A História dos Nove Policiais

Mark I. Vuletic

Anteriormente intitulado “Os Cinco Polícias” (2000), Vuletic atualizou este ensaio para incluir mais pontos de vista, agora nove ao todo.

Quando a Sr.ª K. foi lentamente violada e assassinada por um criminoso comum durante uma hora e cinquenta e cinco minutos, à vista de nove polícias completamente armados que estavam fora de serviço e que ignoraram os gritos aterrorizados dela suplicando por ajuda e que se limitaram a olhar até que o ato foi levado ao seu fim horrível, dei por mim enfrentando uma crise pessoal. Os polícias tinham sido meus amigos pessoais muito próximos, mas agora vi a minha confiança neles completamente abalada. Felizmente, pude falar com eles depois e perguntei-lhes como puderam simplesmente ficar ali sem fazer nada, quando podiam ter facilmente salvo a Sr.ª K.

“Pensei em intervir”, disse o primeiro polícia, “mas ocorreu-me que obviamente era melhor para o assassino poder exercer o seu livre-arbítrio do que tê-lo restringido. Lamento profundamente as escolhas que ele fez, mas esse é o preço a pagar por se ter um mundo com agentes livres. Você preferiria que todas as pessoas do mundo fossem robôs? As ações do atacante com certeza não estavam sob o meu controle, portanto não posso ser responsabilizado pelas ações dele”.

“Bem”, disse o segundo polícia, “a minha motivação era um pouco diferente. Estava prestes a puxar a minha arma contra o assassino quando pensei: ‘Mas espere, não seria esta uma oportunidade perfeita para algum transeunte desarmado exercer heroísmo altruísta, caso passasse por ali? Se interviesse todas as vezes, como estava prestes a fazer, então ninguém poderia jamais exercer tal virtude. De fato, provavelmente ficariam todos muito mal habituados e centrados em si mesmos se impedisse todos os atos de violação e assassínio’. Foi por isso que não fiz nada. É pena que ninguém tenha aparecido para intervir heroicamente, mas esse é o preço a pagar por se ter um universo onde as pessoas podem mostrar virtude e maturidade. Você preferiria que o mundo fosse todo amor, paz e rosas?”

“Nem sequer considerei a hipótese de intervir”, disse o terceiro polícia. “Provavelmente tê-lo-ia feito se não tivesse tanta experiência da vida como um todo, pois a violação e o assassínio da Sr.ª K. parecem bastante horríveis quando considerados isoladamente. Mas quando você os coloca no contexto com o resto da vida, de fato acrescentam algo à beleza geral da imagem maior. Os gritos da Sr.ª K. eram como as notas discordantes que tornam uma excelente peça musical ainda melhor do que se todas as suas notas fossem perfeitas. De fato, quase não consegui evitar acenar com as minhas mãos à volta, imaginando que eu próprio estava a dirigir as deliciosas nuances da orquestra”.

“Quando cheguei ao local, de fato saquei o revólver e apontei-o mesmo à cabeça do violador”, confessou o quarto polícia, com um olhar muito culpado na face. “Estou profundamente envergonhado de ter feito isso. Sabes quão perto cheguei de destruir todo o bem do mundo? Quero dizer, todos sabemos que não pode haver qualquer bem sem mal. Felizmente, lembrei-me disso mesmo a tempo, e invadiu-me uma onda de náusea tão forte quando me apercebi do que quase tinha feito, que fiquei prostrado no chão. Safa, foi por pouco”.

“Olha, é realmente inútil tentar explicar-te os detalhes”, disse o quinto polícia, a quem tínhamos posto a alcunha ‘Crânio’ porque tinha um conhecimento enciclopédico de literalmente tudo e um QI que rebentava com a escala. “Há uma excelente razão pela qual não intervim, mas é demasiado complicada para tu perceberes, por isso nem sequer me vou dar ao trabalho de tentar explicar. No entanto, para que não haja qualquer mal-entendido, deixa-me sublinhar que ninguém podia ter se preocupado com a Sr.ª K. mais que eu, e que sou, de fato, muito boa pessoa. Isto resolve o assunto”.

“Teria defendido a Sr.ª K.”, disse o sexto polícia, “mas isso simplesmente não era exequível. Você está a ver, quero que toda gente acredite livremente que sou boa pessoa. Mas se interviesse constantemente quando ocorrem violações e assassínios, isso forneceria a todos a evidência de que precisam sobre a minha bondade, e desse modo forçá-los-ia a acreditar que sou bom. Consegue imaginar uma violação do livre-arbítrio mais diabólica que essa? Obviamente, foi melhor afastar-me e deixar a Sr.ª K. ser violada e assassinada. Agora todas as pessoas podem escolher livremente acreditar na minha bondade”.

“Vou contar-lhe um segredo”, disse o sétimo polícia. “Momentos depois de a Sr.ª K. ter falecido, fiz com que ela ressuscitasse e fosse transportada para uma ilha tropical onde está agora gozando bênçãos extraordinárias, e o sofrimento dela não passa de uma memória distante. Estou certo que você concordará que isso é uma compensação mais do que adequada para o sofrimento dela, portanto o fato de ter simplesmente ficado ali a olhar em vez de intervir não tem nada que ver com a minha bondade”.

O oitavo polícia surpreendeu-nos todos quando revelou um segredo surpreendente sobre a Sr.ª K. “Criei-a através de engenharia genética a partir do nada. Eu a fiz, portanto é minha propriedade, e posso fazer o que quiser com ela. Eu próprio podia violá-la e assassiná-la se estivesse inclinado a fazê-lo, e isso não teria sido pior do que você rasgar uma folha de papel que lhe pertence. Portanto, não se põe a questão de eu ser uma má pessoa por não ajudá-la”.

E, por fim, falou o nono polícia. “Contratei o oitavo polícia para criar a Sr.ª K. para mim, pois queria alguém que me amasse e adorasse. Mas quando abordei a Sr.ª K. sobre o assunto, ela afastou-se de mim, como se conseguisse encontrar significado e felicidade com outra pessoa qualquer! Por isso decidi que a coisa amorosa a se fazer seria vergar o espírito dela fazendo com que fosse violada e assassinada por um criminoso comum, para que ela, no seu extraordinário sofrimento, se virasse para mim, cumprindo assim o propósito para o qual ela tinha sido criada. Bem, estou feliz por dizer: missão cumprida! Alguns segundos antes de morrer, ela estava tão enlouquecida com o terror, a dor e o desespero que, de fato, convenceu-se de que me amava, pois sabia que só isso poderia pôr fim ao sofrimento. Nunca esquecerei o amor nos seus olhos quando me olhou uma última vez, suplicando por misericórdia, mesmo antes de o criminoso se inclinar e lhe cortar a garganta. Foi tão belo que ainda me traz lágrimas aos olhos. Agora só tenho de ir àquela ilha para que ela possa reclamar o prêmio por me ter servido”.

Nesta altura, tinha ficado claro para mim que qualquer dificuldade que pudesse ter tido em reconciliar a suposta bondade dos polícias com o seu comportamento naquele dia era infundada, e que qualquer pessoa que tomasse posição contra eles, só o podia fazer por gostar da vitória do mal sobre o bem. Afinal, qualquer pessoa que tenha experimentado a amizade deles do mesmo modo que experimentei sabe que são bons. A bondade deles até é manifestada na minha vida — eu estava num estado de confusão mental antes de os conhecer, mas agora todas as pessoas reparam na pessoa mudada que sou, muito mais bondoso e feliz, visivelmente possuído de uma calma interior. E encontrei tantas pessoas que se sentem exatamente da mesma maneira sobre os polícias — tantas pessoas que, como eu, conhecem em seus corações a verdade que outros tentam racionalizar com seu frio raciocínio e sua lógica estéril. Estou envergonhado de alguma vez ter duvidado que os nove polícias merecem a minha lealdade e amor.

Quando me preparava para ir embora, o primeiro polícia falou outra vez. “A propósito, também acho que deves saber que quando ficamos ali a ver a Sr.ª K. sendo violada e apunhalada vez após vez, nós estávamos a sofrer juntamente com ela, e sentimos exatamente a mesma dor que ela, ou talvez até mais”. E todos que estavam ali, incluindo eu, acenaram a cabeça concordando.

Pós-escrito

Líderes religiosos, não fiquem ofendidos. Fiz esta parábola de forma tão descarada quanto pude, mas o meu objetivo não é insultar ou blasfemar. Reparei que crentes religiosos são muitas vezes condicionados a aceitar soluções simplistas para o problema do sofrimento, e que é impossível abalar esse condicionamento através de uma análise fria. A tentação de oferecer a uma entidade um cheque em branco simplesmente porque alguém lhe colou o rótulo de “Deus” é esmagadora na nossa cultura teísta. Daí esta tentativa de enfatizar a questão através de um meio tão afastado da análise fria quanto possível. Mas, repito, é para enfatizar esta questão, não é para ferir ninguém. Não escrevi nada que não desejasse que me fosse dirigido quando eu próprio era um crente religioso.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Michael S. Valle e Jeffery Jay Lowder por reverem versões anteriores deste artigo.