Do pensar por si

Arthur Schopenhauer

Uma biblioteca pode ser muito grande, mas desordenada não é tão útil quanto uma pequena e bem organizada. Do mesmo modo, um homem pode possuir uma grande quantidade de conhecimento, mas se não o tiver trabalhado em sua mente por si, tem muito menos valor que uma quantidade muito menor que foi cuidadosamente considerada. Pois é somente quando um homem analisa aquilo que sabe em todos os aspectos, comparando uma verdade com outra, que se dá conta por completo de seu próprio conhecimento e adquire seu poder. Um homem só pode ponderar a respeito daquilo que sabe — portanto, deveria aprender algo; todavia, um homem só sabe aquilo sobre o que ponderou.

Ler e aprender são coisas que qualquer indivíduo pode fazer por seu próprio livre-arbítrio — mas pensar não. O pensar deve ser incitado como o fogo pelo vento; deve ser sustentado por algum interesse no assunto em questão. Esse interesse pode ser puramente objetivo ou meramente subjetivo. O último existe em questões que nos dizem respeito pessoalmente. O interesse objetivo encontra-se somente nas cabeças que pensam por natureza, para as quais pensar é tão natural quanto respirar — mas são muito raras; por isso há tão pouco dele na maioria dos homens do conhecimento.

A diferença entre o efeito do pensar por si e da leitura sobre a mente é incrível. Por isso está continuamente desenvolvendo a diferença original na natureza de duas mentes, que leva uma a pensar e a outra a ler. Ler força pensamentos alheios sobre a mente — pensamentos que são alheios ao estado e temperamento em que esta possa estar no momento, como o selo está para a cera, na qual estampa sua marca. A mente, deste modo, está inteiramente sob compulsão externa; é levada a pensar isto ou aquilo, apesar de que, no momento, talvez não tenha o menor impulso ou inclinação de fazê-lo.

Mas quando um homem pensa por si, segue o impulso de sua própria mente — seja pelo seu ambiente ou alguma lembrança particular determinada pelo momento. O mundo visível do ambiente de um homem não imprime — como a leitura faz — um único pensamento definido sobre sua mente, mas apenas o proporciona o material e a ocasião que o levam a pensar naquilo que é apropriado à sua natureza e temperamento presentes. Por esse motivo, muita leitura retira toda a elasticidade da mente; é como manter uma fonte continuamente sob pressão. Se um homem não quer pensar por si, o plano mais seguro é pegar um livro toda vez que não tiver nada para fazer. É esta prática que explica por que erudição torna a maior parte dos homens mais estúpidos e tolos do que são por natureza, e previnem que seus escritos obtenham qualquer nível de sucesso. Estes permanecem, como o papa disse, “Para sempre lendo, nunca para serem lidos” [Dunciad iii. 194].

Homens do conhecimento são aqueles que leram páginas de livros. Pensadores e homens de gênio são aqueles que foram diretamente ao livro da Natureza; foram estes que esclareceram o mundo e levaram a humanidade um passo adiante. De fato, apenas os pensamentos fundamentais de um homem têm veracidade e vida em si, pois estes são os únicos que compreende realmente e completamente. Ler os pensamentos de outrem é como recolher os restos de uma refeição para a qual não fomos convidados ou colocar as roupas que um estranho abandonou. O pensamento que lemos está para o pensamento que surge em nós assim como a impressão fossilizada de alguma planta pré-histórica está para uma planta florescendo na primavera.

Ler não é mais que um substituto para o pensar por si; significa permitir que sejam colocadas guias nos pensamentos. Ademais, muitos livros servem apenas para demonstrar quantos caminhos errôneos existem, e quão amplamente um homem pode ser descaminhado se se permitir guiar por estes. Mas aquele que é guiado pelo seu gênio, aquele que pensa por si, que pensa espontaneamente e precisamente, possui a única bússola pela qual pode se orientar corretamente. Portanto, um homem somente deveria ler quando a fonte de seus pensamentos estagnam — algo que ocorre frequentemente mesmo com as melhores mentes. Por outro lado, pegar um livro com o propósito de afugentar os próprios pensamentos é um pecado contra o Espírito Santo. É como fugir da Natureza para observar um museu de plantas secas ou estudar uma bela paisagem em uma gravura.

Um homem pode ter alcançado alguma verdade ou sabedoria após ter devotado um grande tempo pensando por si sobre o assunto, interligando seus vários pensamentos, quando poderia ter encontrado o mesmo em um livro, poupando-o desse esforço. Mesmo assim, é cem vezes mais valioso que tenha o alcançado pensando por si. Pois é apenas quando alcançamos nosso conhecimento desse modo que este se introduz como uma parte integral, como um membro vivo no todo de nosso sistema de pensamento; que permanece em uma relação forte e completa com aquilo que sabemos; que é compreendido cabalmente com todas as suas implicações; que carrega a cor, a precisa sombra, a marca distintiva de nosso próprio modo de pensar; que chega precisamente na hora certa — quando dele sentimos necessidade; que se estabelece rapidamente e não pode ser esquecido. Esta é a perfeita aplicação — ou melhor, interpretação — do conselho de Goethe, de ganharmos nossa herança para que possamos realmente possui-la:

“O que homem herda só o pode chamar seu quando o utiliza.”

[“Was du ererbt von deinen Vätern hast
Erwirb es um es zu besitzen.” Faust I. 329.]

O homem que pensa por si forma suas opiniões e apenas posteriormente aprende as autoridades sobre estas, quando servem somente para fortalecer sua crença nelas e em si. Mas o filósofo livresco parte das autoridades; lê os livros de outrem, coleta suas opiniões, e assim constitui um todo para si — de tal forma que se assemelha a um autômato, cuja composição não compreendemos. Contrariamente, aquele que pensa por si se empenha como um homem vivente feito pela Natureza. A mente pensante é alimentada pelo ambiente, a qual então forma e dá origem à sua criação.

A verdade que foi aprendida meramente como um membro artificial, um dente falso, um nariz de cera — ou, no melhor caso, um nariz feito de carne de outrem — adere em nós apenas porque foi encaixada; mas a verdade obtida através do próprio pensamento é como um membro natural — pertence-nos por si só. Esta é a diferença fundamental entre o pensador e o mero homem do conhecimento. Deste modo, as aquisições intelectuais do homem que pensa por si são como uma pintura refinada cheia de vida — na qual a luz e a sombra estão corretas, o tom é contínuo e a cor perfeitamente harmonizada. Por outro lado, as aquisições intelectuais do mero homem do conhecimento são como uma grande paleta cheia de todos os tipos de cores que, no máximo, estão organizadas sistematicamente, mas sem harmonia, relação e significado.

Ler é pensar com a cabeça de outrem em vez da própria. Pensar por si é esforçar-se para desenvolver um todo coerente — um sistema, mesmo que não seja estritamente completo; nada atrapalha mais esse objetivo que fortalecer a corrente de pensamento de outrem, como acontece por meio da leitura contínua. Esses pensamentos, surgindo cada qual de mentes distintas, pertencentes a diferentes sistemas, trazendo diferentes cores, nunca confluem para um todo intelectual; nunca constituem uma unidade de conhecimento, insight ou convicção; pelo contrário, abarrotam a mente com uma confusão babilônica de línguas. Consequentemente, a mente sobrecarrega-se de pensamentos alheios, perdendo toda a clareza conceitual e tornando-se predominantemente desorganizada. Esse estado de coisas é observável em muitos homens do conhecimento, o que os torna inferiores em compreensão sólida, julgamento correto e diplomacia prática a muitos indivíduos iliteratos que, por meio da experiência, conversação e alguma leitura, adquiriram um modesto conhecimento independentemente — e sempre o fizeram subordinado e incorporado aos seus próprios pensamentos.

O verdadeiro pensador científico faz o mesmo que esses indivíduos iliteratos, mas em uma escala muito maior. Mesmo necessitando de muito conhecimento e tendo de ler bastante, sua mente é poderosa o suficiente para dominar isso tudo — assimilá-lo e incorporá-lo ao seu sistema de pensamento, e assim subordiná-lo à unicidade orgânica de sua compreensão que, apesar de vasta, está sempre crescendo. Por meio desse processo seu pensamento, como o grave em um órgão, sempre domina tudo e nunca se perde entre os outros tons, como acontece com mentes que estão repletas de conhecimentos antiquados — onde todos os tipos de passagens musicais se misturam e o tom fundamental perde-se completamente.

Aqueles que passaram suas vidas lendo e obtiveram seu conhecimento de livros são como pessoas que conseguiram informações precisas sobre um país a partir da descrição de muitos viajantes. Tais pessoas podem falar muito sobre muitas coisas; mas, em seu íntimo, não têm um conhecimento conectado, claro e profundo da verdadeira condição do país. Aqueles que passaram suas vidas pensando são como os próprios viajantes; apenas estes sabem de fato do que estão falando — compreendem o assunto inteiramente e nisso sentem-se em casa.

O pensador está para o filósofo livresco assim como a testemunha ocular está para o historiador; o primeiro fala a partir de sua própria compreensão direta do assunto. É esse o motivo pelo qual todos aqueles que pensam por si, no fundo, chegam em grande parte às mesmas conclusões; quando divergem, isso ocorre porque adotam diferentes pontos de vista — e quando esses não afetam a questão, todos falam o mesmo. Estes simplesmente exprimem o resultado de sua compreensão objetiva das coisas. Há muitas passagens em minhas obras que apenas concedi ao público após alguma hesitação devido à sua natureza paradoxal; posteriormente tive a agradável surpresa de encontrar as mesmas opiniões registradas nos trabalhos de grandes homens de épocas anteriores.

O filósofo livresco meramente relata o que um indivíduo disse e o que outro quis dizer, ou as objeções levantadas por um terceiro, e assim por diante. Compara opiniões distintas, pondera, critica e tenta chegar à verdade da questão; nesse aspecto, assemelhando-se ao historiador crítico. Tentará, por exemplo, descobrir se Leibnitz foi por algum tempo um seguidor de Spinoza, e questões dessa natureza. O estudante curioso de tais assuntos encontrará exemplos notáveis do que quero dizer no Analytical Elucidation of Morality and Natural Right [Elucidação Analítica da Moralidade e do Direito Natural] de Herbart e no Letters on Freedom [Cartas sobre a Liberdade] do mesmo autor. É surpreendente que tal homem dê-se esse tipo de trabalho; pois é evidente que se houvesse fixado sua atenção no assunto teria logo apreendido seu objeto pensando por si. Mas há uma pequena dificuldade a ser superada — isso não depende de nossa vontade. Um homem sempre pode sentar-se e ler — mas não pensar. Pensamentos são como homens: não podemos invocá-los segundo nossa vontade — temos de esperar que venham. O pensamento sobre um assunto deve manifestar-se espontaneamente como uma feliz e harmoniosa combinação de estímulos externos com o temperamento mental e a atenção; e é justamente isso que nunca parece acontecer com tais pessoas.

Esta verdade pode ser ilustrada pelo que acontece em questões que concernem nosso interesse próprio. Quando é necessário chegar a uma resolução numa questão desse gênero, não podemos simplesmente sentar a qualquer momento, considerar as razões do caso e chegar a uma conclusão; pois, se tentamos fazê-lo, frequentemente nos vemos incapazes, naquele momento particular, de manter nossa mente focada naquele assunto; esta vagueia a outras coisas; um repúdio pelo assunto às vezes é responsável por isso. Em tal caso, não devemos usar a força, mas aguardar que o estado mental adequado manifeste-se por si só; com frequência este chega inesperadamente e mesmo repete-se; e a variedade de temperamentos nos quais o analisamos em diferentes momentos sempre coloca o assunto sob uma nova luz. Este é um longo processo que é compreendido pelo termo resolução madura. Pois a tarefa de chegar a uma conclusão precisa ser distribuída; no processo, muito daquilo que foi ignorado em um momento nos ocorre em outro; o repúdio desaparece quando percebemos — como ocorre comumente numa inspeção mais minuciosa — que as coisas não são tão ruins quando pareciam à primeira vista.

Esta regra aplica-se à vida do intelecto assim como às questões práticas — o homem deve aguardar pelo momento certo; nem a maior das mente é capaz de pensar por si todas as vezes. Portanto, uma grande mente faz bem em gastar seu tempo livre com leitura que, como disse, é um substituto para o pensamento próprio; novos materiais são importados à mente ao permitirmos que outrem pense por nós, apesar de que isso sempre seja feito de um modo distinto do nosso. Assim, um homem não deve ler em demasia a fim de que sua mente não se torne acostumada ao substituto e, consequentemente, esqueça a realidade; a fim de que não se acostume a seguir caminhos que já foram trilhados, seguindo um curso de pensamento alheio e esquecendo o próprio. De maneira nenhuma um homem deveria desviar sua atenção do mundo real em prol da leitura, pois o impulso e o estado que levam alguém a pensar por si procedem muito mais frequentemente do mundo da realidade que do mundo dos livros. A vida real que um homem vê diante de si é o objeto natural do pensamento; e, em sua força como elemento primário da existência, pode com a maior facilidade incitar e influenciar a mente pensante.

Após essas considerações, não será surpreendente que um homem que pensa por si pode ser facilmente diferenciado do filósofo livresco pelo próprio modo como fala, pela sua acentuada honestidade e a originalidade, retidão e convicção pessoal que marcam todos seus pensamentos e expressões. O filósofo livresco, por outro lado, deixa evidente que tudo nele é de segunda mão; suas ideias são como uma coleção de farrapos coletados de todos os cantos; mentalmente, é vagaroso e sem sentido — uma cópia de uma cópia. Seu estilo literário é repleto de frases convencionais, ou melhor, vulgares, e termos correntes; neste particular, assemelha-se muito a um pequeno Estado onde todo o dinheiro em circulação é estrangeiro, pois não há cunhagem própria.

A mera experiência toma o lugar do pensamento com a mesma precariedade da leitura. O simples empirismo está para o pensamento assim como comer está para a digestão e assimilação. Quando a experiência alardeia que sozinha, por meio de suas descobertas, promoveu o avanço do conhecimento humano, está a proceder como uma boca que alega possuir todo o crédito por manter a saúde do corpo.

Os trabalhos das mentes realmente capazes se diferenciam pelo caráter de decisão e definição pelos quais se livram da obscuridade. Uma mente realmente capaz sempre sabe precisamente e claramente aquilo que deseja expressar — seja na forma de prosa, verso ou música. Outras mentes deixam a desejar em termos de decisão e clareza, e assim podem ser prontamente identificadas pelo que são.

O sinal característico de uma mente de primeira ordem é a retidão de seu julgamento — sempre julga em primeira mão. Tudo que profere é resultado do pensamento próprio; e isso se mostra patente pelo modo como exprime seus pensamentos. Tal mente é como um príncipe — no reino do intelecto sua autoridade é imperial, enquanto a autoridade das outras mentes é meramente delegada, como pode ser visto pelo seu estilo, que não tem um traço próprio.

Deste modo, todo aquele que realmente pensa por si é como um monarca — sua posição é absoluta, não reconhece ninguém acima de si. Seus julgamentos, como decretos reais, advêm de seu próprio poder soberano e procedem diretamente dele. Aceita a autoridade tão pouco quanto um monarca admite um comando; nada é válido a não ser que tenha autorizado pessoalmente. Por outro lado, a multidão de mentes vulgares, influenciadas por todos os tipos de opiniões populares, autoridades e preconceitos são como as pessoas que, em silêncio, obedecem a lei e aceitam ordem de superiores.

Aqueles que são ávidos e impacientes por resolver questões polêmicas citando autoridades realmente se satisfazem quando conseguem colocar a compreensão e o insight de outrem no campo — no lugar de seus próprios, que são precários. Seu número é legionário. Pois, como Sêneca diz, todos homens preferem acreditar a exercitar o julgamento — unusquisque mavult credere quam judicare. Em suas controvérsias, tais pessoas comumente fazem um uso promíscuo do artifício da autoridade — atacam-se mutuamente com esta. Se alguém se envolver em tal disputa, não obterá sucesso utilizando a razão e argumentação como defesa; pois contra uma arma desse gênero essas pessoas são como Siegfrieds*1 com pele espinhosa, submersos numa enchente de incapacidade de pensar e julgar. Estes atacarão levantando suas autoridades na tentativa de rebaixar o adversário — argumentum ad verecundiam [apelo à autoridade], e então gritam victoria.

No mundo real, seja este justo, favorável e agradável como for, sempre vivemos sujeitos à lei da gravidade, a qual temos de superar constantemente. Mas no mundo intelectual somos espíritos livres, sem o controle da lei da gravidade e livres da penúria e aflição. Por essa razão não há felicidade na terra como aquela que, no momento propício, uma mente refinada e frutuosa encontra em si.

A presença de um pensamento é como a presença da mulher amada. Imaginamos que nunca esqueceremos esses pensamentos nem nos tornaremos indiferentes à amada. Mas fora da vista, fora da mente! O pensamento mais refinado corre o risco de ser irrecuperavelmente esquecido se não for anotado, e a amada de ser abandonada se com esta não nos casarmos.

Há muitos pensamentos que são valiosos ao homem que os pensa; mas poucos deles têm força para produzir uma ação repercussiva ou reflexiva — isto é, ganhar a simpatia do leitor após ter sido colocado no papel.

Mas não se deve esquecer que o verdadeiro valor está apenas no que um homem pensou diretamente para seu próprio caso. Pensadores podem ser classificados da seguinte forma: aqueles que predominantemente pensam para seu próprio caso e aqueles que pensam para o caso de outrem. Os primeiros são os genuínos pensadores independentes — estes de fato pensam e são de fato independentes; são os verdadeiros filósofos — somente estes a sério; o prazer e a felicidade de sua existência consiste em pensar. Os outros são sofistas; desejam parecer aquilo que não são, e buscam sua felicidade naquilo que esperam receber do mundo — é nisso que consiste sua seriedade. Pode-se ver a qual das duas classes um homem pertence através de todo o seu estilo e conduta. Lichtenberg é um exemplo da primeira classe, enquanto Herder obviamente pertence à segunda.

Quando alguém considera quão vasto e quão próximo de nós está o problema da existência — esta nossa equívoca, atormentada, fugaz e onírica existência —, tão vasto e próximo que tão rapidamente quanto alguém o percebe, este ofusca e obscurece todos os outros problemas e objetivos; e quando alguém vê como todos os homens — com poucas e raras exceções — não têm uma consciência clara do problema — ou melhor, mal percebem sua presença —, mas ocupam-se com tudo, menos isso, e vivem a pensar somente para o dia presente e dificilmente para além da duração de seu futuro pessoal, enquanto explicitamente desistem do problema ou estão prontos para aceitá-lo com o auxílio de algum sistema metafísico popular, satisfazendo-se com isso; quando alguém reflete sobre isso, pode adotar a opinião de que o homem só pode ser considerado um ser pensante num sentido muito remoto, e assim não sentir qualquer surpresa especial ante quaisquer traços de irreflexão ou tolice humanas; mas sabendo que, até certo ponto, a amplitude da visão intelectual de um homem normal de fato supera a do animal — cuja existência inteira assemelha-se a um presente contínuo sem qualquer consciência do futuro ou do passado —, mas não numa distância imensurável como normalmente se supõe.

Isso é, de fato, corroborado pelo modo como a maior parte dos homens conversa; vemos que seus pensamentos são podados, tornando impossível que desenvolvam a linha de seu discurso em qualquer sentido.

Se esse mundo fosse povoado por seres realmente pensantes, o barulho de todo tipo não seria permitido até limites tão generosos, como é o caso com a maioria de suas formas horríveis e ao mesmo tempo inúteis.*2 Se a Natureza tivesse feito o homem para pensar, não lhe teria dado ouvidos; ou lhe teria equipado com abas de isolamento acústico — que são as invejáveis posses do morcego. Mas, na verdade, o homem é um pobre animal como o resto, e suas capacidades têm o único propósito de mantê-lo na luta pela existência; deste modo, precisa manter seus ouvidos sempre abertos para anunciar, dia e noite, a aproximação do perseguidor.

 

Notas:

1) — Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Siegfried.

2) — Ver o ensaio On Noise em Studies in Pessimism de Schopenhauer.