Gênese da Vida

Jorge Araújo

Sumário

1.1. — Origem da vida
1.1.1. — O que é a vida?
1.1.2. — Geração espontânea
1.1.3. — Panspermia
1.1.4. — Perspectivas atuais: teoria evolucionista ou da geração espontânea gradual
1.1.4.1. — O ambiente primitivo
1.1.4.2. — As cinco etapas da biogênese
1.2. — Primeiras etapas da evolução biológica
1.3. — Cronologia das etapas da evolução

1.1 — Gênese da Vida

Resumo

Desde há muito, o homem tenta explicar a origem da vida. A teoria da geração espontânea formulada por Aristóteles, só no século XIX foi refutada. A panspermia, defendendo que a Terra teria sido colonizada por seres extraterrestres, não dá resposta à questão essencial. A partir da reconstituição do cenário ambiental que terá existido há 4 bilhões de anos, foi possível conceber um modelo evolucionista, tendo como etapa de partida a geração espontânea de moléculas orgânicas. Etapas seguintes teriam sido a polimerização das moléculas simples, a condensação espontânea dessas novas entidades químicas em microgotas individualizadas e detentoras de faculdades metabólicas (protobiontes) e, finalmente, a aquisição, por parte destes, da capacidade de reprodução.

Os primeiros seres vivos assemelhar-se-iam a bactérias: eram procariontes. Inicialmente eram exclusivamente heterotróficos e anaeróbios. Depois, surgiu a capacidade de utilização da energia solar para fotossintetizar moléculas orgânicas: a autotrofia. Com a fotossíntese, o teor de oxigênio livre subiu drasticamente, passando a atmosfera de redutora a oxidante.

Com o oxigênio livre, muitas espécies foram eliminadas, mas apareceu um novo catabolismo energético de rendimento mais elevado: a respiração e também se formou o escudo de ozônio, que protege a Terra dos UV de maior energia.

1.1. — Origem da vida

A compreensão da vida, na sua essência, evolução ou diversidade, implica que analisemos com algum cuidado o problema da sua origem.

A preocupação que nos assiste não é nem original, nem recente. Tem sido objeto de indagações incessantes, mobilizando o pensamento dos homens mais sábios de todas as civilizações e dando lugar a discursos de tipo mítico, com importantes reflexos nos planos sócio-cultural e religioso.

1.1.1. — O que é a vida?

Esta questão foi, é e continuará a ser objeto de reflexão, sem que alguém tenha sido capaz de enunciar uma definição incontroversa. A forma de tornear esta questão é procurar identificar as propriedades dos seres vivos. É-nos acessível, ao olharmos para nós ou para um campo de brócolis, encontrar algumas características que podemos considerar denominadores comuns: ambos, nós e os brócolis, possuímos a faculdade de nos reproduzirmos (criarmos réplicas); ambos, para sobrevivermos, desde o momento em que fomos gerados, necessitamos de captar do meio ambiente matéria e energia (que me seja perdoada a imprecisão de referir com termos diferentes a mesma realidade!) com vista à construção de edifícios moleculares altamente ordenados (proteínas, celulose, ácidos nucleicos, etc.); ambos, ao incorporarmos mais e mais desses edifícios moleculares, vamos crescendo; e durante todo este processo vamos rejeitando para o meio uma série de moléculas de que não necessitávamos, bem como alguma energia; sobre o fim da estória, não tenhamos dúvidas, tanto os brócolis como nós entraremos numa fase de senescência e não sobreviveremos para além de um certo limite temporal, isto é, morreremos.

Será que nos é lícito generalizar estas simples constatações a todos os seres vivos? O bom senso obriga-nos a ter algum cuidado. E um simples olhar para criaturas mais pequenas, para uma paramécia, por exemplo, confirma a pertinência das nossas cautelas: é que, a não ser que lhes suceda algum “contratempo”, as paramécias não morrem! Uma paramécia divide-se em duas e cada uma destas, por sua vez, em duas, e assim de seguida. Quem diz uma paramécia, diz uma bactéria, ou uma levedura, dessas que nos fazem levedar a massa do pão ou fermentar o sumo da uva. Consequentemente, deveremos ser levados a retirar a morte, como fenômeno biológico programado, da lista das características comuns a todos os seres vivos.

Mas ao pensarmos em nós, nos brócolis e na paramécia, há um atributo dos seres vivos que nos escapa à primeira vista: é o de que nem sempre foram iguais ao que hoje são. Há alguns milhares de anos, não muitos, aliás, nem os homens, nem os brócolis, eram como hoje os conhecemos. De então para cá, evoluíram: os Homo eram mais pequenos, tinham um volume craniano inferior, etc., e sabemos que derivam de populações de primatas com outras características (sofreram uma evolução, baseada na seleção natural). Os brócolis [Brassicae oleracea] sofreram igualmente uma evolução, mas aqueles que nós hoje cultivamos são o produto de uma seleção artificial, orientada pelo homem para valorizar os caules e as flores (melhoramento vegetal).

Então, poderemos afirmar, sem correr grandes riscos, que a vida é a propriedade dos seres vivos, e que estes apresentam determinadas características comuns:

  1. São sistemas (termodinamicamente) abertos, pois recebem do exterior matéria e energia (sob diversas formas) e rejeitam matéria e a energia (sob outras formas) para o meio exterior;
  2. São sistemas dotados da capacidade de transformação das moléculas captadas no exterior, noutras que lhes são próprias;
  3. São sistemas moleculares complexos e tendencialmente ordenados (que contrariam localmente a 2.ª lei da termodinâmica);
  4. Reproduzem-se, dando origem a réplicas semelhantes (não necessariamente iguais), dotadas de idênticas capacidades;
  5. São sistemas que, em termos populacionais e não individuais, evoluem, isto é, mudam gradualmente de estrutura, adquirindo eventualmente novas funções.

1.1.2. — Geração espontânea

Aristóteles (381-322 a.C.) foi um dos filósofos da Antiguidade que mais se preocupou com a questão da natureza da vida e da sua origem. Coligiu informação oriunda dos mais importantes centros civilizacionais, da China, da Babilônia, da Índia, do Egito. Verificou-a com o seu próprio método e publicou uma vasta síntese do conhecimento da época. Aí foi formulada a primeira teoria científica da origem da vida, a teoria da geração espontânea. De acordo com esta teoria, existiriam dois princípios, um passivo, que é a matéria, e outro, ativo, que é a forma. Quando as condições são favoráveis, conjugar-se-iam, dando origem à vida. Assim se explicava como trapos sujos geravam ratos ou a carne putrefata, moscas. Esta teoria, longe de ser risível, assentava na observação atenta, com os meios e os saberes então disponíveis. Quem a poderia refutar se, ao fazer a experiência de expor carne limpa ao ar, visse, ao fim de um certo tempo, saírem vermes brancos da massa muscular (larvas de mosca)?

A teoria da geração espontânea foi retomada por doutores da Igreja, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, bem como por muitos outros ilustres pensadores, durante toda a Idade Média. Aceitaram-na homens como o filósofo René Descartes, o físico Isaac Newton e o naturalista William Harvey.

Entre os primeiros contestatários da “teoria oficial” merece referência o médico e naturalista florentino Francesco Redi (1626-1698). Redi demonstrou experimentalmente que as larvas só apareciam quando se deixava que as moscas pousassem na carne. Se tal fosse impedido, por interposição de uma gaze, as larvas não apareceriam.

Pela mesma época, o holandês Antoine van Leeuwenhoek (1632-1723) inventou o microscópio. Apesar de rudimentar, este aparelho permitiu ao seu inventor aceder à observação do “infinitamente pequeno” e pela primeira vez são descritos organismos inacessíveis à vista humana.

O aparecimento de microrganismos em meios nutritivos onde antes não estavam presentes foi interpretado pelos pensadores da época como mais uma prova da “geração espontânea”. Leeuwenhoek não partilhava estas ideias; apoiando-se em observações experimentais, procurou convencer, em vão, os espíritos da época de que os micróbios provinham de “sementes” presentes no ar ambiente.

A teoria da geração espontânea, na sua versão inicial, só foi refutada definitivamente no século XIX graças aos trabalhos de Louis Pasteur. Este médico francês, debruçando-se sobre uma doença que dizimava a criação do bicho-da-seda, demonstrou, experimentalmente e de forma irrefutável, que germes microscópicos pululam em toda a parte e que as “gerações espontâneas” de microrganismos resultavam, na realidade, da contaminação dos meios de cultura por germes vindos do exterior, isto é, que a vida não surge espontaneamente, mas tem origem em outras formas de vida preexistentes.

1.1.3. — Panspermia

Refutada a teoria da “geração espontânea”, recolocava-se de novo a questão fundamental, de saber qual a origem da primeira forma de vida.

Demonstrando-se que a vida provém sempre de outras formas de vida, o pensamento lógico levou à formulação de uma nova teoria, segundo a qual a Terra teria sido inseminada por organismos vindos de fora, de outros planetas, ou mesmo de outros sistemas solares, propagados por esporos e veiculados até a Terra por meteoritos ou por poeiras cósmicas. Conhecida por teoria da panspermia, foi proposta, nos finais do século XIX, por Kelvin e retomada, já no século XX, pelo químico sueco Svante Arrhénius.

A teoria da panspermia foi refutada com base na impossibilidade de sobrevivência dos microrganismos às condições de temperatura existentes no dealbar da história do Universo. Todavia, a teoria da panspermia tem vindo a ser reformulada e a receber novos apoios. Segundo Hoyle e Wickramasinghe, a vida teria surgido noutro local, nomeadamente nos núcleos dos cometas. A Terra teria sido inoculada de seguida, por ocasião dos choques ocorridos com diversos objetos celestes. Francas Circo e Lesei Orle vão mais longe e defendem que a Terra e provavelmente outros planetas possam ter sido colonizados por seres inteligentes, pertencentes a outros sistemas solares. Esta versão contemporânea é conhecida por panspermia dirigida e explicaria o fato de o molibdênio, elemento raro sobre o nosso planeta, ser essencial para o funcionamento de muitos enzimas chave do metabolismo dos seres vivos.

A teoria da panspermia tem, para os seus defensores, a vantagem de não ser refutável e alimentar a especulação intelectual e a ficção científica. Todavia, em relação à questão inicial, de saber concretamente como se gerou a vida, a teoria da panspermia apenas a “resolve” na Terra, deslocando a incógnita para algures no Universo. O problema inicial permanece intacto: como é que a vida apareceu na Terra, ou num qualquer outro planeta?

1.1.4. — Perspectivas atuais: teoria evolucionista ou da geração espontânea gradual

Não sendo possível conceber qualquer modelo teórico para a origem da vida fora da realidade que conhecemos, que é a da Terra, é neste contexto que a maioria dos cientistas procurou encontrar a resposta à questão.

A abordagem do problema não pode, por outro lado, ser desinserida da perspectiva evolucionista que Charles Darwin (1809-1882) nos legou. Sabendo que as espécies se formaram por evolução a partir de outras, eventualmente menos complexas, a lógica conduz-nos a focalizar a nossa atenção nas formas de vida mais simples e a colocar a questão fundamental a esse nível: como se formaram os microrganismos procariontes? Thomas Huxley terá sido um dos primeiros a esboçar a ideia ousada que consistia em ligar de forma contínua o não vivo ao vivo. Faltavam-lhe, todavia, elementos para prosseguir. Estas ideias foram retomadas, já em pleno século XX, por J. B. S. Haldane (1892-1964) e A. I. Oparin.

Estes dois cientistas, sem se comunicarem, formularam a hipótese de que a atmosfera primitiva era não só diferente, pela sua composição, da atual, mas, sobretudo, que não seria oxidante; o oxigênio, a existir, teria destruído qualquer formação pré-biótica. Nesta hipótese base, assenta a teoria evolucionista da origem da vida ou da geração espontânea gradual. Consiste, basicamente, em admitir que, de forma espontânea e gradual, em condições ambientais diferentes das que atualmente existem, entidades moleculares se terão combinado, dando primeiro origem a novas moléculas, que nós classificamos de orgânicas (porque intervêm na constituição dos organismos e só por eles são hoje sintetizadas, na natureza), e depois a moléculas mais complexas por justaposição das primeiras (os polímeros). Finalmente, estruturas moleculares complexas e constituindo entidades isoladas do meio, com capacidades metabólicas e de reprodução, sujeitas às leis da evolução (diversidade-seleção-evolução), terão estado na origem das primeiras células vivas.

1.1.4.1. — O ambiente primitivo

Sabe-se que a atmosfera da Terra e as condições ambientais que nela reinam hoje são completamente distintas daquelas que imperavam há cerca de 4,6 bilhões de anos, quando ocorreu a condensação do sistema solar a partir de uma nuvem de gases e poeiras.

As condições então reinantes, ainda que muito diferentes das atuais, satisfaziam, em princípio, os requisitos para o desenvolvimento de formas vivas. Em primeiro lugar, a Terra localizava-se próximo de uma fonte de energia, o Sol. Em segundo lugar, dos nove principais planetas em órbita solar, era a massa terrestre a que se não encontrava tão perto dele que os seus elementos constituintes lhe fossem arrebatados sob a forma de gases, ou liquefeitos em rocha fundida. Também não era tão grande a distância, que os seus gases congelassem, tal como atualmente sucede em Titã, a maior lua de Saturno. A água é líquida na Terra, mas não em Mercúrio, onde foi toda evaporada para o espaço, ou em Júpiter, onde ocorre sob a forma de gelo. Por fim, a Terra era um corpo suficientemente grande para conservar a atmosfera, possibilitando o ciclo fluido dos elementos, mas não tanto que a sua gravidade mantivesse uma atmosfera demasiado densa, impeditiva da passagem dos raios solares.

A origem da vida na Terra ou a sua inoculação por seres extraterrestres terá ocorrido no período entre 3,9 e 2,5 bilhões de anos, conhecido por período Arqueano. Com efeito, os registros fósseis mais recuados que se conhecem datam de há 3,5 bilhões de anos.

Qual seria a conformação da Terra e a composição da sua atmosfera, nesse período? Eis a primeira questão à qual importa responder, para se conhecer o cenário em que se terão desenrolado os fenômenos subjacentes ao aparecimento da vida.

A Terra estava ainda em fase de arrefecimento. A crosta terrestre era necessariamente frágil e os fenômenos de vulcanismo, frequentes. Frequente era também o bombardeamento por diversos corpos celestes, cometas e meteoritos. Com o arrefecimento da Terra, parte da água trazida à superfície pelas erupções vulcânicas e pela desgaseificação de minerais condensou-se e formou os mares primitivos (a hidrosfera). Outra parte, conjuntamente com os gases, foi conferindo à atmosfera uma composição diferente. A par do azoto (N3) e do vapor de água (H2O), o metano (CH4) e o dióxido de carbono (CO2) eram abundantes. Menos abundantes seriam o monóxido de carbono (CO), o amoníaco (NH3) e o sulfureto de hidrogênio (H2S). O oxigênio, tão importante na atmosfera atual, estava quase completamente ausente.

1.1.4.2. — As cinco etapas da biogênese

Foi neste contexto que se terá processado a biogênese, ou a formação da vida na Terra. É habitual considerar, neste processo, cinco etapas:

  1. A formação de uma atmosfera gasosa contendo as substâncias elementares para a formação da matéria orgânica (já referida);
  2. a síntese dos monômeros biológicos, como os aminoácidos, os açúcares ou as bases azotadas;
  3. a polimerização destes monômeros e a formação das proteínas primitivas e das cadeias de ácidos nucleicos;
  4. a individualização de microgotas com uma identidade física e rudimentares faculdades metabólicas;
  5. o desenvolvimento de um mecanismo de reprodução que garantisse a transmissão aos descendentes das capacidades químicas e metabólicas das entidades parentais.

a) Síntese de monômeros

A formação de aminoácidos e nucleotídeos a partir de uma mistura de gases, redutora, com composição semelhante à da atmosfera primitiva, foi realizada experimentalmente, em 1952, por Harold Urey e Stanley Miller, recorrendo a descargas elétricas como fonte de energia. Com esta espetacular experiência, Urey e Miller demonstraram ser possível a síntese de moléculas orgânicas por via não biótica e consolidaram a hipótese chave de Oparin e Haldane.

Experimento de Miller
Experimento de Miller

Desde logo, transpondo para as condições primitivas da Terra, passou a ser verossímil o cenário da síntese abiótica de pequenas moléculas orgânicas na atmosfera, sob a ação das fontes de energia disponíveis, nomeadamente as descargas elétricas e as radiações ultravioletas mais energéticas que, devido à ausência total de camada de ozônio, atingiam a superfície terrestre. Essas moléculas ter-se-iam acumulado em águas marinhas ou lacustres, ficando protegidas de reações fotoquímicas posteriores e constituindo o caldo primordial, no entender de Haldane.

Sabe-se hoje que não terá sido essa a única fonte de moléculas orgânicas acumuladas. Também os cometas e os meteoritos que se esmagavam sobre a Terra transportavam consigo diversas moléculas orgânicas. Certos meteoritos, designados por condritos carbonados, contêm cerca de 3% do seu peso em carbono. Esse carbono encontra-se sob diversas formas, nomeadamente de aminoácidos, bases púricas e pirimídicas, e ácidos carboxílicos, o que prova que também fora da Terra são possíveis as sínteses de moléculas orgânicas.

Síntese de monômeros
Síntese de monômeros

b) Síntese de polímeros

A segunda etapa da biogênese é a síntese dos polímeros que intervêm na organização da vida, por justaposição de monômeros sintetizados anteriormente. Grosso modo, podemos distinguir três tipos de polímeros:

— Uns, formam-se por ligação topo a topo, de uma série de aminoácidos; são as proteínas, que intervêm quer na estrutura dos organismos, quer no seu metabolismo como catalisadores.

— Outros, resultam da justaposição alternada de fosfatos e açúcares, aos quais se adicionam bases azotadas; são os ácidos nucleicos. Possuem faculdades catalíticas e são susceptíveis de autoduplicação.

— Outros ainda, formam estruturas ramificadas por associação de pequenos açúcares (monossacarídeos ou oligossacarídeos); são os polissacarídeos.

AAA + A resulta AAAA + H2O – Δ E

Síntese de polímeros

À luz da hipótese de Haldade, as reações de polimerização ocorreriam, no “caldo primordial”, em consequência de uma grande acumulação de monômeros. Esta hipótese está hoje afastada, pelo motivo de que não se poderia explicar como é que uma reação que liberta água (a polimerização) poderia ocorrer num ambiente com excesso de água. Sendo estas reações reversíveis, um excesso de água deslocaria o equilíbrio no sentido da hidrólise, em lugar da polimerização. Para mais, as reações de polimerização para se efetuarem necessitam de energia, o que não acontece com a hidrólise.

Existem duas maneiras de deslocar a reação para a direita: (i) concentrar os reagentes, retirando a água produto da reação; ou (ii) acoplando-a a outra reação, “doadora” de energia.

Há boas razões para supor que alguns minerais tenham desempenhado um papel decisivo na “deslocação para a direita” destas reações. Entre estes, merecem destaque os silicatos (argilas, micas, etc.), que são minerais com uma estrutura folheada e um elevado poder de adsorsão de moléculas. As argilas são referidas como “esponjas de moléculas”. No caulino, por exemplo, as camadas de silicatos distam entre si 0,71 nm, o que significa que um cubo de um centímetro de lado oferece uma superfície total de adsorsão de 2.800 m2. Estes minerais são conhecidos por apresentarem propriedades catalíticas e, como tal, são largamente empregues na indústria de síntese de compostos orgânicos.

Experimentalmente, Aharon Katchalsky demonstrou que um certo tipo de argilas promove a polimerização de cadeias polipeptídicas (análogas das proteínas) a partir de ésteres formados de aminoácidos e de adenosina monofosfato (adenilatos de aminoácidos) adsorvidos nas suas superfícies. Os adenilatos de aminoácidos são os precursores da síntese proteica em todos os organismos, pelo que é verossímil que mecanismos semelhantes tenham presidido a polimerização dos aminoácidos no período pré-biótico.

Poderá não ser, contudo, a única via possível para a síntese abiótica das proteínas. Sidney Fox mostrou que misturas secas de aminoácidos se polimerizam espontaneamente quando deixadas algumas horas a temperaturas da ordem de 130ºC. Chamou-lhes termoproteinoides. Em presença de polifosfatos e a temperaturas mais baixas, obtêm-se resultados comparáveis. Com base nos seus resultados experimentais, Fox formulou a hipótese de que os aminoácidos acumulados nos oceanos primitivos, porventura rejeitados sobre escórias vulcânicas, tenham sido polimerizados pelo calor. Retomadas posteriormente pelas águas, essas cadeias polipeptídicas poderão ter participado na organização dos primeiros protobiontes. É importante chamar a atenção para o fato de que, qualquer que seja o processo abiótico de polimerização, ele conduz necessariamente a uma ordenação aleatória de aminoácidos, contrariamente ao que se verifica nos seres vivos.

Quanto aos ácidos nucleicos, a sua síntese abiótica, laboratorial, é tecnicamente acessível, em condições térmicas moderadas (55ºC), sendo possível conceber, para eles, um cenário semelhante ao da polimerização dos aminoácidos sobre superfícies de minerais adsorventes. Mas a ordenação dos nucleotídeos será também aleatória.

c) A individualização de microgotas

Todos os organismos vivos são separados do meio em que vivem por uma barreira, que lhes confere a sua individualidade.

A formação de uma barreira individualizante terá sido obrigatoriamente um dos passos evolutivos em direção às primeiras formas de vida. É verossímil que essas entidades primitivas tenham tido o aspecto de microgotas.

Entidades semelhantes foram criadas em laboratório por Oparin e por Fox. Utilizando polímeros biológicos, proteinase e polissacarídeos, como a albumina e a goma arábica, Oparin mostrou que, espontaneamente, os polímeros em solução aquosa podem isolar-se do meio e formar coacervados, isto é, microgotas ricas em polímeros, que ficam em suspensão na água. Por seu turno, Fox provocou a formação de um grande número de pequenas microesferas, dissolvendo na água proteinoides de origem abiótica. Nem os coacervados de Oparin, nem as microesferas de Fox podem ser considerados como antepassados das células vivas. Os coacervados e as microesferas constituem contudo um excelente material experimental, que Oparin e Fox exploraram para simulação de reações metabólicas.

Uma das primeiras constatações de Oparin foi a de que os coacervados eram entidades instáveis e de que a forma de evitar a sua perda era a de lhes proporcionar uma espécie de metabolismo primitivo.

Nas suas experiências, Oparin tirou partido do fato de que, num sistema com duas fases, as substâncias cuja solubilidade é diferente, consoante a fase, se concentram preferencialmente numa ou noutra. Juntando uma fosforilase (enzima da polimerização da glicose) a uma solução de histona (proteína) e goma arábica (polissacarídeo), Oparin não só deu lugar a que se formassem coacervados, mas verificou ainda que a enzima se concentrou nestes últimos. Adicionando glicose-1-fosfato ao meio, constata-se que esta passa para o interior dos coacervados e é polimerizada de seguida, pela fosforilase, em amido. A energia necessária à reação provém da ligação fosfato da glicose-1-fosfato. O fosfato inorgânico libertado difunde para o exterior, como um dejeto.

Quando os coacervados se tornam grandes demais, espontaneamente dividem-se em coacervados filhos. Entre estes, aqueles que tiverem ficado com moléculas de fosforilase continuarão a poder polimerizar a glicose, a crescer e a dividir-se. Os outros não terão possibilidade de subsistir. Para que o fenômeno se perpetuasse como numa célula, só faltaria um sistema que sintetizasse a fosforilase, com aquela composição exata e nas quantidades necessárias!

Nos coacervados de Oparin, são os polissacarídeos que formam a barreira limitante e os agentes catalisadores são incorporados a posteriori. Nas microesferas de Fox, são os próprios proteinoides que asseguram a constituição da “membrana” e atuam como enzimas das reações, podendo catalisar diversas reações, nomeadamente a decomposição da glicose.

As experiências de Oparin e de Fox mostraram que:

  1. a formação de emulsões de microgotas (coacervados ou microesferas) corresponde a uma tendência natural dos polímeros em solução;
  2. os eventos que neles decorrem fundamentam-se nas leis da química física; e
  3. a evolução de entidades tão simples, mas com características novas, como os protobiontes, pode ter-se baseado unicamente nas suas características físico-químicas, selecionadas exclusivamente em função da sua capacidade de sobrevivência.

d) Um mecanismo de replicação

Os protobiontes atrás referidos estão ainda muito longe dos seres vivos mais simples. Falta-lhes a capacidade de reprodução, isto é, o “plano de construção” que possa ser copiado e utilizado para fabricar outro microssistema idêntico ao primeiro. Este é na realidade o fosso que separa o protobionte, capaz de alguns atos metabólicos, de crescer e de se dividir, do eubionte, verdadeiro ser vivo, capaz de se reproduzir, gerando seres idênticos a si próprio, com as mesmas faculdades bioquímicas.

A grande dificuldade reside em compreender como se estabeleceu a correspondência proteína/ácido nucleico. Sabemos que em todos os organismos vivos atuais a sequência de nucleotídeos de alguns ácidos nucleicos determina a sequência dos aminoácidos na proteína, isto é, a sua estrutura primária. Mas também são proteínas (com uma estrutura primária definida) que são responsáveis pela catálise da síntese dos ácidos nucleicos, como ainda do estabelecimento das ligações peptídicas entre os diferentes aminoácidos.

Existem bons argumentos que sustentam a proposta de Gilberto, segundo a qual o RNA teria podido desempenhar a dupla função, de codificar a síntese de proteínas e de atuar cataliticamente ao nível da sua própria síntese. Dito de outra forma, a vida primitiva ter-se-ia baseado exclusivamente no RNA, sem o DNA nem enzimas interventoras na replicação dos ácidos nucleicos e na síntese proteica. O sistema que conhecemos atualmente, baseado no DNA e em enzimas proteicas, e que é comum a todos os seres vivos, teria surgido posteriormente, selecionado pelas vantagens que oferece para a propagação da vida.

1.2. — Primeiras etapas da evolução biológica

Em cerca de 1000 milhões de anos, ocorreu a evolução dos protobiontes até às formas mais simples de células, de tipo bacteriano. Este processo evolutivo esteve, naturalmente, sujeito às contingências físicas e químicas impostas pelo meio, mas com uma circunstância nova, que consiste no fato de o objeto da evolução, os seres vivos, serem eles próprios agentes de transformação do meio. Podemos distinguir, nos primórdios da evolução biológica, cinco etapas.

a) 1.ª etapa: Consumo direto de ATP

Sabemos que no mundo atual, somente os seres autotróficos são capazes de sintetizar de novo matéria orgânica. Todos os outros, os heterotróficos, exploram a matéria orgânica preexistente.

Não sendo autotróficos, os primeiros seres vivos exploraram diretamente o manancial de moléculas orgânicas formadas espontaneamente e acumuladas no “caldo primordial”, a fim de extraírem os materiais e a energia necessários para o seu metabolismo. O material energético terá sido essencialmente a adenosina trifosfato ou ATP. Trata-se de um nucleotídeo como muitos outros, com a propriedade, que lhe não é exclusiva, de libertar uma grande quantidade de energia quando se rompe uma ligação fosfato, transformando-se então em adenosina difosfato ou ADP.

ATP resulta ADP + Pi + Δ E

Estrutura molecular e reação de fosforilação

Não há aparentemente uma boa razão que justifique ter sido a adenina, e não a guanina ou outra das bases azotadas, aquela cujo nucleotídeo trifosfatado passou a desempenhar o papel chave como molécula energética. Poderá encontrar-se uma explicação no fato de a adenina ser facilmente sintetizável a partir de cinco moléculas de ácido cianídrico, substância sem dúvida abundante. O fato é que a sua intervenção no metabolismo dos seres vivos é universal.

Os primeiros seres vivos ter-se-ão servido do ATP presente no meio e, uma vez extraída a energia da ligação fosfato, terão excretado o ADP.

O sucesso dos mecanismos de reprodução e o progressivo aperfeiçoamento terão conduzido a um aumento das populações melhor dotadas e, consequentemente, a maiores necessidades energéticas. O ATP abiótico presente no meio deixou de ser suficiente para satisfazer as necessidades. Os seres vivos ter-se-ão confrontado então com a primeira crise energética.

b) 2.ª etapa: Glicólise

A adaptação às novas condições de penúria de ATP abiótico consistiu na aquisição da capacidade de sintetizar ATP a partir de ADP e de outra fonte externa de energia. É possível que vários sistemas tenham sido testados, mas aquele que perdurou e é universal, recorre à glicose, um açúcar certamente muito abundante no “caldo primordial”. A glicose (uma hexose) é absorvida pela célula e oxidada em presença de moléculas aceitadoras de elétrons. Em consequência, é cindida em duas moléculas de ácido pirúvico (triose). A energia libertada, cerca de 33 calorias, é parcialmente recuperada e empregue na síntese de duas moléculas de ATP. É o processo catabólico anaeróbio da glicose, denominado glicólise, e que está na base das fermentações praticadas por muitos organismos inferiores (bactérias e leveduras).

C6H12O6 + 2ADP + Pi resulta 2 C3H4O3 + 4H+ + 2ATP

Glicólise

Tal como sucedera antes, também o açúcar se deve ter esgotado, perante o sucesso do novo sistema metabólico e a multiplicação dos organismos. Os seres vivos ter-se-ão confrontado então com a segunda crise energética. A carência de açúcar constituiu assim um poderoso fator de pressão seletiva.

c) 3.ª etapa: Fotossíntese e autotrofia

Na impossibilidade de encontrar glicose no ambiente, sobreviveram os seres vivos que manifestavam a capacidade de síntese do açúcar (autotróficos), para, em seguida, o utilizarem na regeneração do ATP.

A síntese da glicose é um processo que implica não só fontes de carbono e de hidrogênio, como ainda energia. A solução foi encontrada pelos organismos que desenvolveram a capacidade de aproveitar a energia solar (fotossíntese). Dispunham para tal fim de pigmentos captadores de energia luminosa e utilizavam o dióxido de carbono como fonte de carbono e o sulfureto de hidrogênio (H2S), como fonte de hidrogênio.

6CO2 + 6H2S resulta C6H12O6 + 6S2

Fotossíntese anaeróbia

A rejeição do enxofre (S2) na natureza, sendo sólido nas condições habituais, não causava qualquer perturbação para o ambiente. Estima-se que a fotossíntese consumidora de sulfureto de hidrogênio terá perdurado durante várias centenas de milhões de anos (de -3 bilhões a -2,7 bilhões de anos).

Existem hoje muitas bactérias fotossintetizantes anoxigênicas (que não podem viver em presença de oxigênio), como as bactérias verdes e as bactérias púrpura (ou roxas). Tanto num como no outro grupo, subsistem espécies sulfurosas.

Posteriormente surgiu uma outra modalidade de fotossíntese, consumidora não de sulfureto de hidrogênio, mas de água, molécula muito mais abundante na natureza. Como subproduto, os organismos passaram a libertar oxigênio na atmosfera. As cianobactérias atuais pertencem a este grupo.

6CO2 + 6H2O resulta C6H12O6 + 6O2

Fotossíntese geradora de oxigênio

O oxigênio é, para os organismos anaeróbios, um tóxico poderoso, um gás corrosivo. Capta elétrons e dá origem aos chamados radicais livres, isto é, substâncias altamente reativas e de vida breve que causam danos aos compostos de carbono, de hidrogênio, de enxofre e de azoto, que estão na base da vida. A sua progressiva libertação na atmosfera provocou alterações brutais nas condições de vida. É provável que o seu efeito se não tenha feito sentir de imediato, pois o meio, sendo redutor, continha diversos elementos capazes de fixar o oxigênio, nomeadamente os sais de ferro, que se encontravam em estado ferroso (Fe++) nos mares primitivos. Quando se esgotou a capacidade de fixação do oxigênio, este pôde acumular-se na atmosfera, subindo o seu teor de 0,001% para cerca de 21%! A atmosfera transformou-se, assim, de redutora em oxidante (há cerca de 1,8 bilhões de anos).

d) 4.ª etapa: A respiração aeróbica

Todas as etapas de evolução metabólica até agora referidas aconteceram em seres que viviam dentro de água ou ao abrigo das radiações solares diretas, pois os raios ultravioletas de comprimento de onda curto são fortemente energéticos e poderosamente destrutivos para as formas de vida.

A existência de oxigênio livre na atmosfera e sobretudo dissolvido na água dos mares e oceanos veio, por sua vez, tornar inóspitos para muitos seres vivos, necessariamente anaeróbios, os ambientes marinhos até então colonizados. Algumas formas puderam sobreviver, mas apenas nos meios onde o oxigênio não penetrava.

Um outro tipo de metabolismo foi, entretanto, selecionado pela evolução, face às novas condições ambientais. Trata-se na realidade de uma extensão da glicólise que, em vez de parar no ácido pirúvico, se prolonga até a total cisão da molécula de glicose em seis moléculas de dióxido de carbono. A oxidação da glicose é completa e tem agora como aceitador final de elétrons o próprio oxigênio. Este novo processo, designado por respiração, fornecendo 673 calorias, o suficiente para regenerar 36 moléculas de ATP a partir de ADP, oferece um rendimento cerca de 18 vezes superior ao da glicólise.

Os organismos apetrechados para executarem este novo processo catabólico dispunham de uma dupla vantagem competitiva: não só obtinham muito mais energia a partir do mesmo “combustível”, a glicose, como podiam colonizar à vontade as água marinhas oxigenadas.

e) 5.ª etapa: A vida fora da água

Como foi referido, a vida fora de água corria sérios riscos de ser destruída pelos raios UV de alta energia. Logo que principiaram a existir quantidades significativas de oxigênio na atmosfera como produto secundário da fotossíntese, formou-se, na estratosfera, um escudo de ozônio (O3). Esta camada molecular é absorvente dos raios UV de maior energia, pelo que a superfície da Terra passou a ficar relativamente protegida desse perigo. Tal fato possibilitou, de seguida, a colonização dos meios terrestres por muitas espécies, mas terá provavelmente posto termo à síntese abiótica de compostos orgânicos.

1.3. — Cronologia das etapas da evolução

A evolução bioquímica que acabamos de descrever terá durado cerca de 3,5 bilhões de anos. No seu termo, estariam apurados os sistemas metabólicos essenciais, que ainda hoje se mantêm plenamente funcionais nas células das bactérias, dos protistas, dos fungos, das plantas e dos animais.

Principais etapas da evolução do início da vida

Etapas

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Diversificação dos Organismos eucariontes e pluricelulares 0,5-                              
Diversificação dos Organismos eucariontes Unicelulares 1,0-                              
  1,5-                              
Atmosfera rica em Oxigênio: Fotossíntese aeróbia 2,0-                              
Fotossíntese anaeróbia                                
Diversificação dos Organismos procariontes anaeróbios 2,5-                              
Origem das bactérias fotossintéticas. 3,0-                              
Evolução química até aos Primeiros eubiontes 3,5-                              
Formação da Terra 4,6-