Niilismo

André Cancian

O niilismo pode ser definido como a implosão da subjetividade. Alternativamente, e sendo um pouco mais claros, podemos defini-lo como uma descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência humana. Não se trata, entretanto, de algo difícil de ser definido, mas de ser apreendido. Por ser uma noção bastante ampla e abstrata, existe muita confusão em torno dela. Vejamos alguns dos principais motivos disso. Primeiro, o niilismo é vago em si mesmo, pois vem de nihil, que significa nada. A palavra niilismo, que poderia ser traduzida como “nadismo”, de imediato, não nos dá qualquer ideia do que se trata. Segundo, o niilismo não possui qualquer conteúdo positivo. Por se tratar de uma postura negativa, só conseguiremos entendê-la depois que tivermos consciência do que ela nega, e por isso a compreensão do niilismo envolve muitos outros conceitos; ele só se tornará visível depois que esboçarmos seu contexto. Por fim, o niilismo também não recebeu, historicamente, um emprego consistente, sendo que cada pensador ou movimento o interpretou de modo bastante particular, quase sempre com um pano de fundo ideológico, na tentativa míope de justificar um niilismo ativo e militante.

Em geral, vemos o niilismo associado a outras ideias, denotando seu vazio inerente. Por exemplo, niilismo político seria mais ou menos equivalente ao anarquismo, repudiando a crença de que este ou aquele sistema político nos conduziria ao progresso, o qual não passaria de um sonho mentiroso. O niilismo moral equivaleria à negação da existência de referenciais morais objetivos, ou seja, de valores bons ou maus em si mesmos. O niilismo epistemológico, por sua vez, seria a afirmação de que nada pode ser conhecido ou comunicado. Portanto, vemos que associar qualquer noção ao niilismo não é exatamente um elogio, mas algo como colocar ao seu lado uma placa dizendo: aqui não há nada — principalmente nada do que se acredita haver.

O niilismo, todavia, não é só um termo que justapomos a qualquer ideia que nos desagrade, a fim de desmerecê-la. Seu poder de apontar o vazio das coisas não pode ser usado como uma arma, pois, quando se dispara o tiro de nada, automaticamente deixa de existir a arma, e a coisa toda perde o sentido. O niilismo, sendo um processo radical de crítica, não pode ser usado parcialmente. Não podemos, por exemplo, usar o niilismo moral para refutar valores específicos, com os quais não simpatizamos, imaginando que os nossos próprios valores sobreviveriam à crítica. Quando afirmamos que a moral não existe, isso implica que não existem quaisquer valores, sejam os nossos valores, sejam os de nossos oponentes. Com o niilismo moral, toda a moral é reduzida a nada, inclusive a nossa. A redução da moral a nada, como vemos, está respaldada não na gramática, mas na suposição de que a moral é vazia em si mesma, de que ela não tem fundamentos reais e objetivos. Não se trata de simpatizarmos ou não com a moral, mas da constatação segundo a qual ela é um sonho, uma fantasmagoria inventada por nós próprios, não sendo leis morais, portanto, mais relevantes que leis de trânsito.

Nós, entretanto, nos ocuparemos principalmente do niilismo existencial, ou seja, a postura segundo a qual a existência, em si mesma, não tem qualquer fundamento, valor, sentido ou finalidade. Segundo o niilismo existencial, tudo o que existe carece de propósito, inclusive a vida. Todas as ações, todos os sentimentos, todos os fatos são vazios em si mesmos, desprovidos de qualquer significado. Nessa ótica, viver é algo tão sem sentido quanto morrer, e estamos aqui pelo mesmo motivo que as pedras: nenhum. Essa parece ser a categoria mais fundamental de niilismo, em relação à qual os demais tipos tomam o aspecto de casos particulares. Os niilismos moral e político, por exemplo, podem claramente ser deduzidos do niilismo existencial — pois, se a própria existência não tem valor, isso implica que nada tem valor, inclusive valores morais, inclusive o progresso.

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O único modo de compreender o niilismo existencial é através da reflexão. O vazio da existência nunca poderia ser demonstrado através da prática, ou apreendido por meio da experiência imediata. Se, por exemplo, reduzíssemos nosso planeta a nada com bomba nuclear, isso não demonstraria coisa alguma. A visão desse planeta despedaçado também não provaria nada. Tal postura destrutiva prática faz pouco sentido, pois equivale a tentar refutar um livro queimando-o. O niilismo existencial se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso basta possuir algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o esvaziamento da existência é a mera consequência de a entendermos. Não precisamos degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de sentido.

Para reduzir o homem a nada, e compreender que isso demonstra o niilismo existencial, temos de apreender o vazio objetivo da existência — sendo óbvio que, na condição de sujeitos, só podemos fazê-lo subjetivamente. O problema é que, no processo demonstrar que a existência é vazia, somos o próprio vazio que estamos tentando apontar — tentamos explicar que nós próprios não temos explicação. Parece paradoxal, mas não é. Bastará que consigamos entender nós próprios como um fato, e o niilismo se tornará praticamente uma obviedade. Só então perceberemos que o niilismo não é, como a princípio pode parecer, uma postura extremada, envolvendo algum tipo de revolta, mas apenas uma visão honesta e sensata da realidade — uma visão tornada possível em grande parte devido às descobertas científicas modernas. Com algumas definições e explicações simples, podemos chegar a uma noção razoável da ótica apresentada pelo niilismo existencial. Como o argumento é um pouco longo, vamos por partes. Façamos algumas observações preliminares sobre por que o niilismo nos parece algo tão incômodo.

Muitos, por preconceito, têm medo do “vazio da existência”, mas esse medo, em si mesmo, é algo completamente sem sentido, pois equivale a temer aquilo que não existe; o vazio não é uma ameaça positiva. Senão, vejamos: Não existe vida em Vênus. Alguém se sente aterrorizado diante dessa afirmação? Dificilmente. Não existem bancos em Marte. Alguém empalidece diante disso? Também não. Suponhamos, entretanto, que durante todas as nossas vidas houvéssemos trabalhado arduamente, acreditando que todo o nosso esforço seria convertido em dinheiro num banco em Marte. Agora sim nós nos sentiríamos ameaçados pela afirmação de que nesse planeta não há, nunca houve banco algum, pois vivíamos em função disso, acreditávamos nesse suposto dinheiro marciano como aquilo que dava sentido às nossas vidas. Portanto, o que nos aterroriza não é o vazio da existência, ou o vazio de bancos interplanetários — o que nos enche de medo é a possibilidade de descobrir que estávamos completamente equivocados em nossas crenças a respeito da realidade. Seria esmagadora a consciência de havermos dado grande importância, de havermos dedicado nossas vidas inteiras a algo que simplesmente não existe. É por isso que estremecemos diante da afirmação de que a existência não tem sentido, embora essa afirmação seja tão segura quanto a de que não há dinheiro noutros planetas do sistema solar.

Resistimos ao niilismo não porque ele seja falso, mas porque reorganizar nossa visão da realidade seria muito trabalhoso. Então, se colocarmos nossos interesses pessoais de lado, veremos que o que nos inquieta no niilismo é o fato de que ele nos confronta duramente com nossa própria ingenuidade, com o fato de termos nos deixado enganar tão grandiosamente que nossas vidas passaram a depender de mentiras, de suposições imaginárias. Portanto, percebamos que, quando o niilismo aponta essas mentiras, ele não está destruindo a realidade, e sim nossas ilusões. Nessa ótica, o niilismo nada mais é que um exercício de honestidade e imparcialidade, e apenas esvazia a realidade das ficções que nunca existiram de fato. Essa honestidade pode ser dolorosa, mas é um sinal de maturidade. Se a existência, despida de ilusões, nos parece vazia, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa por termos nos enchido delas. Se gostamos de nos enganar, tudo bem. Porém, se nosso interesse for nos tornarmos capazes de lidar com a realidade como adultos, sempre será preferível aceitar a existência tal qual é em si mesma, ainda que isso signifique abrir mão de muitas de nossas crenças mais arraigadas. É preferível viver num mundo sem sentido a acreditar num sentido falso para o mundo, que aponta para lugar nenhum.

Como vemos, a preocupação essencial do niilismo não é descobrir a verdade, mas apontar as mentiras e reconhecer as limitações. Descrever os fatos é o papel da ciência. O niilismo apenas consiste na disciplina de sermos honestos diante desses fatos que observamos, entender e aceitar suas implicações. Nesse sentido, uma das áreas mais afetadas pelo niilismo são as “grandes questões” da existência. Isso porque as respostas para tais questões são, em geral, muito mais óbvias do que pensamos — e muitas vezes inclusive sabemos quais são, mas preferimos continuar acusando a ciência de ser “cega e limitada” para justificar nossos preconceitos.

Afirmamos que tais assuntos são demasiado “profundos” apenas como pretexto para tratá-los superficialmente; dizemos que são “mistérios”, “impossíveis de responder”, apenas porque temos medo das respostas. Outras vezes deixamos essas questões de lado, não para proteger nossas ilusões, mas porque pensamos que investigá-las nos conduziria à loucura. Muito pelo contrário, isso nos conduziria apenas à lucidez, nos permitiria viver com os pés no chão. Mas o que é o chão? Ora, aquilo que está sob nossos pés. O que é o mundo? Ora, é aquilo que temos diante de nossos olhos. O que é o ser? Ora, é aquilo que existe. Em grande parte, o niilismo consiste na rara capacidade ver o óbvio.

Perguntemo-nos, por exemplo, que é o homem? Ora, somos aquilo que parecemos ser: máquinas. Basta consultar qualquer livro de anatomia básica. Não há nada “por detrás”. Esse “por detrás” não passa de uma fantasia. Foi inventado por nós numa tentativa infantil de humanizar a existência. Não obstante, apesar de sabermos perfeitamente bem o que é o homem, ainda assim acreditamos que há na equação um misterioso “algo mais”. Continuamos nos enganando com a noção de “profundidade” do saber, que nos faz querer buscar o “por detrás” do mundo. Ainda mais, que nos faz acreditar que a verdadeira realidade está nesse “por detrás” que, exatamente por ser uma ilusão, equivale a nada.

Quando estudamos o homem como se ele não fosse uma máquina, é claro que não poderíamos chegar a conclusão alguma, pois isso é um absurdo. Seria o mesmo que um rato investigando-se como se não fosse um roedor, julgando que a “razão de ser” de seu dente não pode ser apenas roer queijo. O suposto “sentido íntimo da realidade” que o homem busca a partir de sua subjetividade é o mesmo que esse rato buscaria se tivesse uma inteligência semelhante à nossa, supondo toda uma ordem metafísica “por detrás” do mundo que atribui ao seu dente um “sentido roedor transcendental” que remete ao Queijo Absoluto. Pouco surpreende que a ciência até hoje nunca tenha encontrado aquilo que não existe. A ciência só pode investigar o mundo natural pelo simples fato de que o resto são delírios metafísicos. Abandonar problemas sem sentido não é limitação intrínseca, é sensatez.

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Aquilo que se preocupa em buscar o que está “além” da realidade não é a ciência, mas a metafísica, que significa literalmente depois da física. Mas o que está além da física? Ora, a resposta é óbvia: nada. Muito menos razões. Num mundo onde tudo é físico, só aquilo que inventamos pode ser metafísico, ao menos se entendermos por metafísica a clássica investigação de “razões últimas”. Para além do âmbito do realismo científico, a metafísica não tem função; é absurdo que tenha função. Na busca pelo conhecimento objetivo, o bastão foi passado para a ciência. Está morta a metafísica que investiga o mundo “profundamente”, por meio da razão pura. Isso nunca levou a nada, pois tentamos descobrir a realidade não olhando para o mundo, mas para um espelho. As respostas metafísicas para a existência parecem-nos interessantes porque, obviamente, partem do conveniente pressuposto de que a razão humana é capaz de substituir a experimentação e acessar uma suposta “essência do ser” por meio de uma intuição mágica, como que descobrindo o mundo por controle remoto. Parece tentador que possamos explicar a realidade desse modo, mas a metafísica é um tiro no escuro, algo tão inútil quanto usar a imaginação para prever o futuro.

Vejamos a questão do seguinte modo: a metafísica nasceu numa época de ignorância, em que os homens sequer sabiam da existência de bactérias. Sequer lhes passava pela cabeça que nossos cérebros eram feitos de neurônios. Mesmo assim, queriam explicar racionalmente a decomposição e o pensamento. Como não tinham microscópios para ver a realidade com precisão, constatando assim a existência de micro-organismos decompositores, limitavam-se a devanear teorias metafísicas, especulando sobre “realidades ocultas” que nos apodreciam em segredo, e é claro que não tinham a menor ideia do que estavam falando. Ao ver um corpo em decomposição, por exemplo, imaginavam que isso talvez se devesse a alguma ordem natural das coisas que nos impunha a decomposição como um “sentido existencial”. Assim, por ignorar que o que nos apodrece são as bactérias, supuseram que isso seria devido à misteriosa “essência decompositora do ser”. Esse tipo de raciocínio delirante, constituído por uma rigorosa lógica tapa-buracos, é o cerne da metafísica. Ela aborda todas as questões da existência com esse mesmo grau de autismo.

Nessa abordagem, em vez de investigado, o mundo deve ser pensado. Em vez de observar fatos, devemos buscar explicações de razão pura, devaneando sobre alguma essência sobrenatural que determina fatos naturais. Claro que, se o ser fosse racional em si mesmo, algo como uma equação matemática, a verdade seria algo abstrato que transcende os próprios fatos, isto é, a “essência do ser” seria constituída de princípios lógicos. Mas de onde tiramos a ideia de que o ser é racional? E o que é isso de “essência”? Não se sabe. O fato é que essa metafísica delirante nunca teria nascido se houvéssemos dado aos gregos um microscópio e uma tabela periódica.

Vistas desse modo, as mais profundas investigações metafísicas são pura e simples perda de tempo, pois estão em busca de algo que simplesmente não está lá — e a grande maioria das questões da existência, das questões que consideramos mais importantes, são levantadas não pela física, mas pela metafísica, pelo mais vergonhoso blablablá inquisitivo. Se tais observações parecem fortes, isso ocorre porque, mesmo hoje, nossa visão moderna da realidade ainda esconde muitos preconceitos metafísicos.

Pensemos, por exemplo, na razão de ser da vida. De onde tiramos essa ideia maluca? Certamente não da experiência, certamente não do mundo que temos diante de nossos olhos. Essa é uma questão metafísica despropositada, pois se trata de algo que em nenhuma circunstância poderia ser solucionado pela observação do mundo físico, e isso pode ser ilustrado pelo simples fato de que a observação do mundo físico feita pela biologia moderna, apesar de explicar perfeitamente bem como a vida funciona, não é aceita como resposta para essa questão. Senão, vejamos: observamos um espermatozoide e um óvulo fundirem-se; vemos as células multiplicando-se; vemos todas as etapas envolvidas na formação de outro organismo; vemos a vida acontecer bem diante de nós; tudo está perfeitamente claro. Mesmo assim, continuamos insistindo na crença de que há algo “por detrás” dessa realidade, um algo que é mais importante que a própria realidade. Esse algo, obviamente, são nossas crendices metafísicas. A ciência não pode responder a questão da “razão de ser” da vida porque esse modo de conceber a vida não corresponde à realidade. Seria o mesmo que pedir que a ciência respondesse onde ficam os dragões alados que vimos após consumir alucinógenos.

Para ser no mínimo razoáveis, temos de admitir que nunca tivemos motivos legítimos para pensar que a vida tem uma “razão de ser”, pois nada em nossa experiência no mundo nos sugere essa pergunta. Que tipo de fenômeno físico poderia nos ter insinuado essa questão? Olhamos para uma flor e pensamos: ó, que curioso, há nesse vaso uma flor! Por que não há na flor um vaso? Por que a flor não tem dentes? Que mistério! Isso só pode ser porque ela tem uma “razão de ser” — a flor desabrochou para cumprir um sentido transcendental! Sementes e pólen nada têm a ver com isso: trata-se de algo mais profundo, muito superior ao mundo material! Então propomos a nós mesmos o desafio: vou descobrir que razão é essa! Passados alguns anos, voltamos da faculdade de teologia e respondemos que isso só Deus sabe.

Nesse tipo de investigação, saímos desesperadamente em busca da resposta para uma pergunta sem sentido, e ainda nos espantamos por nunca encontrá-la. Claro que essa pergunta só poderia ser respondida se o mundo fosse algo como um playground de humanos, feito à nossa imagem e semelhança por alguma divindade entediada. Porém, como o mundo não se comporta segundo nossas expectativas infantis, em vez de admitir o óbvio, de aceitar que real é aquilo que está bem diante de nossos olhos, achamos mais sensato inventar uma segunda existência misteriosa que carrega a “essência oculta” da nossa — um mundo que só podemos imaginar como uma imensa biblioteca cheia de pergaminhos empoeirados nos quais ficam anotadas as “razões de ser” de tudo o que há no mundo em que estamos.

Portanto, para transformar uma crença absurda qualquer numa gloriosa “investigação metafísica”, basta colocar no fim dela um ponto de interrogação: teremos diante de nós mais um “mistério insondável”, mais uma prova da profunda ignorância do homem em relação ao mundo em que vive. Contudo, sejamos francos: não fomos nós próprios que, sem nenhum motivo respeitável, inventamos que a flor tem uma “razão de ser”, que precisa ter uma razão? Transformamos esse raciocínio circular em algo tão grandioso que, ao investigá-lo, temos a ilusão de estar andando em linha reta. Perdemo-nos em devaneios, e chamamos isso de “meditações transcendentais”, de “busca pelo sentido íntimo do ser”, coisa que não passa do homem correndo em torno do próprio rabo em busca de razões que insuflem sua vaidade. Diante desse algo oculto que nos torna tão monstruosamente ingênuos, a questão do mistério do mundo parece um assunto de piolhos.

Recobremos a sensatez. Se prestarmos alguma atenção, veremos que a verdadeira razão de ser da flor não é realmente uma razão, mas um fato: o fato de ela ter germinado e desabrochado; isso é tudo. O resto são questões metafísicas sem sentido, meros disparates interrogativos que levam nossas investigações para um mundo imaginário que nada tem a ver com aquilo que estamos tentando entender.

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Já deve estar bastante claro por que a postura niilista é incômoda, então prossigamos ao próximo tópico. Como o niilismo está ligado a uma mudança em nossa concepção metafísica da existência, convém esboçarmos o que é a metafísica atualmente, e principalmente o que ela era. A metafísica que criticamos aqui é a chamada metafísica tradicional, a qual parte de pressupostos antropocêntricos, lança-se em investigações sem pé nem cabeça, buscando algo que não existe para explicar o que existe. A metafísica moderna, por outro lado, busca apenas delinear uma visão coerente do que é a realidade, deixando à ciência o papel de descobrir o que existe. Em vez de sonhar, ela pensa a partir dos fatos que conhecemos, mas sem fazer extrapolações aberrantes. O contraste entre ambas nos ajudará a entender melhor o contexto do niilismo.

A metafísica é uma área da filosofia que busca investigar os aspectos mais fundamentais da existência por meio da razão. Ela trata daquilo que não nos é imediatamente acessível através dos sentidos, que não pode ser investigado direta e experimentalmente, isto é, através da ciência. Faz perguntas como “que é existir?”, “que é a razão?”, “que é a realidade?” etc. A metafísica faz perguntas tão básicas que a ciência não pode respondê-las diretamente, e a própria prática da ciência pressupõe muitos assuntos que apenas a metafísica investiga. A ciência somente observa fatos e os registra metodicamente — ela investiga com os olhos; a metafísica, com a razão.

Quando afirmamos que “todos os seres vivos nascem, crescem, reproduzem-se e morrem”, fazemos uma afirmação científica, que pode ser observada. Quando afirmamos que “a vida não tem sentido”, fazemos uma afirmação metafísica, pois se trata de algo que concluímos a partir de um processo de abstração intelectual, e abstrações não podem ser observadas. Portanto, quando conceituamos a realidade a partir de fatos, estamos fazendo filosofia, não ciência. A ciência não pensa, mas precisamos pensar para fazer ciência coerentemente, e esse é o papel da reflexão metafísica no contexto moderno: orientar nossas investigações. Em grande parte, a metafísica moderna tornou-se um meio de evitar os erros ingênuos da metafísica tradicional.

Como vimos acima, a metafísica tradicional é essencialista, ou seja, supõe que tudo o que existe possui uma “essência” que faz com que seja aquilo que é. O papel da reflexão metafísica seria, nessa ótica, investigar racionalmente tal “essência”, já que os fatos observados não seriam mais que sua manifestação. Já foi dito que essa essência é fogo, água, números, razões, deuses etc.; hoje diz-se que essa essência é tolice. Tal metafísica não se preocupa em entender o mundo em que estamos: busca entender um mundo transcendental de essências imaginárias do qual o nosso seria o resultado. Suas investigações pressupõem uma ordem das coisas que é extrínseca ao ser, ou seja, sobrenatural. Ela busca descobrir uma essência que também é uma explicação: a razão pela qual o mundo existe. Esse tipo de questionamento, obviamente, só seria compatível com um mundo que tivesse uma “essência transcendente”, coisa que remete à ideia de uma “subjetividade por detrás do mundo”. Por isso dizemos que a metafísica tradicional possui uma orientação teológica, pois confere atributos divinos à existência. Assim, esse tipo de investigação metafísica parece filosofia, mas na verdade é teologia.

A metafísica moderna, por outro lado, investiga a realidade não numa ótica transcendente, mas imanente. Em vez de especular sobre o que há “por detrás” do horizonte da existência, ela busca entender o que é a existência que está sob nossos pés, não sobre nossos travesseiros. Ou seja, trata a questão da “essência do ser” não como algo que fica fora do próprio ser, remetendo a “razões últimas”, mas como uma ordem das coisas que é intrínseca ao ser, ou seja, natural. A partir dos fatos que conhecemos, buscamos entender o aqui em função do aqui, não de um suposto “além”.

A própria noção científica que temos da realidade está baseada em suposições metafísicas — basta pensarmos no objetivismo e no naturalismo. O objetivismo afirma que, fora de nossas cabeças, existe uma realidade comum a todos. O naturalismo afirma que o mundo funciona em seus próprios termos, que não possui qualquer essência sobrenatural que o determina de fora para dentro. Pode parecer estranho que a ciência moderna parta de suposições metafísicas, mas elas são necessárias para que não caiamos no relativismo, para que tenhamos um ponto de referência sensato sobre o que é o mundo. Para investigar o mundo cientificamente, temos de supor o que o mundo é, e isso é uma suposição metafísica. Ainda mais, temos de conceituar o que é conhecimento, diferenciar o conhecimento subjetivo do objetivo, definir o que é uma prova, e por que provas são válidas, assim como por quais critérios essa validade é estabelecida, o que é tarefa de outra área exterior à ciência, a epistemologia.

Sem investigar tais questões com seriedade, não saberíamos como interpretar os resultados de nossas observações ou como estruturar experimentos científicos a fim de conhecer a realidade. A função de metafísica moderna, nessa ótica, seria justamente estabelecer um fundamento teórico para nortear a investigação da realidade sensível feita pelas ciências.

Um ponto de vista que rejeitasse indistintamente a metafísica não nos permitiria fazer quaisquer suposições a respeito da realidade que estivessem além da experiência imediata. Não poderíamos, por exemplo, justificar a suposição de que existe de uma realidade objetiva, e com isso cairíamos no relativismo, talvez até no solipsismo. Não havendo nada objetivo, toda a realidade se resumiria a uma construção social — inclusive a matéria, a gravidade, a eletricidade. A criação de um mapa-múndi seria algo tão arbitrário quanto um romance, pois tudo não passaria de uma ficção subjetiva. O relativismo faz bem ao enfatizar nossas limitações, mas levá-lo a sério seria tão despropositado quanto afirmar que uma publicação científica é arbitrária como uma revista de quadrinhos.

Não há, portanto, qualquer sentido pejorativo em dizer que fazemos uma afirmação metafísica ao supor que o mundo é natural e objetivo. Trata-se de algo metafísico apenas porque falamos a respeito da constituição básica do mundo, de algo teórico de que precisamos para alicerçar as ciências. Claro que as descobertas da ciência respaldam perfeitamente tais suposições, mas nem por isso elas deixam de ser metafísicas, pois são algo que nunca poderá ser demonstrado diretamente através da realidade sensível, mas apenas conceituado, pensado.

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As suposições metafísicas a respeito da realidade são importantes para nos nortear, para nos dar uma visão global da realidade, mas, como se trata de um terreno especulativo, devemos ser muito cuidadosos quanto ao que supomos sobre o mundo em si mesmo. A metafísica pensa no escuro, e pode facilmente perder-se em devaneios. Se supusermos, por exemplo, que o mundo é “racional em si”, passaremos a pensar que nele tudo tem uma “razão de ser”, que há um motivo inteligível que explica, digamos, por que a gravidade atrai os corpos em vez de os repelir. Que tipo de razão seria essa? Não se sabe, mas corpos caindo a 9,8 m/s ao quadrado seriam o resultado dessa “razão”. Mas por que essa essência não faz com que os corpos caiam a 15 m/s ao cubo? Qual é o motivo disso? Não sabemos onde procurar tais razões, mas conforta-nos pensar que o mundo é racional, e isso é tudo de que precisamos para nos convencermos. O fato é que não há metafísica alguma na gravidade. Sabemos que a gravidade atrai os corpos porque vimos isso acontecer. Trata-se de uma afirmação científica, empírica, não de uma racionalização abstrata.

Argumentos puramente racionais, no fim das contas, só refletem o modo como usamos as palavras. Se não pudermos verificá-los, eles não dizem nada — assim como não diz nada o argumento da “causa primeira”. Quando perguntamos por que “motivo” a gravidade é assim, estamos pressupondo que ela poderia ser de outra forma, e que é como é por um motivo que pode ser entendido. Isso pressupõe que as leis naturais são racionais, implicando que a razão, de algum modo, está na essência da realidade. Mas a gravidade não foi pensada, foi observada. Não é uma teoria, mas um fato — e não precisamos pensar quando podemos ver. Portanto, aqui a metafísica não tem função.

Levantar questionamentos metafísicos sobre fatos naturais equivale a humanizar a existência, supondo que haja uma “intenção racional” por detrás do que existe, como se o mundo houvesse sido projetado por seres humanos ou supra-humanos. Mas de onde tiramos a ideia de que o ser é racional em si mesmo? A explicação mais plausível é esta: de nós mesmos, pois isso nunca foi demonstrado por qualquer observação da realidade. Novamente vemos que essa busca pelo “sentido oculto da realidade” é apenas teologia disfarçada. Para ilustrar, percebamos que perguntar o “porquê” do mundo natural seria o mesmo que perguntar o porquê de o Sol brilhar. Claro que, ao fazer esse tipo de pergunta, colocamo-nos no lugar do Sol, pensando nas razões pelas quais brilharíamos se fôssemos essa estrela. Partindo disso, respondemos, por exemplo, que o Sol brilha “para aquecer a Terra”, e é claro que essa suposição não pode ser demonstrada, tampouco condiz minimamente com as descobertas da Astronomia. Essa espécie de resposta é claramente antropocêntrica, pois busca fora do homem, na realidade em si mesma, algo que só existe em nosso universo subjetivo: intencionalidade.

As ciências, ao chegarem aos mesmos resultados a partir de observadores independentes, podem justificar a suposição de que existe uma realidade objetiva, independente de nós. Como nunca constatamos mudanças nas leis que regem os fenômenos, também podemos justificar a suposição de que o mundo é natural. Mas como podemos sustentar que a razão existe fora do homem? Só estaríamos autorizados a pensar na existência como possuidora de uma “razão de ser” se esta houvesse sido criada por uma força sobrenatural inteligente, se houvesse muitos indícios disso nos fatos que observamos, mas não há nenhum.

Esse tipo de raciocínio reverso, que procura intencionalidade nas coisas, só é admissível em questões subjetivas. Por exemplo, assim como prédios possuem alicerces, colunas de concreto, reforços de aço, elevadores, janelas, andares, portas, e assim como cada um desses elementos possui uma estrutura e uma finalidade, se o universo houvesse sido projetado, também nele haveria uma “razão de ser” inteligível que constitui sua essência e que explica por que cada coisa é como é, e não de outro modo. A essência do mundo em si mesmo, no caso, seria equivalente à intenção do engenheiro que o projetou — e só nessa ótica esse tipo de investigação metafísica faria sentido, mas precisaríamos pressupor que ele teve um criador. Isso nos permite entender melhor por que a metafísica tradicional possui uma orientação teológica: ela faz questionamentos que só são admissíveis partindo-se do pressuposto de que o mundo foi criado inteligentemente para cumprir uma finalidade. Por isso, no fim das contas, a metafísica tradicional resume-se à tentativa de fazer engenharia reversa no projeto divino.

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Quando colocamos a razão antes da observação, em vez de investigar o mundo, investigamos nossa própria razão, nosso próprio universo subjetivo. Fechamo-nos para o mundo sensível e passamos a buscar não fatos observáveis, mas “razões últimas”, “intenções por detrás do mundo”, e essa postura investigativa nunca chegou a lugar algum. Investigar o mundo natural com uma postura metafísica equivaleria, digamos, a tentar descobrir a geografia dos continentes não navegando ao seu redor e anotando aquilo que se observa, mas trancando-nos num quarto e meditando sobre a razão de ser, sobre a essência e a finalidade das voltinhas caprichosas de cada continente. Com essa abordagem não apenas ficamos sem saber como o mundo é, mas ainda gastamos todas as nossas energias em investigações inúteis sobre coisa nenhuma.

Percebemos o erro de inquirir o mundo racionalmente, através da razão pura, e passamos a investigá-lo com os olhos, por meio de procedimentos empíricos. Investigamos a realidade através da experimentação científica, e chamamos de leis naturais os padrões que conseguimos descobrir a respeito de como o mundo funciona. Como tais padrões independem da ótica de um sujeito, dizemos que são objetivos. Assim, quando colocamos a observação antes da razão, passamos a investigar aquilo que queremos descobrir. Em vez de devanear, saímos pelo mundo afora, contornamos os continentes e anotamos aquilo que observamos, e só usamos a razão para saber como estruturar nossas investigações, não para dispensar a necessidade de barcos. Essa postura nos proporcionou mapas úteis, que servem para orientar quaisquer navegadores, em vez de apenas grossos livros com especulações metafísicas sobre a essência transcendente da areia fina. Terminada a observação empírica, tudo o que a metafísica pode fazer é afirmar que há um mundo ao qual o mapa corresponde.

Como o objetivo das ciências é conhecer o mundo, e não entender os porquês de seu suposto criador, tivemos de reajustar nossa concepção metafísica do mundo, reduzindo-a àquilo que tínhamos diante de nós e que era passível de investigação. Nosso conhecimento tornou-se então a descrição objetiva dos fatos — em vez de uma tentativa de explicá-los como resultado da subjetividade de um ser superior. A partir de então demos à ciência o papel de investigar os fatos, de explorar o mundo, e à metafísica restou apenas o papel de conceituar o mundo a partir desses fatos que observamos, ajustando um ao outro para permitir um conhecimento cada vez mais preciso e coerente. Passamos a usar a razão não para entender ou explicar o mundo, mas para tornar o conhecimento possível, para justificar a validade das ciências como um saber objetivo.

Como se percebe, hoje o campo da metafísica é muito mais modesto, e busca apenas entender o que é a realidade e como se dá a nossa relação com ela. Busca explicar como é possível entender o mundo objetivamente, não a partir da ótica subjetiva do “ser absoluto”, mas da ótica subjetiva do homem, que está contida na própria realidade natural, e não acima dela. Assim sendo, o que hoje denominamos metafísica não é a tentativa de investigar o que existe “além” da física, mas além da experiência imediata. Ela busca distinguir aquilo que existe em si mesmo — e que existiria mesmo se não existíssemos — daquilo que existe apenas em nossas mentes. Com essa abordagem, já não tentamos justificar o mundo, mas o conhecimento. Em vez de distinguir entre ser e essência, entre dentro e fora da física, passamos a distinguir entre subjetivo e objetivo, entre dentro e fora do homem. Abandonamos a ideia de que haveria uma “essência transcendental” inefável, pois percebemos que essa essência era apenas nossa subjetividade projetada no mundo exterior.

Esse movimento de naturalização tem profundas implicações a respeito de como pensamos o mundo e o lugar do homem na existência — e, como essa mudança de ótica é relativamente recente, ainda carregamos muitos preconceitos metafísicos herdados da metafísica tradicional essencialista. A relação do niilismo com a metafísica, no caso, seria justamente a tentativa de entender as implicações de reduzir o homem ao natural. O niilismo existencial nega que haja sentido em buscar um sentido subjetivo no mundo objetivo, exterior ao homem. Ou seja, a investigação da realidade natural nunca poderá envolver questões subjetivas, pois não podemos investigá-las por meio da observação de fatos naturais.

Para levar tais questões subjetivas adiante, investigando, por exemplo, a “razão de ser do homem”, precisaremos naturalizar essa questão, isto é, abordá-la dentro do contexto de um mundo natural regido por leis físicas impessoais. O problema é que, ao naturalizar a subjetividade, a questão mostra-se algo tão despropositado quanto procurar uma fundamentação física para o Natal ser em dezembro. Entender nossa subjetividade como resultado de um processo natural torna ilegítima a maioria das questões que levantamos sobre o mundo em si mesmo. Assim, quando o âmbito da reflexão metafísica fica amarrado à ciência, à experimentação, aos fatos naturais, o resultado é que deixam de ser admissíveis as investigações metafísicas que não digam respeito àquilo que foi observado no mundo natural. Afirmar que o homem não pode procurar para si mesmo um sentido que não seja baseado em fatos naturais equivale, é claro, a destruir a ideia de sentido pela raiz — ficando as investigações sobre o sentido da vida restritas a fatos naturais, como sobrevivência da espécie e perpetuação genética, por exemplo.

Como se nota, o niilismo faz o incômodo papel de “carrasco das investigações sem sentido”. Não se trata realmente de uma ideologia, de uma ótica com qualquer objetivo “positivo”, mas de uma postura de reflexão analítica e retificadora. O niilismo não busca explicar ou guiar o homem, mas situá-lo imparcialmente dentro daquilo que se conhece por meio da ciência. Nessa ótica, como o fim da metafísica tradicional equivale a uma ruptura radical com a teologia, podemos dizer que o niilismo faz o papel de coveiro do sentido: busca sepultar todas as questões levantadas com base na suposição de que haveria uma “razão” para tudo o que existe. O além desaparece, restando apenas o aqui.

Nessa abordagem, aquilo que denominamos vazio da existência seria precisamente o vácuo criado por essa drástica redução de nossa concepção metafísica do mundo. Pensávamos que o que existia dentro de nós, nossa subjetividade, também existia fora de nós, refletindo os “princípios últimos” da realidade, algo como um “espírito do mundo”. Agora, reduzindo o mundo à física, aos fenômenos naturais, essa essência passou a equivaler às leis físicas — algo que julgávamos ser apenas uma pequena parcela da realidade. Quando passamos a ver o mundo como algo natural e objetivo, tornamo-nos também algo natural e objetivo, e isso nos decepcionou grandemente — sendo o papel do niilismo manter o homem decepcionado até que decida abandonar suas criancices existenciais.

Entendendo que as leis físicas são, por assim dizer, a “essência” da realidade, a observação mais interessante a ser feita é a seguinte. A existência do homem é uma lei física? Não. Há algo no mundo natural que torne a existência do homem necessária como a gravidade? Não. Segue-se que não fazemos parte do mundo natural enquanto homens, mas enquanto matéria. Como não há leis naturais subjetivas, nossa subjetividade não tem essência. Em vez de necessária, a existência do homem é contingente: somos um acidente. A naturalização da realidade implodiu a subjetividade, e o homem foi reduzido a nada.

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Feitas essas observações, vemos que o niilismo nos coloca numa situação bastante estranha, como se fôssemos visitantes no mundo, hóspedes temporários da matéria — e é exatamente esse o caso. Somos um fenômeno natural, e nossa ideia aqui é nos revisarmos por completo enquanto tais, passando a limpo nossa compreensão da realidade.

Até este ponto, ocupamo-nos em explicar que o vazio da existência decorre de reconhecermos o caráter não-humano do mundo em si. Daqui em diante, nos dedicaremos a delinear com maior clareza o que seria esse mundo não-humano, distinguindo-o de nosso universo subjetivo. Nossa primeira observação será a respeito da busca pelo conhecimento. Isso foge um ponto do assunto, mas é importante. Depois começaremos a delinear a distinção entre objetivo e subjetivo em detalhes, e daremos alguns exemplos de “aplicação” do niilismo enquanto procedimento analítico.

Não há dúvida de que compreender o mundo sempre foi nossa maior ambição filosófica. Porém, exceto pela curiosidade, no processo de entendê-lo não há qualquer ponto de partida seguro, e isso sempre nos incomodou. Foram propostas muitas soluções para o problema da incerteza em nosso conhecimento, mas todas elas se mostraram inconclusivas — ainda hoje não temos qualquer certeza. O que dificilmente nos ocorre, entretanto, é questionar o ponto de chegada: as certezas. Se não temos qualquer ponto de partida seguro, por que achamos seguro dizer que a certeza é o ponto de chegada? Ora, certezas são o objetivo de quem busca segurança, não conhecimento. O problema da incerteza nasce simplesmente de nossa angústia — não se trata de algo a ser solucionado por meio da investigação, mas por meio de calmantes.

Perceba-se, então, que não faz sentido procurar certezas no mundo, pois o próprio conceito de certeza foi inventado por nós mesmos — e não com o fim de melhor conhecer o mundo, mas de nos sentirmos mais seguros. Repudiamos certezas porque queremos entender o mundo, não justificar nossos rodeios ansiolíticos. A crença na necessidade de certezas desvirtua nossa compreensão porque, o aceitarmos a noção de certeza, passamos a investigar a realidade física em busca dessas mesmas certezas, num processo obviamente circular. Esse objetivo de alcançar “verdades absolutas” nunca foi demonstrado como válido, apenas suposto como desejável por filósofos medievais inspirados pela matemática.

Nessas circunstâncias, se não podemos partir do pressuposto de que devemos buscar certezas, já não temos ponto de partida nem de chegada, o que é ótimo. Livres desses preconceitos, podemos começar a construir uma visão imparcial, que não está comprometida com a “paz na alma” como critério da verdade.

Apenas agora, saindo desse círculo, abandonando todas as expectativas, nosso ponto de partida passa ser observar o que temos diante de nós. Abrimos os olhos, vemos que há um mundo, e que estamos nele — mais nada. Essa é a postura mais básica e neutra que podemos adotar. Partir de posturas complicadas e confusas torna tudo complexo e confuso, então partimos de nossa existência no mundo, que é a coisa mais elementar e imediata à qual temos acesso. Claro, não temos “fé” nisso, não pensamos que se trate de uma verdade incontestável. Talvez estejamos errados ao pensar que existimos. Talvez existir seja uma ilusão. Há infinitos talvezes teóricos, mas queremos que também nossos motivos para a dúvida sejam baseados em fatos, não em suposições metafísicas inócuas.

Sendo que não possuímos motivos razoáveis para duvidar de nossa existência, não duvidamos. Pensamos que existimos porque estamos aqui, e só. Essa não é uma questão que possamos resolver por meio de meditações metafísicas — não temos como investigá-la. O que nos leva a aceitar a existência do mundo como um fato é o fato de o termos diante de nós. Isso é tudo o que podemos dizer. Sabemos que existir é um absurdo, mas é um fato absurdo, não apenas uma especulação.

Desse modo, existir não se trata de uma crença metafísica: trata-se simplesmente de abrirmos os olhos e nos vermos acontecer neste algo que chamamos mundo. Nossa postura seria metafísica apenas se abríssemos os olhos acreditando que devemos buscar certezas ou razões últimas. Em vez disso, abrimo-los tão somente, e é isso o que vemos. Se existir é uma ilusão, é diante da ilusão que estamos, e queremos conhecê-la, seja ela o que for. Essa incerteza básica sobre o existir é algo que simplesmente temos de aceitar, do contrário viciaremos nossa investigação logo de início, passando a andar em círculos à moda dos teólogos.

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Esclarecido esse ponto, voltemo-nos agora à distinção entre objetivo e subjetivo. Para nossos fins, definiremos a realidade objetiva como aquilo que existe por si mesmo incondicionalmente. A atividade dessa realidade, no caso, seria aquilo que denominamos fenômenos, ou seja, aquilo que acontece. Se a existência, por exemplo, fosse um relógio, a realidade objetiva seriam suas engrenagens, seus ponteiros, sua estrutura como um todo. O movimento dessas engrenagens seriam os fenômenos. Mas, na ótica niilista, isso tudo careceria de significado, ou seja, as horas não existiriam — esses ponteiros girariam sem razão e apontariam para coisa nenhuma.

Para entendermos com mais clareza, utilizemos outro exemplo mais próximo de nosso dia a dia: uma festa. Passamos por um local e vemos que nele está sendo realizado um evento festivo qualquer. No dia seguinte, passamos pelo mesmo local, mas não encontramos sequer vestígios do evento. O lugar existe. As pessoas existem. A festa não: ela estava apenas acontecendo. A ideia é essa. Agora basta ampliar o tempo envolvido para percebermos que as pessoas também não existem: todas elas têm uma duração, ou seja, também estão acontecendo. Quanto mais avançamos nesse raciocínio, mais as implicações se tornam extremas, até percebermos que eventualmente tudo se perderá nessa eterna reciclagem — e a única coisa que permanece é a forma como isso tudo acontece, ou seja, a física, a matéria da qual isso tudo é feito.

Até aqui, tudo está bastante claro: o mundo existe, e nós acontecemos por meio dele. Porém, agora, para demonstrar por que a humanização da realidade é um erro, e também para explicar como esse erro ocorre, precisamos distinguir entre a realidade objetiva e a subjetiva, entre o mundo em si mesmo e a nossa consciência desse mundo. Temos alguma dificuldade em perceber essa distinção através da intuição, mas podemos explicá-la, ao menos preliminarmente, da seguinte forma: aquilo que existe independentemente de nós, e que continuará existindo mesmo depois que estivermos mortos, é a realidade objetiva, o ser propriamente dito. Por outro lado, aquilo que existe apenas dentro de nossas mentes é a realidade subjetiva. Esse mundo subjetivo é criado por nós próprios, algo que, depois de nossa morte, cessará de existir sem deixar quaisquer vestígios.

Prossigamos questão adentro. Somos máquinas, e nossa consciência faz parte de um sistema de reconhecimento da realidade que tem a função de guiar nossos corpos. A realidade que temos diante de nossos olhos é uma construção mental subjetiva, uma representação parcial da realidade objetiva. Sons, cheiros, cores: isso tudo é construído por nossos cérebros a partir do que captam por meio de um aparato sensorial. Não há um eu por detrás disso tudo. Somos nosso cérebro. E em volta desse cérebro há um corpo que o permite andar pelo mundo, e ligados a ele há órgãos sensoriais que o permitem perceber o mundo.

Cada espécie tem um tipo diferente de cérebro, e cada tipo interpreta a realidade de uma maneira particular — havendo, claro, espécies que não têm cérebro algum. Sendo humanos, temos um cérebro com cinco sentidos, e ainda a capacidade de reflexão abstrata. É por meio disso, e apenas disso, que podemos saber o que é a realidade. Note-se também que nossa razão, apesar de magnificamente versátil, não tem acesso à realidade exterior — sendo esse o motivo pelo qual a razão pura é tão inútil para investigar a realidade quanto olhos fechados para vê-la.

Nossa consciência do mundo é, então, uma representação do mundo, um ponto de vista particular de um cérebro de um organismo particular. Nossa percepção do mundo não é o próprio mundo: é apenas o modo como nosso cérebro nos apresenta esse mundo. Essa realidade, portanto, em vez de imediata, é mediata: está para o mundo assim como um mapa rodoviário está para as estradas. Trata-se de uma reprodução aproximada, de uma tradução mais ou menos equivalente, não de uma transposição direta.

Claro que nossos corpos, nossos cérebros, nossos processos mentais existem e acontecem objetivamente. Entretanto, o mundo que se apresenta diante de nós através da consciência, através dos sentidos, é uma realidade apenas subjetiva, que depende de nós para existir. Por isso ela varia de sujeito para sujeito. Aquilo que vemos como uma cor azul, outro indivíduo pode ver como uma cor verde. Aquilo que para nós tem cheiro podre, para abutres presumivelmente tem cheiro maravilhoso. Há infinitos modos de interpretar as mesmas informações sensoriais, e isso depende de como nosso cérebro funciona, de como ele está programado para traduzir as informações que recebe por meio dos sentidos. Assim, a realidade em si mesma não nos é acessível: só podemos apreendê-la de modo indireto, na forma de representação.

Isso nos dá uma ideia razoável do que queremos dizer ao afirmar que em nossas cabeças há apenas uma representação da realidade, uma construção limitada feita a partir de informações que não esgotam tudo aquilo que existe. Nossos sentidos estão programados para captar apenas uma amplitude específica de informações. Nossos olhos captam um espectro específico de ondas eletromagnéticas, representando-as como cores. Nossos ouvidos captam um espectro específico de vibrações sonoras, representando-as como sons, e assim por diante. Assim, a princípio, nada impediria que sentíssemos gosto com os olhos ou que cheirássemos com os ouvidos — bastaria que nossos cérebros estivessem arquitetados para traduzir a realidade dessa maneira.

Então, a partir de processos físicos materiais, nosso cérebro cria uma espécie de “realidade virtual” que só existe dentro de nossas mentes, assim como uma televisão cria imagens a partir de componentes eletrônicos. A atividade de nossos circuitos cerebrais cria nossa consciência e, dentro dela, um mundo subjetivo. Esse é o nosso modo de existir. Nosso cérebro, através dos sentidos, recebe continuamente informações do ambiente e, a partir dessas informações, ele elabora uma representação subjetiva da realidade objetiva.

Assim, em vez de acessar a realidade diretamente, nosso cérebro lê os dados brutos que chegam por meio dos sentidos e apresenta à nossa consciência um resumo de seus aspectos mais relevantes. É isso o que cérebros fazem, essa é a sua função. Através dos sentidos, eles se informam sobre a realidade para saber como guiar os corpos nos quais estão instalados. Naturalmente, quanto melhor for nossa capacidade de representar a realidade, melhores serão nossas chances de sobreviver, de evitar inimigos, de encontrar alimento, parceiros sexuais e coisas do gênero, sendo nossa capacidade de raciocinar apenas um refinamento dentro disso tudo, permitindo-nos distinguir sutilezas. Tais coisas, por sua vez, estão arquitetadas em função da perpetuação genética. É por isso que sentimos prazer ao fazer sexo, por isso sentimos dor ao ser agredidos etc., mas esse assunto não nos ocupará no momento.

Assim, nós somos reais, mas não vemos a realidade em si. A vida consciente, entretanto, não é uma ilusão. Enquanto máquinas, somos seres tão materiais e objetivos quanto o mundo que nos circunda. Nós existimos objetivamente, nossa consciência é um fenômeno real. Porém, apesar de sermos reais, nossa consciência não tem acesso imediato à realidade em si mesma. Esse contato é mediado pelos sentidos. Com isso, vemo-nos limitados à representação subjetiva criada por nossos cérebros, sendo nossos sentidos o único ponto de contato com o mundo exterior. Disso resulta a impressão de que existir é estar vivo, embora a vida seja apenas uma espécie rara de acaso.

Como nosso contato com a realidade acontece por meio dessa ótica parcial, criada por nós mesmos, surgem dois problemas. Primeiro, nossa representação da realidade está comprometida não com a ciência, mas com a sobrevivência. Segundo, como ter consciência disso tudo não é biologicamente relevante, não distinguimos entre uma coisa e outra, e o subjetivo nos parece algo objetivo, como se nossa consciência, nossa representação mental do mundo, fosse o próprio mundo, algo que nos leva a humanizar o que observamos, transpondo nossa representação da realidade, que é interior, para o mundo exterior.

Parece-nos, por exemplo, que as cores existem por si mesmas. Cores parecem-nos uma propriedade intrínseca dos objetos que observamos, parecem algo exterior, independente de nós. Ao observar um objeto vermelho, parece-nos indubitável que aquela cor está no objeto, e não em nossas cabeças. Mas todas as cores são criadas por nosso cérebro a partir da captação de ondas eletromagnéticas. Por isso vemos cores num mundo no qual não há cor alguma. O fato é que não há objetos verdes ou azuis em si mesmos. É nosso cérebro que cria as cores no processo de transformar em imagens mentais a energia luminosa refletida por tais objetos. Ver cores é apenas um modo como representamos a realidade, e elas só existem porque há um cérebro que as cria. Se quisermos uma prova disso, bastará fecharmos os olhos.

As ondas eletromagnéticas, por outro lado, são objetivas, pois sua existência é incondicional. Elas existem por si mesmas, havendo ou não um cérebro para captá-las e traduzi-las em imagens mentais. O mesmo vale para coisas como amor, alegria, prazer, dor, angústia etc.: são algo que só existe no contexto biológico de nossos corpos.

Assim, tudo o que acontece em nossas consciências tem seu começo e seu fim na própria consciência. Fora da consciência, tudo é inconsciência; fora da vida, tudo está morto. Naturalmente, como somos seres vivos, temos a impressão de que a vida tem um “valor intrínseco”, mas isso é tão ilusório quanto pensar que átomos têm sentimentos.

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Como definimos, a realidade objetiva é aquilo que existe por si mesmo incondicionalmente. Porém, como nossa existência subjetiva, o conteúdo de nossas consciências, é puramente condicional, o niilismo, quando aplicado a nós mesmos enquanto seres subjetivos, reduz-nos a nada. Não só as cores, mas todo o nosso universo subjetivo passa ser encarado como uma “ficção”, como uma realidade virtual criada pelo sujeito. Nessa ótica, quando afirmamos que “tudo é nada”, com isso queremos dizer que nossa ótica subjetiva da existência é condicional. Queremos dizer que nossa consciência acontece dentro de nossos cérebros como resultado de um processo material, de modo que a realidade objetiva não está na própria consciência, mas na atividade neural, no cérebro material que cria essa consciência. Se explodirmos nossos cérebros, apenas nossa consciência do mundo desaparecerá: o mundo continuará existindo.

Pelo fato de o mundo em si mesmo não possuir nenhuma das características da subjetividade humana e, ao mesmo tempo, sermos seres que existem encerrados num mundo virtual criado por eles próprios, podemos dizer que nossa subjetividade se assemelha a uma espécie de surto psicótico da matéria.

Feita a distinção entre objetivo e subjetivo, o niilismo começa a se situar com mais clareza em nossas mentes, permitindo-nos relativizar nosso antropocentrismo. Desse modo, ao afirmar que tudo é nada, que a existência é vazia, referimo-nos à ausência de significado que inere a essa existência objetiva — pois significados, intenções e objetivos são algo que só faz sentido no contexto de nossas máquinas biológicas. Não devemos, portanto, entender o niilismo como uma “negação da realidade” ou como um “pessimismo existencial”. Devemos entendê-lo como a ótica segundo a qual a realidade objetiva é algo que apenas existe, estando isenta de quaisquer traços subjetivos. O subjetivo, por outro lado, deve ser entendido como algo que existe apenas dentro de nossas cabeças. Assim, objetivamente, o ser existe, e nada mais. Mas e quanto ao que acontece? O que acontece, acontece, e nada mais. Se acontece dentro ou fora de nossas cabeças, é indiferente.

Isso justifica a afirmação de que, fora de nosso universo subjetivo, nada tem sentido, tudo carece de significado, pois tais coisas são criadas pelo próprio sujeito. É por isso que o problema do “sentido da existência” não tem solução, pois não é sequer um problema, apenas um fato.

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De início, não fica muito claro para que serve compreender isso tudo. O niilismo, enquanto postura teórica, não tem sequer vestígio de utilidade prática. Porém, intelectualmente, é uma ferramenta analítica bastante interessante, desde que empregada em quantidades moderadas. Uma overdose de relativismo não fará mais que nos deixar ansiosos por não termos certeza de nada e por havermos rejeitado todos os pontos de referência a partir dos quais poderíamos deduzir alguma coisa útil. Ficaríamos paralisados pelo simples fato de que “talvez possamos estar errados”, de que “não podemos ter certeza de nada”. Mas, obviamente, por tal postura consistir na certeza de que não temos certeza alguma, ela refuta a si própria, sem nos oferecer qualquer perspectiva promissora sobre como chegar a saber algo.

O ceticismo radical é apenas um modo inteligente de afirmar, em termos filosóficos, que somos limitados e estúpidos, no qual quem faz a afirmação se coloca como um exemplo ilustrativo ao atirar no próprio pé. Ao que tudo indica, essa espécie de ceticismo é apenas ansiedade disfarçada de filosofia. Claro, podemos estar errados. Porém, se estivermos, corrigiremos o erro assim que o descobrirmos: não nos interessa devanear terríveis erros hipotéticos, pois isso é apenas paranoia.

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Sendo um agente destrutivo, o niilismo não nos permitirá descobertas grandiosas, apenas limpará o terreno para que consigamos construir uma visão mais coerente da realidade. Assim, ao aplicá-lo num assunto qualquer, não devemos esperar mais que a aniquilação do objeto que analisamos, ou seja, sua redução a nada. O niilismo opera uma espécie de “esterilização do ser”, eliminando todos os seus elementos subjetivos: tira do ser toda a vida, todo o movimento, todo o significado, todo o sentido, ou seja, desumaniza-o, descaracteriza-o a tal ponto que se torna indistinguível de qualquer outra coisa. Isso permite que tenhamos uma visão crua daquilo que analisamos, vendo-o despido de antropomorfismos, reduzido à sua crua existência objetiva, o que equivale a dizer reduzido a nada, isto é, a nada além dele próprio.

O niilismo, como se percebe, procura nos remover da equação para que consigamos conceber algo próximo do que seria a realidade objetivamente — sendo a finalidade disso é evitar que nosso conhecimento se torne uma humanização da existência. Assim, ao adotar uma ótica niilista em relação a um assunto qualquer, é como se estivéssemos desumanizando esse assunto, dissecando-o. Uma vez tenhamos apagado suas qualidades subjetivas, deixará de existir qualquer distinção entre uma coisa e outra coisa, seja qual for o nível em que tivermos estabelecido tais distinções — como valor, sentido, significado, identidade etc. —, e teremos de reconstruir nossa compreensão do assunto sob essa ótica bastante severa. No processo, morrem as ilusões, ficam os fatos.

Como essa ideia é um pouco abstrata, pensemos numa forma mais palpável de colocá-la. Por exemplo, que é um homem? Podemos defini-lo, grosso modo, como um mamífero com cérebro volumoso que anda em posição ereta. Essa definição distingue o homem de todo o resto, especialmente o resto dos animais. Dá ao ser humano um caráter distintivo frente à existência. Logo, nessa perspectiva subjetiva, temos uma definição a partir da qual podemos afirmar que o homem é alguma coisa, que o homem existe. Todavia, o que aconteceria se agora adotássemos uma postura niilista em relação ao homem? Haveria uma série de questionamentos que acabaria por desconstruir toda essa noção, negando a distinção entre o homem e as demais coisas. Vejamos algo simples que ilustra essa ideia.

O homem é composto por aproximadamente 70% de água. Enquanto essa água estiver, digamos, em seu cérebro como componente das reações químicas que o mantêm vivo, ou em qualquer outra parte de seu corpo, será também um homem. Então a água é homem na medida em que compuser o sistema biológico que desempenha esse papel previamente definido. O mesmo vale para os 30% restantes, que são proteínas, gorduras, açúcares, ácidos nucleicos etc. Sabemos que o homem só permanece vivo na condição em que a matéria que constitui seu corpo seja trocada permanentemente. Então em algum momento a água que estava em seu cérebro, e que o permitiu pensar que precisava cortar as unhas, será expelida de seu corpo. A água deixará de ser um homem para ser precisamente o quê? Exatamente o que era antes de ser ingerida: nada; só um conjunto de moléculas de oxigênio e hidrogênio, como sempre foi, como nunca deixou de ser.

A não ser que pensemos que os átomos adquirem alguma aura mágica após a absorção e a perdem após a excreção, temos de admitir que o conceito subjetivo de homem, que nós próprios inventamos, é algo que cria uma distinção subjetiva e qualitativa entre esse homem, que é um arranjo específico de matéria, e as demais coisas, que são arranjos de matéria dispostos de modo diverso. Ambas as coisas, no fundo, são exatamente a mesma coisa: matéria. Tudo o que fizemos foi classificar, dar nomes aos bocados de átomos que nos parecem importantes, e as distinções que criamos com isso são apenas convenções. Essa distinção que vemos entre homem e não-homem nunca poderia ser objetiva porque, por exemplo, as moléculas de água no rio, na chuva ou no cérebro têm, objetivamente, a mesma natureza. Sejam quais forem as situações em que se encontrem, não exibem qualquer diferença discernível em seu comportamento físico.

Se isso se aplica não somente à água, mas também a tudo o que compõe o homem, e se o homem é composto pela mesma matéria que constitui todo o resto do universo, onde exatamente poderíamos encontrar uma fundamentação objetiva para a distinção entre o homem e o mundo? Entre a água em seu sangue e a na torneira? Entre o oxigênio em seu sangue e o na atmosfera? Não podemos — ou os rios já estariam humanizados pela nossa urina cheia de essências e realidades maiores. Tudo o que fazemos é criar definições subjetivas de caráter convencional, nas quais o que levamos em consideração é a utilidade prática de se designar esse arranjo específico de matéria pelo termo homem.

Portanto, analisar o homem com uma ótica niilista equivale a negar sua existência objetiva — mas apenas enquanto um ser dotado de uma suposta “subjetividade objetiva”. Isso não significa que não existimos, que não estamos aqui, mas que não se pode dizer que o homem existe objetivamente, no mesmo sentido em que a água existe. Isso porque, diferentemente das cores, dos sons, dos sentimentos, a água não é criada por nossa representação da realidade. Claro que a água surge devido a reações químicas. Sabemos que seus elementos podem ser decompostos, mas isso tudo independe da ótica de um sujeito. Se decompuséssemos a água utilizando eletricidade, a eletrólise não ocorreria em nossos cérebros.

Assim, ao aceitarmos que o homem é composto pela mesma matéria que compõe todo o resto do universo, e que esta se comporta da mesma forma, estando ou não em seu corpo, isso implica rejeitar a distinção entre homem e não-homem. Nessa ótica, se houvesse um homem sentado em uma cadeira, seu corpo e a cadeira não poderiam ser encarados como coisas distintas, objetivamente diferentes. Tudo passa a ser visto como uma sopa indistinta de átomos. A distinção entre homem e cadeira só surge após delinearmos critérios subjetivos de classificação, que são completamente arbitrários. Não que tais critérios sejam inúteis, pois não são. O fato de algo ser subjetivo não é uma objeção à sua significância, só uma condição de existência: a condição de existir como um fenômeno subjetivo, como uma ótica de um sujeito, não como uma “essência do ser”. Em nenhum sentido isso poderia ser usado como justificativa para remover o valor da cadeira ou do homem, visto que coisas como valor, significado, sentido só existem dentro da esfera subjetiva, nunca no mundo objetivo.

Diante disso, alguém poderia dizer: como se poder afirmar que, ao olhar este objeto, não exista uma pessoa vendo este objeto! Naturalmente que, para todos os efeitos, existe uma pessoa vendo esse objeto. Só que a pessoa, enquanto um sistema biológico maquinal, assim como sua notável capacidade de converter energia luminosa em imagens mentais, é um fenômeno, e como tal deixará de existir — ou, melhor dizendo, de acontecer — assim que o encadeamento material que deu origem ao fenômeno cessar, resultando num velório. Com a morte do indivíduo, deixa de existir esse universo subjetivo no qual havia uma pessoa que via objetos — e, quando um universo subjetivo desaparece, não sobram disso quaisquer vestígios, assim como não sobram vestígios de filmes quando uma televisão é desligada.

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Pode-se dizer que, no exemplo acima, nós “niilificamos” o homem, isto é, o desconstruímos, esvaziando-o de quaisquer qualidades subjetivas. Quando suprimimos o aspecto subjetivo do homem, passamos a ver nós próprios como um fato, como algo indistinto, que não se separa do restante da realidade. Vemo-nos, então, reduzidos a um bocado de átomos — e vemos que nosso próprio pensamento não passa da atividade desses átomos. Por meio desse processo intelectual, pudemos vislumbrar o que é um homem em si mesmo, num sentido objetivo. Se fizéssemos a mesma pergunta — que é o homem? —, responderíamos, agora, o homem não é nada. Como a redução a nada é um processo intelectual, não algo prático, não foi necessária uma bala para realizar essa ação — embora ela sirva para ilustrar que depois de morte nada restará de nosso subjetivo.

A utilidade fundamental de analisarmos algo sob a ótica niilista, como se vê, consiste em verificar sua consistência, ou seja, sua relação com a realidade, sua vida — e, para testar a vitalidade de uma ideia, nada mais confiável que destruí-la e, depois, verificar se tem forças para renascer de suas próprias cinzas.

Mesmo que tenhamos desconstruído o homem no exemplo acima, essa ideia não deixou de ter vida, pois podemos reconstruí-la por completo a partir da realidade subjetiva, e não nos incomoda em nada que tenhamos de fazê-lo nós próprios, sem qualquer autoridade externa. Como somos homens, esse é um conceito que simplesmente fazemos questão de cultivar, e está completamente contido na esfera humana da realidade.

É importante também lembrar que essa desconstrução não nos causou angústia somente porque, desde o início, não tínhamos quaisquer fantasias metafísicas sobre o homem ser “especial” ou “algo além” de matéria. Assim, mesmo descontruída em nível conceitual, nossa existência não deixou de ser um fato. E o mesmo poderia ser dito das cores: mesmo sabendo que cores são apenas uma ficção subjetiva, continuamos a cultivar esse conceito, pois ele é útil para a decoração das paredes de nossas casas. Se cores não perdem seu valor por não possuírem uma “essência transcendental”, por que o homem perderia?

Julgamos tais observações óbvias porque sabemos que somos apenas um modelo específico de máquina biológica ao qual damos o nome homem. Se a espécie humana não existisse, o conceito de homem também não existiria — nossa essência não continuaria existindo num cantinho oculto do cosmos. Assim, os niilistas podem desconstruir o conceito de homem o quanto quiserem. Isso apenas apaga uma definição, mas não muda o fato de que somos máquinas que gostam de dar nomes às coisas. O niilismo apenas nos impede de perder de vista que, em última instância, é apenas gramática o que nos distingue do resto da existência.

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O homem, como vemos, sobreviveu à crítica. Porém, se reduzirmos a nada um conceito que não tenha realidade por detrás, não haverá como reconstruí-lo. Quando, depois de sofrer tal processo de crítica, o conceito não é capaz de levantar-se novamente, isso indica que já estava se tornando um fantasma, que já havia deixado de corresponder a uma realidade explicitamente humana para refugiar-se no nada na forma de um dogma metafísico impessoal, sustentado somente pela tradição ou pela fé. Então, por exemplo, se reduzirmos a moral a nada, o que restará de realidade nesse conceito? Ou seja, a partir de que poderemos reconstituí-la, devolver-lhe a vida? Apenas de nós próprios, pois não haveria qualquer outro referencial. Então, se não pudermos explicar de onde tiramos nossos valores, eles não poderão continuar a ser sustentados. Não poderemos alegar que existem “por si mesmos” se não pudermos demonstrá-los como um fato natural — e, não havendo um além, só nos restará defendê-los como um valor subjetivo, inventado por nós.

Suponhamos que houvesse existido uma tribo que acreditava em duas leis morais: que é errado comer fezes e que é errado comer alface. Numa escavação arqueológica, encontramos essas duas leis inscritas em algum artefato. Nessa situação, apenas a primeira lei nos seria algo inteligível, um valor moral ainda passível de ser reconstruído como algo relacionado ao mundo. A outra lei seria vista como uma superstição sem sentido, baseada em alguma suposição fantasiosa desse povo a respeito do caráter funesto de folhas de alface. Nenhuma pessoa em sã consciência pensaria que devemos parar de comer alface, tampouco acharia sensato comer fezes para zombar dos valores dessa tribo. Entretanto, se descobríssemos que a alface que essa tribo cultivava era uma variante que, por alguma mutação genética, tornou-se venenosa, então julgaríamos perfeitamente razoável a proibição que defendia.

Noutro exemplo, reduzindo a nada as leis criminais e os dez mandamentos, só as primeiras poderiam ser reconstruídas com nossas próprias mãos. Poderíamos reinventar as leis criminais a partir do zero, pois sabemos de onde vieram e para que servem. São valores morais humanos, e sabemos como justificá-los: interesses comuns e polícia. Isso, obviamente, não se aplicaria aos dez mandamentos, já que ninguém poderia demonstrar a realidade do legislador metafísico que os criou.

Nessa situação, todos os valores morais que tenham deixado de possuir raízes na realidade, que tenham se convertido em abstrações puras e idealismos caducos, morrem ao serem demolidos pelo niilismo, e isso pelo simples fato de que não havia nenhuma realidade ainda viva que os sustentasse. Esses valores, agora sem contexto, já não nos defendem, não nos representam. Não se sustentam porque não há ninguém para sustentá-los, sendo que sua morte só poderá ser adiada por apelos à autoridade.

Com se percebe, o processo de crítica niilista seria equivalente a reunir todo o papel-moeda que possuímos e todo o ouro que sustenta seu valor. Destruir todas as notas de papel-moeda e, então, verificando a quantidade de ouro que possuímos, emitir novamente as notas, sabendo que, agora, há uma realidade sustentando seu valor. Dogmas, ou seja, ideias sem valor nem conteúdo, fazem mal à nossa compreensão da realidade assim como cheques sem fundo fazem mal à economia. Essa analogia deixa claro que o niilismo, longe de representar uma medida drástica, não passa de um procedimento de fiscalização da realidade, enfatizando não a destruição, mas a transparência de nosso conhecimento. Assim, quem possui confiança de que suas ideias têm fundamentação sólida, não terá nada a temer. Entretanto, quem emite juízos ocos, fraudulentos, não terá como protegê-los.

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A moral é um assunto bastante controverso, mas é evidente que somos nós próprios que inventamos todas as noções morais. Recheamo-las com ideias, depois as esvaziamos com críticas, e assim caminhamos. Um conjunto de noções morais cumpre o papel de orientar nosso comportamento na vida em sociedade. Como somos seres em constante mudança, as criações que originalmente surgiram como nosso reflexo deveriam nos acompanhar nessas mudanças, mas é bastante comum acabarem cristalizadas em noções aparentemente suficientes em si mesmas. Ou seja, perdem seu sentido, sua origem, sua função, e agora não dizem nada, não passam do eco de uma voz esquecida. Porém, em vez de morrerem, é comum permanecerem vivas anonimamente em função da tradição e da autoridade. É como se um elemento subjetivo houvesse “pegado a tangente” e transposto a própria subjetividade, situando-se agora na esfera objetiva que nós, meros mortais, não podemos alcançar. Tornam-se valores de anjos. Isso, logicamente, é impossível, mas é assim que se estabelece a autoridade absoluta de certos valores, ao menos em nossas cabeças. Um ótimo exemplo disso é o culto aos antepassados — porque, obviamente, se tais valores fossem justificáveis, não seria preciso defendê-los recorrendo ao histórico de defuntos.

O que temos aqui? Valores incompreensíveis, que apontam para lugar nenhum, e cujos fundamentos, em vez de serem alguma coisa, não são nada. No além, são tudo. No aqui, não são nada. São razões cuja razão ninguém entende, mas mesmo assim segui-las é “absolutamente necessário” — por motivos que ninguém sabe explicar. Se admitíssemos que isso tudo não passa de uma inércia cega e irracional, tudo bem. Porém, quando tentamos justificar racionalmente a preservação desses defuntos teóricos, temos novamente a metafísica tentando enxertar razão no que não tem razão alguma. São coisas desse gênero que o niilismo destrói, e não vemos como isso poderia ser algo ruim.

Apesar de estabelecer referenciais aparentemente seguros que nos livram do relativismo e da incerteza, a moral metafísica apenas utiliza um artifício circular para calar o assunto e permitir que sigamos com nossas vidas como se a questão estivesse resolvida. Essa moral metafísica, em grande parte, se ocupa da solução de problemas imaginários, como o sexo dos anjos ou o umbigo de Adão. Porém, quando ela se ocupa da solução de problemas reais, o resultado pode ser, e muitas vezes é, prejudicial, pois ela tranca nossa compreensão da realidade dentro de dogmas e joga a chave fora. Tudo permanece explicado por uma razão intocável e incompreensível, que temos de obedecer sem hesitar. A mesma sensatez que, noutros assuntos, é normal, passa a ser um crime quando direcionada a essas questões. É assim que um assunto torna-se “profundo”, e tão mais profundo quanto mais palpável for sua incoerência.

O que poderia ser mais ridículo que subordinar toda a nossa compreensão da realidade à crença em valores e conceitos absolutos que todos respeitam, mas ninguém sabe explicar, e que habitam uma realidade na qual não estamos? E o que poderia ser mais inconsequente que considerar tal postura submissa como algo razoável? Simplesmente tiramos da cartola, num passe de mágica, uma explicação fantástica para algo que muitas vezes sequer existe. Depois tentamos justificar esse salto de fé chamando-o de “mistério”, de “sentido íntimo das coisas”, de “ordem moral do mundo”, e coisas do gênero. Guiamo-nos em função disso como se fosse uma realidade última, coisa que, no fim, equivale a andar a esmo, desprezando o próprio chão.

Permitir que a metafísica se infiltre na moral pode parecer uma infantilidade inofensiva, deixando-a proclamar seus imperativos morais irrelevantes com uma solenidade palerma, mas é perceptível o quanto ela atrapalha uma compreensão clara dos valores que efetivamente nos guiam enquanto seres humanos. Essa atmosfera metafísica faz com que passemos a ver tudo sob uma ótica constantemente falsa, e como somos proibidos de questionar essa ótica, perdemos cada vez mais o contato com a realidade. Em pouco tempo, perdemos a capacidade de emitir juízos morais em primeira pessoa, pois demos à metafísica o papel de sonhá-los por nós, recebendo em troca uma moralidade que se perdeu dos fatos. É certo que o niilismo é uma presença fria e incômoda, mas nunca chegamos a nada tentando superá-lo com baboseiras metafísicas — se isso não resultar num dogma transcendental delirante, será no melhor dos casos uma tábua de mandamentos que nos obrigam a ser ainda mais incoerentes.

A metafísica não se justifica sequer como uma medida preventiva contra as implicações supostamente “perniciosas” do niilismo, pois o nada não pode ser posto em prática. O niilismo destrói só ilusões, e isso apenas intelectualmente. Não há quaisquer implicações práticas diretas. Para esclarecer esse ponto, pensemos da seguinte forma: alguém já ouviu a respeito de algum holocausto cometido em nome da incerteza? De mártires que deram suas vidas pela descrença? Ora, ninguém mata em nome da dúvida, ninguém se sacrifica pela realidade. Todas as guerras que travamos repousam em alguma certeza, e todas as certezas são crenças metafísicas para justificar nossos absurdos. Apenas convicções são perigosas. Por isso mesmo, o niilismo não representa perigo algum. Aqueles que dizem o contrário são os que estão tentando proteger suas ilusões dos fatos mais elementares. Tais indivíduos nunca receariam o niilismo se suas crenças fossem fatos justificáveis — afinal, ninguém tenta proteger a gravidade do niilismo, receando a desintegração do universo; ninguém invoca imperativos universais para defender que é errado fazer transfusões de sangue entre tipos incompatíveis; ninguém precisa ter fé para afirmar que é errado gritar em bibliotecas. Nenhuma moral saudável precisa ser defendida pela anemia metafísica.

Muitos também alegam que o niilismo busca destruir a “ordem social”, mas isso é outro equívoco. O que o niilismo busca destruir são nossas mentiras. Porém, se nossa ordem social repousa em mentiras, é claro que ela será refutada pelo niilismo, mas isso é apenas uma consequência indireta de sermos honestos. Mesmo assim, o objetivo nunca foi explicitamente esse. Tudo o que fizemos foi refutar — e não alvejar — aquilo que não se sustenta. No mais, como o niilismo não tem a pretensão de apontar qualquer caminho, ele também nunca poderá servir como pretexto para a militância social, pois niilistas não têm qualquer certeza, ideal ou verdade a defender. Sendo o niilismo uma postura negativa, ao adotarmos uma postura positiva, abraçando uma causa qualquer, deixamos de ser niilistas e nos tornamos defensores dessa causa.

O caráter inofensivo da postura niilista ficará ainda mais claro se tivermos o cuidado de observar que um niilista prático não seria uma pessoa ensandecida, envolvida na promoção de algum apocalipse social, mas uma pessoa em coma, em estado vegetativo. A ideia de tentarmos “viver” o vazio da existência se assemelha a um distúrbio mental, pois esse vazio só pode ser pensado. O niilismo, no máximo, pode fazer com que nos sintamos angustiados pela morte de nossas ilusões, mas não significa nada, exceto que não gostamos de estar errados.

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As observações feitas até aqui serviram para termos uma ideia mais clara do que exatamente estamos falando quando afirmamos que algo é “nada”, pois, de início, parece contraditória a ideia de que o nada possa efetivamente existir e, conscientemente, negar a sua própria existência. Quando falamos de coisas como “nada”, “vazio”, na verdade não é no mesmo sentido de “aquilo que não existe”, de “não-ser”. Tampouco isso tem a ver com pessimismo, ou seja, com distorcer a realidade negativamente somente porque não gostamos dela. Os termos “nada” e “vazio” são usados somente para designar aquilo que desaparece quando o ser é despido daquilo que não lhe é objetivamente próprio. As confusões iniciais desaparecem quando entendemos em que acepção esses termos são empregados.

Logo, dizer que a existência é “vazia em si mesma” não significa que nada nela exista, que seja o mais puro vácuo, mas apenas que, removendo-se desta todas as qualidades que somente dizem respeito ao nosso mundo subjetivo, não sobramos nem nós próprios. Tudo o que sobra é aquela situação na qual tudo é indistinto, e assim perde o sentido alegar que este ou aquele bocado de matéria é “especial” porque constitui um homem cheio de vida, pois, nessa ótica, a matéria constituir um homem vivo, um morto ou a terra que já teve a forma de homem e que agora alimenta flores no jardim é completamente irrelevante para nossos propósitos.

Então, quando falamos de niilismo, isso nos remete a essa realidade uniformemente estéril, ao contraste da existência objetiva em relação à existência subjetiva. Naturalmente, deve estar claro por que motivo o niilismo só pode ser teórico, nunca prático. O mais próximo que podemos chegar da compreensão do niilismo existencial é a apreensão desse vazio enquanto condição de existência; ou seja, compreender que o mesmo ser que constitui tudo o que somos e tudo o que pensamos é o mesmo que constitui as pedras, as estrelas, os cigarros, as paredes etc., e que o fato de estarmos pensando nisso, de isso talvez nos angustiar, não muda coisa alguma, pois essa angústia está acontecendo em nossos cérebros com a mesma necessidade com que elétrons acendem uma lâmpada.

Sempre que ultrapassamos o círculo em que fica circunscrita a subjetividade humana, caímos nesse vazio da realidade objetiva, no qual não conseguimos sequer nos reconhecer. Pois conceber o homem objetivamente é, em essência, imaginá-lo como uma porção de matéria delimitada por linhas pontilhadas. Aqui não há cores, não há sons, não há sensações, não há pensamento, não há vida, não há nada: temos só mais um fenômeno indistinto no emaranhado da falta de sentido da existência.

Podemos tentar conceber uma imagem da existência a partir de uma perspectiva fora da própria vida, mas em geral não chegamos a algo muito além de uma versão do mundo em que tudo é composto por nuvens semitransparentes de átomos de diferentes densidades. Uma perspectiva mais fidedigna talvez seja aquela que tínhamos quando ainda não havíamos nascido, apesar de ser difícil conceber esse tipo de coisa. Talvez apenas imaginar o universo sem que nele houvesse surgido qualquer forma de vida seja o modo mais fácil de conceber a ótica do niilismo inicialmente. Depois precisaremos apenas acrescentar a vida como algo que apareceu nesse universo e que provavelmente desaparecerá em algum momento futuro sem deixar quaisquer vestígios.

Como o ser não comporta os adjetivos que adoramos dar a ele, a função do niilismo é, digamos, apenas antiaderente: evitar que nossa compreensão da realidade seja poluída por nosso antropocentrismo. Ao reduzir algo a nada, a destruição ocorre apenas na esfera subjetiva da existência, reduzindo-a a uma “realidade virtual” dentro do mundo material. A partir dessa ótica, passamos a entender nossas consciências como se fossem “filmes passando dentro de nossos cérebros”, não como a existência em si mesma. Fica claro que tal compreensão não muda nada na prática, apenas nos ajuda a discernir os fatos com maior clareza.

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Como não podemos mudar o comportamento básico da realidade em que estamos, nossa única opção é compreendê-la — e, sendo esse o caso, refugiar-se do niilismo nada mais é que entrincheirar-se em convicções risíveis. Se nos perguntarmos honestamente por que o niilismo nos incomoda tanto, veremos que os motivos nunca são mais que mesquinharias pessoais e preconceitos aprendidos na infância. Já é grande coisa que possamos entender como o mundo funciona: negá-lo porque seu funcionamento não corresponde às nossas expectativas pessoais é simplesmente condenar-se à ignorância.

Assim, depois de desmantelar nossos numerosos pretextos para a “dúvida”, geralmente percebemos que temos uma ideia bastante boa de como as coisas são, e que de fato não há mais nenhum mistério grandioso na existência — já respondemos a grande questão. Sabemos o que é a vida, e como ela funciona. Sabemos o que é nosso planeta, e como ele se formou. Sabemos o que é o sol, e por que ele nasce. Hoje sabemos tudo o que os filósofos sempre quiseram saber, ou quase tudo. O mundo em si mesmo é algo físico e impessoal. Em termos humanos, a realidade é o mais completo vazio, e é ótimo que saibamos disso.

Como é de se supor, o niilismo existencial adota esse “vazio” como ponto de partida e, como não há nada a se fazer quanto a isso, também como ponto de chegada. É o tipo de coisa da qual sabemos que não há como escapar, embora também não consigamos conviver muito bem com a consciência disso. Seja como for, temos ao menos de aprender a lidar com os fatos, agradáveis ou não, pois a outra opção é delirar. O niilismo, obviamente, não tem grande importância prática. Porém, enquanto insistirmos em pensar que há algo muito espetacular a ser encontrado “por detrás” do mundo, o niilismo continuará sendo necessário para nos mostrar que isso é apenas uma fantasia.

Mesmo sendo o niilismo perfeitamente defensável em termos intelectuais, não faz muito sentido tentar “viver” em função disso, pois esse é um tipo de perspectiva que simplesmente nos sufoca. A consciência da nulidade da vida nos chega como uma vertigem paralisante — e a própria constituição biológica do homem não favorece esse tipo de abordagem da realidade. Como ignorância não é impedimento, mexilhões passam pela existência sem compreender filosoficamente sua condição, e seria difícil imaginar razões pelas quais essa compreensão lhes traria algum benefício. E o mesmo se aplica à maioria dos homens: sequer lhes passa pela cabeça que seus umbigos não são o centro do universo. Se querem permanecer ignorantes, tudo bem. Sabemos reconhecer que não nos diz respeito o modo como cada qual governa sua vida. Mas nós escolhemos pautá-la numa ótica esclarecida, que leva em consideração o modo como a realidade funciona.

Então se nos perguntam como niilistas vivem, o que poderíamos responder? Ora, vivem como bem entenderem, porém de olhos abertos. Niilistas enfatizam a objetividade, mas isso não significa que desprezem a subjetividade. Apenas têm a prudência de relativizá-la o suficiente para perceber que ela não é tudo o que existe. De qualquer modo, somos seres subjetivos, e só podemos viver enquanto tais. Só devemos ter em mente que nossos pés pisam numa realidade objetiva, sendo ela o que realmente determina nossas vidas. Nessa ótica, se a vida é um sonho, o niilismo seria apenas a tentativa de torná-lo um sonho lúcido.

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Pelo que foi dito, apesar de não haver esperança quanto à possibilidade de vislumbrarmos uma esfera prática e construtiva no niilismo — além de sua utilidade teórica como chave de fenda da realidade —, isso não nos conduz à conclusão de que ser um niilista paralise a vida prática, já que ambas as coisas se situam em esferas completamente distintas. É bastante superficial a acusação de hipocrisia comumente lançada contra o niilista, na qual se supõe que a verdadeira honra consistiria em estourar os miolos em nome da coerência — e a própria verdade dessa afirmação pode ser encontrada no fato de que o tiro não produziria honra, mas apenas uma lambança que algum infeliz teria de limpar. Não se pode colocar como objeção teórica o fato prático de que niilistas continuam vivos apesar de considerarem que a vida, como todo o resto, equivale a nada, pois o suicídio não é um argumento, assim como o sangue não é honra. Diante de uma objeção dessa natureza, só podemos supor que indivíduos desse gênero, por algum motivo tortuoso, pensam em si mesmos como uma “empresa”, um “investimento” do ser: como se os átomos que compõem seus corpos fossem ações cujo valor oscila na bolsa de valores da existência em função do quanto acreditam valer. Ao que tudo indica, recusar essa ideia é apenas indício de bom senso. Crenças não mudam os fatos.

Em si mesmo, o niilismo não vale nada. Seu único valor possível é relativo, e consiste no fato de que essa ótica nos permite identificar ilusões previsivelmente desastrosas. A utilidade dessa lucidez pode ser ilustrada pela diferença entre um homem bêbado e um homem sóbrio. Nesse sentido, sua natureza é semelhante à do ateísmo, que também possui um caráter negativo frente a uma ilusão claramente prejudicial à nossa compreensão da realidade. A descrença ateísta explícita poderia, nesse sentido, ser entendida como um caso particular do niilismo.

Assim, não há por que nos “orgulharmos” de ser niilistas, senão por isso ser indício de sensatez. Um niilista esclarecido, com a garantia de estar pisando no chão sólido do fundo do poço, tem consciência de que seus valores, objetivos e ele próprio são coisas que não existem efetivamente, mas apenas de modo condicional, e não encontra problema algum em suspender qualquer esforço no sentido de situar-se na “essência” do mundo objetivo. Mesmo porque, ao tentarmos fazer isso, não estaríamos fazendo mais que criar um mundo imaginário no qual os átomos sorriem ao nos ver — ou coisa pior.

 

APÊNDICE

Há outro modo de entrarmos em contato com o niilismo, apesar de não ser o mais agradável. Trata-se não de tentarmos entender o vazio da existência racionalmente, através da reflexão, mas de sentirmos esse vazio afetivamente. O próprio fato de haver um ponto de contato tão inesperado entre uma visão puramente teórica e uma faceta da subjetividade humana de abrangência universal torna o assunto se não mais interessante, ao menos mais digno de consideração.

Trata-se da situação em que a visão cotidiana da vida, imersa em fantasias e fechada em si mesma, se esfacela pelo confronto com uma situação desconcertante, fazendo com que o mundo se reduza a algo pobre e vazio. Estamos falando do luto, ou seja, a reação natural de todo ser humano ante a perda de algo afetivamente importante, como um ente querido, uma relação amorosa, amigos próximos, inclusive ideais ou qualquer outra coisa com a qual se tinha um vínculo afetivo estreito.

Não nos referimos, obviamente, ao ritual de usar roupas pretas nem a minutos de silêncio, tampouco a gemidos histéricos ou a rios de lágrimas, mas ao que ocorre subjetivamente na visão de mundo do indivíduo, ao estado de espírito acarretado pela perda. Os sintomas comuns do luto são tristeza, depressão, abatimento, falta de interesse pelo mundo exterior e, o que é especialmente interessante em nosso caso, uma lucidez penetrante. Esse estado em geral pode ser descrito como a sensação de que tudo “perde o sentido” ou de que “nada tem valor”. Em nenhuma outra situação compreende-se melhor o significado do termo “em vão”.

Quando buscamos algo que, em termos práticos, corresponda ao niilismo, vemos que o luto é um forte candidato. Isso porque a impressão que se tem é que o indivíduo enlutado torna-se provisoriamente niilista por uma espécie de “emergência emocional”. Em emergências nas quais nossa integridade física está em jogo, a reação automática do corpo é disparar o comando de luta-ou-fuga. Igualmente, quando a integridade de nosso mundo psicológico está em jogo, temos o luto como uma reação de parar-e-pensar, como se o cérebro, ao “reduzir a nada” nossa subjetividade, estivesse nos preparando fisiologicamente para uma revisão fria e calculada da realidade.

Como, nesse caso, o indivíduo não está apenas devaneando sobre o vazio da existência, mas sentindo-o intimamente, a vida prática é seriamente prejudicada pela angústia e pela depressão, fazendo com que a vida pareça algo completamente sem sentido — e não é, no fim das contas, justamente esse o caso? Não é estranho que a maioria dos indivíduos precise chegar a tal extremo para apreender esse tipo de verdade? Pois todas as vezes em que tentamos encontrar “razões” que justifiquem ou deem sentido à vida, sempre chegamos à conclusão de que não há nenhuma. Como não há saída, ninguém insiste muito nesse ponto. Cedo ou tarde, reconhecemos o caráter nulo desse tipo de empreitada e, sem protestos, limitamo-nos a nos deixar guiar pela vontade, empregando a razão como um acessório que fica a seu serviço.

O problema é que, quando transposto à prática, o niilismo tem o aspecto de uma enfermidade mental, de algo que nos paralisa, sendo que até já foi caracterizado pela psiquiatria como uma forma de delírio em que o sujeito nega a existência da realidade, no todo ou em parte. A ideia de que a realidade cotidiana que nos rodeia não tem valor algum, de que ela sequer existe objetivamente, é perfeitamente lógica e justificável. Contudo, quando o niilismo contamina nosso mundo afetivo, ele nos força a admitir que nós próprios somos nada, faz com que nos sintamos esse nada — e, quando ambas as coisas coincidem, convergem em uma lógica incrivelmente sólida. A única saída parece ser o suicídio prático que resolverá um problema teórico.

Claro que a maioria das pessoas não é tão dominada pela racionalidade a ponto de cometer suicídio motivada por silogismos. Contudo, temos de admitir que sentir-se vazio é algo bastante perturbador, ainda mais quando temos o completo entendimento de que isso não é um delírio, mas um estado mental em que conseguimos apreender com clareza uma das verdades mais elementares às quais temos acesso. Apenas caso não nos contentássemos somente com apreender esse nada intelectualmente, mas também quiséssemos orquestrar toda a nossa vida prática em função dele, vivendo como múmias paralíticas, então teríamos nos tornado seres perfeitamente delirantes. Isso é fisicamente impossível, e com razão constitui um transtorno mental.

Assim, não podendo agir de acordo com tal verdade, a saída escapatória mais razoável seria admitir que compreender a realidade e viver nela são coisas regidas por regras distintas. Apesar de que, em essência, aquilo que se faz em ambos os casos não difere muito: num caso estaremos fantasiando em um mundo particular e, no outro, em um mundo público. As duas soluções surgem em legítima defesa, mas só uma delas não faz com que percamos o contato com a realidade que nos cerca, isto é, com a sociedade.

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Todos fantasiam o mundo para poder suportá-lo, inclusive niilistas. Fugimos do vazio para conseguirmos viver, mas devemos ter em mente que o abismo não deixa de existir apenas porque desviamos o olhar e a vertigem passa. De qualquer modo, intelectualmente, tal fato não nos incomoda, pois há uma grande diferença entre saber que há um abismo e estar nesse abismo, assim como é diferente apenas sabermos que leões são perigosos e estarmos cara a cara com um. Portanto, precisamos apenas procurar meios de desviar o olhar afetivo da perspectiva niilista, pois nosso olhar lógico, enquanto permanecer são, nunca será capaz de fazê-lo — já que isso equivaleria a negar a realidade. Não que isso não seja feito, mas é realmente lamentável dar com a porta na cara da verdade no único lugar no qual podemos recebê-la.

Nessa ótica, o luto poderia ser entendido como uma espécie de niilismo psicológico, no qual apreendemos o vazio da existência não diretamente, por meio da reflexão, mas indiretamente, por meio da afetividade. O estado depressivo nos proporciona uma intuição seca e direta a respeito da realidade objetiva, reduzindo o subjetivo a nada — e podemos perceber que isso equivale a um procedimento de fiscalização da realidade de nosso mundo psicológico feito involuntariamente, pelo próprio cérebro. Nessas situações convulsivas, somos forçados a encarar a realidade nua e crua, e até os indivíduos mais otimistas veem-se sequestrados pela lucidez. Enquanto o indivíduo estiver enlutado, perde a capacidade de enganar-se. Por isso nada do que dissermos será capaz de consolá-lo; por isso também os religiosos choram em velórios, coisa que a princípio não faz muito sentido. O fato é que, ao ver seu ente querido ser abraçado pelos vermes, todo religioso percebe que sua crença em espíritos e reencarnações é, no fundo, uma piada que tenta negar o óbvio. Suas crenças só voltarão a consolá-lo depois que tiver superado a perda.

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Há apenas duas situações nas quais conseguimos ser imparciais: quando nossos interesses não estão envolvidos, e quando nosso interesse é a própria verdade — ou seja, quando nossa parcialidade, por motivos pessoais, coincide com a imparcialidade. Dentro disso, a depressão, em si mesma, não tem nada de relevante. O interessante é apenas o fato de que, em fases depressivas, nós como que “damos as costas” à vida, passando a ver a realidade com desinteresse. Assim, a perspectiva da depressão, por ser desapaixonada, nos permite ser imparciais, representando uma rara oportunidade de vermos as coisas como realmente são.

Isso explica por que, durante fases depressivas, o niilismo nos parece uma visão visceralmente coerente, com a qual conseguimos nos identificar tanto em termos intelectuais quanto afetivos. Por outro lado, quando estamos numa fase normal, perseguindo nossos sonhos do dia a dia, essa mesma ótica nos parece um tanto distante de nosso modo de sentir a realidade, de nossa vivência — ainda que, intelectualmente, o niilismo continue possuindo a mesma vitalidade. Considerando que afazeres cotidianos nos tornam superficiais e que a depressão, em regra, nos torna realistas, parece bastante lógico que assim seja. Sabemos que a existência sempre foi, sempre será vazia. O fato de isso nos angustiar depende não da filosofia, mas de nossa disposição afetiva, de nossa química cerebral — em última instância, de estarmos ou não aptos a lidar com a realidade.

Tendo tais detalhes em mente, podemos compreender mais claramente por que se costuma pensar que niilistas são suicidas. Isso acontece porque nossa própria visão de mundo é tão carregada de valores afetivos que, se destruída, ainda que parcialmente, isso nos conduziria ao luto, que é dor. E praticamente nenhuma visão de mundo continuaria intacta depois de sofrer uma bela revisão que levasse em conta um critério tão fundamental quanto a distinção entre as esferas subjetiva e objetiva da realidade. Mas, logicamente, todo indivíduo que se denomina niilista já superou essa fase de reorganização mental e, portanto, não se sente mais ameaçado pelo fato de tudo ser vazio. Entretanto, se nos colocarmos na posição daquele que afirma que niilistas são suicidas, não teremos dificuldade em perceber a razão pela qual pensa desse modo. A ideia de perdermos intencionalmente algo pelo qual temos profundo afeto soa tão absurda, tão autodestrutiva, que seria semelhante à ideia de matarmos nossos próprios amigos apenas para aprendermos a lidar com a perda de entes queridos. Ou seja, um grande sacrifício na esfera afetiva que não é de modo algum compensado pelo ganho na esfera intelectual. Mais que natural, é inevitável que qualquer indivíduo se proteja de uma ideia capaz de causar um prejuízo dessa magnitude à sua vida afetiva. Diante de uma ameaça dessa natureza, sua profunda consideração pela verdade reduz-se a esta máxima: a verdade que se lasque!

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Então, para que alguém com uma visão algo florida da realidade veja seu notável jardim murchar, basta um confronto com o niilismo filosófico que, nessa perspectiva, já não pode ser considerado algo tão inofensivo. Pois é possível que, por meio do pensamento, ao compreendermos nossa condição, venhamos a entrar num estado de luto pela “morte da realidade”, por assim dizer, já que para nós a realidade é nossa compreensão da realidade, e a destruição dos alicerces de nossa cosmovisão pode ser algo bastante difícil de administrar, sendo comum que haja episódios de ansiedade e angústia nesse processo indigesto.

Em nível emocional, quando passamos a entender o mundo como um sistema físico impessoal, é como se o tivéssemos “matado”. Para exemplificar, imaginemos a seguinte situação: estávamos pesquisando em uma biblioteca e, por acaso, encontramos um documento com nosso nome. Ao lê-lo, descobrimos que todos os nossos familiares na verdade não são seres humanos: são máquinas pré-programadas para conviver conosco. Elas gostam de nós automaticamente, desde o princípio. Até mesmo seus sentimentos são cálculos de seus processadores centrais. Foi isso o que lemos no documento. Pois bem, mesmo que tal compreensão não mudasse nada na prática, sabê-lo não seria emocionalmente devastador? O sentimento de que tudo nunca passou de uma fantasia nos esmaga. Agora basta perceber que não se trata de ficção alguma: eles realmente são máquinas, e nós também. Todos são. A vida é um sonho dentro de uma máquina. Diante disso, ficamos atônitos, perplexos, e “luto” é a melhor palavra que nos ocorre para descrever esse sentimento de que algo morreu, embora não saibamos dizer muito bem o quê.

Seja a razão desse estado afetivo a perda de um ente querido ou a desestruturação de nossa visão de mundo, a dificuldade central consiste em nos adaptarmos a uma perda profundamente dolorosa, em percorrer uma fase de transição carente de referenciais, em que precisamos realizar uma mudança radical em nós próprios. Nesse estado transitório, o modo como pensamos e encaramos o mundo corresponde exatamente ao niilismo, no qual tudo perde o sentido e a vida fica, por assim dizer, “suspensa no nada”, perfeitamente consciente de si mesma e de sua condição precária. Repudia-se a realidade subjetiva por diferentes motivos, mas chega-se à mesma perspectiva: o abismo niilista, o óbvio.

Claro que encarar a realidade objetiva exige muita coragem, e a maioria dos indivíduos só se torna capaz disso em situações extremas, em que a lucidez é imprescindível. Nas demais situações, vivemos numa espécie de estado de torpor. Isso não é algo necessariamente ruim. A realidade subjetiva pode nos causar sofrimento, mas fugir dela não nos trará consolo algum. Apenas nos fará perceber a verdade com ainda mais dureza. Como não há nada por detrás de nossas ilusões, a lucidez se torna rapidamente insuportável. A consciência da indiferença da realidade nos chega como algo corrosivo, como um silêncio que escarnece todos os nossos sonhos.

Não há, portanto, para onde fugir: temos de encarar nossa condição de existência em nosso elemento, a subjetividade. Seria tolo pensar que fugir do planeta Terra e lançarmo-nos no vazio do espaço seria um grande alívio aos problemas terrenos que nos afligem. Ficaríamos apenas flutuando no nada. Esse distanciamento talvez nos permita ver as coisas com alguma imparcialidade, mas não conseguimos permanecer nessa situação por muito tempo. Asfixiados pelo tédio, oprimidos pela consciência da nulidade da vida, logo retornamos à nossa bolha subjetiva, certos de que não há nada muito interessante fora dela.

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Também seria útil entendermos por que há tanto sofrimento envolvido em tais mudanças em nossa visão de mundo. Para nossa infelicidade, nada há de especial nessa adaptação, apesar de ser comum ouvirmos o contrário. O fato de tal processo ser penoso, por vezes esmagador, é uma infelicidade natural à qual todos estamos sujeitos, tanto na esfera mental como na física. Um dano grave causado a um membro, por exemplo, além de ser extremamente doloroso, também requer um grande tempo de recuperação, pois os tecidos lesionados precisão ser literalmente reconstruídos pelo organismo, célula por célula. Do mesmo modo, uma mudança drástica em nossa visão de mundo ou nas circunstâncias em que estamos acostumados a viver acarreta uma mudança física em nossos cérebros. Muitas ligações importantes entre neurônios terão de ser feitas e outras desfeitas para que nosso sistema nervoso se adapte e seja capaz de lidar com a nova situação, e o sofrimento não é mais que um indício do quanto isso é fisiologicamente inconveniente, isto é, da quantidade de recursos necessária para que seja feita tal “atualização”.

Sendo que durante esse processo de adaptação encontramo-nos algo perdidos e desorientados, a depressão e a lucidez decorrentes podem ser vistas como medidas preventivas para que não partamos à ação antes que nosso cérebro esteja familiarizado com a nova situação, evitando assim ações inadequadas e possivelmente perigosas ao nosso bem-estar imediato. Seria como se estivéssemos, desde sempre, acostumados a dirigir apenas carros, mas, numa guinada do destino, fôssemos colocados diante de um veículo que não temos nenhuma preparação para pilotar, como um avião, por exemplo. Nessa situação, nossa reação primária não seria pisar no acelerador e esperar que tudo fosse como antes, pois sabemos que isso seria suicídio. Lúcidos, debruçamo-nos demoradamente sobre o manual de instruções, remoemos sobre todas as questões relevantes e, assim que nos sentimos preparados para tomar o controle do veículo, partimos à ação, voltando a viver normalmente. Sem dúvida, trata-se de algo que requer tempo, e nisso também há grande semelhança com os danos aos tecidos.

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Como, em longo prazo, o niilismo é incompatível com a manutenção da vida, é bastante comum ouvirmos que ele é apenas um “estado provisório”, algo a ser “superado”. E isso está correto. Porém, não devemos confundir superar o niilismo prático com refutar o niilismo teórico — flertando com aquele relativismo otimista que parece um elogio à demência. A questão é somente o que se pode fazer apesar de a existência ser oca, apesar de todo o nada, sem fugir da questão como covardes. E superar o niilismo nada mais é que pensar em nós próprios como a fonte última de valor e sentido de todas as coisas. Acostumarmo-nos a lidar com tais assuntos sem extrapolar a esfera de nossa própria subjetividade.

Na prática, temos de superar o niilismo porque a realidade não se importa conosco — ela nunca se compadecerá de nossa miséria. Quer estejamos certos ou errados, ainda será preciso mantermos nossas barrigas cheias e nossos corpos aquecidos, e isso significa que superá-lo é uma questão biológica, não um problema filosófico. Se o niilismo a princípio nos paralisa, é apenas porque, em grande parte, são ilusões nos movem, e é inevitável que fiquemos temporariamente atordoados ao nos darmos conta disso. Contudo, voltar a caminhar não equivale a superar o niilismo, e sim à aquisição da capacidade de separar melhor nosso conhecimento de nossas necessidades práticas, até que ambas as coisas voltem a funcionar normalmente, porém de forma mais independente.

Desse modo, a superação do niilismo diz respeito ao seu efeito paralisante prático que torna a vida mórbida, não à sua incoerência lógica; diz respeito ao fato de que é impossível justificar uma vida subjetiva por meio do nada objetivo. E isso, digamo-lo de uma vez, é realizado através da loucura, o único modo por meio do qual podemos viver racionalmente num mundo absurdo. Contudo, não devemos esperar nada muito extraordinário disso, já que a vida, em si mesma, é um sistema completamente maluco. Essa “loucura” não é o mesmo que direito irrestrito à estupidez, não é o mesmo que perder a razão. A loucura à qual nos referimos é algo que atravessa a vida de ponta a ponta: nossa natureza. Ou seja, trata-se de algo que conhecemos muito bem. São nossas pequenas fantasias humanas que, apesar de todo o nada, nos permitem levar a vida adiante, ainda que isso não faça sentido algum.