1. Introdução
Sempre tive a curiosidade de entender por que se acredita na existência de deus. Quero dizer, eu sei que deus não existe, mas sei também que se acredita nele. E, se se acredita, deve haver algum motivo para isso — algum motivo humano.
Porém, como os próprios indivíduos que creem nesse tipo de “entidade” parecem ignorar esse tipo de detalhe, e como os ateus em geral contentam-se com refutações conceituais da existência divina, nunca foi fácil distinguir o melhor caminho a ser tomado para investigar esse tipo de questão.
Seria fácil demonstrar que crenças religiosas estão equivocadas quanto ao mundo exterior. Porém, a ideia nunca foi simplesmente rotulá-las como “equivocadas” e encerrar a discussão. Queria também entendê-las quanto àquilo em que estão certas — isto é, quanto ao nosso mundo interior. Noutras palavras, por que a crença religiosa funciona, se sabemos que é falsa?
2. A raiz emocional da crença
Depois de alguns anos refletindo sobre o assunto, cheguei a um modelo que parece razoável para explicar esse fenômeno.
A premissa é que a crença religiosa baseia-se em sentimentos, sendo a racionalização de tais sentimentos na forma de “explicações” aquilo que constitui a esfera “conceitual” da crença religiosa. Sabemos que, nesse nível conceitual — no sentido de ser uma “explicação” para o mundo —, a religião está em geral equivocada, havendo abundantes evidências disso no meio científico. Porém, o que nos interessa aqui é entender a esfera “humana” da crença religiosa, não o mero reflexo linguístico disso, as racionalizações desse sentimento.
O problema é que, para tornar um sentimento comunicável, precisamos racionalizá-lo, transformá-lo em conceitos — e tais conceitos, baseando-se em sentimentos pessoais que antecedem a linguagem, serão algo incompreensível aos que não tiverem vivido esses mesmos sentimentos pessoalmente. Serão algo, por assim dizer, “criptografado”. No caso, a única chave para entender tais conceitos seria ter vivido as experiências nas quais se baseiam.
A crença religiosa nasceria, então, como um sentimento pessoal. Esse sentimento seria depois racionalizado em alguma “teoria”, tornando-se comunicável. Porém, nesse processo de tradução “sentimento/linguagem”, só os que tivessem experimentado esses mesmos sentimentos conseguiriam entender o “verdadeiro sentido” do que quisemos dizer. Os demais permaneceriam “incrédulos” ou “cegos” à nossa verdade, pois não a “viveram” (parece ser esse o mecanismo psicológico de uma “verdade revelada”).
Nessa ótica, a raiz da religiosidade não estaria naquilo em que se acredita, isto é, nas explicações particulares que aprendemos a dar para nossos sentimentos. Isso diferiria de indivíduo para indivíduo. Pelo contrário, a religiosidade estaria nesses próprios sentimentos, tomados em si mesmos. Porém, em si mesmos, tais sentimentos são incomunicáveis.
O importante está em notarmos que, por detrás da “casca linguística” de nossas crenças, que seria “superficial”, haveria esse nível mais “profundo” de nossas vidas, que é essencialmente emocional — e seria esse elemento emocional que nos inspiraria à criação de “explicações” que, por sua vez, justificariam essas mesmas emoções racionalmente, num movimento circular de autovalidação (vemos aqui uma clara hierarquia entre razão e emoção, estando a emoção decisivamente no controle, porém de uma forma dissimulada).
Então, para entendermos a crença religiosa, seria preciso entendermos essa raiz emocional da qual nasce. Porém, como essa raiz emocional existe num nível pré-linguístico de nossas vidas mentais, parece impossível penetrar na questão religiosa diretamente, por meio da racionalidade, sem nunca ter vivido experiências religiosas. Seria como tentar “entender” o que é “verde” sem nunca ter visto cores.
Até aqui, tudo o que fizemos foi delinear como a crença religiosa parece nascer de um sentimento, o qual seria então racionalizado em alguma “explicação” — lembrando que tais explicações, à luz da ciência, quase invariavelmente se mostram equivocadas. Naturalmente, não haveria problema algum se a questão da religiosidade permanecesse restrita ao âmbito de nossa interioridade, como uma espécie de “sabedoria de vida”. Porém, quando passamos a buscar em nossas vidas interiores respostas para o mundo exterior, caímos no erro típico das explicações religiosas: o indivíduo projeta seus sentimentos pessoais como explicações para a realidade exterior — tentando explicar o mundo a partir de como se sente a seu respeito. Porém, como a física não está submetida aos nossos sistemas límbicos, o resultado disso é sempre uma interpretação falsa da realidade, centrada na perspectiva humana, e que não pode ser demonstrada de forma objetiva, pois só existe em nosso modo pessoal de sentir a realidade.
3. Amigos reais e imaginários
Essa parece ser a mecânica essencial da crença humana, não apenas a religiosa. Convicções de base emocional parecem sempre basear-se nesse mesmo mecanismo de “racionalização” de sentimentos. Agora, para conseguirmos penetrar um pouco na questão religiosa sem ter acesso à chave original — a experiência mística —, podemos tentar outro caminho, o da empatia.
Pensemos o seguinte: se tivéssemos de explicar a crença religiosa em termos de sentimentos que conhecemos bem, que sentimentos seriam esses? Por exemplo, se entendêssemos a crença religiosa como gerada pelos mesmos mecanismos mentais, digamos, da amizade ou do amor, não seria essa uma perspectiva muito mais familiar, e muito mais inteligível, a partir da qual interpretar a questão?
Então, para começar a “entrar” no pensamento religioso a partir desse solo compartilhado, imaginemos a seguinte situação: um indivíduo xis está defendendo que deus existe porque, com ele, sua vida tem “sentido”.
Claro que, do ponto de vista formal, esse argumento não diz muita coisa. Porém, deixemos de lado a questão de o indivíduo estar certo ou não, e tentemos apenas entender o que ele está dizendo: sua alegação é que, com a crença em deus, sua vida se torna mais agradável.
Se pensarmos dessa maneira, ficará claro que o que justifica a crença religiosa, nesse nível afetivo, não é sua veracidade, mas o prazer que ela nos proporciona. Agora pensemos: esse tipo de prazer proporcionado pela crença religiosa pode ser equiparado a qualquer outro que sintamos em nosso dia a dia? Parece que sim.
Para ilustrar, imaginemos que estivéssemos nos sentindo sozinhos na vida, abandonados a nós mesmos numa existência solitária e sem sentido. Sentimo-nos vazios, atravessados pela sensação de irrealidade de nossos sonhos.
Agora suponha-se que, determinado dia, encontrássemos uma pessoa, ou um grupo de pessoas, com que compartilhar nossas vidas — pessoas que dessem atenção ao que fazemos, que nos motivassem, nos ajudassem a alcançar nossos objetivos, e assim por diante. Poderíamos dizer que, nessa situação, a convivência “deu sentido” às nossas vidas.
Muito bem, agora nos perguntemos: em que o “sentido” encontrado a partir de outro ser humano diferiria do sentido encontrado a partir da crença em deus? Ao que parece, em nada. Talvez pareça existir alguma diferença em nível conceitual — talvez se racionalizarmos que o “sentido divino” seria “mais perfeito” que o humano —, mas não parece haver qualquer diferença em como nos sentimos. O resultado prático, o bem-estar, é o mesmo.
Claro que a religião lida com toda uma série de sentimentos distintos. Porém, parecem ser todos sentimentos cotidianos, que experimentamos no dia a dia. Nesse caso particular, como deus nos afasta da “solidão” ou do “vazio”, note-se que ele estaria funcionando como uma espécie de amigo imaginário, e não fazemos tal afirmação simplesmente como um “insulto”, mas como uma descrição bastante exata do que parece estar ocorrendo, isto é, do papel que a crença nessa entidade estaria executando em nossas vidas em termos de satisfação pessoal.
Deus, nessa ótica, seria uma espécie de “amigo de segurança”, protegendo-nos da sensação de que nossas vidas poderiam a qualquer momento despencar no vazio. Naturalmente, esse é um papel que poderia, a princípio, ser executado por qualquer pessoa. Porém, quando não temos ninguém ao nosso lado, o que nos resta é deus. Assim, nessa lógica, indivíduos acreditariam em deus pelo mesmo motivo que têm amigos — porque vivem melhor assim.
4. Racionalizando o desconhecido
Antes de encerrar a discussão, resta analisarmos um último ponto: a independência entre o que pensamos e o que sentimos. Para exemplificar essa ideia, consideremos que, aos olhos do indivíduo religioso, o prazer decorrente da “amizade divina” será em geral entendido como uma “prova” da existência de deus. Porém, eis o detalhe interessante: se refutássemos essa sua explicação — e todas as demais que pudesse oferecer —, ele deixaria de crer em deus? Dificilmente, pois continuaria sentindo que deus existe — sendo essa a verdadeira base de sua crença. Então, mesmo que o indivíduo tenha agora encontrado uma “razão” para crer em deus, não foi essa razão que, originalmente, o levou a crer. Por isso refutá-la também não o levará a descrer. Para que parasse de crer, precisaríamos fazer com que o indivíduo parasse de sentir que deus existe — e parece difícil imaginar como isso poderia ser feito.
Perceba-se que, no exemplo acima, as “explicações” do indivíduo religioso seriam apenas uma tentativa, mais ou menos desesperada, de justificar aquilo que sente, sendo óbvio que a motivação por detrás de seu comportamento não é entender o mundo, mas proteger seu objeto de afeto — a agradável sensação de “sentir-se acompanhado” que deus lhe proporciona. Então, como suas “explicações” são simplesmente um meio, resulta que não faz realmente diferença se o indivíduo acredita que seu bem-estar decorre de um “milagre divino”, de uma “iluminação espiritual”, ou de qualquer outra fantasia do gênero. Sua explicação é tão somente um palavrório vazio para uma realidade que ele ignora sobre si mesmo.
As explicações racionais que damos para nossos sentimentos seriam, nessa ótica, simplesmente um véu de linguagem lançado sobre uma base irracional, sobre a qual não temos controle, e que em geral não entendemos — indicando por que temos a tendência de “explicar” tais sentimentos de maneira simbólica, por meio de racionalizações, em vez de explicá-los literalmente, por meio de descrições.
Nesse esquema, como já deve ter ficado claro, o conceito de deus seria apenas um simbolismo para algo que o indivíduo sente. Ao falar da existência de deus, o sujeito pensa estar falando de um ente exterior, mas, sem perceber, está descrevendo sua própria vida interior — a despeito de a alegoria usada para “dar forma” a esse sentimento ter acidentalmente tomado a forma de uma explicação para o mundo.
Dentro disso, um detalhe interessante é que, apesar de não entendermos realmente a natureza e a significância da crença em deus, nós agimos como se entendêssemos. Nós em geral também não entendemos por que queremos ter amigos — mas mesmo assim queremos tê-los. Nessa situação, se nos perguntarem o porquê disso, as chances são que inventaremos uma explicação qualquer para justificar aquilo que sentimos — sendo óbvio que, se alguém refutasse tais razões, nós nem por isso deixaríamos de ter amigos. Similarmente, no caso da crença religiosa, sabemos no que acreditar, mas não sabemos o porquê disso. Nessa situação, nós inventamos uma explicação que supostamente justificaria nossos sentimentos, e passamos a gostar dessa explicação, não porque ela faz sentido, não porque ela é verdadeira, mas porque ela reflete aquilo de sentimos. Porém, o tempo todo, ao proceder dessa maneira, confabulando explicações racionais para nossa vida interior, parece que estamos apenas tentando dar forma, através da linguagem, ao mundo que existe dentro de nós mesmos — não tentando entender o mundo que nos cerca.
A lição a ser tirada disso tudo parece ser que, em grande parte, nós não entendemos nossas próprias vidas. Daí ser possível esse tipo de equívoco tão básico sobre nós mesmos, e sobre a natureza da realidade.
5. Conclusão
Mesmo que só em linhas gerais, a exposição acima já nos dá alguma direção para começarmos a “decodificar” a religião em termos naturais. Apesar de o conteúdo conceitual da crença religiosa ser facilmente refutável, vimos que não parece ser essa a sua essência. Parece haver algo essencialmente humano no que faz a religião funcionar, e esse algo não parece depender das explicações particulares em que se acredita. Dito de outro modo, apesar de tomar frequentemente essa roupagem, a religião não seria uma explicação para o mundo, mas uma explicação de nós mesmos. Então, se quisermos entender por que a religião é falsa, bastará olharmos o mundo ao nosso redor. Porém, se quisermos entender por que é verdadeira, teremos de olhar para dentro de nós mesmos.