Temos uma inegável sede por conhecimento e, por muitas vezes, superestimamos a nossa capacidade individual de adquiri-lo. Afinal, somos seres dotados de consciência e de raciocínio, capazes de resolver problemas quotidianos com relativa facilidade. Sequer teremos maiores problemas em errarmos, visto que muito de nosso aprendizado é adquirido por vias de tentativa e erro. Não é à toa, portanto, que, quando classificamos as espécies, tendemos a nos separar dos outros animais por essas faculdades, culminando na distinção entre “racionais” e “irracionais”, felizmente em desuso nos meios de estudos biológicos.
Mesmo assim, outras áreas insistem em valorizar nossa consciência. No direito, por exemplo, a capacidade do agente determina sua responsabilidade, seja no âmbito civil ou no penal. É com base nessa noção de graus de consciência que punimos mais severamente um criminoso que confessa seu gosto em torturar e matar suas vítimas do que aquele que acidentalmente provoca uma morte no trânsito. Mesmo que tenham matado o mesmo número de pessoas, temos uma forte impressão de que o resultado não foi exatamente idêntico, ainda que a razão para a discriminação não seja autoevidente.
Esse tipo de julgamento moral que leva em conta a capacidade do agente encontra grande respaldo na doutrina cristã do livre-arbítrio, por mais que não seja a única a levá-lo em consideração. Segundo ela, as pessoas são dotadas de mecanismos suficientes para que possam escolher suas ações segundo sua própria vontade (voluntas), arcando com a responsabilidade por tal escolha. Para os cristãos que acreditam em uma vida pós-morte, o conceito é essencial para que seu deus possa diferenciar o destino de seus fiéis. Algumas divisões, como a católica, chegam ao ponto de considerar peccatum o próprio pensamento, mesmo que não seja acompanhado da ação.
Essa doutrina enfrenta sérias críticas, principalmente aquelas relacionadas ao que se chama de determinismo, entendido, em seu sentido amplo, como a incapacidade de sermos completamente livres para escolher devido a relações de causalidade entre os fatos do mundo. Assim, nossas escolhas seriam determinadas por configurações, tanto biológicas, como sócio-culturais. Restaria pouco ou nenhum espaço para que a mente (mens) pudesse realmente exercer seu poder de escolha. Há, ainda, uma terceira linha, que diz ser possível a coexistência do livre-arbítrio com o determinismo, mas de maneira limitada: seríamos livres desde que pudéssemos ter agido de outra maneira.
O compatibilismo, como assim é chamado, significaria um meio-termo entre o determinismo, que vem sendo invariavelmente comprovado por experimentos científicos, e o livre-arbítrio, ou qualquer outro conceito que traga a noção de liberdade para que continuemos a tratar os indivíduos de acordo com suas ações. Dessa forma, mesmo que possamos traçar uma relação entre desenvolvimento sócio-econômico e nível de criminalidade, não deixaríamos de punir criminosos, porque não há uma relação de obrigatoriedade, muito bem evidenciada pelos outros indivíduos na mesma situação que não recorrem ao crime.
Os estudos sobre determinismo, no entanto, podem nos servir muito bem para que repensemos a forma como punimos tais transgressores. Diferenciar um assassino que tem prazer em matar daquele outro que nunca matara e fora influenciado pela situação de estresse continua sendo importante. Sem entrarmos no mérito de política criminal, não seria difícil alegar certa noção de justiça para que os dois tenham tratamentos diferenciados. Sentiríamos, muito provavelmente, um forte senso de contrariedade e de rejeição, caso a pena aplicada fosse a mesma — especialmente se fossem ambas severas, como a pena capital.
Contraposto ao julgamento advindo da vontade ou da consciência, temos o consequencialismo, um tipo de ética que busca valorizar as ações de acordo com seus resultados ― relegando para um segundo plano a intenção. Um exemplo simples: uma doação generosa de um indivíduo consideravelmente rico é superior, com relação ao montante, ao salário integral de um trabalhador de baixa renda. Diferente do ensinamento de Jesus sobre a doação da viúva pobre (Marcos 12:41-44), a intenção dos dois pouco importa, caso nosso objetivo seja levantar um hospital para crianças carentes.
Certamente, não há dúvidas de que uma doação voluntária parece ser mais generosa do que uma forçada — e temos o exemplo dos impostos para comprovar tal fato —, mas há alguma diferença prática, caso precisemos analisar as doações sem essa informação? Ao que parece, essa diferença de julgamento diz respeito ao tipo de personalidade que esperamos encontrar em nossas comunidades. Não basta que as ações gerem resultados satisfatórios, mas elas também precisam transparecer espontaneidade, possivelmente para assegurar que serão repetidas em situações semelhantes.
Assim, por mais que o consequencialismo seja sensato, acaba por esbarrar em alguns problemas práticos: nem sempre estamos dispostos a fazer cálculos matemáticos para saber qual a melhor ação a ser tomada, principalmente quando há fatores emocionais envolvidos. A decisão entre salvar um membro próximo de sua família ou vários indivíduos desconhecidos pode gerar resultados imorais para quem não compartilhe a ligação de parentesco. Também não sentimos um forte apelo em matar um indivíduo para salvarmos a vida de outros tantos com os seus órgãos, como o cálculo de sacrifício poderia nos levar a pensar.
Também nesse sentido, estudos recentes demonstram que nos afastamos de decisões consequencialistas conforme aumenta o nosso potencial de ação nas escolhas, como nos exemplos do dilema do bonde. Na sua versão mais comum, é necessário fazer uma escolha para que um bonde desgovernado faça o mínimo de vítimas próximas aos trilhos. Em algumas situações, o mesmo cálculo pode gerar resultados diferentes, a depender de nossa participação: o número de pessoas dispostas a sacrificar vidas humanas diminui conforme a necessidade de empurrar alguém nos trilhos ao invés de simplesmente mudar a rota do bonde, por exemplo.
Tendemos, por tais fatores, a adotar o consequencialismo de maneira moderada, com algumas restrições que parecem conformar com o nosso senso de justiça. Uma delas, como Kant já afirmara, é a de que o homem deve ser um fim em si mesmo, não um meio para atingir outros objetivos. Há muita força teórica por trás da máxima, mas há alguns problemas com ela — e o principal deles é a própria definição de “homem”, que enfrentamos em casos limítrofes, como o da pesquisa com células embrionárias, do aborto e da eutanásia. Além disso, há certa relativização da máxima em casos de guerra, para citar um exemplo clássico em que pelotões inteiros podem ser sacrificados como forma de atrasar o inimigo.
Mas não precisamos de exemplos tão drásticos. Pensemos na pesquisa médica. Por mais que os riscos sejam devidamente controlados, os voluntários certamente são expostos a mazelas para que a cura de certa enfermidade seja alcançada. Longe de adotar o pressuposto maquiavélico de que os fins justificam os meios, a ética consequencialista precisa sobrepesar os resultados da ação e da inação para que suas medidas sejam justificadas. E isso é notoriamente difícil de conciliar quando as decisões envolvem interesses pessoais. Mas há um tipo específico de sujeito que deveria, em tese, levar em consideração somente as consequências de suas ações.
Em nossa sociedade, criamos as figuras dos entes públicos, dotados de personalidade jurídica. Tais sujeitos são responsáveis por zelar pela convivência pacífica e pelo respeito aos direitos e às garantias dos cidadãos sob sua tutela. Ao escolher como utilizar os recursos disponíveis, as prioridades devem ser compatíveis com o bem-estar da maior parte dos cidadãos, dadas as limitações orçamentárias e a incapacidade prática de agradar a todos com uma mesma medida. É um dilema enfrentado diariamente no que diz respeito, dentre outras áreas, a tratamentos médicos. As políticas de saúde envolvem, muitas vezes, deixar sem remédios certo número de indivíduos em benefício de outros.
Definitivamente não gostaríamos que qualquer governo nos usasse como massa de manobra, mesmo em situações nas quais os benefícios superassem por muito os possíveis danos causados. No entanto, não é a única forma de o Estado tomar decisões pelos indivíduos. De fato, a parte estatal que cuida do comportamento de seus tutelados acaba ganhando mais evidência na forma de leis ― no seu sentido mais amplo ―, mas não se resume a isso. Há grandes séries de campanhas de conscientização, por exemplo. Através delas, busca-se o objetivo de espalhar ações consideradas ideais.
Digamos, hipoteticamente, que certa medida tomada pelo governo fizesse aumentar o número de doadores de sangue. O simples fato de veicular propagandas já poderia ser responsável pelo aumento e seria difícil prever críticas a uma medida tão simples. Contudo, tentemos ir além: e se, baseado em estudos científicos, descobríssemos que poderíamos influenciar positivamente a decisão de doar sangue? Agora, por tudo o que já vimos, a decisão dos indivíduos parece ser afetada por algo externo à consciência, algo que manipula sua intenção, que retira, por assim dizer, parte de seu livre-arbítrio. Ainda seria uma medida aceitável?
Em situações diferentes, o mero arranjo de produtos em um supermercado faz com que o seu consumo aumente significativamente. O mesmo pode-se dizer sobre a disposição de diferentes pratos em um restaurante de autosserviço. Em ambos os casos, o mecanismo é o mesmo: utilizar-se de nossa programação biológica para atingir objetivos desejáveis ― por mais que incentivar o consumo costume beneficiar uma das partes mais do que a outra. Estudos sobre o assunto deram o nome de “empurrão” (nudge) a esses estímulos quantificáveis que podem nos levar a fazer certas escolhas, dependendo das configurações postas.
Tendo controle sobre algumas dessas variáveis, podemos manipular as escolhas dos indivíduos para que reflitam comportamentos desejáveis. Podemos implantar os “empurrões” nas escolas, fazendo com que os alunos optem por refeições mais saudáveis, por exemplo. Teoricamente, as aplicações são infinitas. No entanto, a ideia de que podemos ser manipulados pode gerar aflição. Mas, cientes de nossa falibilidade em controlar livremente nossas escolhas, abrimos várias possibilidades de reação: podemos simplesmente entender como tudo funciona e nos esforçar para que não caiamos em manipulações cujos resultados não coadunam com nossos desejos.
A repulsa a esse tipo de manipulação não deixa de ser compreensível, mas devemos entender que não existe uma entidade responsável por manter todos os seres-humanos no melhor de seus escrúpulos ― e devemos realmente questionar se tais atos são necessariamente inescrupulosos. Mas devemos, acima de tudo, levar em consideração que o simples debate filosófico sobre intencionalidade e livre-arbítrio já não proporciona um entendimento satisfatório sobre a nossa máquina de fazer escolhas. Com isso em mãos, teremos uma abordagem mais sóbria e melhor embasada para nos levar para mais perto do que traçamos como nossos objetivos pessoais.
Dotados de curiosidade, buscamos entender o funcionamento do mundo e devemos agir de acordo com as nossas descobertas, pois esperar dele uma essência que nós gostaríamos de encontrar pode ser reconfortante, mas leva a resultados que dependem da nossa capacidade de ignorar os dados que refutam nossas crenças mais íntimas. Afinal, se somos naturalmente enviesados, não seria mais útil aprendermos a usar tal viés em nosso favor? Se há uma configuração biológica que pode nos levar a escolhas impulsivas e relativamente inconscientes, não seria justo que a usássemos para nos “empurrar” àquilo que planejamos conscientemente?
Leituras recomendadas
HARRIS, Sam. The moral landscape: how science can determine human values. Nova Iorque: Free Press, 2010. [em inglês]
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002.
PINKER, Steven. Tabula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SCHWARTSMAN, Hélio. Empurrõezinhos. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/869841-empurroezinhos.shtm. Último acesso: 31 jul. 2011.
THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge: improving decisions about health, wealth, and happiness. Carefree: Caravan, 2008. [em inglês]
Vídeos recomendados
DENNETT, Daniel. On our consciousness. Disponível em: http://www.ted.com/talks/lang/eng/dan_dennett_on_our_consciousness.html. Último acesso: 31 jul. 2011. [em inglês, com possibilidade de legendas em português]
HARRIS, Sam. Science can answer moral questions. Disponível em: http://www.ted.com/talks/lang/eng/sam_harris_science_can_show_what_s_right.html. Último acesso: 31 jul. 2011. [em inglês, com possibilidade de legendas em português]
PIGLIUCCI, Massimo. Neuroethics & the trolley dilemma. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NOfKyjyWiU0. Último acesso: 31 jul. 2011. [em inglês]