade de seu aspecto e de seu valor nas diferentes épocas da vida.

Em um sentido mais amplo, pode-se dizer também que os quarenta primeiros anos da existência proporcionam o texto e os trinta seguintes o comentário. Esse então nos faz compreender bem o sentido verdadeiro e a sequência do texto, juntamente com sua moral e todas as suas nuances e sutilezas.

Em relação ao término da vida, há algo que lembra o final de um baile de mascarados quando as máscaras são retiradas. Nesse momento realmente se vê quais eram aqueles com os quais se esteve em contato durante sua vida. Os caracteres se revelaram, as ações deram seus frutos, as obras encontraram sua exata apreciação e todas as fantasmagorias desapareceram. Porque para isso foi necessário tempo. O mais curioso é que apenas no fim de nossas vidas realmente reconhecemos e compreendemos a nós próprios, nossas metas e objetivos, especialmente no que concerne às nossas relações com o mundo e com os demais. Muitas vezes, mas não sempre, teremos de nos classificar mais abaixo do que anteriormente supúnhamos merecer. Porém às vezes nos concederemos um posto superior, isso porque não tínhamos uma noção adequada da baixeza do mundo, e havíamos lançado aspirações mais elevadas que o restante da humanidade. A marcha da vida nos ensina a conhecer o que cada qual vale.

Costuma-se chamar a juventude a época feliz e a velhice a época triste da vida. Isso estaria correto se as paixões nos tornassem felizes. Porém a juventude é governada e distraída por elas, proporcionando-lhe poucas alegrias e muitos sofrimentos. Com a idade as paixões esfriam e deixam o indivíduo em paz, que em seguida se reveste de um tom contemplativo; porque o conhecimento se torna livre e assume o controle. Visto que o conhecimento está por si mesmo isento de dor, somos mais felizes quanto mais conscientes estivermos de sua predominância em nossa natureza. Na idade madura sabe-se precaver melhor contra a desgraça; na juventude, suportá-la. Não precisamos mais que refletir que todo prazer é negativo e toda dor é positiva para compreender que as paixões não poderiam nos tornam felizes, e que a idade avançada não deve ser desdenhada porque alguns prazeres lhe estejam proibidos. Porque todo prazer não é mais que a satisfação de uma necessidade ou carência. Não se é desgraçado por perder um prazer quando a necessidade deixa de existir, assim como não se é desgraçado por não poder comer depois de já haver comido, ou ter de permanecer acordado depois de uma boa noite de sono. Platão, em sua introdução à República, tem razão ao julgar a velhice feliz por estar despojada do instinto sexual que até então nos molestava e atormentava continuamente. Quase se poderia afirmar que as fantasias diversas e infindáveis que o instinto sexual engendra, assim como as emoções que daí resultam, mantêm o homem numa benigna e constante demência enquanto está sob a influência desse instinto ou desse diabo de que se vê possuído continuamente; de modo que não chega a ser completamente racional senão após sua extinção. Não obstante, é certo que, em geral e à parte de todas as circunstâncias e situações individuais, uma certa melancolia e tristeza são próprias da juventude, enquanto que uma certa serenidade é própria da velhice. A razão disso é simplesmente que o jovem ainda está sujeito ao domínio e ao trabalho forçado imposto por esse demônio que dificilmente lhe concede uma hora de liberdade e que também é o autor, direto ou indireto, de quase todas as calamidades que afligem ou ameaçam o homem. Mas a idade madura tem a serenidade daquele que rompeu com as correntes que levou durante muito tempo e que agora desfruta de poder mover-se livremente. Por outro lado, se poderia dizer que, uma vez extinto o impulso sexual, se há consumido o verdadeiro cerne da vida, e não resta mais que a casca. Na verdade, a vida parece com uma comédia cuja representação, começada por homens vivos, é terminada por autômatos revestidos pelos mesmos trajes.

Seja como for, a juventude é o momento da inquietação, a idade madura, do repouso; isso basta para inferir seus prazeres e benefícios respectivos. A criança estende suas mãos no ávido desejo de trazer para si todos esses objetos tão estranhos e tão diversos que vê diante de si; tudo isso a encanta, pois seus sentidos ainda estão bem jovens e frescos. O mesmo ocorre, porém com mais energia, em relação ao jovem, que também se encanta com o mundo de cores brilhantes e de figuras múltiplas. Sua imaginação lhe atribui imediatamente mais valor do que o mundo jamais poderia oferecer. Assim, a juventude está repleta de anseios e de aspirações por algo vago e indefinido; e isso lhe proíbe esse repouso sem o qual não há felicidade. Desse modo, enquanto o jovem imagina que o mundo tem muitas maravilhas a oferecer, bastando apenas encontrá-las, o ancião está convencido, juntamente com Eclesiastes, de que tudo é vaidade, e sabe que todas as nozes são vazias, mesmo que brilhem como ouro. Com a idade, tudo isso se acalma, em parte porque o sangue se esfriou e a excitabilidade do sensorial diminuiu; em parte porque a experiência nos ensinou sobre o valor das coisas e sobre o conteúdo dos prazeres. Desse modo, nos despojou pouco a pouco das ilusões, das quimeras e dos preconceitos que ocultavam e deformavam até então o aspecto livre e nítido das coisas. De maneira que reconhecemos todas as coisas de modo mais exato e correto, as tomamos pelo que são e adquirimos em maior ou em menor grau a convicção do vazio e do nada de todas as coisas terrestres. Isso é o que dá a quase todos os anciãos, mesmo os de inteligência muito vulgar, certo tom de sabedoria que os distingue dos jovens. Porém o resultado principal disso tudo é a calma intelectual, que é um elemento importante, e até a condição e a essência da felicidade.

Ademais, acredita-se que a sina da velhice é a enfermidade e o tédio. A primeira certamente não é própria dessa idade, especialmente quando se espera chegar a uma velhice muito avançada; pois crescente vita, crescit sanitas et morbus [à medida que avança a vida, crescem a saúde e a enfermidade]. Quanto ao tédio, já foi demonstrado mais acima por que a velhice tem menos que temê-lo que a juventude. Ademais, o tédio não é tampouco o companheiro obrigatório da solidão à qual somos arrastados pela idade, por motivos fáceis de compreender. Pelo contrário, só acompanha aqueles que não conheceram nenhum prazer senão os dos sentidos e da sociedade, e não enriqueceram suas mentes nem desenvolveram suas faculdades. É verdade que em uma idade avançada as forças intelectuais também declinam, porém onde houve muitas sempre sobrarão bastantes para combater o tédio. Ademais, como temos demonstrado, nossa compreensão exata das coisas aumenta com a experiência, sabedoria, exercício e reflexão; o julgamento torna-se mais penetrante e se aclara a sequência e concatenação das ideias. Todas as coisas contribuem para uma visão cada vez mais completa do todo. A combinação sempre variada dos conhecimentos adquiridos, as novas aquisições e o próprio cultivo de nós mesmos favorecem em todos os sentidos o desenvolvimento contínuo de nosso intelecto, no qual o espírito encontra ocupação, satisfação e recompensa. Tudo isso compensa, até certo ponto, a debilitação intelectual de que falávamos. Ademais, sabemos que na velhice o tempo corre mais rapidamente, e isso neutraliza o tédio. A debilitação das forças corporais não é muito prejudicial, exceto no caso em que se necessite dessas forças para a profissão que se exerce. A pobreza durante a velhice é uma grande desgraça; porém, se a houvermos evitado e se tivermos conservado a saúde, a velhice pode ser uma parte muito suportável da vida. A comodidade e a segurança são suas principais necessidades; por isso, em idade avançada, se ama o dinheiro mais que na juventude, pois funciona como substituto para as forças que faltam. Abandonados por Vênus, buscamos alegria e diversão em Baco. A necessidade de ver, de viajar e de aprender é substituída pela de ensinar e falar. É uma alegria para ancião ter conservado amor pelo estudo, pela música, pelo teatro e, em geral, uma certa suscetibilidade às coisas exteriores. No caso de alguns indivíduos idosos isso ocorre até uma idade bastante avançada.

Somente em sua velhice o homem chega plenamente ao nil admirari [não se admirar de nada] de Horácio, isto é, à convicção imediata, sincera e firme da vaidade de todas as coisas e da vacuidade de todas as pompas do mundo. As quimeras desapareceram e não nos enganamos com a ilusão de que reside em alguma parte, no palácio ou na cabana, uma felicidade especial maior que aquela da qual desfrutamos sempre que estivemos livres de toda dor física ou moral. Já não existem mais as distinções mundanas entre o grande e o pequeno, entre o nobre e o vil. Isso dá ao ancião uma tranquilidade particular de ânimo que lhe permite observar com um sorriso as fantasmagorias deste mundo. Está completamente desiludido, e sabe que a vida humana, faça-se o que se fizer para decorá-la ou enfeitá-la, não tarda em revelar, em meio a esses ouropeis, sua natureza árida e miserável. Faça-se o que se fizer para pintá-la e adorná-la, sempre foi e será essencialmente a mesma coisa, uma existência cujo valor real deve ser calculado pela ausência das dores e não pela presença dos prazeres, e ainda menos da pompa e do fausto (Horácio, Epistolae, I. 12. 1—4). O traço fundamental e característico da velhice é a desilusão; desapareceram as ilusões que até então davam à vida seu encanto e à atividade seu aguilhão. Reconhecemos o nada e a vaidade de todas as magnificências deste mundo, especialmente da pompa, do brilho e do esplendor das grandezas. Compreendemos a insignificância do que há no fundo de quase todas essas coisas que se deseja e desses prazeres a que se aspira; e chegamos assim, pouco a pouco, a convencer-nos da pobreza e do vazio da existência. Só aos setenta anos se compreende bem o primeiro versículo de Eclesiastes [5]; e isso, por sua vez, explica por que os indivíduos idosos às vezes são ranzinzas e mal-humorados. O que o homem tem em si mesmo nunca é mais bem aproveitado que na velhice.

É verdade que a maioria dos indivíduos, tendo sido o tempo todo obtusos de entendimento, se tornam cada vez mais autômatos à medida que avançam na vida. Pensam, dizem e fazem sempre o mesmo; e nenhuma impressão exterior pode mudar o curso de suas ideias ou fazer-lhes produzir algo novo. Falar com velhos semelhantes é como escrever na areia, pois a impressão se borra quase instantaneamente. Uma velhice dessa espécie, na verdade, não é mais que o caput mortuum [“cabeça morta”, i.e. restos mortais] da vida. A natureza parece haver desejado simbolizar a chegada dessa segunda infância pelo aparecimento de uma terceira dentição, algo que ocorre em alguns casos raros entre os anciãos. A debilitação de todas as forças conforme envelhecemos é, em verdade, uma coisa triste; porém é necessária e até benéfica, do contrário, a morte, da qual é um prelúdio, seria demasiado penosa. Assim, a vantagem principal que uma idade muito avançada proporciona é a eutanásia. Uma morte muito fácil, sem enfermidades que a precedam, sem convulsões que a acompanhem; uma morte que não se sente. Dá-se uma descrição dela no segundo volume de minha obra capital, capítulo 41. [6]

Porque, por mais tempo que se viva, não se possui nada mais que o presente indivisível; porém a lembrança perde a cada dia pelo esquecimento mais do que ganha com o acréscimo. Quanto mais se avança em idade, mais insignificantes nos parecem as coisas humanas, por maiores que sejam; a vida que, durante a juventude, estava ali ante nós, firme e imóvel, nos parece agora uma sucessão rápida de fenômenos efêmeros; e se compreende o vazio e o nada das coisas deste mundo.

A diferença fundamental entre a juventude e a velhice sempre será que a primeira tem a vida em perspectiva, e a segunda, a morte; que, por conseguinte, uma possui um passado curto com um longo futuro, enquanto a outra possui o contrário.

Os anos da velhice são como o quinto ato de uma tragédia; sabemos que um fim trágico está próximo, mas ainda não sabemos qual será. É certo que o ancião não tem diante de si mais que a morte, porém o jovem tem a vida. A questão consiste em saber qual das duas perspectivas oferece mais inconvenientes e se, no todo, não é preferível ter a vida detrás que diante de si. Já disse Eclesiastes (7:1): O dia da morte é melhor que o dia do nascimento. Em todo caso, sem dúvida é imprudente desejar uma vida muito longa; pois, como diz um provérbio espanhol: quien larga vida vive mucho mal vive.

É verdade que o curso das existências individuais não está traçado nem é indicado pelos planetas, como supunha a astrologia; porém, a marcha da vida humana em geral, no que diz respeito aos vários períodos da vida, é comparável à sucessão dos planetas, e pode-se dizer que cada idade é influenciada por um deles. Aos dez anos de idade rege Mercúrio; como esse, o indivíduo se move com rapidez e facilidade em um círculo muito reduzido. As menores banalidades podem influenciá-lo, porém aprende com muita facilidade sob a orientação do deus da astúcia e da eloquência. Com vinte anos começa o domínio de Vênus; o amor e as mulheres o possuem por inteiro. Aos trinta anos reina Marte, e então o homem é impetuoso, forte, robusto, belicoso e altivo. Aos quarenta anos governam os quatro asteroides e, assim, o campo de sua vida aumenta; é frugi, isto é, se consagra ao útil, pela virtude de Ceres; tem sua própria lareira pela influência de Vesta; aprendeu o que necessita saber por meio de Pallas; e a senhora de seu lar, sua esposa, reina como Juno. [7] Porém, aos cinquenta anos, domina Júpiter; o homem já sobreviveu à maior parte de seus contemporâneos e se sente superior à geração atual. Ainda em plena posse de suas forças, é rico em experiência e em conhecimento; na medida de sua individualidade e de sua posição, tem autoridade sobre todos os que o rodeiam. Assim, não se deixa mandar, porque quer dirigir também. Encontra-se agora mais apto para guiar e governar em sua própria esfera. Assim culmina Júpiter e com ele o quinquagenário. Depois, aos sessenta anos, chega Saturno, e com ele o pesadume, a lentidão e a ductilidade do chumbo:

But old folks, many feign as they were dead;
Unwieldy, slow, heavy and pale as lead.

[mas gente velha parece morta; é chumbo escuro e lerdo. (Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II, Cena V.)]

Por fim, vem Urano, é o momento de ir ao céu, como se diz. Não levo em consideração Netuno (assim chamado por irreflexão), porque não posso chamá-lo pelo seu verdadeiro nome, que é Eros. Do contrário, demonstraria como o início e o fim se encontram, e quão íntima é a conexão secreta de Eros com a morte. Em virtude dessa relação, Orcus ou Amenthes dos egípcios (Plutarco, De Iside et Osiride, c. 29) é λαμβάνων καὶ διδούς [aquele que dá e aquele que recebe], por conseguinte, não somente aquele que toma, mas também aquele que dá, e a morte é o grande réservoire [reservatório] da vida. Portanto, tudo vem de Orcus, e tudo que tem vida já esteve lá. Se ao menos fôssemos capazes de compreender o truque de como isso se realiza, então tudo estaria claro.

  1. Ah, esses anos de infância! Quando o tempo passa tão lentamente que tudo parece quase estático, como se quisesse permanecer como está por toda a eternidade.
  2. Essa obra está escrita na forma de um romance, mas, para todos os propósitos, é uma biografia.
  3. Ainda assim, em nossa juventude, quando o tempo é mais precioso, o gastamos com liberalidade, e apenas na velhice começamos a economizá-lo.
  4. Não se perturbar com nada é quase o único meio que pode dar e conservar a felicidade. (Horácio, Epistulae, 1.6.1)
  5. Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.
  6. A vida humana, propriamente falando, não pode chamar-se nem longa nem curta, porque, no fundo, é a escala com que medimos todas as demais dimensões de tempo. No Upanishad do Veda (Oupnekhat, vol. II, p. 53) afirma-se que a duração natural da vida humana é de cem anos. Creio que com razão, porque nota-se que os que passaram dos noventa anos acabam pela eutanásia, isto é, que morrem sem enfermidade, sem apoplexia, sem convulsão, sem estertor; até sem empalidecer, na maioria das vezes sentados, depois das refeições; seria mais exato dizer que não morrem, senão que cessam de viver. Antes dessa idade morre-se apenas devido a doenças e, portanto, prematuramente. No Antigo Testamento (Salmos 90:10) a duração da vida humana é calculada em setenta, no máximo oitenta anos; e o mais notável é que Heródoto disse o mesmo (l. I, c. 32 e l. III, c. 22). Porém isso é falso, sendo apenas o resultado de uma interpretação grosseira e superficial da experiência cotidiana. Porque se a duração natural da vida fosse de setenta a oitenta anos, os homens que se encontrassem nessa idade deveriam morrer de velhice; mas não é o que ocorre. Morrem como os jovens, por enfermidade, que é algo essencialmente anormal; de modo que o fim não é natural. Somente entre os noventa e os cem anos se torna normal morrer de velhice, sem enfermidade, sem luta, sem convulsões, sem estertor, às vezes sem empalidecer; isso se denomina eutanásia. Portanto, também nisso tem razão o Upanishad quando confere cem anos à duração natural da vida.
  7. Uns cinquenta asteroides desde então descobertos são uma novidade na qual não estou interessado. Assim, minha postura em relação a eles é como a dos professores de filosofia comigo. Ignoro-os porque não servem aos meus propósitos.
  • autor: Arthur Schopenhauer
  • tradução: André Cancian
  • fonte: Parerga and Paralipomena