Os Limites da Explicação Científica

Steven Weinberg

Alguns anos atrás, passei uma tarde com outros professores da Universidade do Texas (EUA) contando o trabalho de nossas respectivas disciplinas a um grupo de graduandos.

Descrevi em linhas gerais o grande progresso que nós, físicos, havíamos feito no tocante à explicação do que era conhecido experimentalmente sobre partículas elementares e campos; como, enquanto estudante, eu tivera de aprender uma grande variedade de fatos heterogêneos sobre partículas, forças e simetrias; como, de meados dos anos 60 até meados dos anos 70, toda essa miscelânea era explicada no que hoje é chamado o Modelo Padrão das partículas elementares; como aprendemos que esses fatos heterogêneos sobre partículas e forças podem ser deduzidos matematicamente de uns poucos princípios bem simples; e como um grande “A-há!” coletivo irrompeu da comunidade dos físicos.

Após os comentários, um colega de faculdade (cientista, mas não físico atômico) comentou: “Bem, claro que você sabe que a ciência na verdade não explica as coisas, somente as descreve”. Eu já ouvira esse comentário antes, mas na hora aquilo me pegou de surpresa, pois eu pensava que estivéssemos fazendo um trabalho e tanto explicando as propriedades observadas das forças e partículas elementares, não só as descrevendo [1].

Creio que o comentário de meu colega talvez tenha sido fruto de uma espécie de medo positivista difundido entre os filósofos da ciência no período de entre as guerras mundiais. É célebre a observação de Ludwig Wittgenstein de que “na base de toda a visão moderna do mundo está a ilusão de que as chamadas leis da natureza são as explicações de fenômenos naturais”.

Pode-se supor que algo é explicado quando lhe encontramos a causa, mas um texto de Bertrand Russell, em 1913, argumentava que “a palavra ‘causa’ está tão inexplicavelmente presa a associações enganosas que sua completa exclusão do vocabulário filosófico se faz desejável” [2]. Isso deixou os filósofos com uma única escolha para a distinção entre explicação e descrição, uma escolha teleológica, definindo uma explicação como uma declaração do propósito da coisa explicada.

O romance Where Angels Fear to Tread, de E.M. Forster, dá um bom exemplo de teleologia ao traçar a diferença entre descrição e explicação. Philip está tentando descobrir por que sua amiga Caroline ajudou a consumar um casamento entre a irmã de Philip e um jovem italiano a quem a família de Philip não vê com bons olhos. Depois de Caroline relatar todas as conversas que teve com a irmã de Philip, Philip diz: “O que você me deu é uma descrição, não uma explicação”. Todos sabem o que Philip quer dizer com isso: ao pedir uma explicação, ele quer saber dos propósitos de Caroline. Não há propósito revelado nas leis da natureza, e não sabendo outro modo de distinguir descrição e explicação, Wittgenstein e meu amigo concluíram que essas leis não podem ser explicações.

Talvez alguns daqueles que dizem que a ciência descreve, mas não explica, queiram também comparar desfavoravelmente a ciência à teologia, que eles imaginam explicar as coisas com referência a algum tipo de propósito divino, uma tarefa recusada pela ciência.

Esse modo de raciocinar me parece errado não só na substância, mas também no procedimento. Não é tarefa dos filósofos ou de quem quer que seja ditar sentidos de palavras diversos dos sentidos de uso geral. Em vez de sustentar que os cientistas estão enganados quando dizem, como geralmente o fazem, que estão explicando coisas quando fazem seu trabalho, os filósofos que cuidam do sentido da explicação na ciência deveriam tentar entender o que os cientistas estão fazendo quando dizem que explicam alguma coisa. Se eu tivesse de dar uma definição a priori da explicação na física, diria: “Explicação na física é o que os físicos fizeram quando dizem ‘A-há!’”. Mas definições a priori (incluindo essa) não são de muita utilidade.

Que eu saiba, isso foi bem entendido pelos filósofos da ciência desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Há uma vasta literatura moderna sobre a natureza da explicação, por filósofos como Peter Achinstein, Carl Hempel, Philip Kitcher e Wesley Salmon. Daquilo que li dessa literatura, concluo que os filósofos estão agora lidando com isso da forma correta. Estão tentando desenvolver uma resposta à pergunta: “O que fazem os cientistas quando explicam alguma coisa?”, observando o que os cientistas realmente estão fazendo.

Cientistas que fazem pesquisa pura, e não aplicada, costumam dizer ao público e às agências de financiamento que sua missão é a explicação de tal ou qual coisa, daí porque a tarefa de aclarar a natureza da explicação é tão importante para eles — e também para os filósofos. Essa tarefa me parece um pouco mais fácil na física (e na química) do que nas demais ciências, porque os filósofos da ciência se viram a braços com a pergunta de o que se quer dizer com a explicação de um evento (note a referência de Wittgenstein aos “fenômenos naturais”), enquanto os físicos estão interessados na explicação da regularidade de princípios físicos, e não com eventos individuais. Biólogos, meteorologistas e historiadores se preocupam com as causas de eventos individuais, tais como a extinção dos dinossauros, a nevasca de 1888, a Revolução Francesa etc., enquanto um físico só se interessa por um evento — como a velação das chapas fotográficas de Becquerel que, em 1897, foram deixadas na proximidade de um sal de urânio — quando esse revela uma regularidade da natureza, tal como a instabilidade do átomo de urânio. Philip Kitcher tentou reavivar a ideia de que o modo de explicar um evento é reportá-lo a sua causa, mas entre o infinito número de coisas que podem afetar um evento, qual considerar como causa? [3]

No contexto limitado da física, creio que se possa dar uma resposta sofrível ao problema de distinguir a explicação da simples descrição, que capta o que os físico querem dizer quando afirmam que explicaram alguma regularidade. A resposta é que nós explicamos um princípio físico quando mostramos que ele pode ser deduzido de um princípio mais fundamental. Infelizmente, para parafrasear algo que a escritora Mary McCarthy disse uma vez sobre um livro de Lillian Hellman, cada palavra nessa definição possui um sentido questionável, incluindo “nós” e “um”. Mas vou focalizar as três palavras que, a meu ver, apresentam as maiores dificuldades: “fundamental”, “deduzido” e “princípio”.

A espinhosa palavra “fundamental” não pode ser deixada de fora dessa definição, porque a própria dedução não implica direção: ela costuma trabalhar em ambos os sentidos. O melhor exemplo que conheço é dado pela relação entre as leis de Newton e as leis de Kepler. Todos sabem que Newton descobriu não só a lei que diz que a força da gravidade diminui na proporção inversa do quadrado da distância, mas também uma lei do movimento que diz como os corpos se movem sob a influência de qualquer tipo de força. Um pouco antes, Kepler descrevera três leis do movimento planetário: planetas se movem em elipses tendo o Sol como foco; a linha que une o Sol a qualquer planeta se estende por iguais áreas em iguais tempos; e o quadrado dos períodos (o tempo que os planetas levam para descrever suas órbitas) é proporcional ao cubo dos maiores diâmetros das órbitas dos planetas. Costuma-se dizer que as leis de Newton explicam as de Kepler. Mas, historicamente, a lei de gravitação de Newton foi deduzida das leis de movimento planetário de Kepler.

Edmund Halley, Christopher Wren e Robert Hooke usaram a relação de Kepler entre o quadrado dos períodos e o cubo dos diâmetros (tomando as órbitas como círculos) para deduzir uma lei de gravitação do inverso do quadrado, e depois Newton estendeu o argumento às órbitas elípticas. Hoje, claro, quando se estuda mecânica, aprende-se a deduzir as leis de Kepler das leis de Newton e não vice-versa. Estamos convencidos de que as leis de Newton são mais fundamentais que as leis de Kepler, e é nesse sentido que as leis de Newton explicam as leis de Kepler, e não o contrário. Mas não é fácil emprestar um sentido preciso à ideia de que um princípio físico é mais fundamental que outro.

Somos tentados a dizer que mais fundamental significa mais abrangente. Talvez a mais célebre tentativa de captar o sentido que os cientistas conferem à explicação foi aquela de Carl Hempel. Em seu famoso artigo de 1948, escrito com Paul Oppenheim, ele observou que “a explicação de uma regularidade gerai consiste em sub-sumi-la a outra regularidade mais abrangente, a uma lei mais geral” [4]. Mas isso não afasta a dificuldade. Pode-se dizer, por exemplo, que as leis de Newton governam não só os movimentos dos planetas, mas também as marés da Terra, a queda de frutas das árvores e assim por diante, enquanto as leis de Kepler tratam do contexto mais restrito dos movimentos planetários. Mas isso não é rigorosamente verdade. As leis de Kepler, à medida que a mecânica clássica nem sequer é aplicada, governam também o movimento dos elétrons ao redor do núcleo, onde a gravidade é irrelevante. Assim, há um sentido em que as leis de Kepler possuem uma generalidade que as leis de Newton não têm. Mas seria absurdo dizer que as leis de Kepler explicam as de Newton, ao passo que todos (salvo talvez um purista filosófico) concordam com a afirmação de que as leis de Newton explicam as de Kepler. Esse exemplo das leis de Newton e de Kepler é um tanto artificial, porque a bem dizer não há dúvida sobre qual é a explicação de qual. Em outros casos, a questão de saber qual explica qual é mais difícil e mais importante. Eis um exemplo: quando a mecânica quântica é aplicada à relatividade geral, descobre-se que a energia e o momentum num campo gravitacional vêm em feixes conhecidos como grávitons, partículas que têm massa nula, tal como a partícula de luz, o fóton, mas um spin dois (duas vezes o do fóton). Por outro lado, foi mostrado que qualquer partícula cuja massa é zero e cujo spin é dois se portará do mesmo modo que os grávitons na relatividade geral, e que a troca desses grávitons produzirá os mesmos efeitos gravitacionais previstos pela relatividade geral. Além disso, é uma previsão geral da teoria quântica que devem existir partículas de massa zero e spin dois. Assim, será a existência do gráviton explicada pela teoria geral da relatividade ou a teoria geral da relatividade explicada pela existência do gráviton? Não sabemos. Da resposta a essa pergunta depende uma escolha de nossa visão do futuro da física: será ele baseado na geometria do tempo-espaço, como na relatividade geral, ou em alguma teoria como a teoria quântica, que prevê a existência de grávitons?

A ideia de explicação como dedução também se vê em apuros quando consideramos princípios físicos que parecem transcender os princípios dos quais foram deduzidos. Isso vale sobretudo para a termodinâmica, a ciência do calor e da entropia. Depois que suas leis foram formuladas no século 19, Ludwig Boltzmann logrou deduzir essas leis da mecânica estatística, a física de amostras macroscópicas de matéria compostas de largo número de moléculas individuais. A explicação da termodinâmica por Boltzmann em termos de mecânica estatística ganhou ampla aceitação, ainda que encontrasse resistência em Max Planck, Ernst Zermelo e alguns outros físicos que se aferravam à antiga visão das leis da termodinâmica como princípios independentes, tão fundamentais como quaisquer outros. Mas aí os trabalhos de Jacob Bekenstein e Stephen Hawking no século 20 mostraram que a termodinâmica se aplica também a buracos negros, e não porque eles sejam compostos de muitas moléculas, mas porque têm uma superfície da qual nenhuma partícula ou raio luminoso jamais poderá emergir.

Assim, a termodinâmica parece transcender a mecânica estatística dos sistemas multicorporais dos quais foi deduzida originalmente.

No entanto, eu sustentaria que há um sentido em que as leis da termodinâmica não são tão fundamentais como os princípios da relatividade geral ou o Modelo Padrão das partículas elementares. É importante distinguir aqui dois aspectos diversos da termodinâmica. De um lado, a termodinâmica é um sistema formal que nos permite deduzir consequências interessantes de algumas leis simples, onde quer que essas leis se apliquem. As leis se aplicam a buracos negros, a caldeiras a vapor e a muitos outros sistemas. Mas não se aplicam em toda parte. A termodinâmica não teria sentido se aplicada a um único átomo. Para descobrir se as leis da termodinâmica se aplicam a um sistema físico particular, é preciso perguntar se as leis da termodinâmica podem ser deduzidas daquilo que se sabe desse sistema. Às vezes podem, às vezes não. A termodinâmica mesma nunca é a explicação de nada — é preciso sempre perguntar por que a termodinâmica se aplica a qualquer sistema que se esteja estudando, o que é feito deduzindo as leis da termodinâmica de qualquer princípio mais fundamental que possa ser relevante àquele sistema.

Nesse sentido, não vejo muita diferença entre a termodinâmica e a geometria euclidiana. Afinal, a geometria euclidiana se aplica a uma impressionante variedade de contextos. Se três pessoas concordam que cada uma medirá o ângulo entre as linhas de visão de outras duas e depois se reúnem e somam esses ângulos, a soma será 180 graus. E se chegará ao mesmo resultado de 180 graus para a soma dos ângulos de um triângulo feito de barras de ferro ou linhas a lápis sobre um pedaço de papel. Pode parecer que a geometria seja mais fundamental que a óptica ou a mecânica. Mas a geometria euclidiana é um sistema formal de inferência baseado em postulados que podem ou não se aplicar a uma dada situação. Como sabemos da teoria geral da relatividade, o sistema euclidiano não se aplica a campos gravitacionais, embora seja uma aproximação muito boa no campo gravitacional relativamente fraco do planeta em que foi desenvolvido por Euclides.

Quando usamos a geometria euclidiana para explicar qualquer coisa, estamos confiando tacitamente na teoria geral da relatividade para explicar por que a geometria euclidiana se aplica ao caso em questão.

Falando de dedução, topamos com outro problema: quem é que faz a dedução? Costumamos dizer que algo é explicado por algo diverso sem na verdade sermos capazes de deduzi-lo. Por exemplo, depois do desenvolvimento da física quântica em meados da década de 1920, quando se tornou possível calcular pela primeira vez, de modo claro e compreensível, o espectro do átomo de hidrogênio e a energia de ligação do hidrogênio, muitos físicos concluíram imediatamente que toda a química era explicada pela mecânica quântica e o princípio da atração eletrostática entre elétrons e núcleos atômicos. Físicos como Paul Dirac proclamaram que toda a química fora então compreendida. Mas eles não tinham ainda conseguido deduzir as propriedades químicas de nenhuma outra molécula senão a molécula de hidrogênio mais simples. Os físicos estavam certos de que todas essas propriedades eram consequência das leis da mecânica quântica tal como aplicadas a núcleos e elétrons.

A experiência confirmou isso; de fato, agora podemos deduzir as propriedades de moléculas bastante complicadas — não moléculas tão complicadas como proteínas ou DNA, mas ainda assim moléculas orgânicas bem impressionantes — fazendo complicados cálculos de computador, usando a mecânica quântica e o princípio da atração eletrostática. Quase qualquer físico diria que a química é explicada pela mecânica quântica e as propriedades simples de elétrons e núcleos atômicos. Mas os fenômenos químicos nunca serão inteiramente explicados desse modo, e assim a química persiste como uma disciplina separada. Os químicos não se chamam de físicos; possuem revistas diferentes e habilidades diferentes das dos físicos. É difícil lidar com moléculas complicadas pelos métodos da mecânica quântica, mas ainda assim sabemos que a física explica por que a química é o que é. A explicação não está em nossos livros, não está em nossos artigos científicos, está na natureza; é que as leis da física exigem que a química se comporte da maneira como faz.

Observações análogas cabem a outras áreas da ciência física. Como parte do Modelo Padrão, temos uma teoria bem verificada da força nuclear forte — a força que une tanto as partículas nos núcleos quanto as partículas que compõem essas partículas — conhecida como cromodinâmica quântica, que acreditamos explicar por que a massa do próton é o que é. A massa do próton é produzida pelas forças intensas que os quarks dentro do próton exercem uns sobre os outros. Não que possamos realmente calcular a massa do próton; não tenho nem certeza de que tenhamos um bom algoritmo para fazer o cálculo, mas não há mistério algum sobre a massa do próton.

Sentimos porque é o que é, não no sentido de que o tenhamos calculado ou que sequer o possamos calcular, mas no sentido de que a cromodinâmica quântica pode calculá-lo — o valor da massa do próton é definido pela cromodinâmica quântica, embora não saibamos como fazer o cálculo.

Talvez seja muito importante reconhecer que algo foi explicado, mesmo nesse sentido restrito, porque isso nos pode fornecer um sentido estratégico de quais problemas abordar. Se você quiser trabalhar no cálculo da massa do próton, vá em frente, melhor para você. Seria um belo espetáculo de habilidade de cálculo, mas não avançaria nossa compreensão das leis da natureza, porque já compreendemos bem o suficiente a intensa força nuclear para saber que nenhuma lei da natureza nova será necessária nesse cálculo.

Outro problema com a explicação como dedução: em alguns casos, podemos deduzir algo sem explicá-lo. Isso pode parecer um tanto insólito, mas considere a seguinte história. Quando os físicos começaram a levar cosmologicamente a sério o Big Bang, uma das coisas que fizeram foi calcular a produção de elementos leves nos primeiros minutos do Universo em expansão. E o fizeram anotando as equações que governam as taxas em que ocorreram as várias reações nucleares. A taxa de troca da quantidade (ou “abundância”, como dizem os físicos) de qualquer espécie nuclear é igual à soma dos termos, cada termo sendo proporcional às abundâncias da outra espécie nuclear. Desse modo, desenvolve-se um amplo conjunto de equações diferenciais das que depois são introduzidas num computador que produz uma solução numérica.

Quando essas equações foram resolvidas em meados de 1960 por James Peebles e depois por Robert Wagoner, William Fowler e Fred Hoyie, descobriu-se que, após os primeiros minutos, um quarto da massa do Universo assumiu a forma de hélio, e quase todo o resto era hidrogênio, com outros elementos presentes apenas em quantidades minúsculas. Esses cálculos revelaram também certas regularidades. Por exemplo, se introduzimos algo à teoria para acelerar a expansão, como por exemplo acrescentar espécies adicionais de neutrinos, descobrimos que mais hélio seria produzido. Isso é um pouco contraintuitivo — talvez se pense que acelerar a expansão do Universo daria menos tempo para as reações nucleares produzirem hélio, mas o fato é que os cálculos mostraram que aumentou a quantidade de hélio produzido.

A explicação não é difícil, embora não possa ser facilmente vista na página impressa do computador. Enquanto o Universo se expandia e esfriava nos primeiros minutos, ocorriam reações nucleares que compunham núcleos complexos dos prótons e nêutrons primordiais, mas como a densidade da matéria era relativamente baixa, essas reações podiam ocorrer apenas em sequência, primeiro combinando alguns prótons e nêutrons para formar o núcleo do hidrogênio pesado, o dêuteron, e depois combinando dêuterons com prótons e nêutrons ou outros dêuterons para formar núcleos mais pesados, como o hélio. Contudo os dêuterons são muito frágeis; possuem uma ligação relativamente fraca, de modo que, na essência, nenhum dêuteron foi produzido até que a temperatura baixasse a cerca de 1 bilhão de graus, ao cabo dos primeiros três minutos. Durante todo esse tempo, nêutrons se convertiam em prótons, tal como fazem hoje nêutrons livres em nossos laboratórios.

Quando a temperatura baixou a 1 bilhão de graus, e ficou frio o bastante para os dêuterons se manterem juntos, então todos os nêutrons que ainda restavam foram rapidamente transformados em dêuterons, e os dêuterons, em hélio, um núcleo particularmente estável. São precisos dois nêutrons e dois prótons para formar um núcleo de hélio, assim o número de núcleos de hélio produzido então era somente a metade do número dos nêutrons remanescentes. Portanto o fato crucial que determina a quantidade de hélio produzido nos primórdios do Universo é quantos nêutrons se desintegraram antes que a temperatura baixasse a 1 bilhão de graus. Quanto mais rápida a expansão, mais cedo a temperatura baixou a 1 bilhão de graus, e assim menos tempo tinham os nêutrons para se desintegrar, e mais deles sobraram, e mais hélio foi produzido. Essa é a explicação do que foi descoberto nos cálculos do computador; mas a explicação não seria encontrada nos gráficos traçados pelo computador, que mostravam a abundância em relação à velocidade da expansão.

Além disso, embora eu tenha dito que os físicos só estão interessados em explicar os princípios gerais, não está claro o que é um princípio e o que é um simples acidente. Às vezes, o que imaginamos ser uma lei fundamental da natureza é apenas um acidente. Kepler fornece novamente um exemplo. Hoje ele é conhecido sobretudo pelas suas famosas três leis do movimento planetário, mas, quando jovem, ele tentou também explicar os diâmetros das órbitas dos planetas com uma complicada construção geométrica envolvendo poliedros regulares. Hoje rimos disso porque sabemos que as distâncias dos planetas em relação ao Sol refletem acidentes que ocorreram quando o Sistema Solar foi formado. Não tentaríamos explicar os diâmetros das órbitas planetárias deduzindo-os de alguma lei fundamental.

Em certo sentido, porém, há uma espécie de explicação estatística aproximada para a distância entre a Terra e o Sol [5]. Se perguntarmos por que a Terra esta a cerca de cem milhões de milhas do Sol, e não, digamos, duzentos milhões ou cinquenta milhões de milhas, ou até mais longe, ou até mais perto, uma resposta seria que, se a Terra estivesse muito mais próxima do Sol, seria quente demais para nós, e, se estivesse um pouco mais afastada do Sol, seria muito fria para nós. Dita assim, essa é uma explicação bastante besta, porque sabemos que não havia conhecimento prévio dos seres humanos na formação do Sistema Solar. Mas há um sentido em que essa explicação não é besta, porque há inúmeros planetas no Universo, de modo que, embora somente uma pequena fração esteja à distância correta de sua estrela e tenha a massa e composição química corretas e tudo o mais para permitir a evolução da vida, não seria surpresa que as criaturas que investigam a distância de seu planeta em relação a sua estrela descubram que vivem num dos planetas dessa pequena fração. Esse tipo de explicação é conhecida como antrópica, e, como se pode ver, ela não oferece um insight muito útil na física do Sistema Solar. Mas argumentos antrópicos podem se tornar bem importantes quando aplicados ao que costumamos chamar de Universo. Os cosmólogos especulam cada vez mais que, tal como a Terra é somente um entre muitos planetas, assim também nosso Big Bang, a grande expansão do Universo em que vivemos, pode ser apenas um entre os muitos bangs que ocorrem esporadicamente aqui e ali num mega-niverso muito maior. Especulam ainda que, nesses diversos big bangs, algumas das supostas constantes da natureza assumem valores diferentes, e talvez mesmo algo do que chamamos hoje leis da natureza assumam formas diferentes. Nesse caso, a questão de saber por que as leis da natureza que descobrimos e as constantes da natureza que medimos são o que são teria uma explicação teleológica tosca que é somente com esse tipo de Big Bang que haveria alguém para formular a pergunta.

Espero certamente que não sejamos levados a esse tipo de raciocínio e que descobriremos um único conjunto de leis naturais para explicar por que todas as constantes da natureza são o que são. Mas temos que manter em vista a possibilidade de que o que hoje chamamos de leis da natureza e as constantes da natureza sejam aspectos acidentais do Big Bang no qual nos encontramos, embora submetidos (tal como é a distância da Terra em relação ao Sol) à exigência de que têm de estar num âmbito que permita o aparecimento de seres que possam perguntar por que são o que são.

Inversamente, é possível também que uma classe de fenômenos seja considerada como simples acidentes quando são, de fato, manifestações de princípios físicos fundamentais. Creio que essa talvez seja a resposta a uma questão histórica que me intrigou por muitos anos. Por que Aristóteles (e vários outros filósofos naturais, notadamente Descartes) se satisfez com uma teoria do movimento que não fornecia nenhum modo de prever onde um projétil ou um corpo em queda estaria em dado instante de seu voo, uma previsão do tipo que as leis de Newton fornecem? Segundo Aristóteles, as substâncias tendem a se mover para suas posições naturais — a posição natural da terra é para baixo, a posição natural do fogo é para cima, e a água e o ar se acham naturalmente em algum lugar desse intervalo —, mas ele não tentou dizer como um pedaço de terra cai para baixo ou uma centelha sobe para cima. Não estou perguntando por que Aristóteles não descobriu as leis de Newton — obviamente alguém teria de ser o primeiro a descobrir essas leis, e o prêmio coube a Newton. O que me intriga é por que Aristóteles não expressou nenhuma insatisfação por não ter aprendido como calcular as posições dos projéteis em cada instante de suas trajetórias. Ele parece não ter percebido que esse era um problema que qualquer um deveria resolver.

Suspeito que isso foi porque Aristóteles supôs tacitamente que as razões em que os elementos se movem para seus lugares naturais sejam meros acidentes, que não estejam sujeitas a regras, que não se poderia dizer nada de geral sobre elas (salvo que os objetos pesados caem mais rápido que os leves), que as únicas coisas sobre as quais se pode generalizar sejam questões de equilíbrio onde os objetos acabam por atingir o repouso. Isso talvez tenha refletido um disseminado desdém pela mudança da parte dos filósofos helênicos, tal como evidenciado na obra de Parmênides, que era admirado por Platão, mestre de Aristóteles. Claro que Aristóteles estava errado quanto a isso, mas se nos imaginarmos naqueles tempos, vemos como não seria nada óbvio que o movimento fosse governado por regras matemáticas precisas, passíveis de descoberta. Que eu saiba, isso só foi entendido quando Galileu começou a medir quanto tempo levava para bolas rolarem diversas distâncias num plano inclinado. É uma das grandes tarefas da ciência aprender o que são acidentes e o que são princípios, e isso nem sempre podemos saber de antemão.

Agora que desconstruímos os termos “fundamental”, “deduzir” e “princípio”, terá restado algo de minha proposta, que na física dizemos que explicamos um princípio quando o deduzimos de um princípio mais fundamental? Sim, acho que restou, mas somente dentro de um contexto histórico, uma visão do futuro da ciência.

Temos rumado para uma imagem cada vez mais satisfatória do mundo. Esperamos que, no futuro, tenhamos alcançado um entendimento de todas as regularidades que vemos na natureza, baseados em alguns princípios simples, leis da natureza das quais todas as outras regularidades possam ser deduzidas. Essas leis serão a explicação de quaisquer princípios (tais como, por exemplo, as regras do Modelo Padrão ou da relatividade geral) que possam ser deduzidos diretamente delas, e esses princípios diretamente deduzidos serão as explicações de quaisquer princípios que possam ser deduzidos deles etc. — somente quando tivermos essa teoria final saberemos com certeza o que é princípio e o que é acidente, quais fatos sobre a natureza são definidos por quais princípios, e quais são os princípios fundamentais e quais são os princípios menos fundamentais que eles explicam.

Até agora fiz o que pude para dizer se a ciência pode explicar tudo; peço licença para abordar a questão de saber se a ciência pode explicar qualquer coisa. Claro que não. Certamente sempre haverá acidentes que ninguém explicará. Não porque não possam ser explicados se soubéssemos todas as condições precisas que conduziram a eles, mas porque jamais saberemos todas essas condições. Há questões como saber por que o código genético é precisamente o que é ou por que um cometa atingiu a Terra 65 milhões de anos atrás justamente nesse ponto e não em outro que permanecerão para sempre fora de nosso alcance.

Não podemos explicar, por exemplo, por que a bala de John Wilkes Booth matou Lincoln enquanto os nacionalistas porto-riquenhos que tentaram matar Truman não tiveram sucesso. Talvez tivéssemos uma explicação parcial se tivéssemos provas de que um dos braços do atirador tremeu ao puxar o gatilho, mas o fato é que não temos. Todas essas informações estão perdidas nas brumas do tempo; os eventos dependem de acidentes que jamais poderemos recuperar.

Podemos, talvez, tentar explicá-los estatisticamente: por exemplo, pode-se cogitar a teoria de que os atores sulistas em meados do século 19 costumavam ser bons atiradores, enquanto os nacionalistas porto-riquenhos em meados do século 20 costumavam ser atiradores ruins, mas, quando se tem somente informações esparsas, é muito difícil fazer até mesmo inferências estatísticas. Os físicos tentam explicar justamente as coisas que não dependem de acidentes, mas no mundo real a maior parte do que tentamos compreender depende de acidentes.

Além disso, a ciência nunca pode explicar nenhum princípio moral. Parece haver um abismo intransponível entre questões do que “é” e do que “deve ser”. Talvez possamos explicar por que as pessoas acham que devem fazer as coisas, ou por que a raça humana evoluiu para sentir que certas coisas devem ser feitas e outras não, mas permanece em aberto para nós transcender essas regras morais de base biológica. Pode ser, por exemplo, que nossa espécie tenha evoluído de tal modo que homens e mulheres desempenhem papéis diferentes — os homens caçam e brigam, as mulheres dão à luz e cuidam dos filhos, mas podemos tentar evoluir para uma sociedade em que todo tipo de trabalho esteja igualmente aberto a mulheres e homens. Os postulados morais que nos dizem se devemos ou não fazê-lo não podem ser deduzidos do conhecimento científico.

Há também limitações na certeza de nossas explicações. Não creio que jamais teremos certeza de nenhuma delas. Tal como há profundos teoremas matemáticos que mostram a impossibilidade de provar que a aritmética é consistente, parece que nunca seremos capazes de provar que as mais fundamentais leis da natureza são matematicamente consistentes. Não que isso não me assuste, porque, mesmo que soubéssemos que as leis da natureza são matematicamente consistentes, ainda assim não teríamos certeza de que elas são verdadeiras. Você deixa de se preocupar com a certeza quando dá aquela virada na carreira que o transforma num físico, não num matemático.

Finalmente, parece claro que nunca seremos capazes de explicar nossos mais fundamentais princípios científicos (talvez seja por isso que alguns dizem que a ciência não fornece explicações, mas por esse raciocínio, nada mais o faz). Creio que, no fim, chegaremos a um conjunto de leis da natureza simples e universais, leis que não podemos explicar. O único tipo de explicação que posso imaginar (se não descobrirmos um simples conjunto de leis mais profundo, o que somente estenderia a questão) seria mostrar que a consistência matemática exige essas leis. Mas isso é obviamente impossível, porque já podemos imaginar conjuntos de leis da natureza que, até onde sabemos, são perfeitamente consistentes em termos matemáticos, mas não descrevem a natureza tal como a observamos.

Por exemplo, se tomarmos o Modelo Padrão das partículas elementares e jogarmos fora tudo menos as intensas forças nucleares e as partículas sobre as quais elas agem, os quarks e os glúons, nos resta a teoria conhecida como cromodinâmica quântica. Parece que a cromodinâmica quântica é matematicamente autoconsistente, mas descreve um universo empobrecido, no qual existem apenas partículas nucleares — não existem átomos, não existem pessoas.

Se abandonarmos a mecânica quântica e a relatividade, podemos forjar uma enorme variedade de outras leis da natureza logicamente consistentes, tais como as leis de Newton que descrevem umas poucas partículas que orbitam sem parar uma ao redor da outra de acordo com essas leis, com nada mais no universo, e nunca acontecendo nada de novo. Essas são teorias logicamente consistentes; mas são todas empobrecidas. Talvez nossa melhor esperança para uma explicação final seja descobrir um conjunto final de leis da natureza e mostrar que essa é a única teoria rica logicamente consistente, rica o bastante, por exemplo, para permitir a existência de nós mesmos. Isso talvez aconteça em um ou dois séculos, e, se assim for, creio que os físicos estarão nos limites extremos de seu poder de explicação.

Notas
  1. Esse artigo é baseado numa palestra dada num simpósio sobre “Ciência e os Limites da Explicação”.
  2. “On the Notion of Cause” , reimpresso em “Mysticism and Logic” (Doubleday,1957), p. 174.
  3. Há um exemplo da dificuldade de explicar eventos em termos de causas que é muito citado pelos filósofos. Suponha que se descubra que o prefeito tenha paresia. Será ela explicada pelo fato de o prefeito ter tido um caso de sífilis não tratada alguns anos antes? O problema com essa explicação é que a maioria das pessoas com sífilis não tratada na verdade não fica com paresia. Se pudéssemos traçar a sequência de eventos que levaram da sífilis à paresia, descobriríamos muitas outras coisas que desempenharam um papel essencial. Talvez uma espiroqueta tenha coleado nessa direção e não na outra, talvez o prefeito tivesse uma deficiência vitamínica quem sabe? E, no entanto, sentimos que a sífilis do prefeito é a explicação da paresia. Isso talvez seja porque a sífilis é a mais dramática das muitas causas que conduziram ao efeito, e é certamente uma das que seriam mais relevantes politicamente.
  4. Carl Hempel e Paul Oppenheim, “Studies in the Logic of Confirmation”, Philosophy of Science, vol. 15, n° 135 (1948), pp. 135-75; reimpresso com algumas mudanças em “Aspects of Scientific Explanation and Other Essays in the Philosophy of Science” (Free Press, 1965).
  5. O professor R. J. Hankinson, da Universidade do Texas, chamou-me a atenção para um exemplo original dessa “explicação” em Galeno. Claro, escrevendo 1.400 anos antes de Copérnico, Galeno estava preocupado em explicar a posição do Sol, e não a da Terra. Em “A utilidade das partes do corpo”, ele compara sua explicação da posição do Sol com a explicação da posição do pé humano na extremidade da perna. Tanto o Sol como a Terra são dispostos pelo criador onde propiciam maior benefício. Embora essas explicações sejam teleológicas num sentido que foi abandonado pela ciência moderna, a analogia de Galeno era melhor do que ele poderia ter imaginado. Tal como a Terra é um entre um vasto número de planetas cujas distâncias de suas estrelas são, em boa parte, uma questão do acaso, assim também a posição do pé é o resultado de um vasto número de mutações casuais na evolução de nossos ancestrais. Um organismo produzido por uma cadeia de mutações casuais que lhe põem o pé dentro da boca não sobreviveria para transmitir seus genes aos descendentes, tal como um planeta que, por acaso, condensou muito perto ou muito longe de sua estrela não seria o lar de filósofos.
  • autor: Steven Weinberg
  • tradução: José Marcos Macedo
  • fonte: Mais, Folha de São Paulo, 24 de Junho de 2001