O problema objetivo consiste numa investigação acerca da verdade do cristianismo. O problema subjetivo diz respeito à relação do indivíduo com o cristianismo. Para pôr as coisas de forma simples: como é que eu, Johannes Climacus [Kierkegaard], posso participar da felicidade prometida pelo cristianismo? …
Partindo do princípio de que não há problemas com as Escrituras — o que se segue? Uma pessoa que antes não tinha fé passou a estar um só passo mais próximo de a ter? Não, nem um só passo. A fé não resulta da investigação científica; não tem de todo uma origem direta. Pelo contrário, nesta objetividade há a tendência para perder o interesse pessoal infinito pela paixão que é a condição da fé, o ubique et musquam no qual a fé pode brotar. Uma pessoa que antes tinha fé ganhou algo no que respeita à sua força e poder? Não, nem de longe. Em vez disso, aquilo que ocorre é que, neste volumoso conhecimento, nesta certeza que espreita à porta da fé e ameaça devorá-la, ela está numa situação tão perigosa que precisará esforçar-se muito, cheia de medo e a tremer, para que não caia vítima da tentação de confundir conhecimento com fé. Apesar de a fé ter tido até agora um mestre-escola eficaz na incerteza existente, teria na nova certeza o seu mais perigoso inimigo. Pois, se a paixão for eliminada, a fé deixa de existir, e a certeza e a paixão não coexistem. Quem quer que acredite que há um Deus e uma providência que tudo governa achará mais fácil preservar a sua fé, mais fácil adquirir uma coisa que é definitivamente fé e não uma ilusão, num mundo imperfeito em que a paixão é mantida viva do que num mundo absolutamente perfeito. Num tal mundo, a fé é … impensável.
Assumo agora o oposto, que os adversários conseguiam provar o que desejam sobre as Escrituras, com uma certeza que transcende a vontade mais ardente da hostilidade mais entusiástica — e daí? Aboliram com isso o cristianismo? De modo algum. Foi o crente lesado? De modo algum, nem um bocadinho. O adversário tornou legítimo ser liberto da responsabilidade de não ser crente? De modo algum. Lá porque estes livros não são escritos por estes autores … e não são inspirados não se segue … que Cristo não existiu. Até agora, o crente é igualmente livre para assumi-lo. …
Eis o ponto essencial da questão, e retorno ao caso da teologia culta. Em prol de quem é a prova procurada? A fé não precisa dela e deve até vê-la como sua inimiga. Mas quando a fé começa a sentir-se embaraçada e envergonhada, como uma donzela para quem o seu amado já não é suficiente, mas que se sente secretamente envergonhada do seu amante e tem, portanto, de pensar que há algo de notável nele — quando a fé começa deste modo a perder a paixão, quando a fé começa a deixar de ser fé, então torna-se necessária uma prova para merecer o respeito do lado da descrença. … A filosofia ensina que deve tornar-se objetiva, ao passo que o cristianismo ensina que deve tornar-se subjetiva, isto é, tornar-se um sujeito na verdade. … O cristianismo deseja intensificar a paixão ao seu mais alto grau; mas a paixão é subjetividade e não existe objetivamente. …
Pode-se presumir, então, que a tarefa de tornar-se subjetivo é a tarefa mais elevada e uma tarefa proposta a todos os seres humanos; tal como, analogamente, o prêmio mais elevado, uma felicidade eterna, existe apenas para aqueles que são subjetivos; ou melhor, passa a existir para os indivíduos que se tornam subjetivos.
Quando a questão da verdade é colocada de forma objetiva, a reflexão é dirigida objetivamente para a verdade como um objeto com o qual aquele que conhece está relacionado. Contudo, a reflexão não está focada na relação, mas na questão de saber se é a verdade com a qual aquele que conhece está relacionado. Se apenas o objeto com que ele está relacionado é verdadeiro, o sujeito é considerado estar na verdade. Quando a questão da verdade é levantada subjetivamente, a reflexão é dirigida subjetivamente para a natureza da relação individual; se apenas o modo desta relação está na verdade, o indivíduo está na verdade mesmo que ele esteja assim relacionado com o que não é verdade. Tomemos como exemplo o conhecimento de Deus. Objetivamente, a reflexão é dirigida ao problema de saber se este objeto é o Deus verdadeiro: subjetivamente, a reflexão é dirigida para a questão de saber se o indivíduo está relacionado com uma coisa de tal maneira que a sua relação é na verdade uma relação-com-Deus. … O indivíduo existente que escolhe prosseguir o caminho objetivo entra no processo-de-aproximação completo pelo qual se tenta revelar Deus objetivamente. Mas isto é totalmente impossível, porque Deus é um sujeito e, portanto, existe para a subjetividade apenas na interioridade. A ênfase objetiva incide no que é dito, a ênfase subjetiva no como é dito. Esta distinção mantém-se mesmo no reino estético e recebe uma expressão precisa no princípio de que é em si mesmo verdade pode na boca de tal e tal pessoa tornar-se falso … Objetivamente o interesse está focado unicamente no pensamento-conteúdo, subjetivamente na interioridade. No seu máximo este “como” interior é a paixão do infinito, e a paixão do infinito é a verdade. Mas a paixão do infinito é completa subjetividade e, assim, a subjetividade torna-se a verdade. … Apenas na subjetividade existe determinação para procurar o fator e não o seu conteúdo, pois o seu conteúdo é precisamente ele próprio. Desta forma, a subjetividade e o seu “como” subjetivo constitui a verdade. … Eis aqui uma tal definição de verdade: uma incerteza objetiva agarrada rapidamente num processo de apropriação da mais apaixonada interioridade é a verdade, a verdade mais elevada que um indivíduo existente pode atingir. …
Mas a definição acima de verdade é uma expressão equivalente da fé. Sem riscos não há fé. A fé é exatamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade individual e a incerteza objetiva. Se sou capaz de captar Deus objetivamente, não acredito, mas precisamente porque não sou capaz de fazer isto tenho de acreditar. … Sem risco não há fé e quanto maior o risco maior a fé; quanto mais é a segurança objetiva menos é a interioridade (pois a interioridade é precisamente subjetividade), e quanto menos é a segurança objetiva mais profunda é a interioridade possível. Quando o paradoxo é em si mesmo paradoxal repele o indivíduo em virtude do seu absurdo e a paixão correspondente à interioridade é a fé.
Quando Sócrates acreditou que havia um Deus, ele agarrou-se rapidamente à incerteza objetiva com toda a paixão da sua interioridade, e é justamente nesta contradição e neste risco que a fé tem as suas raízes. Agora é de forma diferente. Em vez da incerteza objetiva, há aqui uma certeza, a saber, que objetivamente é absurdo; e este absurdo, agarrado rapidamente na paixão da interioridade, é fé. A ignorância socrática é uma espécie de brincadeira genial em comparação com a seriedade perante o absurdo; e a interioridade existencial socrática é uma frivolidade grega em comparação com a enérgica gravidade da fé. Devido à sua repulsão objetiva o absurdo é precisamente a medida da intensidade da fé na interioridade. Suponha um homem que deseje adquirir a fé; deixe a comédia começar. Ele deseja ter fé, mas ele deseja também proteger-se por intermédio de uma investigação objetiva e do seu processo-de-aproximação. O que acontece? Com a ajuda do processo-de-aproximação o absurdo torna-se algo diferente; torna-se provável, torna-se progressivamente provável, torna-se extrema e enfaticamente provável. Agora ele está pronto a acreditar nisso, e ele aventura-se a afirmar para si mesmo que não acredita como os sapateiros e os alfaiates e o povo simples acredita, mas apenas após uma longa deliberação. Agora ele está pronto a acreditar nisso; e, vejam só, agora tornou-se completamente impossível acreditar nisso. Algo que seja quase provável, ou provável, ou extrema e enfaticamente provável, e algo que ele pode quase conhecer, ou tão bom como conhecer, ou extrema e enfaticamente quase conhecer — mas é impossível acreditar… .
Søren Kierkegaard, Concluding Unscientific Postscript, traduzido a partir da tradução inglesa de David F. Swenson and Walter Lowrie (Princeton University Press, 1949 e 1961), publicada in Howard Kahane, Thinking About Basic Beliefs, Wadsworth, Belmont, 1983, pp. 30-32.