Gênesis revisitada

T. H. Abrahão

1. No princípio criou o homem a mentira e a realidade.

2. A realidade era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o desespero do homem pairava sobre a face da mentira.

3. Disse o homem: haja sentido. Mas não houve sentido algum.

4. Viu o homem que o sentido era uma farsa; e fez separação entre o sentido e o nada.

5. E o homem chamou o sentido dia, e o nada noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.

6. E disse o homem: haja um firmamento no meio das mentiras, e haja separação entre mentiras e mentiras.

7. Fez, pois, o homem o firmamento, e separou as mentiras que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento. E assim foi.

8. Chamou o homem ao firmamento ilusão. E foi a tarde e a manhã, o dia segundo.

9. E disse o homem: ajuntem-se num só lugar as mentiras que estão debaixo do céu, e apareça o elemento seco. E assim foi.

10. Chamou o homem ao elemento seco utopia, e ao ajuntamento das mentiras futuro. E viu o homem que isso era deveras incisivo.

11. E disse o homem: produza a ilusão relva, ervas que deem semente, e árvores frutíferas que, segundo as suas espécies, deem lapsos que tenham em si a sua semente, sobre a imperfeição. E assim foi.

12. A ilusão, pois, produziu relva, ervas que davam semente segundo as suas espécies, e árvores que davam fruto que tinha em si a sua angústia, segundo as suas espécies. E viu o homem que isso era o que podia fazer segundo suas limitações.

13. E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.

14. E disse o homem: haja conclusões no firmamento da realidade, para fazerem separação entre o real e o irreal; sejam eles para devaneios e para a estupidez, e para todos e ninguém;

15. E sirvam de conclusões no firmamento da realidade, para esclarecer a terra. E assim foi.

16. O homem, pois, fez as duas grandes conclusões: a conclusão maior para condenar a verdade, e a conclusão menor para governar a farsa; fez também os erros.

17. E o homem os pôs no firmamento da realidade para escurecer a terra,

18. Para governar a mentira e a verdade, e para fazer separação entre o ruim e o pior. E viu o homem que isso era natural demais.

19. E foi a tarde e a manhã, o dia quarto.

20. E disse o homem: produzam as certezas variedades de amanhã; e voem os sonhos acima da sensatez no firmamento do céu.

21. Criou, pois, o homem a resignação tardia, e todos os seres viventes que se arrastavam por misericórdia, e toda incerteza que voava em piedade, segundo a sua espécie. E viu o homem que isso era indiferente.

22. Então o homem os abençoou, dizendo: multiplicai e condenai-vos, e enchei as palavras de contradições; e multipliquem-se as incertezas sobre a terra.

23. E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.

24. E disse o homem: produza a terra terrores temíveis segundo as suas espécies: hipocrisia, arrogância e possibilidades selvagens de contradição segundo as suas espécies. E assim foi.

25. O homem, pois, criou as verdades selvagens segundo as suas espécies, e as verdades domésticas segundo as suas espécies, e todas as possíveis imperfeições da realidade segundo as suas espécies. E viu o homem que isso era inútil.

26. E disse o homem: façamos deus à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre o absurdo da realidade, sobre o presente desesperado de cada dia, sobre as misérias possíveis, e sobre toda a mentira, e sobre todo erro que se arrasta sobre a certeza.

27. Criou, pois, o homem o disfarce à sua imagem; à imagem das máscaras que o ocultam; dúvida e certeza as criou.

28. Então o homem as abençoou e disse a elas: frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra até que apodreça; dominai sobre as depressões e neuroses, sobre as paranoias da realidade e sobre todos os desejos que se arrastam sobre a terra.

29. Disse-lhes mais: eis que vos tenho dado todas as ervas que produzem torpor, as quais se acham sobre a face de toda a terra, bem como todos os fármacos em que haja tranquilidade; ser-vos-ão para necessidade.

30. E a todos os descuidos da terra, a todas as mediocridades das ideias e a todo ser vivente que se arrasta sobre a piedade do solo pobre, tenho dado todas as ervas verdes como subterfúgio de um mundo apodrecido. E assim foi.

31. E viu o homem tudo quanto criara, e eis que era aquilo de que era capaz. E foi a tarde e a manhã, o dia sexto.