No final de março, participei de uma conferência homenageando os 90 anos do físico americano John Archibald Wheeler, à qual estiveram presentes físicos das diversas áreas que foram enriquecidas pela sua inspiração quase mágica. Wheeler foi um dos físicos mais importantes do século passado. Suas descobertas tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da física nuclear (inclusive no projeto Manhattan, que construiu a bomba atômica), nas aplicações da teoria da relatividade de Einstein a buracos negros (foi ele quem inventou o famoso termo) e na chamada cosmologia quântica, que visa construir um modelo matemático da origem do Universo, fundindo a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que estuda os átomos e as partículas subatômicas.
Dentre os vários temas discutidos, e teremos a oportunidade de visitar alguns deles nas próximas “Micro/Macro”, um que despertou grande interesse foi justamente a origem do Universo. O que não é muito surpreendente. Eu costumo dizer que existem três grandes problemas em ciência que cativam a imaginação não só dos cientistas, mas também do público em geral: os problemas das três origens, a do Universo, a da vida e a da mente. (Eles não são os únicos, mas, certamente, estão entre os mais populares.)
Essas são questões que fazem parte da história da humanidade desde os primórdios da civilização, nessas angustiadas tentativas de compreender um cosmo que parece ao mesmo tempo ameaçador e aconchegante, criador e destruidor. Conforme diria John Wheeler, em uma de suas RBQs (Questões Realmente Importantes, na sigla em inglês), “Por que a existência?”
Um dos modelos mais aceitos não propriamente da “origem” do Universo, mas do que ocorreu muito próximo dela, é conhecido como Universo inflacionário. Segundo esse modelo, os primeiros instantes de existência do cosmo se distinguiram pela sua simplicidade. Existiam essencialmente apenas o espaço e o tempo e o que nós chamamos de um campo escalar, a forma mais elementar de matéria. Outras formas de matéria estavam presentes, mas eram menos importantes do que o campo escalar.
Sei que é estranho falar em matéria e em campos. O que é um campo e o que ele tem a ver com matéria? Se nos concentrarmos em três dimensões espaciais, como a superfície de uma mesa, podemos imaginar um campo escalar como uma superfície elástica, capaz de se deformar aqui e ali, dependendo da concentração de energia em seus diversos pontos. Se associarmos uma altura a cada ponto da superfície, essa altura será o valor do campo escalar naquele ponto. Por exemplo, imagine as ondulações criadas ao jogarmos uma pedra na superfície de um lago; cada ponto da superfície terá um número associado a ele, a altura da água. Existem outros tipos de campo, mas o campo escalar basta para descrevermos o Universo inflacionário. As flutuações de energia no campo são associadas a partículas de matéria.
Precisamos de mais dois ingredientes. O primeiro é explicar o que ocorria com o campo escalar nos primórdios cósmicos. Segundo a teoria, esse campo tinha inicialmente muita energia acumulada. Essa energia teve um enorme impacto sobre a evolução inicial do Universo; segundo a relatividade, energia e matéria influenciam a geometria do espaço. No caso do campo escalar, seu efeito foi o de expandir rapidamente a geometria do Universo, como a superfície de um balão sendo inflado. Essa expansão acelerada é chamada de inflação, justificando o nome “Universo inflacionário”. As regiões do cosmo onde o campo escalar tinha uma quantidade apreciável de energia inflaram muito, criando uma estrutura espacial bizarra, que pode ser visualizada como uma superfície elástica de onde brotam protuberâncias aqui e ali.
O principal proponente dessa versão do Universo inflacionário (existem várias), o russo Andrei Linde, vai mais além. Segundo ele, nós vivemos em uma dessas erupções, uma dentre incontáveis outras que borbulham incessantemente em um “multiverso” infinito e eterno. Nosso Universo não passa de uma flutuação que deu certo, que foi capaz de crescer o suficiente e durante tempo suficiente para gerar estruturas materiais complexas, de átomos a estrelas, lagostas e pessoas. Segundo essa visão, a nossa origem é apenas uma entre infinitas outras, sem importância maior em um multiverso que existirá para sempre. Não sabemos se essa teoria está certa ou não. Não é nem claro se ela poderá ser comprovada; mas a sua criatividade é inegável, digna de um lugar de honra junto aos vários mitos de criação propostos no decorrer da história.
Sobre o autor: Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Darthmouth College, em Hanover (Estados Unidos), e autor do livro O Fim da Terra e do Céu.