Para o pensador inglês, a fé no progresso é uma ilusão, o homem não é dono de seu destino e os avanços científicos nada têm a ver com a ética. — Thereza Venturoli
O inglês John Gray, professor de pensamento europeu na London School of Economics, de 57 anos, é homem de frases curtas e categóricas, como “o conhecimento não nos torna livres” ou “nenhum projeto político pode salvar a humanidade de sua condição natural”. Com afirmações como essas, ele declara, em seu mais recente livro, Cachorros de Palha (Editora Record), seu ceticismo com relação à tradição cultural do Ocidente. Gray acusa o humanismo secular moderno, que embebe a filosofia, a política e a ciência, de herdar do cristianismo a ideia — ilusória, segundo ele — de que o homem tem papel central no universo. Para o autor, ao contrário, o Homo sapiens não é mais do que uma espécie cuja passagem pelo planeta é efêmera e cujo destino é selado pelas mesmas leis naturais que regem as demais formas de vida. Pessimismo? Segundo Gray, a mensagem do livro não é de desespero, mas de libertação. Ele quer livrar o homem das ilusões que o fazem se sentir responsável por “carregar a Terra sobre os ombros”. Até porque não adiantaria nada.
Veja — Uma das teses centrais de seu livro Cachorros de Palha é a de que a crença no progresso é uma ilusão. Mas não seria essa crença uma necessidade, digamos, darwiniana dos seres humanos — um traço desenvolvido pela espécie por favorecer sua sobrevivência?
Gray — A crença no progresso não tem necessariamente uma razão evolutiva, não faz parte da biologia humana, em absoluto. É algo que data do século XVIII, ou seja, de cerca de dois séculos apenas. Afora aquelas que têm um sentimento religioso, as pessoas que acreditam em alguma coisa hoje acreditam no progresso — e só no progresso. Para elas, as futuras gerações sempre viverão melhor do que as anteriores, e a humanidade avança no conhecimento como avança na ética e na política. Mas isso é um mito, uma ilusão nociva, porque muitas vezes nos cega para grandes problemas e nos impede de perceber que, quando pensamos estar progredindo, na verdade estamos regredindo.
Veja — Também na ciência o progresso é uma ilusão nociva?
Gray — Na ciência e na tecnologia o progresso é real, mas só faz aumentar o conhecimento e o poder do homem, e esse poder pode ser usado tanto para os mais benignos objetivos quanto para os mais desastrosos. Quando o conceito de progresso é aplicado à ética e à política, ele é uma ilusão perigosa. Veja-se, por exemplo, o caso dos gregos e dos romanos antigos. É claro que eles acreditavam no desenvolvimento de novas ferramentas. Mas eles não transferiam essa noção de progresso técnico para a ética ou a política. É óbvio, também, que eles acreditavam no bem e no mal, que as sociedades podiam ser melhores ou piores, e que a prosperidade é preferível à fome e à pobreza. No entanto, para gregos e romanos, os jogos da ética e da política estavam sujeitos a avanços e retrocessos. Ou seja, a história humana era cíclica, com diferentes períodos se alternando, como ocorre na natureza.
Veja — O senhor discorda de qualquer pensamento que considere o homem como o centro do universo. Mas é possível existir uma moral que não seja antropocêntrica?
Gray — Sim, é possível. Na verdade, na maior parte da história, a moralidade não foi antropocêntrica — nem no budismo nem no taoísmo, por exemplo. O antropocentrismo é característica do cristianismo e do humanismo secular — que nada mais é do que uma versão do cristianismo sem Deus. Como qualquer outro animal, o homem também aspira ao bem-estar. E o bem-estar humano é em muitos pontos similar ao bem-estar dos outros seres vivos. Eu sustento que o homem é um animal como outro qualquer, produto do mundo natural e passível de ser eliminado por mudanças ambientais, como ocorreu com muitas outras espécies no passado.
Veja — Se o homem é um animal como outro qualquer, como nossa espécie chegou a dominar o mundo?
Gray — O homem é um sucesso evolutivo: desenvolveu uma linguagem sofisticada, uma incrível capacidade de construir ferramentas e de registrar e transmitir uma memória cultural. Alguns grandes primatas também detêm algumas dessas habilidades. A diferença é que nenhum deles atingiu o nível alcançado pelos humanos. Some-se a essa habilidade uma extrema ferocidade — que também não é característica única de nossa espécie — e temos aí as condições que permitiram ao homem tornar-se a espécie dominante do planeta. Mas é um engano pensar que o homem tenha conquistado a Terra. Somos a espécie dominante simplesmente porque eliminamos grande parte da biosfera. E, ao fazermos isso, geramos condições pouco promissoras para nossa própria sobrevivência. O poder que temos sobre o meio ambiente não nos dá o controle sobre ele. O homem tem muito poder, a ponto de destruir a Amazônia, mas não o poder de recompor a mata rapidamente. Ora, se você não tem o poder de redesenhar a biosfera, então não tem o controle sobre o planeta. Assim, acho praticamente impossível que se concretize a previsão de que a população humana chegue aos 8 ou 9 bilhões de pessoas daqui a cinquenta ou sessenta anos, vivendo em certo nível de prosperidade, sem que se desestabilize a ecologia do planeta. Calculo que, daqui a um século, a população mundial terá encolhido bastante. E essa queda poderá se dar de duas maneiras: uma seria pelo declínio da taxa de fertilidade, como já acontece em países como Japão e Itália. Outra, por meio de guerras, doenças e pelos efeitos deletérios das mudanças climáticas. Se eu tivesse de apostar, apostaria na segunda opção. Seja como for, o sucesso do homem no planeta é real, mas extremamente precário e muito mais curto que o de outras espécies, como os dinossauros, que dominaram o planeta por milhões e milhões de anos. Pode acabar muito em breve.
Veja — As habilidades humanas sempre trazem consequências negativas, então?
Gray — Nem sempre. As habilidades do homem produziram, por exemplo, a anestesia. Quem gostaria de tirar um dente como se tirava no início do século XIX, sem nenhuma anestesia? No entanto, essas mesmas habilidades causaram guerras mais devastadoras, criaram novos tipos de arma, e aumentaram nossa capacidade de cometer atrocidades numa escala jamais vista. E os assassinatos em massa são um efeito colateral do progresso tecnológico. O homem sempre usou as ferramentas que cria para abater seu semelhante, desde a pré-história. Mas o genocídio é uma prática dos tempos modernos. Entre 1492 e 1990, ocorreram cerca de 36 genocídios, que ceifaram de dezenas de milhares a dezenas de milhões de vidas. Só de 1950 até hoje, foram cerca de vinte grandes matanças, ao menos três delas — em Bangladesh, Camboja e Ruanda — com mais de 1 milhão de vítimas. Não há dúvida de que os seres humanos herdaram esse comportamento violento de alguns de seus parentes na linha evolutiva. Como o biólogo americano Edward O. Wilson observou uma vez, se alguns de nossos primos babuínos tivessem acesso a armas nucleares, o mundo já teria sido devastado há muito tempo.
Veja — O cientista americano Ray Kurzweil diz que o desenvolvimento tecnológico — particularmente a biotecnologia, a nanotecnologia e a teoria da informação — trará um futuro promissor para a espécie humana. Onde está a falha nessa ideia?
Gray — A falha está em pensar que esse progresso seja real. A ciência, no geral, chega mais perto da verdade do mundo que outros sistemas de crença, e nós temos testemunhado seu sucesso pragmático em aumentar o poder humano. Mas, do ponto de vista ético, o conhecimento é neutro, desprovido de valor — pode tanto nos levar a realizações maravilhosas quanto atender a propósitos terríveis. A ciência não é feitiçaria. Deixe-me dar um exemplo do que é a ilusão no poder científico: na Califórnia, as pessoas contratam organizações para ter seu corpo congelado assim que morrerem. Esperam voltar à vida quando a tecnologia assim o permitir, daqui a um século ou dois. A ilusão não está em pensar que a tecnologia tornará isso possível — provavelmente tornará, um dia. A ilusão está em não imaginar o que acontecerá nos próximos 100 ou 200 anos. Se a história se repete em seus aspectos éticos e políticos, como eu acredito, haverá várias quebras nas bolsas de valores, ataques terroristas, guerras civis, mudanças de regime e talvez até outras guerras mundiais. Nesse processo, muita coisa vai mudar: o direito à propriedade poderá ser abandonado, empresas quebrarão e governantes serão substituídos. É muito difícil que um contrato assinado hoje com uma empresa californiana possa sobreviver aos próximos séculos. Em outras palavras, mesmo que a tecnologia se desenvolva a ponto de levar o homem à imortalidade, as instituições e a sociedade na qual vivemos não são imortais, um dia acabarão.
Veja — Então o limite para o progresso não está na ciência, mas na sociedade?
Gray — A ilusão está em não perceber que, por mais que o conhecimento avance, as instituições impõem um limite. É completamente possível que a genética chegue à clonagem humana, talvez não tão já, mas daqui a cinqüenta anos. Eu faço uma predição: se isso se realizar, a tecnologia será usada por terroristas e organizações criminosas para criar seres humanos insensíveis à piedade e à simpatia, e soldados ou assassinos que jamais precisem dormir. Não duvido que a genética traga muitos benefícios para a humanidade, erradicando distúrbios, corrigindo deficiências e curando doenças. Mas é claro que a genética pode, também, ser usada no desenvolvimento de novas armas e na perpetração de mais genocídios.
Veja — Mas não foi sempre assim, a ciência e a tecnologia podendo ser usadas tanto para o bem quanto para o mal?
Gray — Absolutamente, sim. Mas ainda não aprendemos a lição. Lembro-me de quando as pessoas imaginavam que as fotocópias acabariam de vez com as falsificações. Mais tarde, o mesmo ocorreu com as câmeras de vídeo. Tudo não passou de ilusão. Hoje acontece o mesmo: as pessoas veem a internet como um instrumento de liberação, mas ao mesmo tempo ela torna nossa privacidade muito difícil. Tudo o que você faz eletronicamente pode ser monitorado. Eu repito: o conhecimento não liberta o homem, apenas aumenta seu poder — um poder que pode ser usado para o bem ou para o mal. Nesse ponto, sou um pessimista: o futuro da humanidade será igual a seu passado, só que com mais conhecimento.
Veja — Se a felicidade e a salvação humanas não estão na ciência e na tecnologia, onde estão elas?
Gray — A ciência não é essencial para a felicidade. Basta lembrar que milhões e milhões de indivíduos têm vivido felizes ao longo de toda a história, mesmo sem acreditar no progresso. Na essência, nosso sentimento de felicidade não é diferente do sentimento do homem que viveu no Império Romano ou na Índia de Buda, cinco séculos antes de Cristo. Isso não mudou. A única coisa que mudou foram o conhecimento e o poder humanos, que cresceram muito.
Veja — Qual o papel da religião hoje?
Gray — Acho que a religião tem um papel central na cultura humana. Não acredito que existam religiões verdadeiras ou falsas — apenas as mais e as menos bonitas, ou as mais e as menos esperançosas. Quem gosta de religião se aproxima mais da poesia do que da ciência. A religião ocidental tem se intimidado por rivalizar com a ciência. Mas a ciência diz respeito ao poder, não dá um sentido à vida — isso é função da religião. E precisamos de mitos, de ilusões. Nem todo o avanço científico pode eliminar a religião, pois suas raízes não estão na ignorância, mas na necessidade humana de buscar um sentido para as coisas. Prova disso é que, para muitas pessoas, a ciência — com sua promessa de eterno progresso — torna-se ela mesma uma religião.
Veja — Os Estados Unidos, líderes mundiais em ciência e tecnologia, enfrentam hoje um renascimento do fundamentalismo cristão, particularmente nos embates entre evolucionistas e criacionistas. Como o senhor vê esse conflito?
Gray — O conflito entre ciência e religião é uma peculiaridade das culturas moldadas pelas tradições ocidentais, que dão uma importância exagerada à fé nos assuntos do espírito. A briga entre evolucionistas e criacionistas nos Estados Unidos é um modo com que o fundamentalismo cristão resiste às implicações antiantropocêntricas da teoria da seleção natural do inglês Charles Darwin. Esse conflito não acontece com a mesma intensidade nas culturas ligadas ao budismo e ao taoísmo, por exemplo, que são religiões nas quais as práticas e as experiências místicas importam mais do que a crença em si.
Veja — O senhor diria que existem religiões que conflitam menos com a ciência?
Gray — Religiões não-antropocêntricas, como o taoísmo, parecem mais próximas do mundo que nos é apresentado pelo que há de mais avançado na ciência contemporânea. E, porque pregam uma certa modéstia sobre o lugar dos seres humanos no esquema das coisas, essas religiões são mais capazes de promover a felicidade. No entanto, recomendo também algumas filosofias ocidentais, como o epicurismo. O grande poema A Natureza das Coisas, de Lucrécio, é um antigo guia para viver feliz num mundo em que o homem não é a figura central.
Veja — Para o leitor, seu livro pode deixar um certo sabor de desesperança. Qual a saída? Ou não há saída?
Gray — A mensagem central de Cachorros de Palha não é de desesperança, mas de libertação. O que eu pretendo é sugerir ao leitor: leve sua vida da maneira mais bela e inteligente possível, pois o destino da Terra não está sobre seus ombros. Na verdade, foi assim que viveu a maioria dos milhões e milhões de seres humanos que já passaram pelo planeta. A necessidade de acreditar que o futuro será melhor é uma ilusão. A felicidade não vem daí, mas de aceitar a nossa natureza animal, que, ao contrário das crenças, é imutável.