Plurimi pertransibunt, et multiplex erit scientia.
[muitos correrão de uma parte para outra, e a ciência se multiplicará.]
Daniel 12:4
Descartes é corretamente considerado o pai da filosofia moderna, principalmente porque auxiliou a faculdade da razão a ficar sobre seus próprios pés ensinando aos homens como usar seus cérebros onde até então se recorria à Bíblia ou Aristóteles. Mas é o pai em um sentido especial e estreito, pois foi o primeiro a trazer à nossa consciência o problema sobre o qual a maior parte do filosofar se voltou desde então, a saber, aquele do ideal e do real. Essa é a questão relativa àquilo que em nosso conhecimento é objetivo e o que é subjetivo, e, portanto, àquilo que será atribuído por nós a coisas diferentes de nós e ao que será atribuído a nós próprios. Assim, em nossas cabeças, imagens não surgem arbitrariamente, como se viessem de dentro, tampouco surgem da associação de ideias; consequentemente, surgem de uma causa exterior. Mas tais imagens são tudo que conhecemos imediatamente, que nos é dado. Então que relação podem ter com coisas que existem de modo totalmente distinto e independente de nós, e que, de alguma forma, tornam-se a causa dessas imagens? Estamos nós certos de que tais coisas existem e, neste caso, as imagens que nos são dadas nos fornecem quaisquer informações a respeito de sua natureza? Em consequência desse problema, o principal esforço dos filósofos pelos dois últimos séculos tem sido delinear de modo claro o ideal — em outras palavras, o que pertence ao nosso conhecimento e tão-somente — e o real — isto é, aquilo que existe independentemente de nosso conhecimento —, e, deste modo, determinar a relação existente entre ambas as partes.
Nem os filósofos da Antiguidade nem os escolásticos parecem ter tomado consciência desse problema filosófico fundamental, apesar de encontrarmos traços deste na forma de idealismo e até na doutrina da idealidade do tempo, em Plotino, e mesmo em As Enéadas, lib. VII, c. 10, onde nos diz que o espírito fez o mundo emergindo da eternidade para o tempo. Diz, por exemplo, neque datur alius hujus universi locus, quam anima [pois para este universo não há outro lugar senão a mente] e também: oportet autem nequaquam extra animam tempus accipere, quemadmodum neque aeternitatem ibi extra id, quod ens appellatur [mas não devemos aceitar o tempo fora da mente; e também não devemos aceitar a eternidade do Além fora do Ser (i.e. o mundo de Ideia)]; aqui de fato está expressa a idealidade do tempo de Kant. E no capítulo seguinte: haec vita nostra tempus gignit: quamobrem dictum est, tempus simul cum hoc universo factum esse; quia anima tempus una cum hoc universo progenuit [esta vida produz o tempo, o que também significa que o tempo surgiu simultaneamente com este universo; pois a mente o produziu simultaneamente com este universo]. Ainda assim, o problema, reconhecido e exposto claramente, continua a ser um tema característico da filosofia moderna, após a reflexão necessária ter despertado inicialmente em Descartes. Este foi assaltado pela verdade de que somos limitados principalmente à nossa própria consciência e que o mundo nos é dado apenas como representação ou imagem mental [Vorstellung]. Por meio de seu conhecido dubito, cogito, ergo sum [duvido, penso, logo existo], tentou enfatizar a única coisa certa da consciência subjetiva em contraste com a natureza problemática de todo o resto, e expressar a grande verdade de que a autoconsciência é a única coisa dada real e incondicionalmente. Propriamente considerada, sua famosa proposição é equivalente àquela da qual parti, a saber, “O mundo é minha representação”. A única diferença é que sua proposição enfatiza o caráter imediato da questão, enquanto a minha enfatiza o caráter mediato do objeto. Ambas as proposições expressam a mesma coisa de dois pontos de vista. Uma é o reverso da outra e, portanto, estão na mesma relação das leis da inércia e causalidade de acordo com a minha discussão no prefácio à minha ética [Os Dois Problemas Fundamentais da Ética. Frankfurt am Main, 1841, p. XXIV; 2nd edn., Leipzig, 1860, pp. XXIV]. Desde os dias de Descartes, sua proposição tem sido repetida inúmeras vezes em função de um mero sentimento de importância e sem uma compreensão clara de seu verdadeiro significado e conteúdo (Ver Meditationes, Med. II, p. 15). Foi Descartes quem descobriu o hiato entre o subjetivo ou ideal, e o objetivo ou real. Este deu à sua ideia uma roupagem de dúvida relativa à existência do mundo externo; todavia, com a inadequação de sua solução para tal dúvida — a saber, que Deus Todo-Poderoso certamente não nos enganaria —, nos demonstrou quão profundo é o problema e quão difícil é solucioná-lo. Por meio dele esse escrúpulo foi legado à filosofia, fadado a perpetuar seu efeito inquietante, até que fosse meticulosamente resolvido. A consciência de que, sem um profundo conhecimento e uma explicação da distinção que havia sido descoberta, nenhum sistema verdadeiro e satisfatório era possível desde então se fez presente e a questão não pôde mais ser ignorada.
Para resolvê-lo, Malebranche concebeu o sistema de causas ocasionais. Este apreendeu o problema em toda a sua amplitude de modo mais claro, sério e profundo que Descartes (Recherches de la vérité, Livre III, seconde partie.) Este último havia presumido a realidade do mundo externo com base em Deus; naturalmente, parece estranho que, enquanto outros filósofos teístas se esforçam para demonstrar a existência de Deus a partir da do mundo, Descartes, contrariamente, prova antes a existência do mundo a partir da existência e credibilidade de Deus; é o argumento cosmológico às avessas. Aqui Malebranche também vai um passo além e ensina que vemos todas as coisas imediatamente em Deus. Isso certamente equivale a explicar uma coisa desconhecida através de outra ainda mais desconhecida. Ademais, de acordo com este, não apenas vemos todas as coisas em Deus, mas Deus também é toda a atividade que nelas existe, de modo que as causas físicas são apenas aparentes — meras causes occasionnelles (Recherches de la vérité, Livre VI, seconde partie, chap. 3.). Assim, essencialmente, temos o panteísmo de Espinosa, que parece ter aprendido mais de Malebranche que de Descartes.
No todo, pode surpreender que, mesmo no século XVII, o panteísmo não tenha vencido o teísmo totalmente; pois suas manifestações mais originais, refinadas e mais completamente europeias (nenhuma delas, naturalmente, suportaria comparação com os Upanishads dos Vedas) vieram à luz todas nesse período — através de Bruno, Malebranche, Espinosa e Scoto Erígena. Depois de muitos séculos esquecido, Scoto Erígena foi redescoberto em Oxford e, em 1681 — quatro anos depois da morte de Espinosa —, sua obra foi publicada pela primeira vez. Isso parece provar que a compreensão dos indivíduos não pode fazer-se sentida enquanto o espírito de sua época não estiver maduro para recebê-la. Por outro lado, em nossos dias, o panteísmo — apesar de representado somente pelo resgate eclético e confuso deste por Schelling — tornou-se o modo de pensar dominante de acadêmicos e mesmo de indivíduos instruídos. Isso porque Kant o precedeu com sua demolição de dogmatismo teísta, limpando seu caminho — e assim o espírito da época estava pronto, como a terra arada está pronta para a semente. No século XVII, pelo contrário, a filosofia novamente se desviou desse caminho e, desse modo, chegou, por um lado, em Locke, para o qual Bacon e Hobbes haviam preparado o terreno e, por outro, em Christian Wolff, através de Leibniz. Esses dois eram, então, dominantes no século XVIII, especialmente na Alemanha — apesar de, no fundo, o serem somente no grau em que foram iniciados no ecletismo sincrético.
Entretanto, foram as profundas ideias de Malebranche que originaram o sistema de harmonia praestabilita de Leibniz, e a grande fama e alta reputação deste em seus dias provam o fato de que, no mundo, o absurdo vence com a maior facilidade. Apesar de não poder me vangloriar de possuir uma noção clara das mônadas de Leibniz — que são, ao mesmo tempo, pontos matemáticos, átomos materiais e almas —, parece-me indiscutível que tal suposição, uma vez estabelecida, seria de grande utilidade em nos poupar de hipóteses adicionais para explicar a conexão entre o ideal e o real e dar cabo à questão por meio do fato de que ambos já são totalmente identificados nas mônadas. (Por essa razão Schelling, em nossos dias, como o criador do sistema de identidade, novamente as acalentava.) Todavia, empregá-las com esse propósito não agradou o famoso filósofo matemático, polímata e político que, para esse fim, formulou a harmonia preestabelecida. Isso nos fornece dois mundos completamente distintos, incapazes de interagir entre si (Principia philos., §84, e Examen du sentiment du P. Malebranche, pp. 500 ff. de Oeuvres de Leibniz, publ. por Raspe), cada qual uma duplicata completamente supérflua do outro. Não obstante, agora estes devem existir para além de qualquer dúvida — e correr um paralelamente ao outro, dançando a compasso com os menores detalhes. Deste modo, desde o início, o criador de ambas estabeleceu entre estas a harmonia mais precisa, na qual agora continuam lado a lado graciosamente. Talvez a harmonia praestabilita se torne mais compreensível através da comparação com um palco. Aqui, em geral, o influxus physicus [influência física, termo usado por Descartes] só existe aparentemente, visto que causa e efeito estão conectados apenas por meio da harmonia preestabelecida do diretor, por exemplo, quando um atira e o outro cai a tempo. Nos §§62, 63 de sua Théodicée, Leibniz apresentou a questão, de modo grosseiro e sucinto, em sua monstruosa absurdidade. Ainda assim, todo o seu dogma não tem sequer o mérito da originalidade, visto que Espinosa já havia apresentado a harmonia praestabilita com bastante clareza na segunda parte de sua Ética, portanto, na sexta e sétima proposições, juntamente com seus corolários, e novamente na quinta parte, primeira proposição, após haver expressado — de sua própria maneira na quinta proposição da segunda parte — a doutrina muito próxima de Malebranche, de que vemos tudo em Deus. [1] Portanto, foi Malebranche o verdadeiro criador de toda essa linha de pensamento, que tanto Espinosa como Leibniz utilizaram e modificaram, cada qual de sua maneira. Leibniz poderia muito bem ter dispensado a coisa toda, pois já havia desistido do fato que constituía o problema — isto é, que o mundo nos é dado imediatamente apenas em nossa representação — para substituí-lo pelo dogma de um mundo corpóreo e de um mundo espiritual entre os quais nenhuma ponte é possível. Este mistura a questão relativa à representação e coisas-em-si com aquela relativa à possibilidade dos movimentos corpóreos por meio da vontade, e então resolve ambas por meio de sua harmonia praestabilita. (Ver Système nouveau de la nature, em Obras de Leibniz, ed., Erdmann, p. 125 — Brucker, Hist. Ph., Tom. IV, Pt. II, p. 425.) O absurdo monstruoso de sua suposição foi trazido à luz por alguns de seus contemporâneos, especialmente por Bayle, que demonstrou suas consequências. (Ver também nas obras breves de Leibniz, traduzidas por Huth, 1740, a nota na página 79, onde o próprio Leibniz é levado a apresentar as consequências revoltantes de sua suposição.) Contudo, o próprio absurdo da suposição — ao qual uma mente pensante foi levada por este problema — nos evidencia sua magnitude, dificuldade e perplexidade, e também a impossibilidade de o colocarmos de lado, cortando o nó através do simples repúdio, como alguns ousaram em nossos dias.
Espinosa também parte diretamente de Descartes; portanto, em sua capacidade como cartesiano, reteve inicialmente mesmo o dualismo de seu professor e, assim, supôs uma substantia cogitans [substância pensante] e uma substantia extensa [substância extensa], a primeira como sujeito e a segunda como objeto do conhecimento. Posteriormente, quando estava sobre seus próprios pés, concluiu que ambas eram a mesma substância, mas vista de perspectivas distintas e, assim, por vezes a concebia como substantia extensa, por vezes como substantia cogitans. Isso de fato equivale a dizer que a distinção entre o pensante e o extenso, ou entre mente e corpo, é infundada e, portanto, inadmissível, de modo que nada mais deve ser dito a esse respeito. Todavia, este ainda retém a distinção, visto que nunca se cansa de repetir que ambos são o mesmo. Em acréscimo, diz apenas modus extensionis et idea illius modi una eademque est res [igualmente, a forma da extensão e a ideia dessa forma são também o mesmo] (Ética, Pt. II, prop. 7, schol.), significando com isso que nossa representação de corpos e os próprios corpos são o mesmo. Entretanto, o sic etiam [igualmente] é uma transição insuficiente para isso, pois apesar de a distinção entre mente e corpo ou entre o que representa e o que é extenso ser infundada, de forma alguma implica que a distinção entre nossa representação e algo objetivo, algo real que existe independentemente disso tudo — o problema fundamental levantado por Descartes —, também seja infundada. Aquilo que representa e aquilo que é representado pode ser homogêneo, mas permanece a questão de ser possível inferir com segurança, a partir de representações em minha cabeça, a existência de entidades que, em si mesmas, são diferentes de mim, isto é, independentes dessas representações. A dificuldade não é aquela na qual Leibniz gostaria de distorcê-la (e.g. Théodicée, Pt I, §59), isto é, aquela entre as supostas almas ou mentes e o mundo corpóreo, como entre dois tipos de substâncias completamente heterogêneas em que nenhum tipo de ação e conexão pode existir, razão pela qual negou a influência física. Essa dificuldade é somente uma consequência da psicologia racional e, portanto, basta descartá-la como uma ficção, como fez Espinosa. Ademais, há — como o argumentum ad hominem [apelo irrelevante ou malicioso a circunstâncias pessoais] contra os defensores da psicologia racional — seu dogma de que Deus, que de fato é um espírito, criou o mundo corpóreo e continua a governá-lo; logo, um espírito pode agir imediatamente sobre corpos. Pelo contrário, a dificuldade é e permanece somente cartesiana — que o mundo que nos é dado imediatamente é apenas ideal, ou seja, consiste somente de representações em nossa cabeça; apesar disso, ainda nos empenhamos em julgamentos sobre um mundo real, isto é, que existe independentemente de nossas representações. Portanto, suprimindo a distinção entre substantia cogitans e substantia extensa, Espinosa ainda não resolveu o problema — no máximo tornou a influência física novamente admissível. Isso, entretanto, não basta para resolver a dificuldade, pois a lei da causalidade é demonstravelmente de origem subjetiva. Mas mesmo se essa lei de algum modo fosse proveniente da experiência externa, ainda pertenceria a esse mundo em questão, que nos é dado apenas idealmente. Em consequência, a lei da causalidade não pode fornecer uma ponte entre o absolutamente objetivo e o subjetivo; pelo contrário, é somente o vínculo que conecta um fenômeno ao outro (ver O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap. I).
Mas, para explicar de modo mais completo a mencionada identidade de extensão e a representação desta, Espinosa apresenta algo que ao mesmo tempo inclui os pontos de vista de Malebranche e Leibniz. Assim, em total conformidade com Malebranche, vemos todas as coisas em Deus: rerum singularium ideae non ipsa ideata, sive res perceptas, pro causa agnoscunt, sed ipsum Deum, quatenus est res cogitans [as ideias de coisas particulares não têm como sua causa os objetos dessas ideias, ou seja, as coisas percebidas, mas o próprio Deus, na medida em que é um ser pensante]. Ética, Pt. II, prop. 5; e esse Deus também é, ao mesmo tempo, seu princípio real e ativo, assim como em Malebranche. Todavia, em última instância, nada é explicado pelo fato de Espinosa designar o mundo com o nome Deus. Mas, ao mesmo tempo, há nele, assim como em Leibniz, um paralelismo exato entre o mundo extenso e o mundo representado: ordo et connexio idearum idem est, ac ordo et connexio rerum [a ordem e conexão de ideias são as mesmas que a ordem e conexão de coisas], Pt. II, prop. 7 e muitas passagens similares. Essa é a harmonia praestabilita de Leibniz; porém aqui o mundo representado e o mundo que existe objetivamente não permanecem completamente separados, como em Leibniz, correspondendo um ao outro somente em virtude da harmonia pré-ajustada exteriormente, mas são de fato a mesma coisa. Logo, o que temos aqui é um completo e absoluto realismo, na medida em que a existência de coisas corresponde exatamente à sua representação em nós, visto que ambos são o mesmo. [2] Consequentemente, conhecemos as coisas-em-si; são extensa em si mesmas, assim como também se manifestam como extensa na medida em que aparecem como cogitata, isto é, em nossa representação dessas. (Talvez esteja aqui a origem da identidade do real e do ideal de Schelling.) Porém, estritamente, isso tudo são meras afirmações. A explicação é de difícil compreensão devido à ambiguidade da palavra Deus, que é empregada de forma completamente inadequada; assim, perde-se na obscuridade e, no fim, resume-se a dizer: nec impraesentiarum haec clarius possum explicare [e no momento não posso explicá-lo mais claramente]. Todavia, a obscuridade na explicação sempre provém da obscuridade do entendimento do próprio filósofo e do estudo de suas obras. Vauvenargues muito adequadamente disse: La clarté est la bonne foi des philosophes [a lucidez é a boa-fé dos filósofos] (Ver Revue des deux mondes, 15 Agosto 1853, p. 635). Aquilo que na música é “pura frase ou movimento”, na filosofia é clareza perfeita, na medida em que é a conditio sine qua non [condição indispensável], cujo descumprimento implica a perda do valor de todo o resto, e assim teríamos de dizer: quodcunque ostendis mihi sic incredulus odi [tudo que você mostra me é incrível e repulsivo (Horácio, Ars poética, 188)]. Se mesmo nas questões corriqueiras da vida prática precisamos da clareza para nos proteger contra possíveis mal-entendidos, como podemos ousar nos expressar indefinidamente, ou mesmo ininteligivelmente, no problema filosófico mais difícil, abstruso e quase impenetrável ao pensamento? A obscuridade que censurei na doutrina de Espinosa surge de este não proceder imparcialmente da natureza das coisas como as encontra, mas do cartesianismo e, consequentemente, de toda espécie de conceitos tradicionais como Deus, substantia, perfectio e assim por diante, tentando de modo tortuoso harmonizá-los com sua noção de verdade. Frequentemente este expressa as melhores coisas apenas indiretamente, especialmente na segunda parte de sua Ética, visto que sempre fala per ambages [por meio de circunlocuções] e quase alegoricamente. Por outro lado, Espinosa novamente evidencia um inconfundível idealismo transcendental, um conhecimento, apesar de genérico, das verdades apresentadas por Locke e particularmente por Kant, daí uma distinção real entre o fenômeno e a coisa-em-si, e o reconhecimento de que somente o fenômeno nos é acessível. Ver, por exemplo, Ética, Pt. II, prop. 16, com o segundo corolário; prop. 17, schol.; prop. 18, schol; prop. 19; prop. 23, que o estende ao autoconhecimento; prop. 25, que o expressa claramente; e, finalmente, como um résumé, o corolário da prop. 29, que afirma claramente que não conhecemos a nós próprios ou as coisas como são nelas mesmas, mas somente como aparecem. A demonstração da Pt. III, prop. 27, expressa a questão com maior clareza desde o início. Sobre a relação entre as doutrinas de Espinosa e Descartes, lembro aquilo que disse em O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap. 50. Por partir dos conceitos da filosofia cartesiana, Espinosa, em sua explicação, não só gerou muita obscuridade e mal-entendidos, mas também foi levado a muitos paradoxos flagrantes, falácias óbvias, absurdos e contradições. Assim, muito do que é verdadeiro e admirável em seu ensinamento recebeu uma mistura extremamente indesejável de questões positivamente indigestas, e o leitor oscila entre admiração e aborrecimento. Mas, no aspecto aqui relevante, o erro fundamental de Espinosa foi partir do lugar errado para traçar sua linha intersecção entre o ideal e o real, ou entre os mundos subjetivo e objetivo. Em consequência, extensão de forma alguma significa o oposto de representação, mas fica inteiramente contida nisso. Representamos as coisas como extensas e, na medida em que são extensas, são nossa representação. Mas a questão e problema originais são se, independentemente de nosso representar, algo é extenso, ou mesmo se algo de fato existe. Posteriormente, esse problema foi solucionado por Kant — até o momento, com precisão inegável — através da afirmação de que a extensão, ou espacialidade, jaz tão-somente na representação, sendo, portanto, intimamente ligada e dependente desta, visto que o todo do espaço é apenas a forma da representação; assim, independentemente de nosso representar, nada extenso pode existir — e quase certamente nada existe. Logo, a linha de interseção de Espinosa foi inteiramente traçada no lado ideal, tendo este parado no mundo representado. Indicado por sua forma de extensão, este mundo é considerado por Espinosa como o real e, assim, com existência independente de sua representação em nossas cabeças, ou seja, com existência em si. Espinosa, então, está correto em dizer que o extenso e o representado — isto é, nossa representação de corpos e os próprios corpos — são a mesma coisa (Pt. II, prop. 7, schol.). Pois, naturalmente, as coisas só possuem extensão enquanto representadas e só são extensas se forem passíveis de representação; o mundo como representação e o mundo no espaço são una eademque res [exatamente a mesma coisa]; isso podemos admitir sem precauções. Mas se extensão fosse uma qualidade das coisas-em-si, então nossa percepção intuitiva seria um conhecimento das coisas-em-si. Isso é o que ele supõe, e nisto consiste seu realismo. Entretanto, visto que este não demonstra o realismo e não prova que, em correspondência à nossa percepção intuitiva de um mundo espacial, há um mundo espacial independente dessa percepção, o problema fundamental continua sem solução. Isso simplesmente se deve ao fato de que a linha de interseção entre o real e o ideal, o objetivo e o subjetivo, a coisa-em-si e o fenômeno não foi traçada corretamente. Pelo contrário, como disse, este conduz a interseção através do lado ideal, subjetivo, fenomênico do mundo e, portanto, através do mundo como representação. Separando este mundo em extenso ou espacial e nossa representação do extenso, esforça-se grandemente para demonstrar que ambos são idênticos, como de fato são. Como Espinosa permanece completamente no lado ideal do mundo — pois pensou que encontraria o real naquilo que é extenso e pertence ao mundo —, a consequência é que o mundo da percepção intuitiva é a única realidade fora de nós, e aquilo que sabe (cogitans), a única realidade dentro de nós; por outro lado, desloca a única realidade — a saber, a vontade — para o ideal, pois a representa como um mero modus cogitandi; de fato, a identifica com o julgamento. Ver Ética, Pt. II, as provas das proposições 48 e 49, onde diz: per VOLUNTATEM intelligo affirmandi et negandi facultatem, e novamente: concipiamus singularem aliquam VOLITIONEM, nempe modum eogitandi, quo mens affirmat, tres angulos trianguli aequales esse duobus rectis, e seu corolário prossegue: Voluntas et intelleetus unum et idem sunt [por vontade compreendo a habilidade de afirmar ou negar … peguemos um ato da vontade específico, o modo de pensamento por meio do qual a mente afirma que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos … vontade e intelecto são a mesma coisa]. Em geral, Espinosa tem o grande defeito de, propositalmente, utilizar palavras de modo inadequado para expressar conceitos que no mundo inteiro recebem outros nomes e, por outro lado, suprimir delas o significado que têm em todo lugar. Assim, chama “Deus” aquilo que todos chamam “mundo”; “justiça” aquilo que todos chamam “poder”; e “vontade” aquilo que todos chamam “julgamento”. Estamos justificados em nos lembrarmos do Hetman of the Cossacks em Graf Benjowsky de Kotzebue [Kotzebue, A. F. F. V., (1761-1819). Essa antiga peça foi a muito esquecida].
Apesar de chegar depois e já com o conhecimento de Locke, Berkeley de fato avançou no caminho dos cartesianos e, dessa forma, tornou-se o criador do verdadeiro idealismo, isto é, o conhecimento de que o que é extenso e ocupa espaço — logo, o mundo da percepção intuitiva em geral — só pode existir em nossa representação, e que é absurdo e mesmo contraditório atribuir a esta, como tal, outra existência externa a toda representação e independente do sujeito do conhecimento, supondo, assim, que a matéria existe em si. [3] Essa é uma compreensão bastante verdadeira e profunda, mas toda sua filosofia consiste somente nisso. Este descobriu o ideal e o distinguiu claramente; mas não sabia como encontrar o real, uma questão em que nunca se empenhou muito, sobre a qual se manifestava apenas ocasionalmente, de modo fragmentado e incompleto. Para este, a vontade e onipotência de Deus são a causa direta de todo fenômeno no mundo da percepção intuitiva, isto é, de todas as nossas representações. A existência real pertence somente a seres que conhecem e desejam, como nós próprios: logo, esses, juntamente com Deus, constituem o real. São espíritos, ou seja, somente seres que conhecem e desejam; pois desejar e conhecer são considerados por este como absolutamente inseparáveis. Como seus predecessores, considerava Deus melhor conhecido que o mundo diante de nós; portanto, via uma redução a esse como uma explicação. De maneira geral, sua posição clerical e mesmo episcopal o tolheu, restringindo-o a um pequeno círculo de ideias que nunca poderia transgredir. Assim, não poderia ir além; em sua cabeça, o verdadeiro e o falso tiveram de aprender o melhor possível a ser compatíveis um com o outro. Essas observações podem ser estendidas às obras de todos esses filósofos, salvo Espinosa. Todos foram corrompidos por aquele teísmo judaico que é impenetrável a qualquer investigação, morto para toda pesquisa e, dessa forma, se apresenta como uma ideia fixa. A cada passo, se planta no caminho da verdade, de modo que o dano que causa na esfera teórica aparece como a contrapartida daquilo que fez na esfera prática ao longo de mil anos — nas guerras religiosas, inquisições e conversão de nações por meio da força.
A grande afinidade entre Malebranche, Espinosa e Berkeley é inequívoca. Os vimos partir de Descartes, no sentido de que abraçaram e tentaram solucionar o problema fundamental apresentado por este na forma de uma dúvida referente à existência do mundo externo. Estão todos preocupados em investigar a separação e conexão entre o mundo ideal subjetivo, que se dá somente em nossa representação, e o mundo real objetivo, que existe independentemente desta e, portanto, em si mesmo. Esse problema constitui, como disse, o eixo de toda a filosofia moderna.
Mas Locke difere desses filósofos — provavelmente pela sua influência de Hobbes e Bacon — no sentido de que se liga o mais fortemente possível à experiência e ao bom senso, evitando ao máximo hipóteses sobrenaturais. Para este, o real é a matéria e, sem qualquer consideração pelo escrúpulo de Leibniz a respeito da impossibilidade de uma conexão causal entre a substância pensante imaterial e a substância extensa material, supõe uma influência física entre matéria e sujeito do conhecimento. Aqui, entretanto, com deliberação e honestidade raras, chega a confessar a possibilidade de aquilo que conhece e pensa também ser matéria (Ensaio sobre o Entendimento Humano, lib. IV, c. 3, §6). Posteriormente, isso lhe rendeu o repetido louvor do grande Voltaire; por outro lado, em seus dias, o expôs aos maliciosos ataques do ardiloso sacerdote anglicano, o Bispo de Worcester. [4] Com ele o real, i.e. matéria, é gerado nas representações do sujeito do conhecimento ou o ideal através do “impulso”, i.e. pelo empurrar ou pressão. (Ibid., lib. I, c. 8, §II.) Dessa forma, temos um realismo completamente massivo que, por sua própria exorbitância, culminou em contradição e deu origem ao idealismo de Berkeley. O ponto de origem particular disso talvez seja o que Locke afirma no fim do §2 do capítulo 21 do segundo livro surpreendentemente pouco reflexivo. Entre outras coisas, diz que “solidez, extensão, figura, movimento e repouso realmente existiriam no mundo, como são, houvesse ou não algum ser sensível para percebê-los”. Assim que refletimos sobre isso, somos levados a reconhecê-lo como falso; mas então aí permanece o idealismo berkeliano, e é inegável. Todavia, nem mesmo Locke faz vista grossa a esse problema fundamental, a saber, o abismo entre as representações dentro de nós e as coisas que existem independentemente de nós e, dessa forma, a distinção entre o ideal e o real. Mas, em geral, este se desfaz do problema com argumentos válidos que, todavia, consistem num bom senso grosseiro e na referência à adequação de nosso conhecimento das coisas para fins práticos (ibid., lib. IV, c. 4 e 9), algo que obviamente nada tem a ver com o caso e apenas evidencia o quão inadequado ao problema o empirismo permanece. Mas agora é somente seu realismo que o leva a restringir o que corresponde ao real em nosso conhecimento a qualidades inerentes às coisas, como são em si mesmas, e distinguir essas qualidades daquelas vinculadas somente ao nosso conhecimento delas e, portanto, somente ao ideal. Dessa forma, denomina as últimas qualidades secundárias, mas, as outras, primárias. Essa é a origem da distinção entre o ser-em-si e o fenômeno que, posteriormente, na filosofia kantiana adquire uma grande importância. Temos, aqui, o verdadeiro ponto de contato genético entre o ensinamento kantiano e a filosofia interior, especialmente a de Locke. O primeiro foi provocado e mais imediatamente ocasionado pelas objeções céticas de Hume aos ensinamentos de Locke; por outro lado, tem apenas uma relação polêmica com a filosofia de Leibniz e Wolff.
Essas qualidades primárias, que são consideradas exclusivamente como determinações das coisas-em-si e, consequentemente, pertencentes a estas mesmo fora e independentemente de nossa representação, provam ser apenas algo que não pode ser despensado, a saber, extensão, impenetrabilidade, forma, movimento ou repouso, e número. Todas as restantes são consideradas secundárias, isto é, geradas pela ação das qualidades primárias em nossos órgãos do sentido, consequentemente, como meras sensações nestes; tais qualidades são cor, tom, sabor, cheiro, dureza, moleza, suavidade, aspereza etc. Assim, estas não têm a menor semelhança com aquela qualidade nos seres-em-si que os excita, mas são redutíveis àquelas qualidades primárias como suas causas, e somente estas são puramente objetivas e de fato existem nas coisas. (Ibid., lib. I, c. 8, §§7 seqq.) Nossas representações destas são, portanto, cópias fiéis, as quais reproduzem exatamente as qualidades presentes das coisas-em-si (loc. cit., §15. Desejo ao leitor a sorte de realmente perceber aqui quão tolo o realismo se torna). Vemos que Locke remove da natureza das coisas-em-si, cujas representações recebemos do exterior, aquilo que é uma ação dos nervos dos órgãos sensoriais, uma observação simples, compreensível e indiscutível. Mas, neste caminho, Kant posteriormente deu um passo imensuravelmente maior: também remover aquilo que é uma ação de nosso cérebro (essa massa de nervos incomparavelmente maior). Assim, todas aquelas qualidades aparentemente primárias tornam-se secundárias, e aquilo presumido como coisas-em-si torna-se mero fenômeno. A verdadeira coisa-em-si, agora despida mesmo dessas qualidades, paira acima como uma quantidade completamente desconhecida, um mero x. E isso, obviamente, exigiu uma análise difícil e profunda que tardou para ser defendida contra os ataques de incompreensão e da ânsia por compreensão.
Locke não deduz suas qualidades primárias das coisas, nem sequer apresenta outras razões por que apenas essas e não outras são puramente objetivas, exceto por alegar que são inerradicáveis. Se nós próprios investigarmos por que declara como não objetivamente presentes estas qualidades das coisas que agem imediatamente na sensação e que, consequentemente, vêm diretamente do exterior, enquanto concede existência objetiva a essas qualidades (como desde então reconhecemos) que surgem das próprias funções especiais do nosso intelecto, então a razão para isso é que a consciência objetivamente perceptiva (a consciência de outras coisas) necessariamente requer um aparato complicado, do qual se apresenta como uma função; logo, sua determinação mais essencial já está interiormente fixada. Assim, a forma universal, i.e. o modo, da percepção intuitiva, a única da qual o a priori conhecível pode resultar, apresenta-se como o tecido básico do mundo intuitivamente percebido e, de acordo, aparece como o fator absolutamente necessário, que é sem exceção e não pode de qualquer forma ser removido, de modo que, antecipadamente, permanece firme como a condição de todas as outras coisas e sua variedade grandiosa. Sabemos que isso é, antes de tudo, tempo e espaço, e o que se segue destes é apenas possível por meio destes. Em si mesmos, tempo e espaço são vazios; se algo há de surgir neles, deve aparecer como matéria, isto é, como algo agindo e, consequentemente, como causalidade; pois matéria é pura causalidade, de ponta a ponta. Seu ser consiste em seu agir e vice versa; é simplesmente a forma objetivamente apreendida da compreensão para a própria causalidade. (Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente, §21; e também O Mundo como Vontade e Representação, vol. I, §4, e vol. II, cap. 4.) Segue-se que as qualidades primárias de Locke são meramente aquilo que não se pode despensar; e isso indica com clareza suficiente sua origem subjetiva, visto que podem resultar diretamente da natureza e constituição do próprio aparato-perceptivo. Consequentemente, implica que considera como absolutamente objetivo justamente aquilo que, como uma função cerebral, é muito mais subjetivo que a sensação ocasionada diretamente do exterior, ou de qualquer modo é mais completamente determinado.
Entrementes, é agradável ver como, por meio de todas essas diferentes concepções e explicações, o problema, levantado por Descartes, da relação entre o ideal e o real é crescentemente desenvolvido e clarificado e, assim, a verdade progride. Isso, obviamente, ocorreu sob as circunstâncias favoráveis dos tempos ou mais precisamente da natureza que, num breve intervalo de dois séculos, originou e permitiu, na Europa, o amadurecimento de meia dúzia de mentes pensantes. Ademais, como um presente do destino, foi-lhes permitido, num mundo de mentalidade vulgar abandonado aos lucros e ao prazer, seguir sua eminente e exaltada vocação, indiferentes aos uivos dos padres e aos disparates ou atividades prudentes dos professores de filosofia contemporâneos.
Enquanto, em concordância com seu empirismo estrito, Locke nos permitiu conhecer mesmo a relação de causalidade apenas através da experiência, Hume não defendeu essa suposição falsa, o que teria sido o correto. Pelo contrário, foi além da questão — a realidade da relação de causalidade em si — e, de fato, o fez por meio da observação, correta em si, de que a experiência nunca pode fornecer, sensivelmente e diretamente, mais que uma mera sucessão de coisas, não um causar e acarretar no sentido real, ou seja, uma conexão necessária. Todos sabemos como essa objeção cética de Hume deu origem às investigações incomparavelmente mais profundas de Kant no assunto, levando-o ao resultado de que a causalidade e também o espaço e o tempo são conhecidos por nós a priori, isto é, existem em nós anteriormente a toda experiência e, deste modo, pertencem à parte subjetiva do conhecimento. Disso segue-se também que todas aquelas qualidades primárias, i.e, absoluto, qualidades de coisas, que foram determinadas por Locke, não podem ser peculiares às coisas-em-si, mas são inerentes ao nosso modo de conhecê-las, pois todas essas qualidades são compostas de puras determinações de tempo, espaço e causalidade e, consequentemente, devem ser consideradas como pertencentes não ao real, mas ao ideal. Finalmente, segue disso que não conhecemos nada sobre como as coisas são em si mesmas, mas tão-somente em sua aparência fenomênica. Assim, o real, a coisa-em-si, permanece algo completamente desconhecido, um mero x, e todo o mundo da percepção intuitiva provém do ideal como uma simples representação, um fenômeno, ao qual, entretanto, algo real — uma coisa-em-si — deve corresponder.
Partindo desse ponto, finalmente dei o passo que, acredito, será o último, pois resolvi o problema sobre o qual todo o filosofar se debruçou desde Descartes. Reduzi todo o ser e conhecer a dois elementos de nossa autoconsciência e, deste modo, a algo para além do qual não pode haver qualquer princípio explicativo, visto que é o mais imediato e, portanto, derradeiro. Recordei, como procede das investigações de todos os meus predecessores que foram aqui discutidos, que o absolutamente real, ou a coisa-em-si, nunca pode nos ser dado diretamente do exterior pelo caminho da mera representação, porque inevitavelmente está na natureza de tal representação sempre fornecer somente o ideal. Por outro lado, visto que nós próprios somos indiscutivelmente reais, deve ser de alguma forma possível esboçar um conhecimento do real a partir do interior de nossa própria natureza. E, de fato, este aparece de uma forma imediata na consciência como vontade. Desse modo, comigo a linha de intersecção cai entre o real e o ideal de tal modo que todo o mundo da percepção intuitiva, apresentando-se objetivamente, incluindo o próprio corpo, juntamente com o espaço, tempo e causalidade, e, consequentemente, com a extensão de Espinosa e a matéria de Locke, pertence, na forma de representação, ao ideal. Nesse caso, apenas resta a vontade como o real, e todos os meus predecessores, impensadamente, lançaram-na no ideal, como um mero resultado da representação e pensamento; Descartes e Espinosa até mesmo identificaram-na com o julgamento. [5] Assim, comigo, a ética está conectada à metafísica de forma incomparavelmente mais direta e íntima que em qualquer outro sistema, de modo que a significância moral do mundo e da existência está mais firmemente estabelecida que nunca. Somente vontade e representação são fundamentalmente diferentes na medida em que constituem o contraste básico de todas as coisas no mundo sem deixar nada para trás. A coisa representada e a representação desta são o mesmo; mas apenas a coisa representada, não a coisa-em-si. A última é sempre vontade, qualquer seja a forma na qual aparece na representação.
Apêndice
Leitores que estão familiarizados com o que se passou por filosofia na Alemanha no curso deste século [XIX], talvez se perguntem por que não veem menção, no intervalo entre mim e Kant, ao idealismo de Fichte ou ao sistema de identidade absoluta do real e do ideal, visto que parecem de fato pertencer ao nosso assunto. Não fui capaz de incluí-los porque Fichte, Schelling e Hegel, em minha opinião, não são filósofos; carecem do primeiro requisito de um filósofo — a seriedade e honestidade investigativa. Estes são somente sofistas que desejavam parecer em vez de ser algo. Buscavam não a verdade, mas os seus próprios interesses e ascensão no mundo. Nomeações de governos, honorários e royalties de estudantes e editores, e, como um meio para esse fim, a maior demonstração e sensação possível em sua pretensa filosofia — tais foram as estrelas-guia e os gênios inspiradores desses discípulos da sabedoria. Assim, não passaram na análise preliminar e não podem ser admitidos na venerável companhia de pensadores para a humanidade.
Entretanto, estes foram notáveis em uma coisa, na arte de seduzir o público e de se passarem pelo que não são; e isso sem dúvida requer talento, porém não o filosófico. Por outro lado, o fato de que não foram capazes de, na filosofia, atingir qualquer coisa substancial deve-se ao fato de que seu intelecto não havia se tornado livre, mas permaneceu a serviço de sua vontade. Pois é verdade que o intelecto pode realizar grandes façanhas pela vontade e seus objetivos, porém não pode fazer pela filosofia mais que pela arte. Pois estas estabelecem, como condição primeira, que o intelecto age apenas espontaneamente e em seus próprios termos e que, durante o tempo de sua atividade, cessa sua submissão à vontade, isto é, ter em vista as próprias metas pessoais. Mas quando o intelecto está, ativamente, em seus próprios termos, por natureza não conhece qualquer objetivo senão a verdade. Logo, para ser um filósofo, isto é, aquele que ama a sabedoria (pois a sabedoria não é senão a verdade), não basta a um homem amar a verdade na medida em que esta é compatível com seu próprio interesse, com a vontade de seus superiores, com os dogmas da Igreja ou com os preconceitos e gostos dos contemporâneos; enquanto estiver satisfeito com tal posição, é apenas um amigo de seu próprio ego, não da sabedoria. Pois esse título de honra é compreendido de forma correta e sábia precisamente por sua afirmação de que se deve, acima de tudo, amar a verdade honestamente e de todo o coração, portanto, incondicionalmente e sem reservas, e, se necessário, em detrimento de todo o mais. A razão para isso é haver anteriormente afirmado que o intelecto se tornou livre, e nesse estado nem mesmo sabe ou compreende qualquer outro interesse senão o da verdade. A consequência, todavia, é que concebemos um ódio implacável a todo mentir e enganar, independentemente da roupagem com que se apresentem. Dessa forma, naturalmente, talvez não estejamos em sintonia com o mundo, mas estaremos com a filosofia. Por outro lado, os prognósticos para a filosofia são ruins se, com o pretexto da busca pela verdade, começamos a nos distanciar de toda integridade, honestidade e sinceridade, desejando somente nos passarmos pelo que não somos. Adotamos, então, como aqueles três sofistas, primeiramente um pathos falso, depois uma seriedade afetada e pomposa, depois um ar de superioridade infinita, a fim de impor aquilo que receamos nunca ser capazes de convencer. Escreve-se sem cuidado porque, pensando somente com o intuito de escrever, economizou-se os pensamentos até o momento de escrevê-los. Tenta-se passar sofismas palpáveis por provas, apresentando uma verborragia vazia e sem sentido como ideias profundas. Faz-se referência à intuição intelectual ou ao pensamento absoluto e ao automovimento de conceitos. Desafia-se explicitamente a postura de “reflexão”, ou seja, de deliberação racional, de consideração imparcial e apresentação honesta, e dessa forma a utilização adequada e normal da faculdade de raciocinar. Assim, se expressa um infinito desprezo pela “filosofia da reflexão”, nome com o qual designam qualquer linha de pensamento que deduz consequências de razões, como se constituiu todo o filosofar anterior. Se, portanto, alguém estiver imbuído de audácia suficiente e for encorajado pelo lamentável espírito da época, proferirá algo como se segue: “Mas não é difícil perceber que essa maneira de proceder — expor uma proposição, defendê-la com argumentos, refutar o seu oposto com razões — não é a forma como a verdade pode manifestar-se. A verdade é seu próprio movimento dentro de si mesma” (Hegel, Prefácio à Fenomenologia do Espírito, p. LVII, na edição completa, p.36.) Não penso ser difícil ver que qualquer indivíduo que propaga algo desse gênero é um charlatão descarado que deseja enganar tolos e observa que encontrou seu público entre os alemães do século XIX.
Assim, se, enquanto pretensamente nos precipitamos ao templo da verdade, damos as rédeas aos nossos próprios interesses pessoais, que se norteiam por estrelas-guia muito distintas — por exemplo, pelos gostos e fracos dos contemporâneos, pela religião estabelecida, mas em particular pelas insinuações e sugestões daqueles por dentro das intrigas —, então como poderemos alcançar o elevado, íngreme, rochoso local onde jaz o templo da verdade? Podemos nos ligar, por meio do vínculo certo do interesse, a uma porção de discípulos esperançosos, isto é, esperançosos de proteção e abrigo. Estes constituem aparentemente uma seita, mas na verdade uma fração, e através de suas vozes estentóreas um indivíduo é proclamado aos quatro ventos um sábio sem paralelo; o interesse do indivíduo é satisfeito, o da verdade, traído.
Isso explica as dolorosas impressões pelas quais somos tomados quando, após estudar os pensadores genuínos mencionados acima, nos deparamos com os escritos de Fichte e Schelling, ou mesmo com os presunçosos rabiscos de nonsense de Hegel, produzidos com uma inabalável, apesar de justificada, confiança na estupidez alemã. [6] Com esses pensadores genuínos, sempre se considera uma investigação honesta da verdade apenas uma honesta tentativa de comunicar suas ideias a outrem. Portanto, todos que leem Kant, Locke, Hume, Malebranche, Espinosa e Descartes sentem-se elevados e agradavelmente impressionados. Isso é produzido através da comunhão com uma mente nobre que tem e desperta ideias, que pensa e leva outrem a pensar. O inverso disso é o que sucede quando lemos os três sofistas alemães mencionados acima. Um leitor imparcial, abrindo um de seus livros e perguntando-se se este é o tom de um pensador que deseja instruir ou de um charlatão tentando impressionar, não terá qualquer dúvida dentro de cinco minutos; aqui tudo respira muita desonestidade. O tom da investigação calma, que caracterizou toda a filosofia anterior, é trocado por uma certeza inabalável, como é peculiar ao charlatanismo de todo gênero e de todos os tempos. Aqui, todavia, tal certeza alega estar respaldada na intuição intelectual imediata ou no pensamento absoluto, isto é, independente do sujeito e, portanto, da falibilidade deste. Em cada página e cada linha, há a voz de um esforço em seduzir e enganar o leitor, primeiramente produzindo um efeito para espantá-lo, depois estupefazê-lo e atordoá-lo através de frases incompreensíveis e mesmo franco nonsense, e novamente embaraçá-lo através da audácia da afirmação, em suma, lançar poeira em seus olhos e mistificá-lo tanto quanto possível. Assim, a impressão sentida por um homem no caso da transição em questão no âmbito teórico pode ser comparada com aquela que talvez tivesse no âmbito prático se se visse num antro de canalhas após sair de uma comunidade de homens de honra. Que homem estimável é Christian Wolff em comparação com esses, um homem tão denegrido e ridicularizado precisamente por esses três sofistas! Este tinha pensamentos reais e os sustentava; aqueles, por outro lado, tinham apenas estruturas de palavras e frases cujo objetivo era o engano. Dessa forma, o verdadeiro caráter distintivo da filosofia da chamada escola pós-kantiana é a desonestidade, seu elemento é névoa e fumaça, e sua meta são objetivos pessoais. Seus expoentes se empenhavam em parecer, não em ser; são, portanto, sofistas, não filósofos. O ridículo da posteridade, estendendo-se até seus admiradores, e depois o esquecimento — eis o que os aguarda. Por vezes, associado com a tendência mencionada desses homens, há um tom cambiante e abusivo, que permeia completamente os escritos de Schelling como um acompanhamento obrigatório. Porém, se esse não fosse o caso, e se Schelling tivesse trabalhado com honestidade em vez de pompa e impostura, então, sendo sem dúvida o mais talentoso dos três, talvez tivesse ao menos ocupado na filosofia uma posição subordinada como um eclético, sendo provisoriamente útil. O amálgama que preparou a partir das doutrinas de Plotino, Espinosa, Jacob Boehme, Kant e as ciências naturais da modernidade poderia, nesse sentido, ser útil para preencher a lacuna produzida pelos resultados negativos da filosofia kantiana, até que uma filosofia realmente nova viesse e proporcionasse a compensação necessária. Particularmente, utilizou a ciência natural de nosso século para reviver o panteísmo abstrato de Espinosa. Sem qualquer conhecimento da natureza, Espinosa filosofou aleatoriamente a partir de conceitos meramente abstratos e, sem conhecer as coisas propriamente, erigiu a estrutura de seu sistema. Ter revestido este esqueleto com carne e sangue e, tanto quanto possível, ter-lhe concedido vida e movimento por meio da aplicação da ciência natural que, neste meio tempo, havia se desenvolvido, apesar de esta ter sido frequentemente aplicada de modo errôneo, é o inegável mérito de Schelling em sua Naturphilosophie, que também é o melhor de seus muitos esforços distintos e novas tendências.
Assim como crianças brincam com armas projetadas para aplicações sérias ou com outros instrumentos destinados aos adultos, também os três sofistas que estamos considerando lidaram com este assunto, de tal forma que forneceram um adorno grotesco aos dois séculos de investigação laboriosa da parte dos filósofos pensativos e meditativos. Após Kant ter mais que nunca acentuado o grande problema da relação entre o que existe em-si e nossas representações, trazendo-o muito mais próximo de uma solução, Fichte avançou com a afirmação de que não há nada por detrás das representações e que estas são simplesmente produto do sujeito do conhecimento, de ego. Através disso, buscava superar Kant, mas produziu apenas uma caricatura do sistema deste filósofo, visto que, através da aplicação do método desses três pseudofilósofos então já muito alardeados, aboliu completamente o real, deixando somente o ideal. Então veio Schelling que, em seu sistema de identidade absoluta do real e do ideal, declarou toda diferença irrelevante e sustentou que o ideal também é o real e que ambos são idênticos. Tentou, assim, lançar novamente à confusão aquilo que havia sido tão cuidadosamente separado por meio de um processo de reflexão lento e de evolução gradual, misturando tudo. (Schelling, Vom Verhältniss der Naturphilosophie zur Fichte’schen, pp. 14-21.) A distinção do ideal e do real é fortemente negada de forma semelhante aos erros já mencionados de Espinosa. Ao mesmo tempo, mesmo as mônadas de Leibniz, essa monstruosa identificação de dois absurdos, dos átomos e do indivisível, essencialmente aquilo que indivíduos instruídos denominaram almas, são novamente apresentadas, solenemente exaltadas e empregadas. (Schelling, Ideen zur Naturphilosophie, 2nd edn., pp. 38 e 82.) A filosofia natural de Schelling leva o mesmo nome da filosofia da identidade porque, seguindo os passos de Espinosa, abole as três distinções que este também aboliu, a saber, aquelas entre Deus e o mundo, entre o corpo e a alma e, finalmente, também entre o ideal e o real no mundo percebido intuitivamente. Esta última distinção, todavia, como foi demonstrado quando consideramos Espinosa, de forma alguma depende das outras duas. Pelo contrário, quanto mais foi trazida à luz, mais as outras se mostraram duvidosas; pois as primeiras são baseadas em provas dogmáticas (derrubadas por Kant), enquanto a última baseia-se num simples ato de reflexão. Em conformidade, Schelling identificou a metafísica com a física e, assim, o pomposo título Von der Weltseele foi dado meramente a uma diatribe físico-química. Todos os problemas realmente metafísicos que incansavelmente se insinuam à consciência humana seriam silenciados por meio de uma negação direta baseada em afirmações categóricas. A natureza está presente simplesmente porque esta é, fora de si mesma e através de si mesma; nós lhe concedemos o título de Deus, e com isso é posta de lado; todos que perguntarem algo além são tolos. A distinção entre o subjetivo e o objetivo é simplesmente um truque dos acadêmicos, como toda a filosofia kantiana, e a distinção entre a priori e a posteriori desta filosofia não tem qualquer utilidade. Nossa percepção intuitiva empírica muito adequadamente nos apresenta as coisas-em-si, e assim por diante. Vejamos Ueber das Verhältniss der Naturphilosophie zur Fichte’schen, pp. 51 e 67 e também p. 61, onde são expressamente ridicularizados “quem está realmente surpreso pelo nada não existir e quem se surpreende o bastante por algo realmente existir”. Assim, para Herr von Schelling, tudo parece ser uma obviedade. No fundo, entretanto, tal fala é um apelo oculto, em frases pomposas, ao que se denomina sólido — i.e. vulgar — bom senso. De resto, lembro aqui o que foi dito no início do décimo sétimo capítulo do segundo volume de minha obra capital. Significante para nossa questão, e muito ingênua, é a passagem na página 69 da obra de Schelling citada acima: “Se o empirismo houvesse atingido completamente seu objetivo, sua oposição à filosofia, e com isso a própria filosofia, desapareceria como uma esfera particular ou uma espécie de ciência. Todas as abstrações se dissolveriam em percepções intuitivas diretas e ‘amigáveis’; o mais elevado seria um esporte de prazer e inocência; o mais difícil seria fácil, o mais imaterial, material, e o homem seria capaz de ler o livro da natureza com alegria e liberdade.” Isso, obviamente, seria muito agradável! Mas, conosco, não é simples assim; o pensar não pode ser erradicado dessa maneira. A velha esfinge séria com seus enigmas jaz lá, imóvel, e esta não despenca da rocha porque a declaramos um fantasma. Dessa forma, quando o próprio Schelling posteriormente observou que problemas metafísicos não podem ser rejeitados por meio de afirmações categóricas, este nos deu um ensaio realmente metafísico em seu tratado sobre a liberdade. Isso, entretanto, é mera imaginação, um conte bleu, um conto de fadas; de tal forma que, sempre que o estilo assume um tom de demonstração (e.g. pp. 453 ff.), seu efeito é sem dúvida cômico.
Por meio de sua doutrina da identidade do real e do ideal, Schelling tentou resolver o problema que foi apresentado por Descartes, analisado por todos os grandes pensadores e, finalmente, levado adiante por Kant. Ele tentou resolver este problema cortando o nó, na medida em que negou a antítese entre o real e o ideal. Com o que entrou em contradição direta com Kant, que foi seu ponto de partida. No processo, conservou firmemente o significado original e apropriado do problema, que concerne à relação entre nossa percepção intuitiva e o ser e essência-em-si das coisas que se apresentam nesta percepção. Mas, visto que destilou sua doutrina principalmente de Espinosa, logo adotou deste as expressões pensante e existente, que apresentam muito mal o problema que estamos discutindo, e posteriormente deu luz às monstruosidades mais absurdas. Com sua doutrina de que substantia cogitans et substantia extensa una eademque est substantia, quae am sub hoc jam sub illo attributo comprehenditur (Ética, Pt. II, prop. 7, schol.); ou scilicet mens et corpus una eademque est res, quae jam sub cogitationis, jam sub extensionis attributo concipitur (Ética, Pt, III, prop. 2, schol.) [a substância pensante e a substância extensa são a mesma coisa, a qual é compreendida por vezes sob este atributo, por vezes sob aquele … a saber, que mente e corpo são a mesma coisa, a qual se concebe, num momento, sob o atributo do pensamento e, noutro momento, sob o atributo da extensão], Espinosa tentou abolir a antítese cartesiana de corpo e alma. Talvez também tenha reconhecido que o objeto empírico não é distinto de nossa representação deste. Schelling, então, recebeu dele as expressões pensante e existente, as quais gradualmente substituiu por aquelas de perceptivo, ou percebido e coisa-em-si. (Neue Zeitschrift fur spekulative Physik, vol. I, primeiro artigo: “Demonstrações adicionais” e em assim diante.) Pois a relação de nossa percepção intuitiva das coisas e seu ser e essência-em-si é o grande problema cuja história estou esboçando; todavia, não o da relação de nosso pensamento ou ideias, isto é, de conceitos. Pois é óbvio e inegável que esses são apenas abstrações daquilo que é conhecido através da percepção intuitiva, e surgiram do nosso descartar ou reter certas qualidades arbitrariamente. Duvidar disso é algo que não ocorre a qualquer homem sensato. [7] Logo, esses conceitos e pensamentos, constituindo a classe de representações não-perceptivas, nunca têm uma relação imediata com a essência e ser-em-si das coisas. Pelo contrário, têm sempre apenas uma relação mediata, isto é, através da mediação da percepção intuitiva. É isso que, por um lado, lhes proporciona o material e, por outro, permanece em relação com as coisas-em-si, ou seja, com a desconhecida, real e verdadeira essência das coisas que se objetiva na percepção intuitiva.
Então a expressão imprecisa, que Schelling emprestou de Espinosa, foi posteriormente utilizada por aquele charlatão insípido e vazio, Hegel, que neste sentido parece o bufão de Schelling, e era tão distorcida que pensante, no sentido correto e, portanto, de conceitos, se identificaria com a essência-em-si das coisas. Consequentemente, o que é pensado in abstracto, como tal, deveria ser idêntico ao que é objetivamente presente em si, e, dessa forma, a lógica deveria ser a verdadeira metafísica. Nesse caso, somente precisaríamos pensar, ou depositar nossa confiança em conceitos, a fim de conhecer a constituição absoluta do mundo exterior. Segundo essa visão, tudo que atormenta um crânio seria verdadeiro e real. Visto que “quanto mais maluco melhor” era o lema dos filosofastros desse período, esse absurdo foi defendido por um segundo absurdo, a saber, que nós não pensamos, mas que os conceitos, por si mesmos, completariam o processo de pensamento — isso foi denominado automovimento dialético do conceito —, o que seria uma revelação de todas as coisas in et extra naturam. Mas essa palhaçada era, ainda, alicerçada em outra que, igualmente, tinha por base uma distorção de palavras, a qual nunca foi expressa claramente, mas sem dúvida está em seu fundo. Assim como Espinosa, Schelling deu ao mundo o título de Deus. Hegel tomou isso literalmente. Então, como a palavra realmente significa um ser pessoal que, juntamente com outras qualidades absolutamente incompatíveis com o mundo, também tem a onisciência, esta também foi transferida ao mundo por Hegel. Naturalmente, não poderia estar em outro lugar senão na mente do homem, que precisaria somente dar liberdade aos seus pensamentos (automovimento dialético) para com isso revelar todos os mistérios do céu e da terra, isto é, no absoluto nonsense da dialética hegeliana. Há uma arte que Hegel realmente compreendeu, a de levar os alemães pelo nariz. Mas essa não é uma grande arte; de fato, vemos com que lixo e nonsense foi capaz de, por trinta anos, manter sua posição dentro do mundo da Alemanha erudita. Os professores de filosofia ainda levam esses três sofistas a sério e consideram importante reservar-lhes um lugar na história da filosofia. Mas apenas porque isso faz parte do seu gagne-pain [ganha pão], visto que extraem daqui material para dissertações elaboradas, verbais e escritas, sobre a história da filosofia pós-kantiana, na qual os princípios e dogmas desses sofistas são explorados detalhadamente e levados a sério. Porém, de um ponto de vista racional, não deveríamos nos incomodar com o que esses homens lançaram no mercado a fim aparentar ser algo, a não ser que se considere os rabiscos de Hegel medicinais e que deveriam estar disponíveis em farmácias como um eficiente vomitivo físico, pois a aversão que excitam é realmente muito específica. Mas basta deles e seus autores, cuja veneração teremos de deixar para a Real Academia Dinamarquesa de Ciências. Esta reconheceu nele um summus philosophus segundo seus termos e, portanto, exige deferência a este no seu julgamento, o qual está anexado como um duradouro memorial em meu Sobre o Fundamento da Moral. Esse julgamento mereceu ser protegido do esquecimento não somente devido ao discernimento ou à notável honestidade desta, mas também porque fornece uma confirmação impressionante do belo dizer de La Bruyère: Du même fonds dont on néglige un homme de mérite, l’on sait encore admirer un sot. [pelo mesmo motivo que desprezamos um homem de mérito, somos capazes de admirar um tolo. (La Bruyère, Les Caracteres.)]
Notas
- Ética, Pt. II, prop. 7: Ordo et connexio idearum idem est, ac ordo et connexio rerum. — Pt. V, prop. I: Prout cogitationes rerumque ideae concatenantur in Mente, ita corporis affectiones, seu rerum imagines ad amussim ordinantur et concatenantur in Corpore. — Pt. II, prop. 5: Esse formale idearum Deum, quatenus tantum ut res cogitans consideratur pro causa agnoscit, et non quatenus alio attributo explicatur. Hoc est tam Dei attributorum, quam rerum singularium ideae non ipsa ideata, sive res perceptas pro causa efficiente agnoscunt: sed ipsum Deum, quatenus est res cogitans. [A ordem e conexão de ideias são as mesmas que a ordem e conexão de coisas … Assim como os pensamentos e ideias de coisas são ligadas na mente, assim são os afetos do corpo ou as imagens de coisas organizadas e ligadas no corpo. … A existência formal de ideias tem Deus como sua causa na medida em que é considerado um ser pensante e não na medida em que é desenvolvido por outro atributo. Isto é: as ideias dos atributos de Deus, assim como das coisas individuais, têm como causa não os objetos dessas ideias — i.e. coisas percebidas —, mas o próprio Deus, na medida em que é um ser pensante.]
- No Tratado da Correção do Intelecto, pp. 414/25, este evidencia um realismo decidido e de forma tal que idea vera est diversum quid a suo ideato; etc. [Uma ideia verdadeira é algo diferente de seu objeto]. Todavia, esse tratado sem dúvida é mais antigo que sua Ética.
- Aqueles que não foram iniciados em filosofia, o que inclui muitos doutores desta, deveriam ser totalmente privados da palavra Idealismo, pois não conhecem seu significado e, assim, são capazes de todo tipo de estrago. Por idealismo, entendem, primeiramente, espiritualismo, depois talvez o oposto de filistinismo — e, nessa perspectiva, são respaldados e confirmados por literatos vulgares. As palavras “idealismo” e “realismo” não são sem dono e lugar, mas têm um significado filosófico definido. Aqueles que se referem a algo diverso deveriam simplesmente usar outra palavra. O contraste entre idealismo e realismo concerne aquilo que é conhecido, o objeto; por outro lado, o contraste entre espiritualismo e materialismo concerne o conhecedor, o sujeito. (Os escrevinhadores ignorantes de hoje confundem idealismo e espiritualismo).
- Não há Igreja que sugue mais luz que a inglesa, pois nenhuma outra tem interesses pecuniários tão grandes em jogo, com sua renda chegando a £5,000,000 esterlinas, £40,000 acima do que se diz ser a renda de todo o restante do clero cristão em ambos os hemisférios. Por outro lado, em nenhuma outra nação é tão doloroso ver a estupidificação metódica pela mais degradante fé cega como na inglesa, que supera todas as outras em inteligência. A raiz do problema é que não há ministério de instrução pública e, deste modo, até agora a função esteve completamente nas mãos dos padres. Esses tomaram as providências para que dois terços na nação não sejam capazes de ler e escrever; de fato, de tempos em tempos, até mesmo têm a audácia totalmente ridícula de latir para as ciências naturais. É, portanto, um dever humano contrabandear para a Inglaterra, por meio de qualquer canal concebível, luz, liberdade de pensamento e ciência, de modo que até o mais bem alimentado dos padres perca seu empreendimento. Quando os ingleses educados exibem no Continente suas superstições judaicas sabáticas e outros fanatismos estúpidos, deveriam ser tratados com franco escárnio, until they be shamed into common sense [até que recuperem o bom senso]. Pois tais coisas são um escândalo para a Europa e não devem ser ainda toleradas. No curso cotidiano da vida, não deveríamos fazer quaisquer concessões à superstição da Igreja inglesa, mas sim nos colocar frente a esta da maneira mais cáustica e mordaz sempre que esta se fizer presente. Pois nenhuma arrogância supera a dos padres anglicanos; no Continente, portanto, devem sofrer humilhação bastante, de modo que uma porção desta seja levada para casa, onde esta está em falta. Pois a audácia dos padres anglicanos e de seus seguidores abjetos é realmente inacreditável, mesmo no presente; deveria, assim, ser confinada à sua ilha e, quando aventurar-se a se mostrar no Continente, deveria ser obrigada a fazer, de dia, o papel de coruja.
- Espinosa, loc. cit. — Descartes, Meditationes de prima philosophia, Med. IV, p. 28.
- A pretensa filosofia hegeliana de fato é esta dor na cabeça do estudante em Fausto. Se nossa intenção é tornar a juventude estúpida e completamente incapaz de pensar, não há meios mais adequados que o pormenorizado estudo dos originais de Hegel. Pois essas monstruosas articulações de palavras que cancelam e contradizem umas às outras — de modo que em vão a mente se atormenta tentando, através delas, pensar em qualquer coisa, até que finalmente sucumbe à exaustão — gradualmente destroem completamente a capacidade de pensar e, deste modo, frases e floreios vazios são considerados como reflexões. Some-se a isto a presunção — confirmada aos jovens pela palavra e exemplo de todas as autoridades — de que esta verborragia vazia é sabedoria grandiosa e verdadeira! Se um guardião estiver preocupado com a possibilidade de aqueles sob a sua tutela se tornarem espertos demais para seus planos, então tal desventura poderia ser evitada por um aplicado estudo da filosofia hegeliana.
- Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente, 2nd edn., §26.