O Mundo como Vontade e Representação (livro 3)

Arthur Schopenhauer

O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO
CONSIDERAÇÃO SEGUNDA

A REPRESENTAÇÃO INDEPENDENTE DO PRINCÍPIO DE RAZÃO
A IDEIA PLATÔNICA: O OBJETO DA ARTE

Tí tò mén aeì génestn dê ouk ékhon; kaí tí tô gignômenon mèn kaì apollýmenon, óntos dê oudépote ón. — Platão [1]

§30

Apresentado no primeiro livro como pura representação, objeto para um sujeito, consideramos o mundo no segundo livro por sua outra face e verificamos como esta é vontade, que unicamente se mostrou como o que aquele mundo é além da representação; em conformidade, denominávamos o mundo como representação, no todo ou em suas partes, a objetividade da vontade, quer dizer: a vontade tornada objeto, i.e. representação. Recordamos também que tal objetivação da vontade possuía graus numerosos, porém determinados, em que, com clareza e perfeição gradualmente crescente, a vontade surgia na representação, i.e. se apresentava como objeto. Reconhecíamos as ideias de Platão em tais graduações, na medida em que estas são as espécies determinadas, ou as formas e propriedades invariáveis originárias de todos os corpos naturais, orgânicos ou inorgânicos, como também as forças genéricas se manifestando conforme leis naturais. Tais ideias, portanto, se manifestam em indivíduos e particularidades inumeráveis, comportando-se como modelo para estas suas imagens. A multiplicidade de tais indivíduos é concebível unicamente mediante o tempo e o espaço, seu surgir e desaparecer unicamente mediante a causalidade, em cujas formas reconhecemos somente as diversas modalidades do princípio de razão, princípio último de toda finitude, toda individuação, forma geral da representação, tal como esta se dá na consciência do indivíduo como tal. A ideia, porém, não se submete àquele princípio: por isto não experimenta pluralidade nem mudança. Enquanto os indivíduos em que se manifesta são inumeráveis e nascem e perecem incessantemente, ela permanece invariavelmente a mesma, e para ela o princípio de razão não possui significado algum. Mas como este é a forma sob a qual se encontra todo conhecimento do sujeito, enquanto este conhece como indivíduo, assim as ideias se localizarão totalmente fora da esfera do conhecimento do sujeito como tal. Portanto, se as ideias devem se tornar objeto do conhecimento, a condição é a supressão da individualidade no sujeito cognoscente. Esclarecimentos mais acurados e pormenorizados sobre este assunto nos ocuparão a seguir.

§31

Antes de iniciar, seja a seguinte observação essencial. Espero ter sido bem sucedido no livro precedente no formar a convicção de que aquilo que é denominado coisa em si na filosofia de Kant, apresentado em doutrina sobremodo importante, porém obscura e paradoxal, sobretudo devido à maneira pela qual Kant a introduziu, concluindo do efeito para a causa, era encarado como ponto conflitante, e até mesmo como o lado débil de sua filosofia, que isto, assim pretendo, quando atingido pelo caminho bem diverso por nós percorrido, nada mais é do que a vontade, na esfera deste conceito ampliada e determinada do modo indicado. Espero, além disto, que não se hesite em reconhecer, feita a exposição precedente, nos graus determinados da objetivação desta vontade, que é o em-si do mundo, aquilo que Platão denominou as ideias eternas, ou as formas imutáveis (eidos) que, reconhecidamente o dogma principal, mas simultaneamente mais obscuro e paradoxo de sua doutrina, constituiu-se em objeto de meditação, de discussão, de escárnio e de admiração por parte de espíritos numerosos e diversos durante séculos.

Sendo a vontade a coisa em si, e a ideia a objetividade imediata desta vontade em um grau determinado, atinamos com a coisa em si de Kant e a ideia de Platão, única que lhe é óntós ón, estes dois grandes obscuros paradoxos dos dois maiores filósofos do Ocidente, não como idênticas porém estreitamente afins, e distintas apenas por uma única determinação. Ambos estes grandes paradoxos formam mesmo, justamente por se enunciarem de modo tão diverso, dadas as individualidades extraordinariamente diferentes de seus autores, e malgrado toda sua concordância e afinidade internas, o melhor comentário um em relação ao outro, ao se assemelharem a dois caminhos bem distintos conduzindo a objetivo único. Isto permite esclarecimento em poucas palavras. Com efeito, o que Kant diz é essencialmente o seguinte: “Tempo, espaço e causalidade não são determinações da coisa em si, mas pertencem unicamente a seu fenômeno, na medida em que não passam de formas de nosso conhecimento. Mas como toda multiplicidade e todo surgir e fenecer são possíveis unicamente mediante tempo, espaço e causalidade, também aquelas pertencem apenas ao fenômeno, e de modo algum à coisa em si. Contudo, como todo nosso conhecimento é condicionado por aquelas formas, toda a experiência é apenas conhecimento do fenômeno, não da coisa em si: por isto suas leis não podem ser aplicadas à coisa em si. Isto é válido inclusive para nosso próprio eu, que nós conhecemos unicamente como fenômeno, e não pelo que possa ser em si. Eis, com respeito ao ponto importante considerado, o sentido e conteúdo da doutrina de Kant. Por seu lado, Platão afirma: “As coisas deste mundo, percebidas por nossos sentidos, não possuem ser verdadeiro: elas sempre vêm a ser, mas nunca são: possuem apenas um ser relativo, são em conjunto apenas em e mediante sua relação recíproca”: assim é possível denominar todo seu ser-aí um não-ser. Em consequência também não são objetos de um conhecimento propriamente dito (epistéme), pois este é possível quanto ao que é em e para si e de um modo sempre idêntico: elas porém são apenas o objeto de uma suposição sugerida pela sensação (dóxa met’ aisthéseos alógou). Enquanto limitados à percepção das coisas, parecemos homens em uma caverna escura, atados de maneira tal que impossibilite mesmo os movimentos da cabeça, e que nada vissem além das silhuetas de coisas reais projetadas em uma parede à sua frente pela luz de um fogo aceso por trás de suas costas, inclusive uns em relação aos outros e mesmo cada um quanto a si próprio: somente as sombras naquela parede. Sua sabedoria, porém, constituir-se-ia na previsão da sequência daquelas sombras, aprendida por experiência. Por outro lado, que pode ser denominado única e verdadeiramente existente (óntôs ón) porque sempre é, mas nunca vem a ser, nem deixa de ser, são os modelos de tais imagens: as ideias eternas, as formas originais de todas as coisas. Não lhes cabe a multiplicidade: pois cada uma é, conforme sua essência, unicamente enquanto é o próprio modelo, cujas reproduções ou sombras são todas as coisas da mesma espécie, de igual nome, individuais e transitórias. Também não possuem começo e nem fim, pois são verdadeiramente existentes, nunca porém o que começa, nem o que termina, como suas cópias perecíveis. (Estas duas determinações negativas contêm necessariamente o pressuposto, porém, de que tempo, espaço e causalidade não possuem significado nem validade para as ideias, que não existem nestes.) Assim, apenas delas podemos ter um conhecimento propriamente dito, uma vez que pode ser objeto deste unicamente o que existe sempre e sob qualquer consideração (portanto em si), e não o que existe, mas também não existe, conforme seja enfocado”. Esta é a doutrina de Platão. É evidente, e não requer qualquer comprovação adicional, que o sentido interno de ambas as doutrinas é totalmente o mesmo, que ambas explicam o mundo visível como um fenômeno, sem existência em si, e que somente mediante o que nele se manifesta (para um, a coisa em si, para outro, a ideia) possui significado e realidade emprestada; realidade esta, porém, verdadeiramente existente, a que, conforme ambas as doutrinas, todas as formas daquele fenômeno, mesmo as mais gerais e essenciais, são inteiramente estranhas. Para negar estas formas, Kant as encerrou em expressões abstratas e por assim dizer negou à coisa em si o tempo, o espaço e a causalidade como meras formas do fenômeno. Platão, por outro lado, não atingiu a expressão mais elevada, e recusou aquelas formas somente de modo mediatizado, às suas ideias, ao negar a estas o que unicamente é possível mediante aquelas, ou seja, a multiplicidade do análogo, o surgir e o desaparecer. Por redundância, contundo, desejo ressaltar ainda com um exemplo aquela peculiar e importante concordância. Esteja frente a nós um animal em sua vitalidade plena. Platão dirá: “Este animal não tem uma existência verdadeira, mas somente uma aparente, um devir constante, um ser-aí relativo, que pode ser chamado tanto não-ser quanto um ser. Verdadeiramente existente é apenas a ideia que se reproduz naquele animal, ou o animal em si mesmo (autô tô thérion), de tudo independente, mas existindo em e para si (kath ‘eautò, aeì hosautôs), sem começo, sem fim, porém sempre do mesmo modo (aeì ón, kaì medépote oúte gignómenon, oúte apollýmenon). Portanto, enquanto reconhecemos neste animal a sua ideia, é totalmente indiferente e sem significado o termos frente a nós agora este animal, ou seu ancestral de um milênio, que o local seja este ou num país distante, que se apresente desta ou daquela maneira, posição ou ação, que finalmente seja este ou aquele indivíduo de sua espécie: isto tudo não existe e refere-se somente ao fenômeno: unicamente a ideia do animal possui existência verdadeira e é objeto de conhecimento real”. Assim Platão. Kant diria, por exemplo: “Este animal é um fenômeno no tempo, no espaço e na causalidade, que todos são as condições a priori da possibilidade da experiência que se encontram em nossa capacidade cognitiva, e não determinações da coisa em si. Por isto este animal, tal como o percebemos neste instante determinado, neste dado local, em conexão com a experiência, i.e. a cadeia de causas e efeitos, como um indivíduo que teve início e do mesmo modo necessariamente terá fim, não é um ser em si, mas um fenômeno válido apenas em relação ao nosso conhecimento. Para se conhecê-lo no que possa ser em si, consequentemente independente de todas as determinações situadas no tempo, no espaço e na causalidade, seria necessário um modo de conhecimento outro do que o único que nos é possível, através dos sentidos e do entendimento”.

Aproximando ainda mais o enunciado kantiano do platônico, diríamos: tempo, espaço e causalidade são aqueles dispositivos de nosso intelecto graças a que o ser único de qualquer espécie, propriamente existente, se nos apresenta como uma multiplicidade de seres de mesma espécie, num nascer e perecer incessantemente renovado, numa sucessão infinita. Tomar as coisas mediante e conforme dito dispositivo é a apercepção imanente; mas fazê-lo com consciência do processo empregado constitui a apercepção transcendental. Esta última atingimos in abstracto pela crítica da razão pura; contudo excepcionalmente ela pode se verificar também de modo intuitivo. Este adendo final é meu, que me esforço por aclarar com este terceiro livro.

Tivesse jamais a doutrina kantiana, tivesse, a partir de Kant, a doutrina platônica sido efetivamente compreendida e interpretada, houvesse sido meditado com fidelidade e seriedade sobre o sentido e conteúdo interno das doutrinas de ambos os grandes mestres, em vez de empregar a torto e a direito os termos de um e parodiar o estilo de outro, não se subtrairia o reconhecimento de quanto ambos os grandes sábios concordam, e o significado estrito, o objetivo de ambas as doutrinas, é estritamente o mesmo. Não somente não se teria comparado constantemente Platão e Leibniz, quem de modo algum seu espírito inspira, ou até com um conhecido senhor [2] ainda vivo, como a zombar dos manes do grande pensador da antiguidade; mas ter-se-ia de um modo geral muito além do que o feito, ou melhor, não se teria retrocedido de modo tão ignominioso como nestes derradeiros quarenta anos; não se teria sido logrado, hoje por um, amanhã por outro cabeça de vento, e não se teria inaugurado na Alemanha o século XIX, tão promissoramente significativo, com farsas filosóficas apresentadas sobre o túmulo de Kant (como ocasionalmente os antigos durante os funerais dos seus), sob o justo escárnio de outras nações, visto ser o alemão, sério e mesmo cerimonioso, o menos indicado para tanto. Porém, tão restrito é o público efetivo de filósofos verdadeiros que, mesmo os discípulos que compreendem, lhes são conduzidos mui parcamente através dos séculos.

Eísi dê narthekophóroi mên poliol, bákkhoi dê gepaurói. (Thyrsigeri quidem multi, Bacchi veropauci.) [3]

He atimia philosophía dià taúta prospéptoken, hóti ou kath’, áxian autês haptóntai ou gàr nóthous edei áptesthai, allà gnésious. (Fam oh rem philosophia in infamiam incidit, quod non pro dignitate ipsam attingunt: neque enim a spuriis, sed a legitimis erat attrectanda). [4] (Platão)

Estribavam-se nas palavras, as palavras: “representações a priori, formas conscientes do intuir e do pensar independente da experiência, conceitos primitivos do entendimento puro” etc., e perguntava-se então se as ideias de Platão, que também pretendem ser conceitos primitivos e além disto também reminiscências de uma intuição das coisas verdadeiramente existentes, anterior à vida, não seriam idênticas com as formas kantianas do intuir e do pensar, que se encontram a priori em nossa consciência: estas duas doutrinas inteiramente heterogêneas, a kantiana das formas, que restringem o conhecimento do indivíduo ao fenômeno, e a platônica das ideias, cujo conhecimento nega explicitamente aquelas formas — estas doutrinas, nesta medida diametralmente opostas, pois que se assemelhavam um pouco em suas expressões, eram comparadas com atenção, discutidas quanto a sua identidade, concluindo-se por fim que não eram mesmo iguais, e inferindo que a doutrina das ideias de Platão e a crítica da razão de Kant nada possuem em comum. [5] Mas isto é o suficiente sobre este assunto.

§32

Em consequência de nossas considerações anteriores, com toda a coincidência interna entre Kant e Platão, e a identidade do objetivo que ambos tinham em mente, ou a concepção de mundo, que os estimulava e conduzia ao filosofar, mesmo assim ideia e coisa em si não são simplesmente uma e a mesma: mas a ideia é para nós somente a objetividade imediata, e por isto adequada, da coisa em si, que porém ela própria é a vontade, a vontade enquanto ainda não objetivada, ainda não tornada representação. Pois a coisa em si deve, conforme Kant, ser livre de todas as formas presas ao conhecimento como tal: e é apenas um erro de Kant (como será mostrado no suplemento), [6] que ele não incluísse entre estas formas, antes de todas as outras, o ser-objeto-para-um-sujeito, por ser justamente esta a forma primeira e mais geral de todo fenômeno, isto é, representação; eis porque ele deveria ter recusado expressamente a sua coisa em si o ser objeto, o que o teria preservado daquela grande inconsequência, que não se tardou em descobrir. A ideia platônica, por outro lado, é necessariamente objeto, algo reconhecido, uma representação, e justamente devido a isto, e somente devido a isto, distinta da coisa em si; ela se despojou apenas das formas subordinadas do fenômeno, todas por nós compreendidas sob o princípio de razão, ou melhor, ainda não as adotou; contudo, manteve a forma primeira e mais geral, a da representação em geral, do ser objeto para um sujeito. As formas a esta subordinadas (cuja expressão geral é o princípio de razão) multiplicam a ideia em indivíduos singulares e transitórios cujo número é inteiramente indiferente à ideia. O princípio de razão é, portanto, novamente a forma adotada pela ideia, ao cair no conhecimento do sujeito enquanto individuo. A coisa individual que aparece em conformidade com o princípio de razão é, portanto, somente uma objetivação mediata da coisa-em-si (que é a vontade), entre as quais se encontra a ideia, como a única objetividade imediata da vontade, ao não adotar forma alguma própria ao conhecer como tal, senão a da representação em geral, i.e. do ser objeto para um sujeito. Por isto também unicamente ela é a objetivação mais adequada da vontade ou coisa-em-si, é ela mesma toda a coisa-em-si, apenas sob a forma da representação: e nisto reside o motivo da grande concordância entre Platão e Kant, embora, a rigor extremo, o dito por ambos não seja idêntico. As coisas individuais, porém, não são uma objetividade da vontade inteiramente adequada, mas aqui esta já se encontra obscurecida por aquelas formas, cuja expressão comum é o princípio de razão, que constituem, contudo, condições do conhecimento, tal como esta é possível ao indivíduo enquanto tal. De fato, se fosse permitido concluir a partir de um pressuposto impossível, nós não mais conheceríamos coisas individuais, nem acontecimentos, nem mudanças, nem multiplicidade, mas somente ideias, somente os graus da objetivação daquela vontade única, da verdadeira coisa-em-si, seriam captados com conhecimento distinto, e em consequência nosso mundo seria um Nunc stans; [7] se não fôssemos, como sujeito do conhecimento, simultaneamente indivíduos, i.e. nossa intuição não fosse mediatizada por um corpo, de cujas afecções ela parte, e ele próprio apenas vontade concreta, objetividade do desejo, portanto objeto entre objetos, e como tal, na medida em que penetra na consciência conhecedora, pode fazê-lo apenas nas formas do principio de razão, e consequentemente pressupõe e assim introduz o tempo e todas as outras formas expressas por aquele principio. O tempo é somente a visão dispersa e dividida possuída por um ser individual das ideias que estão fora do tempo, e portanto são eternas: por isto Platão afirma que o tempo é a imagem móvel da eternidade: aidnos eíkon kinetê ho khrónos. [8]

Uma vez que, como indivíduos, não temos conhecimento algum fora do subordinado ao princípio de razão, porém esta forma exclui o conhecimento das ideias, é certo que, se for possível nos elevarmos do conhecimento das coisas individuais ao das ideias, isto somente pode se verificar pela ocorrência de uma transformação no sujeito, correspondente e análoga àquela grande mudança de todo o modo do objeto, e mediante o qual o sujeito, enquanto conhecendo uma ideia, não é mais indivíduo.

§33

Sabemos, pelo livro precedente, que o conhecimento em geral pertence ele próprio à objetivação da vontade em seus graus mais elevados, e que a sensibilidade, os nervos, o cérebro, como outras partes do ser orgânico, constituem apenas expressão da vontade neste grau de sua objetividade, e portanto a representação por ela produzida está igualmente destinada ao serviço daquela como um meio (mekhané) para atingir seus agora complexos (polyteléstera) objetivos, para a manutenção de um ser provido de múltiplas necessidades. Originalmente, portanto, e conforme sua essência, o conhecimento é útil à vontade, e, assim como o objeto imediato que, com a aplicação da lei da causalidade se torna seu ponto de partida, é somente vontade objetivada, assim também todo conhecimento resultante do princípio de razão se mantém numa relação mais ou menos estreita com a vontade. Pois o indivíduo encontra seu corpo como um objeto entre objetos, com todos eles mantendo variadas relações e proporções conforme o princípio de razão, cuja observação, portanto, por vias mais ou menos extensas, sempre reconduz ao seu corpo, logo à sua vontade. Como é o princípio de razão que situa os objetos nesta relação com o corpo, e por isto com a vontade, o conhecimento servidor desta também se empenhará unicamente em conhecer dos objetos justamente as proporções estabelecidas pelo princípio de razão, portanto em seguir suas diversas relações no espaço, tempo e causalidade. Pois é somente graças a estas que o objeto é interessante ao indivíduo, i.e. possui uma relação com a vontade. Por isto o conhecimento a serviço da vontade conhece dos objetos praticamente nada além de suas relações, conhece os objetos somente enquanto existem neste momento, neste local, sob tais circunstâncias, por tais causas, com estes efeitos, em uma palavra, como coisas individuais; e suprimindo todas estas relações, também os objetos desapareceriam ao conhecimento, que deles nada mais conheceria. Não devemos também dissimular que o que as ciências consideram nas coisas de igual modo constitui essencialmente nada além daquilo, ou seja, suas relações, as relações de tempo e espaço, as causas de transformações naturais, a comparação das configurações, os motivos dos acontecimentos, portanto nada senão relações. O que as distingue do conhecimento comum é apenas sua forma, o sistemático, a facilitação do conhecimento pela reunião de todo o individual no geral, mediante a subordinação dos conceitos, e pela completeza destes assim adquirida. Toda relação possui ela mesma somente uma existência relativa: por exemplo, todo ser no tempo é também um não-ser: pois o tempo é apenas aquilo mediante o que podem corresponder à mesma coisa determinações opostas: por isto todo fenômeno no tempo também não é: pois o que separa seu começo de seu fim é justamente apenas o tempo, algo essencialmente passageiro, desprovido de substância e relativo, aqui denominado duração. O tempo, porém, é a forma mais geral de todos os objetos do conhecimento a serviço da vontade e o protótipo das demais formas do mesmo.

Regra geral, o conhecimento permanece sempre sujeito ao serviço da vontade, dado que se formou para este serviço, e mesmo emergiu da vontade assim como a cabeça emerge do tronco. Nos animais, esta serviçalidade do conhecimento sob a vontade nunca pode ser suprimida. Nos homens, esta supressão ocorre somente como exceção, como a seguir veremos mais de perto. Esta distinção entre homem e animal é expressa externamente pela diferença da relação da cabeça com o tronco. Nos animais inferiores ambas as partes se acham ainda soldadas homogeneamente; em todos, a cabeça está orientada para a terra, onde se encontram os objetos da vontade; mesmo nos superiores, a cabeça e o tronco permanecem unos de modo mais acentuado do que no homem, cuja cabeça parece livremente assente sobre o corpo, apenas portada por este, sem servi-lo. Este privilégio humano, o apresenta em seu mais alto grau o Apolo de Belvedere: a cabeça contempladora do deus das musas de tal modo se ergue livre nos ombros, que parece liberta inteiramente do corpo, e desobrigada de cuidados com ele.

§34

Esta transição possível, porém, sempre excepcional, do conhecimento comum de coisas individuais, ao conhecimento da ideia, ocorre de modo repentino, ao arrancar-se o conhecimento ao serviço da vontade, por cessar precisamente o sujeito de ser meramente individual, tornando-se agora sujeito puro do conhecimento, destituído de vontade, não mais se ocupando, conforme o princípio de razão, das relações; mas repousando e sendo absorvido na contemplação firme do objeto oferecido fora de quaisquer conexões com outros.

Isto requer, para se tornar claro, necessariamente um exame pormenorizado, em cujas estranhezas não há que se deter, pois desaparecerão por si, concatenado o conjunto do pensamento a ser exposto nesta obra.

Quando, erguidos pela força do espírito, abandonamos o modo comum de examinar as coisas, cessando de acompanhar somente suas relações entre si, cujo objetivo último é sempre a relação com a própria vontade, pelo fio condutor das configurações do princípio de razão, sem mais considerar nas coisas o onde, quando, por que e para que, mas única e exclusivamente o que; não permitindo também que se aloje na consciência o pensamento abstrato, os conceitos da razão; entregando porém todo poder de nosso espírito à contemplação, submergindo nesta inteiramente, permitindo o preenchimento pleno da consciência pela tranquila contemplação do objeto natural ocasionalmente presente, seja uma paisagem, uma árvore, um rochedo, uma construção, ou o que for; ao nos perdermos inteiramente neste objeto (sich gaenzlich in diesen Gegenstand verliert), num significativo modo de expressão alemão, ou seja, esquecendo nosso indivíduo, nossa vontade, continuando a subsistir somente como sujeito puro, límpido espelho do objeto; de tal modo que tudo se passasse, como se existisse unicamente o objeto, sem alguém que o percebesse, não se podendo mais distinguir portanto a intuição do seu sujeito, mas ambos se tornaram um, ao ser a consciência plenamente preenchida e ocupada por uma única imagem intuitiva; quando, portanto, o objeto abandonou toda relação com algo externo a ele, e o sujeito toda relação com a vontade; então o que é conhecido não é mais a coisa individual como tal; mas é a ideia, a forma eterna, a objetividade imediata da vontade neste grau; e precisamente por isto o referido nesta intuição já não é indivíduo, pois o indivíduo se perdeu numa tal intuição; mas ele é sujeito puro do conhecimento, destituído de vontade, de dor, de temporalidade. Esta afirmação tão surpreendente por ora (de que não ignoro confirmar a expressão proveniente de Thomas Paine, du sublime au ridicule il n’y a qu’un pas) [9] tornar-se-á pelo que segue gradativamente mais clara a menos estranha. Também nela pensava Espinosa, ao escrever: mens aeterna est, quatenus res sub aeternitatis specie concipit [10] (Ética v, prop. 31, schol.). [11] Numa tal contemplação, de um só golpe a coisa individual se torna a ideia de sua espécie, e o indivíduo que intui, o sujeito puro do conhecimento. O indivíduo como tal conhece apenas coisas individuais; o sujeito puro do conhecimento, somente ideias. Pois o indivíduo é o sujeito do conhecimento em sua relação com um fenômeno individual determinado da vontade, de quem é servidor. Este fenômeno individual da vontade como tal é subordinado ao princípio de razão em todas as configurações: todo conhecimento que se refere ao mesmo procede por isto também do principio de razão, e a propósito da vontade também nenhum se presta a não ser este, que mantém sempre somente relações com o objeto. O indivíduo que conhece, como tal, e a coisa individual por ele conhecida, sempre estão em algum lugar, um momento, e são membros da cadeia de causas e efeitos. O sujeito puro do conhecimento, e seu correlato, a ideia, se formaram a partir de todas aquelas formas do principio de razão: o tempo, o local, o indivíduo que conhece, e o indivíduo que é conhecido, não possuem significado para eles. É primeiramente na medida em que um indivíduo conhecedor eleva-se a si próprio, do modo descrito, a sujeito puro do conhecimento, e com isto também o objeto observado, a ideia, que aparece puro e por inteiro o mundo como representação, e ocorre a objetivação perfeita da vontade, já que unicamente a ideia é sua objetividade adequada. Esta encerra em si sujeito e objeto por igual, uma vez que estes são sua única forma: nela contudo ambos mantêm estritamente o equilíbrio: e como também aqui o objeto nada é além da representação do sujeito, assim também o sujeito, dissolvendo-se por inteiro no objeto observado, se torna ele próprio este objeto, na medida em que toda a consciência nada mais é além da imagem límpida deste.

É justamente esta consciência, concebida como traspassada pela totalidade ordenada das ideias, ou graus da objetividade da vontade, que constitui propriamente todo o mundo como representação. As coisas individuais de todas as épocas e lugares nada mais são do que as ideias, multiplicadas pelo principio de razão (a forma do conhecimento dos indivíduos como tais), e por isso turvada em sua objetividade pura. Assim como, ao surgir a ideia, não são mais distinguíveis nela sujeito e objeto, porque é somente quando estes se complementam e se interpenetram completamente, que se forma a ideia, a objetividade adequada da vontade, o mundo como representação propriamente; do mesmo modo também o indivíduo que aqui conhece, e o que é conhecido, já não são diferenciáveis. Pois se abstrairmos inteiramente daquele mundo como representação propriamente dito, nada resta além do mundo como vontade. A vontade é o em-si da ideia, esta objetivando perfeitamente aquela; ela também é o em-si da coisa individual e do indivíduo que conhece esta; estes objetivando imperfeitamente aquela. Como vontade, fora da representação e de todas as suas formas, ela é uma e a mesma, no objeto contemplado, e no indivíduo que, elevando-se por esta contemplação, se torna consciente de si como puro sujeito; estes dois por isto não são em si diferenciáveis, pois em si são a vontade que se conhece a si mesma, e é somente do modo pelo qual este conhecimento se lhe constitui, i.e. somente no fenômeno, graças à sua forma, o princípio de razão, multiplicidade e diversidade. Tampouco eu, sem o objeto, sem a representação, sou sujeito que conhece, mas tão somente simples vontade cega; tampouco sem mim, como sujeito do conhecimento, a coisa conhecida é objeto, mas tão somente simples vontade, ímpeto cego. Esta vontade é em si, i.e. fora da representação, idêntica à minha própria; somente no mundo como representação, cuja forma é sempre pelo menos sujeito e objeto, nos separamos como indivíduo conhecido e conhecedor. Suprimido o conhecedor, o mundo como representação, nada resta além de simples vontade, ímpeto cego. Que ele adquira objetividade, se torne em representação, instaura de um golpe tanto sujeito como objeto: porém que esta objetividade seja objetividade pura, perfeita, adequada da vontade, instaura o objeto como ideia, livre das formas do princípio de razão, e o sujeito como puro sujeito do conhecimento, livre de individualidade e servidão para a vontade.

Quem do modo descrito se aprofundou e perdeu na intuição da natureza a tal ponto de nada ser além de puro sujeito cognoscente sentirá de imediato que, como tal, se constitui na condição, portanto o suporte, do mundo e de toda existência objetiva, uma vez que esta se apresenta agora como dependente da sua. Ele recolhe portanto a natureza em si mesmo, a senti-la somente ainda como um acidente de seu próprio ser. Neste sentido Byron diz:

Are not the mountains, waves and skies, a part
Of me and of my soul, as I of them? [12]

Mas como poderia quem isto sentisse considerar-se a si mesmo, em contraste com a imperecível natureza, como absolutamente perecível? Será muito mais arrebatada pela consciência do proferido pelo Upanichade dos Vedas:

Hae omnes creaturae in totum ego sum,
et praeter me aliud ens non est. (Oupnek’hat, I, 122) [13]

§35

Para um exame mais profundo da essência do mundo, torna-se indispensável aprender a distinguir a vontade como coisa-em-si, de sua objetividade adequada, os diversos graus em que esta aparece de modo mais distinto e perfeito, i.e. as próprias ideias, do simples fenômeno das ideias na configuração do princípio de razão, o modo limitado do conhecimento dos indivíduos. Assim concordaremos com Platão, ao conceder esta existência propriamente dita somente às ideias, reconhecendo, por outro lado, às coisas no espaço e no tempo, este mundo real para o indivíduo, apenas uma existência aparente, ilusória. Então nos daremos conta como uma e mesma ideia se revela em tantos fenômenos, apresentando sua essência aos indivíduos cognoscentes só fragmentariamente, um lado após o outro. Distinguiremos então também entre a ideia mesma e o modo pelo qual seu fenômeno se insere na observação do indivíduo, reconhecendo aquela como essencial, esta como inessencial. Examinaremos isto por exemplos, primeiro numa abordagem mais restrita, depois duma maneira mais ampla. Quando passam as nuvens, não lhes são essenciais as figuras que elas formam, são-lhes indiferentes: mas sim que como névoa elástica, são comprimidas pelo impacto do vento, levadas adiante, dispersas e rompidas; esta é sua natureza, a essência das forças que nelas se objetivam, é a ideia: as figuras ocasionais são somente para o observador individual. Ao córrego rolando sobre pedras, os remoinhos, as ondas, as formações de espuma que ele mostra, são indiferentes e inessenciais; que obedeça ao peso, se comporte como líquido inelástico, completamente sem rigidez, sem forma e transparente; esta é sua essência, esta é, quando intuitivamente conhecida, a ideia; apenas para nós, enquanto conhecendo como indivíduos, há aquelas configurações. O gelo na janela se assenta conforme as leis da cristalização, que revelam a essência da força natural aqui aparente, representando a ideia; mas as figuras de árvores e flores assim formadas são inessenciais, e existem apenas para nós. O que aparece nas nuvens, no córrego e nos cristais, é o mais débil eco daquela vontade, que se mostra de modo mais perfeito no vegetal, mais perfeito ainda no animal, do modo mais perfeito no homem. Porém somente o essencial de todos aqueles graus de sua objetivação constitui a ideia: mas o desdobramento desta, ao ser estendido em fenômenos diversos e múltiplos nas configurações do princípio da razão; isto é inessencial à ideia, repousa apenas no modo de conhecimento do indivíduo, e unicamente para este possui realidade. O mesmo vale necessariamente também para o desdobramento daquela ideia que é a objetividade mais perfeita da vontade; em consequência a história da humanidade, a agitação dos acontecimentos, a mudança dos tempos, as formas variadas da vida humana em países e épocas diferentes, tudo isto é apenas a forma acidental do fenômeno da ideia, não pertence a esta mesma, em que se encontra unicamente a objetividade adequada da vontade, mas apenas ao fenômeno, que cai no conhecimento do indivíduo, e é tão estranho, inessencial e indiferente à ideia ela mesma, como são as figuras às nuvens, a forma dos remoinhos e das espumas para o córrego, as árvores e as flores para o gelo.

Quem entendeu bem tudo isto, e sabe distinguir a vontade da ideia, e esta de seu fenômeno, a este os acontecimentos do mundo terão significado somente enquanto são as letras em que é possível ler a ideia do homem, mas não em e para si. Não acreditará, com a opinião comum, que o tempo possa produzir algo verdadeiramente novo e importante, que nele ou por meio dele algo efetivamente real adquira existência, ou mesmo que ele próprio, como um todo, possua começo e fim, plano e desenvolvimento, e porventura como objetivo último a perfeição suprema (de acordo com seus conceitos) da última geração de trinta anos. Por isto ele não comporá, como fez Homero, todo um Olimpo com deuses para a direção daqueles acontecimentos temporais, nem considerará, como Ossian, as figuras das nuvens seres individuais, visto que ambas as coisas têm igual importância em relação à ideia nelas contida. Nas variadas formações da vida humana e na incessante transformação dos acontecimentos, ele considerará o durável e essencial somente a ideia, em que o querer-viver [14] possui sua mais perfeita objetividade, e que mostra suas diversas faces nas propriedades, paixões, enganos e preferência da espécie humana, no egoísmo, ódio, amor, temor, audácia, leviandade, estupidez, esperteza, humor, gênio etc., que, se reunindo e combinando em configurações mil (indivíduos), apresentam continuamente a grande e a pequena comédia da história do mundo, sendo indiferente se seu móvel é constituído por nozes ou coroas. Por fim, perceberá que tudo sucede no mundo como nos dramas de Gozzi, em todos os quais se apresentam sempre as mesmas pessoas, como igual propósito e igual destino: é certo que os motivos e acontecimentos são diferentes em cada peça; mas o espírito dos acontecimentos é o mesmo: as pessoas de uma peça também nada sabem dos acontecimentos duma outra, em que porém elas mesmas atuavam: por isto, após todas as experiências das peças anteriores, Pantaleão não se tomou mais ágil ou generoso, Tartaglia, mais escrupuloso, Briguela, mais corajoso, e Colombina, mais virtuosa.

Suponhamos que nos fosse dado obter uma visão distinta no reino das possibilidades e sobre todas as cadeias de causas e efeitos, que o espírito do mundo se apresentasse e nos mostrasse em um único quadro os mais excelentes indivíduos, sábios e heróis, destruídos pelo acaso antes do momento de sua eficácia — e então os grandes eventos, que teriam transformado a história do mundo e trazido períodos da mais alta cultura e esclarecimento, impedidos em seu surgimento pela mais cega casualidade, o mais insignificante imprevisto — finalmente as maravilhosas forças de grandes indivíduos, capazes de fertilizar eras inteiras, que estes, porém, por engano ou paixão, ou premidos pela necessidade, desperdiçaram inutilmente em objetos indignos e infecundos, ou mesmo as esbanjaram por gáudio; víssemos tudo isto, nos horrorizaríamos e lastimaríamos os tesouros perdidos de épocas inteiras. Mas o espírito do mundo se tomaria de um sorriso e diria:

A fonte de que jorram os indivíduos e suas forças é inesgotável e infinita como o tempo e o espaço; pois aqueles são, justamente como estas formas de todo fenômeno, também somente fenômeno, visibilidade da vontade. Medida finita alguma pode esgotar aquela fonte infinita; e por isto a todo evento, ou obra, sufocada em germe, ainda se apresenta em aberto para o retorno a infinidade intata. Neste mundo do fenômeno há tão pouco prejuízo verdadeiro possível, quanto verdadeiro lucro. Unicamente a vontade é: ela, a coisa-em-si, ela, a fonte daqueles fenômenos. Seu autoconhecimento, e a afirmação ou negação decidida a partir deste, é o único acontecimento em s”. [15]

§36

Seguir o fio dos acontecimentos é ocupação da história: ela é pragmática ao deduzi-los pela lei da motivação, lei que determina a vontade fenomênica ali onde esta é iluminada pelo conhecimento. Nos graus inferiores de sua objetividade, em que ainda age sem conhecimento, a lei das transformações de seus fenômenos é examinada pelas ciências naturais, como etiologia, e o que neles é permanente, como morfologia, que torna mais fácil sua tarefa quase infinita com o auxílio dos conceitos, reunindo o geral, para dele deduzir o particular. Finalmente, as formas puras, em que, para o conhecimento do sujeito como indivíduo, as ideias aparecem multiplicadas, portanto o tempo e o espaço, são examinadas pela matemática. Tudo isto, que em comum recebe o nome de ciência, obedece portanto ao princípio de razão em suas diversas configurações, e seu tema permanece o fenômeno, suas leis, sua conexão e as relações assim originadas. Mas que espécie de conhecimento examinará então o que existe exterior e independente de toda relação, único propriamente essencial do mundo, o verdadeiro conteúdo de seus fenômenos, submetido a mudança alguma e por isto conhecido com igual verdade a qualquer momento, em uma palavra, as ideias, que constituem a objetividade imediata e adequada da coisa-em-si, da vontade? É a arte, a obra do gênio. Ela reproduz as ideias eternas, apreendidas mediante pura contemplação, o essencial e permanente de todos os fenômenos do mundo, e conforme a matéria em que ela reproduz, se constitui em artes plásticas, poesia ou música. Sua única origem é o conhecimento das ideias; seu único objetivo, a comunicação deste conhecimento. Enquanto a ciência, perseguindo a torrente incessante e instável das causas e dos efeitos, em suas quatro formas, em cada meta atingida é continuamente forçada adiante, sem poder atingir um objetivo último, uma satisfação plena, assim como não podemos correndo atingir o ponto onde as nuvens tocam o horizonte; ao contrário, a arte sempre está em seu objetivo. Pois ela arranca do curso dos acontecimentos do mundo o objeto de sua contemplação, isolando-o diante de si: e este algo individual, que era uma parte imensamente pequena naquela torrente, torna-se seu representante do todo, um equivalente do infinitamente numeroso no espaço e no tempo: ela permanece portanto neste individual, detém a roda do tempo, as relações desaparecem para ela, somente o essencial, a ideia, é seu objeto. Assim podemos mesmo designá-la como o modo de encarar as coisas independentemente do princípio de razão em oposição àquele que a este obedece, que é a via da experiência e da ciência. Este último modo é comparável a uma linha infinita, horizontal; o primeiro, contudo, à vertical que a corta em qualquer ponto desejado. O que se dá conforme o princípio de razão é o procedimento racional, único válido e útil na vida prática, bem como na ciência: o que abstrai do conteúdo daquele princípio é o procedimento genial, único válido e útil na arte. O primeiro é o procedimento de Aristóteles; o segundo é, em seu conjunto, o de Platão. O primeiro é igual à tempestade, propagando-se sem origem nem meta, tudo arqueando, agitando e arrastando; o segundo, ao sereno raio de sol, cortando o caminho desta tempestade, sem ser por esta afetado. O primeiro é igual às gotas inumeráveis e agitadas da cachoeira, que, em permanente renovação, não repousam um só instante: o segundo, ao tranquilo arco-íris em repouso sobre esta fúria tumultuosa. Somente mediante a contemplação pura acima descrita, inteiramente absorvida no objeto, as ideias podem ser captadas, e a essência do gênio consiste justamente na capacidade predominante para tal contemplação: como esta requer um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações; assim a genialidade nada mais é do que a mais perfeita objetividade, i.e. orientação objetiva do espírito, contraposta à subjetiva, dirigida à própria pessoa, i.e. à vontade. Desta forma, a genialidade é a capacidade de se comportar apenas intuitivamente, se perder na intuição e arrebatar o conhecimento, existente originalmente somente para tal fim, ao serviço da vontade, i.e. abstrair por completo de seu interesse, seu querer, seus objetivos, despojar-se por um tempo inteiramente de sua personalidade, para permanecer como sujeito puro do conhecimento, límpida vista do mundo: e isto não por instantes, mas durante o tempo necessário, e com tal circunspecção, para reproduzir o apreendido mediante uma arte estudada, e assim “o que paira em imagens oscilantes, ser firmado em pensamentos permanentes”. Tudo se passa como se, para o gênio se mostrar num indivíduo, a este deve ter correspondido uma medida de força intelectual bem superior à necessária ao serviço de uma vontade individual; excedente livre de conhecimento, constituindo agora um sujeito isento de vontade, espelho luminoso da essência do mundo. Isto explica a vivacidade intranquila em indivíduos geniais, ao lhes ser raramente suficiente o presente por não preencher sua consciência; o que lhes confere sua dedicação incansável, sua permanente procura de objetos novos e dignos de consideração, e também sua quase nunca satisfeita busca de seres semelhantes, à sua altura, com quem se comunicar; enquanto o mortal comum, completamente preenchido e satisfeito pelo presente ordinário, nele é absorvido, e encontrando por toda parte seus semelhantes possui no dia a dia aquele conforto, que é recusado ao gênio. A fantasia foi reconhecida como um integrante substancial da genialidade, tendo mesmo com ela por vezes sido identificada: aquilo com razão, isto não. Os objetos do gênio como tal sendo as ideias eternas, as formas essenciais permanentes do mundo e de todos os seus fenômenos, o conhecimento da ideia sendo contudo necessariamente intuitivo, e não abstrato; o conhecimento do gênio seria limitado às ideias dos objetos verdadeiramente presentes à sua pessoa, e dependente do encadeamento das circunstâncias que estes lhe apresentassem, não ampliasse a fantasia o seu horizonte bem acima da realidade de sua experiência pessoal, situando-o numa posição tal a construir, a partir do pouco introduzido em sua verdadeira apercepção, todo o restante, desfilando por si assim quase todos os quadros possíveis da vida. Além disto, os objetos verdadeiros quase sempre são apenas exemplares bem lacunosos da ideia que neles se apresenta: por isto o gênio necessita da fantasia, para enxergar nas coisas não somente aquilo que a natureza realmente formou, porém o que pretendia formar, mas sem sucesso, dada a luta de suas formas entre si, mencionada no livro precedente. Retomaremos isto mais adiante, ao tratar da escultura. A fantasia, portanto, amplia a visão do gênio sobre as coisas apresentadas na realidade a sua pessoa, tanto com respeito à qualidade, como à quantidade. Por isto a força excepcional da fantasia é companheira, e mesmo condição, da genialidade. Porém, inversamente, aquela não comprova esta; pois mesmo pessoas não geniais em alto grau podem possuir bastante fantasia. Porque como é possível considerar um objeto real de duas maneiras opostas: de modo puramente objetivo, genial, assimilando a sua ideia; ou de modo ordinário, somente em suas relações conforme o princípio de razão com outros objetos e com a própria vontade; assim também é possível contemplar uma imagem ilusória segundo estes modos: pelo primeiro, constitui um meio para o conhecimento da ideia, cuja comunicação é a obra de arte; no segundo caso, a imagem ilusória é utilizada para construir castelos no ar, que agradem ao egoísmo ou ao capricho próprio, iludem momentaneamente e deliciam; enquanto das imagens ilusórias assim combinadas propriamente apenas as relações são conhecidas. Quem se diverte num tal jogo é um fantasista: facilmente mesclará as imagens, com que se delicia solitariamente, com a realidade, tornando-se assim imprestável para esta: talvez lhe ocorra relatar as fraudes de sua fantasia, que se constituirão comumente em romances de todos os tipos, a entreter seus semelhantes e o grande público, ao se imaginarem os leitores no lugar do herói, encontrando assim a representação bem “agradável”.

O homem comum, este produto industrial da natureza, tal como esta o apresenta diariamente aos milhares, é incapaz, ao menos de modo persistente, de uma observação em todo sentido inteiramente desinteressada: ele pode dirigir sua atenção às coisas somente enquanto estas apresentam uma relação qualquer, mesmo que apenas mui mediatizada, com sua vontade. Como a este respeito, que solicita sempre apenas o conhecimento das relações, o conceito abstrato da coisa é suficiente e em geral mesmo mais útil, o homem comum não permanece muito tempo com a pura intuição, não fixando por muito tempo sua visão num objeto, mas procura em tudo que se lhe apresenta apenas rapidamente o conceito sob o qual o alojar, assim como o indolente procura a cadeira, após o que isto já não lhe interessa. Por isto ele esgota tudo com rapidez, obras de arte, objetos belos da natureza, e a visão propriamente sempre significativa da vida em todos os seus atos. Ele, porém, não se demora: procura apenas seu caminho na vida, quando muito o que ainda poderia vir a sê-lo, portanto, notícias topográficas em seu sentido mais amplo: não perde tempo com a contemplação da vida como tal. O gênio, contudo, cuja faculdade de conhecimento, dado seu sobrepeso, se subtrai por uma parte do seu tempo, ao serviço de sua vontade, perseverando na contemplação da própria vida, ambicionando apreender a ideia de todas as coisas, e não suas relações com outras coisas; destarte descuidando frequentemente da observação de seu próprio caminho na vida, que percorre na maioria dos casos com suficiente inabilidade. Enquanto para o homem comum sua faculdade de conhecer é a lanterna que ilumina seu caminho, para o homem de gênio é o sol que revela o mundo. Esta maneira tão diferente de encarar a vida rapidamente torna-se visível mesmo em seu exterior. O olhar do homem, em que reside e atua o gênio, o distingue com facilidade, ao portar, viva e firmemente, o caráter contemporizador da contemplação; que podemos ver nos retratos das poucas cabeças geniais, produzidas entre os inumeráveis milhões aqui e ali pela natureza: em contraste, no olhar dos outros, quando este não é, como geralmente ocorre, destituído de espírito e elevação, discernimos, com facilidade, o verdadeiro oposto da contemplação, o espiar. Assim a “expressão genial” de uma cabeça consiste em tornar visível uma decisiva preponderância do conhecer em relação ao querer, e em consequência também um conhecer destituído de qualquer relação com um querer, i.e. um conhecer puro. Ao contrário, em cabeças regulares, a expressão do querer é dominante, e torna-se claro que o conhecer sempre é movido pelo querer, assim dirigindo-se somente a motivos.

Sendo o conhecimento genial, ou conhecimento da ideia, o que não obedece ao princípio de razão, e por outro lado, aquele que lhe obedece, outorga esperteza e sagacidade na vida e origina as ciências; os indivíduos geniais serão afetados com as carências provocadas pela negligência do último modo de conhecimento. Contudo há que fazer a restrição de que tudo o que foi abordado aqui neste sentido somente lhes dirá respeito enquanto estiverem efetivamente no exercício do modo de conhecimento genial, o que de modo algum ocorre em todos os momentos de sua vida, já que a grande tensão, por mais espontânea, requerida para a percepção das ideias isenta de vontade, necessariamente sofre um relaxamento, portando grandes intervalos em que, tanto no que se refere às vantagens quanto às deficiências, sua situação se assemelha bastante à dos homens comuns. É por isto que a ação do gênio desde sempre foi encarada como uma inspiração, e, como o próprio nome indica, como a atividade de um ser sobre-humano, distinto do indivíduo ele mesmo, e que apenas periodicamente dele se apropria. A aversão dos indivíduos de gênio, em dedicar atenção ao conteúdo do princípio de razão, se apresentará em primeiro lugar em relação ao princípio do ser, [16] como aversão pela matemática, cujas considerações dizem respeito às formas mais gerais do fenômeno, do espaço e do tempo, elas próprias somente configurações do princípio de razão, sendo assim precisamente o oposto daquela consideração que procura justamente apenas o conteúdo do fenômeno, a ideia que nele se manifesta, abstraindo de todas as relações. Além disso, o tratamento lógico dado à matemática repugnará ao gênio, já que este, impedindo a compreensão propriamente dita, não satisfaz, mas oferecendo um simples encadeamento de conclusões conforme o princípio de razão do conhecimento, solicita de todas as faculdades do espírito, sobretudo a memória, para estarem presentes sempre todas as proposições anteriores, às quais há que se reportar. Também a experiência confirmou que grandes gênios da arte não possuem capacidade para a matemática: jamais houve homem notável em ambas simultaneamente. Alfieri narra não ter mesmo nunca entendido sequer o quarto teorema de Euclides. A Goethe se reprovou muito a carência de conhecimento matemático, por parte de adversários ineptos de sua teoria das cores: justamente aqui, onde não se tratava de calcular e medir sobre dados hipotéticos, mas de intelecção imediata da causa e do efeito, aquela reprovação era a tal ponto injusta e indevida, que por ela os críticos revelaram sua total ausência de capacidade de juízo, como o fizeram com todas suas outras expressões dignas de Midas. Que mesmo hoje, quase meio século após o surgimento da teoria das cores de Goethe, inclusive na Alemanha, os ilusionistas newtonianos se mantêm tranquilos de posse das cátedras e se prossegue, com inteira seriedade, a falar das sete cores homogêneas e de sua diferente refração — isto será incluído algum dia entre os grandes traços intelectuais do caráter da humanidade em geral, e da germanidade em particular. Pela mesma razão acima exposta se esclarece o fato igualmente conhecido de que, pelo contrário, excelentes matemáticos possuem pouca receptividade para as obras das belas artes, o que transparece de maneira particularmente ingênua na conhecida anedota daquele matemático francês que após a leitura da Ifigênia de Racine perguntava, encolhendo os ombros: Qu’ést-ce-que cela prouve? [17] Como além disto uma compreensão aguda das relações conforme o princípio da causalidade e motivação constitui propriamente a esperteza, o conhecimento genial porém não se orienta para as relações; um homem esperto, enquanto o for, não será genial, e um homem genial, enquanto o for, não será esperto. Por fim, o conhecimento intuitivo, em cuja área se localiza sobretudo a ideia, é diretamente oposto ao conhecimento racional, ou abstrato, orientado pelo princípio de razão do conhecimento. Também raramente se encontra grande genialidade aliada ao predomínio de racionalidade; pelo contrário, indivíduos geniais são dominados frequentemente por afecções violentas e paixões irracionais. O motivo disto contudo não é fraqueza da razão, mas em parte a energia descomunal do fenômeno da vontade em conjunto, que é o indivíduo de gênio, a qual se manifesta pela violência de todas as ações da vontade, em parte o predomínio do conhecimento intuitivo pelos sentidos e pelo entendimento, sobre o abstrato, donde uma orientação decisiva para o intuitivo, cuja impressão enérgica em altíssimo grau ultrapassa neles os conceitos incolores, a tal ponto que não mais são estes, mas aquela a dirigir a ação, a tornar-se justamente assim irracional: assim a impressão do presente sobre os gênios é muito poderosa, arrastando-os ao irrefletido, à afecção, à paixão. Por isto também, e sobretudo porque seu conhecimento se subtraiu em parte ao serviço da vontade, durante a conversação pensarão menos na pessoa a quem, e mais na coisa de que falam, vivamente presentes em seu espírito; julgando e narrando assim de maneira excessivamente objetiva para seu interesse, sem calar o que mais sabiamente seria calado etc. É finalmente por isto que mostram tendência ao monólogo, podendo inclusive mostrar várias fraquezas e aproximá-los realmente da loucura. Que a genialidade e a loucura possuem um lado pelo qual se encontram, e até se confundem, já foi observado com frequencia, e mesmo o entusiasmo artístico já foi denominado uma espécie de loucura: amabilis insania lhe chamou Horácio (Odisséia, III, 4) e holder Wahnsinn (adorável loucura), Wieland na introdução ao Oberon. Conforme Sêneca (De Tranquilitate Animi, 15, 16), mesmo Aristóteles afirmou: Nuilum niagnum ingenium sine mixtura dementiae fuit. [18] Platão o exprimiu, no mito da caverna abordado mais acima (De Republica, 7), dizendo: Aqueles que, no exterior da caverna, enxergaram a verdadeira luz do sol e os objetos verdadeiramente existentes (as ideias), não conseguem mais enxergar na caverna, pois seus olhos se desacostumaram da escuridão, não conseguem mais reconhecer bem as silhuetas, e por seus enganos são motivos de zombaria por parte dos outros, que nunca se afastaram desta caverna e destas silhuetas. Também no Fedro ele afirma que sem uma certa loucura não existiria nenhum legítimo poeta, que qualquer um que conhece as ideias eternas nas coisas transitórias apareceria como louco. Também Cícero declara: Negat enim, sine furore, Democritus, quemquam poëtam magnum esse posse; quod idem dicit Plato (De Divinatione, 1, 37). [19] E finalmente diz Pope:

Great wits to madness sure are near allied,
And thin partitions do their bounds divide. [20]

Particularmente instrutivo a este respeito é o “Torquato Tasso” de Goethe, em que situa a nossos olhos não somente o sofrimento, o martírio essencial do gênio como tal, mas também sua constante transição à loucura. Por fim, o parentesco estreito entre genialidade e loucura é confirmado pelas biografias de alguns homens geniais, como Rousseau, Byron, Alfieri, e por anedotas da vida de alguns outros; devo por outro lado acrescentar ter encontrado, em frequentes visitas aos hospícios, sujeitos isolados, de talento indiscutivelmente grande, cuja genialidade transpirava nitidamente através da loucura, que contudo se mantinha totalmente dominante. Isto não pode ser atribuído ao acaso, porque de um lado o número dos loucos é relativamente bem pequeno, por outro lado porém porque um indivíduo genial é um fenômeno raro, para além de qualquer avaliação normal, e que aparece na natureza somente como a maior das exceções; para nos convencermos deste fator, basta tomar os gênios verdadeiramente grandes produzidos pela totalidade da Europa culta durante toda a época antiga e moderna, incluindo porém unicamente os que produziram obras de valor permanente para a humanidade — contá-los e compará-los em número aos 250 milhões que habitam a Europa, renovando-se a cada 30 anos. Não quero deixar de mencionar que conheci algumas pessoas de superioridade intelectual decisiva, mesmo que não significativa, que apresentavam ao mesmo tempo leves traços de doidice. Assim pode parecer que todo acréscimo de inteligência acima dos padrões normais predispõe, como anomalia, à loucura. Entrementes, desejo expor do modo menos extenso possível minha opinião acerca da razão estritamente intelectual daquele parentesco entre a genialidade e a loucura, esta exposição contribuindo para a explicação da essência propriamente dita da genialidade, i.e. daquela qualidade intelectual unicamente capaz de criar obras de arte legítimas. O que porém torna necessária uma pequena exposição da loucura ela mesma. [21]

Uma visão clara e completa da essência da loucura, um conceito preciso e nítido do que diferencia propriamente o louco do homem são, a meu saber ainda não se encontrou. Nem razão, nem entendimento podem ser negados aos loucos, pois eles falam e entendem, com frequência raciocinam com justeza; também, via de regra, encaram o presente corretamente e reconhecem a conexão entre causa e efeito. Visões, assim como os delírios febris, não são um sintoma usual da loucura. O delírio falsifica a intuição; a loucura, os pensamentos. Na maior parte das vezes os loucos não erram no conhecimento do presente imediato, mas suas divagações referem-se sempre ao ausente e passado, e somente por este intermédio com o presente. Por isto sua doença me parece atingir em especial a memória; não de um modo tal que esta lhes seja inteiramente ausente, pois muitos deles sabem muitas coisas de memória e por vezes reconhecem pessoas, que não viam de há muito; mas de forma tal que o fio da memória está rompido, o contínuo encadeamento da mesma está ausente, sendo impossível qualquer recordação uniformemente conexa. Cenas isoladas do passado se situam de modo correto, assim como o presente individual; porém em sua recordação há lacunas, que então preenchem com ficções, que ou são sempre as mesmas, tornando-se ideias fixas (trata-se então de fantasias fixas, melancolia), ou são sempre ideias diferentes, momentâneas (seu nome então é demência, fatuitas). Por este motivo é tão difícil inquirir o curso da vida precedente de um louco, à sua entrada no hospício. Então sempre mais se confunde em sua memória o verdadeiro com o falso. Embora a realidade imediata seja percebida com exatidão, ela é falsificada pela conexão simulada com um passado imaginado: consideram então a si próprios e a outros como idênticos com pessoas, localizadas unicamente em seu passado fictício, não reconhecem mais muitas pessoas de seu relacionamento, possuindo, em uma representação correta do presente individual, apenas relações falsas do mesmo, com o passado. Atingindo a loucura um grau elevado, se produz uma total ausência de memória, sendo então o louco incapaz de qualquer consideração com algo ausente ou passado, sendo determinado unicamente pela disposição momentânea, em conexão com as ficções, preencher o passado em sua cabeça: a menos que se demonstre constante superioridade, não se está a seguro de maltratos e assassinato de sua parte. O conhecimento do louco possui em comum com o do animal o serem ambos limitados ao presente: contudo o que os distingue é o seguinte: o animal não tem propriamente uma representação do passado como tal, embora este atue sobre o animal por meio do hábito; assim por exemplo, o cão reconhece, mesmo após anos, o seu antigo dono, i.e. obtém a partir de sua visão a impressão costumeira; mas do tempo decorrido ele não possui recordação; o louco, pelo contrário, conserva em sua razão sempre um passado in abstracto, porém falso, existindo somente para ele, e isto sempre, ou apenas agora. A influência deste falso passado prejudica, assim, mesmo a utilização do presente corretamente reconhecido, feita com justeza pelo animal. Que o padecimento espiritual intenso, acontecimentos terríveis imprevistos, frequentemente provocam loucura, eu explico da maneira seguinte: todo sofrimento deste tipo sempre está limitado, como acontecimento real, ao presente, portanto é somente passageiro e nesta medida suportável; torna-se grande em excesso apenas como dor permanente, mas, como tal, é novamente apenas um pensamento situando-se na memória; quando então uma tal mágoa, um saber ou lembrança, tão doloroso, é a tal ponto penoso que se torna insuportável, ameaçando o indivíduo de destruição, então a natureza a tal ponto aterrorizada recorre à loucura como ao último meio de salvação da vida; o espírito tão atormentado rompe o fio de sua memória, preenche as lacunas com ficções e se refugia do espiritual que ultrapassa suas forças na loucura, assim como se amputa um membro gangrenado, substituindo-o por um artificial. Considere-se como exemplo Ajax em fúria, o rei Lear e Ofélia: pois as criaturas do verdadeiro gênio, a que unicamente podemos nos referir aqui, como é do conhecimento geral, são igualáveis em verdade a pessoas reais: além disto, a frequente experiência real demonstra o mesmo. Constitui uma analogia fraca deste tipo de transição da dor à loucura, o tentarmos todos nós afastar uma lembrança desagradável, vinda repentinamente à mente, como que de modo mecânico, mediante qualquer movimento ou exclamação em voz alta, tentando desviar a atenção, por força nos distrair.

Vendo assim o louco reconhecer o presente individual, também muito do passado individual, de modo correto, sem fazê-lo contudo com a conexão, as relações, agindo e falando então de maneira adoidada; percebemos neste o seu ponto de contato com o indivíduo genial: pois também este, abandonando o conhecimento das relações, que é conforme ao princípio de razão, para ver nas coisas apenas suas ideias, e procurar apreender sua essência apresentada intuitivamente, a cujo respeito uma coisa representa o conjunto da sua espécie, fazendo, nas palavras de Goethe, um caso valer mil, também o homem de gênio negligencia o conhecimento das relações das coisas: o objeto individual de sua contemplação ou o presente por ele apreendido com demasiada vivacidade se revelam numa luminosidade tal, que as outras articulações da cadeia a que pertencem são obscurecidas, no que resultam fenômenos que possuem semelhança de há muito reconhecida com os da loucura. O que no objeto individual existe apenas em estado imperfeito e debilitado por modificações, o modo de consideração do gênio realça a ideia, a perfeição; vendo extremos por toda parte, sua conduta também se traduz em extremos, não consegue atingir a justa medida, falta-lhe moderação, e o resultado é o descrito. Ele reconhece perfeitamente as ideias, mas não os indivíduos. Por isto, como já assinalamos, um poeta pode conhecer profunda e meticulosamente o homem, porém muito imperfeitamente os homens; é enganado com facilidade, é um joguete nas mãos dos astutos. [22]

§37

Muito embora, de acordo com nossa exposição, o gênio consista na capacidade de conhecer de modo independente do princípio de razão, e assim não as coisas individuais, que possuem sua existência somente na relação, mas sim suas ideias, contracenando com estas como o correlato da ideia, já não sendo mais indivíduo, porém sujeito puro do conhecimento; esta faculdade, em grau diverso e mais reduzido, deve ser inerente a todos os homens, pois caso contrário não seriam capazes de apreciar as obras de arte, como não o são de criá-las, não tendo receptividade alguma para o belo e sublime, palavras que inclusive não teriam sentido para eles. Há que admitir como presente em todos os homens, a menos que haja alguns totalmente incapazes de qualquer prazer estético, esta capacidade de conhecer as ideias nas coisas, exteriorizando-se assim momentaneamente de sua personalidade. O gênio possui diante deles somente o grau muito superior e a persistência maior deste modo de conhecimento, vantagem que lhe garante a reflexão requerida para reproduzir, numa obra arbitrária, o assim conhecido, reprodução que é a obra de arte. Através dela, ele comunica aos outros a ideia apreendida. Esta permanece inalterada; por isto o prazer estético é essencialmente único, seja originado por uma obra de arte, ou de forma imediata pela intuição da natureza e da vida. A obra de arte é somente um meio de facilitar este conhecimento em que consiste aquele prazer. Se percebemos com mais facilidade a ideia na obra de arte, do que imediatamente na natureza e na realidade, isto é devido a que o artista que conheceu apenas a ideia e não mais a realidade também reproduz em sua obra unicamente a ideia, isolando-a da realidade, suprimindo todas as contingências perturbadoras. O artista nos permite contemplar o mundo por seus olhos. Que possua tais olhos, que ele conheça o essencial das coisas, destituído de todas as relações, constitui o dom do gênio, o inato; mas que seja capaz de nos ceder este dom, nos emprestar seus olhos, esta é a parcela adquirida, o técnico, da arte. Por este motivo, após haver exposto, no precedente, em suas linhas mais gerais, a natureza interna do modo de conhecimento estético, a consideração filosófica de um ângulo mais próximo, a seguir, acerca do belo e do sublime, examinará ambos simultaneamente na natureza e na arte, sem continuar persistindo em sua distinção. Examinaremos antes de tudo o que ocorre no homem, quando afetado pelo belo, pelo sublime: que esta afetação procede de modo imediato da natureza, ou somente pela mediação da arte, fundamenta apenas uma distinção exterior, inessencial.

§38

Encontramos na contemplação estética dois elementos inseparáveis: o conhecimento do objeto, não como coisa individual, mas ideia platônica, i.e. forma permanente deste conjunto de coisas; e a consciência de si do sujeito cognoscente, não como indivíduo, mas como sujeito puro, independente da vontade, do conhecimento. A condição sob a qual ambas as partes aparecem sempre reunidas era o abandono do modo de conhecimento preso ao princípio de razão, que por sua vez é a única que se presta ao serviço da vontade e à ciência. Também o prazer estabelecido na contemplação do belo será proveniente destes dois elementos, contribuindo ora um, ora outro, conforme seja o objeto da contemplação estética.

Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Além disto, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito; a satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo satisfeito imediatamente dá lugar a um outro; aquele já é uma ilusão conhecida, este ainda não. Satisfação duradoura e permanente objeto algum do querer pode fornecer; é como uma caridade oferecida a um mendigo, a lhe garantir a vida hoje e prolongar sua miséria ao amanhã. Por isto, enquanto nossa consciência é preenchida pela nossa vontade, enquanto submetidos à pressão dos desejos, com suas esperanças e temores, enquanto somos sujeitos do querer, não possuiremos bem-estar nem repouso permanente. Caçar ou fugir, temer desgraças ou perseguir o prazer, é essencialmente a mesma coisa; a preocupação quanto à vontade sempre exigente, seja qual for a forma em que o faz, preenche e impulsiona constantemente a consciência; sem repouso porém não é possível nenhum bem-estar. Destarte, o sujeito da vontade está constantemente preso à roda de Ixion, colhe continuamente pelas peneiras das Danaides, constitui o eternamente supliciado Tântalo.

Contudo, quando um estímulo exterior, ou uma disposição interior, nos arranca da torrente infinita do querer, libertando o conhecimento do serviço da vontade, a atenção não é mais dirigida para os motivos do querer, compreendendo as coisas livres de sua relação com a vontade, examinando-as sem interesse, sem subjetividade, de modo estritamente objetivo, abandonando-se a elas enquanto representações e não enquanto motivos; então se apresenta de um golpe aquele repouso, que tanto se buscou por aquela primeira via, instituindo um bem-estar total. É o estado sem sofrimento, estimado por Epicuro como o mais elevado dos bens e como o estado dos deuses. Pois estamos a todo momento livres do impertinente jugo da vontade, festejamos o sábado do trabalho forçado do querer, a roda de Ixion está em repouso.

Este estado é precisamente o descrito acima como exigência para o conhecimento da ideia, como contemplação pura, dissolução na intuição, perda no objeto, esquecimento de toda individualidade, supressão do modo de conhecimento submetido ao princípio de razão e que apreende apenas relações, e em que, simultânea e inseparavelmente, a coisa individual observada se eleva à ideia de sua espécie, o indivíduo cognoscente ao sujeito puro do conhecer liberto da vontade, e ambos como tais não se situam mais no curso do tempo e de todas as outras relações. Então torna-se indiferente contemplar o poente do interior de uma prisão ou de um palácio.

Disposição interior, predominância do conhecer sobre o querer, pode sob quaisquer circunstâncias provocar este estado. Isto provam estes admiráveis flamengos, que dirigiam uma tal intuição estritamente objetiva sobre os objetos mais insignificantes, erigindo um monumento permanente de sua objetividade e paz de espírito na natureza morta, que o observador estético não contempla com indiferença, já que lhe proporciona a disposição liberta da vontade própria do artista, indispensável para contemplar objetivamente coisas tão insignificantes, e reproduzir esta intuição com um tal juízo; e ao solicitar também o quadro a sua participação num tal estado, sua emoção será multiplicada pelo contraste da disposição própria, inquieta, turvada por intenso querer, em que se encontra no momento. No mesmo espírito, com frequência, paisagistas, particularmente Ruisdael, pintaram objetos paisagísticos altamente insignificantes, produzindo igual efeito de um modo ainda mais agradável.

Só a força interior de uma disposição artística realiza tudo isto; porém, esta disposição estritamente objetiva é facilitada e favorecida do exterior por objetos que lhe vêm ao encontro, pela opulência da bela natureza convidando a sua intuição, se impondo mesmo. Ela quase sempre é bem-sucedida ao se revelar de modo súbito, em nos arrancar, mesmo que só por instantes, à subjetividade, à servidão da vontade, e nos trasladar ao estado de conhecimento puro. É justamente por isto que o atormentado pela paixão, ou pela necessidade e preocupação, é tão subitamente aliviado, reconfortado e alegrado por uma única visão livre da natureza; a tormenta das paixões, o impulso do desejo e do temor, e todo sofrimento do querer são imediatamente apaziguados de um modo maravilhoso. Pois no momento mesmo em que, arrancados do querer, nos abandonamos ao conhecimento puro independente da vontade, penetramos em um outro mundo, em que tudo que movimenta nossa vontade, e por isto nos abala com tal intensidade, não mais existe. Esta libertação do conhecimento nos subtrai a tudo isto de maneira análoga ao sono e ao sonho: felicidade e infelicidade desaparecem; não somos mais o indivíduo, que está esquecido, mas apenas sujeito puro do conhecimento; continuamos existindo somente como a vista única do mundo, a mirar do alto de todos os seres que conhecem, mas que unicamente no homem pode se tornar completamente livre do serviço da vontade, mediante o que desaparece toda diversidade da individualidade tão inteiramente, que se torna indiferente o pertencer a vista observadora a um poderoso monarca ou a um atormentado mendigo. Pois nem felicidade nem miséria acompanham a ultrapassagem deste limiar. Tão próxima de nós se localiza uma região em que nos livramos de toda nossa miséria; mas quem é dotado da força para ali se manter? Logo que uma relação qualquer do objeto da contemplação pura com nossa vontade, nossa pessoa, retorne à consciência, o encanto chega ao fim. Recaímos no conhecimento dominado pelo princípio de razão, já não conhecemos mais a ideia, mas a coisa individual, o anel de uma cadeia, a que também nós pertencemos, e estamos novamente à mercê de toda nossa miséria. — A maior parte dos homens, porque privados inteiramente de objetividade, i.e. de genialidade, se encontra quase sempre nesta situação. Assim não lhes agrada o ficarem a sós com a natureza: necessitam companhia, ao menos um livro. Pois seu conhecimento permanece servil à vontade: buscam nos objetos somente a possível relação com a vontade, e em presença de tudo que não possui uma tal relação, ressoa em seu interior, qual baixo fundamental, a voz: “isto em nada me ajuda”; na solidão, mesmo o mais belo ambiente adquire desta forma para eles um aspecto seco, sinistro, estranho e hostil.

Este contentamento da intuição independente da vontade é também responsável por espalhar sobre o passado e a distância um tão maravilhoso encantamento, apresentando-no-los em tão belo esplendor, por meio de uma autoilusão. Ao tornarmos presentes dias já transcorridos, vividos em lugar distante, unicamente os objetos são evocados por nossa fantasia, não o sujeito da vontade, que portava, então como agora, o peso de seus males incuráveis; porém aqueles já estão esquecidos, substituídos muitas vezes por outros. Mas a intuição objetiva age na memória de modo idêntico ao pelo qual agiria no presente, se fôssemos capazes de nos entregar a ela independente da vontade. Por isto, especialmente quando atormentados por alguma necessidade acima do normal, a lembrança súbita de cenas passadas e distantes passa em nossa visão qual paraíso perdido. A fantasia evoca somente o objetivo, não o subjetivo-individual, e imaginamos que aquele objetivo se tenha apresentado a nós de modo igualmente puro, sem ser obscurecido por relação alguma com a vontade, como o faz agora sua imagem na fantasia; porém a relação dos objetos ao nosso querer produzia sofrimento, então como agora. Podemos nos subtrair a todas as amarguras, seja por meio dos objetos presentes, seja por meio dos distantes, no momento em que nos elevamos à contemplação puramente objetiva dos mesmos, criando assim a ilusão de que apenas estes objetos estão presentes, e não nós: despojados do eu sofredor, nos tornamos, como sujeito puro do conhecimento, completamente unos com aqueles objetos, e assim como nossa miséria lhes é estranha, do mesmo modo será estranha, por estes momentos, a nós mesmos. Somente o mundo da representação perdura, o mundo como vontade desapareceu.

Mediante todas estas considerações, pretendo ter tornado claro de que espécie e dimensão é a participação que possui a condição subjetiva do prazer estético no mesmo, ou seja, a libertação do conhecimento do serviço da vontade, o esquecimento do si mesmo como indivíduo e a elevação da consciência a sujeito do conhecimento, puro, independente da vontade, atemporal, liberto de todas as relações. Juntamente com este lado subjetivo da observação estética, ocorre como correlato necessário seu lado objetivo, a compreensão da ideia platônica. Antes porém de dirigirmos nossa atenção mais pormenorizada a este último e às realizações da arte com o mesmo, é conveniente deter-se ainda no lado subjetivo do prazer estético, completando sua exposição pelo exame da sensação do sublime, dependente unicamente originada por uma modificação desta. Em seguida, nossa investigação do prazer estético se completará pelo exame do lado objetivo do mesmo.

Ao precedente contudo há que acrescentar as observações seguintes. A luz é a mais contentadora das coisas: constitui-se em símbolo de tudo que é bom e consolador. Em todas as religiões designa a salvação eterna, e as trevas, a condenação. Ormuzd habita a luz mais resplandecente, Ahriman, a noite eterna. O paraíso de Dante se parece mais ou menos à Vauxhall em Londres, em que todos os espíritos bem-aventurados se revelam como pontos luminosos se combinando em figuras regulares. A ausência de luz nos torna imediatamente tristes; seu retorno alegra: as cores suscitam um encantamento vivo, atingindo seu grau mais elevado, se são transparentes. Isto tudo provém unicamente do ser a luz o correlato e a condição do modo de conhecimento intuitivo mais completo, único a afetar em nada a vontade. Pois a visão não é, como afecção dos outros sentidos, em si, imediatamente, e por meio de seu efeito sensorial, capaz de um bem ou mal-estar da sensação no órgão, i.e. não possui relação imediata com a vontade; mas apenas a intuição originada no entendimento é capaz de possuí-la, localizando-se então na relação do objeto com a vontade. Já com a audição, a situação é diferente: sons podem causar dor de modo imediato, e ser agradáveis aos sentidos de modo imediato, sem referência à harmonia ou melodia. O tato, uno com o sentir de todo o corpo, está subordinado ainda mais a esta influência imediata sobre a vontade: contudo, existe ainda um tatear privado de dor e de prazer. Odores, porém, são sempre agradáveis ou desagradáveis; sabores ainda mais. Os dois últimos sentidos portanto são os mais inquinados pela vontade: são os menos nobres, e denominados por Kant de sentidos subjetivos. O contentamento quanto à luz é de fato somente o contentamento sobre a possibilidade objetiva do modo de conhecimento intuitivo mais puro e perfeito e como tal deve ser deduzido, ou seja, que o conhecimento puro, liberto e independente de toda vontade, é agradável no mais alto grau, e só por isto já concorre em grande parte para o prazer estético. Desta concepção da luz há que deduzir por sua vez a exprimível beleza que asseguramos à reflexão dos objetos na água. O mais leve, rápido e sutil modo de interação de corpos, a que também nós devemos a mais perfeita e pura de nossas percepções: a interferência mediante raios de luz refletidos, esta aqui se torna inteiramente clara, perfeita e compreensível a nossos olhos, em causa e efeito por uma abordagem ampla: daí nosso contentamento estético a seu respeito, que, no principal, se radica inteiramente na base subjetiva do prazer estético, e é alegria quanto ao conhecimento puro e seus caminhos. [23]

§39

A todas estas considerações que pretendem ressaltar a parte subjetiva do prazer estético, enquanto contentamento quanto ao conhecimento puro, intuitivo, como tal, em oposição à vontade, se une, em associação imediata, o seguinte esclarecimento acerca da disposição denominada o sentimento do sublime.

Já foi observado acima que a transferência ao estado de intuição pura ocorre da maneira mais fácil, quando os objetos lhe vêm ao encontro, i.e. tornam-se, pela figura diversa e ao mesmo tempo determinada e distinta, em representantes de suas ideias, no que consiste justamente a beleza, em sentido objetivo. Sobretudo a bela natureza possui esta propriedade, furtando assim mesmo aos menos sensíveis um ligeiro prazer estético; é tão surpreendente como particularmente as plantas estimulam a contemplação estética, inclusive forçando-a, que poderíamos dizer que esta aproximação é devida a que estes seres orgânicos não são eles próprios, como os corpos animais, objeto imediato do conhecimento, [24] requerendo assim o compreensivo indivíduo estranho para penetrar, do mundo do querer cego, na representação, ansiando por esta entrada, para atingir, ao menos por mediação, o que lhes é negado imediatamente. Não insisto mais neste audacioso pensamento, talvez extravagante, pois somente uma consideração muito íntima e despojada da natureza pode produzi-lo ou justificá-lo. [25] Enquanto este vir ao encontro da natureza, a significação e a clareza de suas formas, donde as ideias individualizadas nos atingem, é aquilo que nos transfere do conhecimento, dependente da vontade, de simples relações, na contemplação estética, elevando-nos destarte a sujeito independente da vontade; é somente o belo, que age sobre nós, e o sentimento de beleza, o suscitado. Mas quando estes objetos, cujas significativas figuras convidam à sua contemplação pura, possuem uma relação hostil à vontade humana, como esta se apresenta em sua objetividade, o corpo humano, opondo-se a ela, ameaçando-a com uma superioridade que mina qualquer resistência, ou reduzindo-a ao nada por sua grandeza descomunal; o observador, porém, mesmo assim, não dirige sua atenção a esta impositiva relação hostil à sua vontade; mas, apesar de percebê-la e reconhecê-la, dela se afasta conscientemente, arrancando-se violentamente à sua vontade e suas relações e, abandonado unicamente ao conhecimento, calmamente contempla estes objetos terríveis para a vontade como puro sujeito do conhecimento, independente da vontade, assimilando apenas sua ideia estranha a qualquer relação, assim permanecendo prazerosamente em sua observação, e em consequência elevado acima de si mesmo, de sua pessoa, seu querer e todo querer: então é preenchido pelo sentimento do sublime, grandioso, encontra-se em estado de exaltação, engrandecimento, motivo porque também este estado é denominado sublime, grandioso. [26] Portanto o que distingue o sentimento do sublime do sentimento do belo é que no belo o predomínio do conhecimento puro se exerce sem luta, a beleza do objeto, i.e. sua constituição, facilitando o conhecimento de sua ideia, afastando a vontade e o conhecimento das relações que coroam seus serviços sem oposição, e portanto, imperceptivelmente, da consciência, que persiste como puro sujeito do conhecimento, destituído inclusive de toda recordação da vontade; em contraposição, em face do sublime, este estado de conhecimento puro é conquistado primeiramente por meio de uma libertação violenta das relações do objeto com a vontade reconhecidas como desfavoráveis, por meio de uma elevação livre e consciente acima da vontade e do conhecimento a ela referido. Esta elevação não deve somente conscientemente ser conquistada, mas também mantida, sendo assim acompanhada de uma constante recordação da vontade, não de um querer isolado, individual, como o temor ou o desejo, mas do querer humano em geral, enquanto expresso de um modo geral por sua objetividade, o corpo humano. Ocorresse na consciência um ato real, isolado, da vontade, mediante opressão, perigo real, pessoal por parte do objeto, a vontade individual, realmente agitada, em breve se tornaria dominante, a tranquilidade da contemplação seria impossível, a sensação do sublime desapareceria, para abrir lugar ao medo, em que a ânsia do indivíduo em se salvar expulsou aquele outro pensamento. Alguns exemplos contribuirão bastante no tornar clara esta teoria do sublime-estético, eliminando suas dúvidas; simultaneamente revelarão a diversidade dos graus deste sentimento do sublime. Pois, como é idêntico o sentimento do sublime com o do belo, em sua determinação principal, o conhecer puro e independente da vontade, e o assim instaurado conhecimento das ideias exteriores a toda relação determinada pelo princípio de razão, distinguindo-se apenas por um acréscimo, a elevação acima do relacionamento hostil conhecido do objeto contemplado com a vontade propriamente; constituem-se vários graus do sublime, e mesmo transições do belo ao sublime, conforme este acréscimo é forte, incisivo, premente ou fraco, distante, imperceptível. Creio ser mais conveniente à exposição apresentar em primeiro lugar estas transições, inclusive os graus mais débeis da impressão do sublime, embora aqueles, cuja receptividade estética não é muito grande, e sua fantasia não muito viva, compreenderão somente os exemplos posteriores dos graus mais elevados e distintos daquela impressão, a que deverão se ater unicamente, sem considerar os primeiros exemplos dos graus muito fracos daquela sensação.

Do mesmo modo que o homem é simultaneamente impulso impetuoso e sinistro da vontade (designado pelo polo dos órgãos genitais como seu foco) e sujeito eterno, livre e sereno do conhecimento puro (designado pelo polo do cérebro), também, em correspondência a esta oposição, o sol é ao mesmo tempo fonte da luz, a condição para o conhecimento perfeito, e portanto da mais agradável das coisas, e fonte do calor, a primeira condição da vida, i.e. de todo fenômeno da vontade em seus graus mais elevados. Assim, o que é para a vontade o calor, é para o conhecimento a luz. A luz é precisamente o maior brilhante na coroa da beleza e possui a mais decisiva influência sobre o conhecimento de qualquer objeto belo: sua presença mesma é condição indispensável; sua posição privilegiada engrandece mesmo a beleza do mais belo. Sobretudo o belo da arquitetura se realça por sua graça, pela qual, contudo, o mais insignificante se torna no mais belo objeto. Observemos durante o rigoroso inverno, com o estarrecimento geral da natureza, os raios do sol não muito acima do horizonte, refletidos por massas rochosas, onde iluminam, sem aquecer, favorecendo portanto somente o modo mais puro do conhecimento, e não a vontade; esta contemplação do belo efeito da luz sobre estas massas nos situa, como toda beleza, no estado do conhecimento puro, exigindo porém aqui, pela leve recordação da ausência de aquecimento por estes raios, portanto do princípio vivificador, já um certo elevar-se acima do interesse da vontade, um ligeiro convite à permanência no conhecimento puro, com eliminação de todo querer, mas contendo destarte uma transição do sentimento do belo ao do sublime. E o mais leve traço do sublime no belo, que este próprio aparece aqui apenas em grau restrito. Um exemplo quase igualmente débil é o seguinte.

Transportemo-nos a uma região erma, com horizonte ilimitado, sob um céu inteiramente sem nuvens, árvores e plantas numa atmosfera sem agitação, nenhum animal, nenhum homem, nenhuma água em movimento, o mais profundo silêncio; um tal ambiente é um convite à seriedade, à contemplação, com a libertação de todo querer e suas necessidades: mas apenas isto também já confere a um tal ambiente, ermo e pacífico, um traço de sublimidade. Pois como não apresenta objetos à vontade, sempre ávida de esforços e conquistas, nem favoráveis, nem desfavoráveis, só resta o estado da contemplação pura, e quem dela não é capaz se expõe ao vazio da vontade desocupada, ao tormento do tédio, numa degradação vergonhosa. Nesta medida, permite uma avaliação de nosso valor intelectual próprio, para o qual, de um modo geral, o grau de nossa capacidade em suportar ou amar a solidão é uma boa referência. O ambiente descrito fornece portanto um exemplo do sublime num grau inferior, ao nela ser mesclado o estado da contemplação pura, em sua tranquilidade e suficiência, para contraste, com uma recordação da pobreza e dependência de uma vontade sempre carente de esforços. Este é o gênero do sublime atribuído à visão das pradarias infinitas do interior da América do Norte.

Despojemos porém uma tal região também das plantas, deixando-lhe somente rochedos descalvados; assim, pela ausência total de todo orgânico necessário à nossa subsistência, a vontade praticamente se atemoriza, a aridez adquire um caráter terrível; nossa disposição se torna mais trágica, a elevação ao conhecimento puro se efetua mediante uma libertação mais resoluta do interesse da vontade, e, com a permanência no estado de conhecimento puro, é ressaltado nitidamente o sentimento do sublime.

Num grau ainda maior é produzido pelo ambiente seguinte. A natureza em tempestuosa agitação; penumbra deitada por negras e ameaçadoras nuvens; rochas pendentes monstruosas, descalvadas, impedindo a visão; torrentes espumantes e estrondosas; aridez total; suspiros provocados pelo ar fustigado pelos abismos. Nossa dependência, nossa luta com a natureza hostil, nossa vontade por ela domada, tudo isto aparece agora clara, intuitivamente a nossos olhos; mas enquanto a aflição pessoal não se toma dominante, e nós perseveramos em observação estética, transparece naquela luta da natureza, naquele quadro da vontade dominada, o sujeito puro do conhecimento, compreendendo as ideias justamente nos objetos ameaçadores e terríveis para a vontade, de um modo quase calmo, inabalável, sem participação (unconcerned). Precisamente neste contraste se encontra o sentimento do sublime.

Mais poderosa ainda se torna a impressão, quando se descerra a nossos olhos a luta das forças naturais contrariadas em toda sua magnitude, quando naquele ambiente uma torrente se precipitando nos priva da possibilidade de ouvir nossa própria voz; ou quando nos encontramos diante do mar revolvido pela borrasca: vagalhões das dimensões de uma casa se erguem e afundam, precipitados com violência contra recifes abruptos, arremessando ao alto a espuma; os uivos da tempestade, os rugidos do mar são superados pelos trovões dos raios de nuvens negras. Então a duplicidade da consciência do espectador impassível desta apresentação atinge sua maior clareza: ele se sente simultaneamente como indivíduo, frágil fenômeno da vontade, passível de destruição pelo mais débil daqueles golpes, impotente diante da poderosa natureza, dependente, abandonado ao acaso, um nada incomensuravelmente pequeno, em face de poderes colossais; e ao mesmo tempo como eterno e sereno sujeito do conhecimento, que, como condição do objeto, é precisamente o portador de todo este mundo, e a terrível luta da natureza somente sua representação, ele próprio na percepção tranquila das ideias, livre e alheio a todo querer e a todas as necessidades. É a sensação total do sublime. Aqui produzido pela visão de um poder que ameaça de destruição o indivíduo, incomparavelmente superior que lhe é.

Por um modo inteiramente diferente, esta impressão pode ainda se originar na presença de uma grandeza pura no espaço e no tempo, cuja incomensurabilidade reduz o indivíduo ao nada. Podemos denominar o primeiro tipo de sublime-dinâmico, o segundo de sublime-matemático, mantendo a nomenclatura kantiana e sua acertada divisão, apesar de discordarmos inteiramente da explicação da natureza interior desta impressão, não reconhecendo nela seja reflexões morais, seja hipostasias da filosofia escolástica.

Quando nos perdemos na contemplação da grandeza infinita do mundo no espaço e no tempo, refletindo sobre os milênios passados e futuros — ou também quando à noite o céu traz realmente a nossos olhos mundos sem número, agindo assim sobre a consciência a incomensurabilidade do mundo —, nos sentimos reduzidos à insignificância, sentimo-nos como indivíduo, como corpo animado, como fenômeno transitório da vontade, como gota no oceano, sumindo e se perdendo no nada. Mas ao mesmo tempo se ergue contra um tal fantasma de nossa própria nadidade, contra tal impossibilidade enganosa, a consciência imediata de que todos estes mundos existem somente em nossa representação, apenas como modificações do sujeito eterno do conhecimento puro, pelo qual nos tomamos logo que esquecemos a individualidade, que é o portador necessário, condicionante de todos os mundos e todos os tempos. A grandeza do mundo, que antes nos inquietava, agora repousa em nós: nossa dependência em relação a ela é suprimida pela sua dependência de nós. Contudo, tudo isto não se apresenta imediatamente na reflexão, mas se revela como uma consciência apenas sentida de que, num certo sentido (esclarecido unicamente pela filosofia) somos uma unidade com o mundo, sua incomensurabilidade não nos oprime, mas nos eleva. E a consciência sentida do que é repetidamente expresso em versões tão variadas pelos Upanichades dos Vedas, de preferência na expressão já citada acima: Hae omnes creaturae in totum ego sum, et praeter me aliud ens non est (Ou pnek’ hat, I, 122). É exaltação, engrandecimento acima do próprio indivíduo, sentimento do sublime.

De um modo bem imediato, obtemos esta impressão do sublime-matemático por meio de um espaço, que apesar de ínfimo comparado ao edifício do mundo, por ser inteiramente perceptível a nós de modo imediato, age sobre nós segundo todas as três dimensões em toda sua magnitude, suficiente para tornar quase infinitamente pequena a medida de nosso próprio corpo. Isto não pode jamais ser realizado por um espaço vazio à percepção, portanto nunca um espaço aberto, mas somente o perceptível em todas as dimensões de modo imediato pela sua delimitação, assim uma abóbada alta e imensa, tal a catedral de São Pedro em Roma, ou a catedral de São Paulo em Londres. O sentimento do sublime se origina aqui pela interiorização da insignificância de nosso próprio corpo em face de uma grandeza que por outro lado apenas reside em nossa representação e cujo portador somos enquanto sujeito cognoscente, e portanto aqui como em toda parte pelo contraste da insignificância e dependência de nosso eu como indivíduo, como fenômeno da vontade, ante a consciência de nós mesmos como sujeito puro do conhecimento. Mesmo a abóbada celeste age apenas quando contemplada sem reflexão, tal qual aquela abóbada de pedra, e somente com sua grandeza aparente, e não a verdadeira. Alguns objetos de nossa intuição produzem sentimento do sublime pelo fato de, graças à sua dimensão espacial, como à sua idade avançada, portanto sua duração temporal, nos sentirmos à sua frente reduzidos a nada, e mesmo assim nos regalarmos na apreciação de sua visão: deste tipo são as montanhas mui elevadas, as pirâmides do Egito, as ruínas colossais de grande antiguidade.

Nossa explicação do sublime permite inclusive sua transposição ao ético, ou seja, àquilo que se designa por caráter sublime. Também este se origina por a vontade não ser estimulada por objetos, que aliás seriam apropriados a fazê-lo; mas por o conhecimento manter o predomínio. Um caráter tal considerará portanto os homens de modo puramente objetivo, e não conforme as relações que eventualmente possuam para com sua vontade: por exemplo, perceberá seus erros, mesmo seu ódio e sua injustiça em relação a si próprio, sem por isto ser conduzido ele próprio ao ódio; observará sua felicidade, sem sentir inveja; reconhecerá suas boas qualidades, sem contudo almejar ligação mais íntima com eles; apreciará a beleza das mulheres, sem cobiçá-las. Sua felicidade ou infelicidade pessoal não o afetarão fortemente, ao contrário, se aproximará do Horácio descrito por Hamlet:

for thou has been
As one, in suffering all, that suffers nothing;
A man, that fortune’s buffets and rewards
Hast ta’en with equal thanks etc. (A. 3, sc. 2.) [27]

Pois em sua própria existência e em seus reveses perceberá menos sua sorte individual, do que a sorte da humanidade em geral, e seu comportamento será orientado mais para o conhecimento do que para o sofrimento.

§40

Porque os opostos se elucidam, é oportuno assinalar aqui que o propriamente oposto ao sublime é algo que à primeira vista não é reconhecido como tal: o provocante. Entendo aqui por isto o que excita a vontade, ao lhe apresentar de modo imediato a satisfação, o consentimento. Originava-se o sentimento do sublime por tornar-se objeto da contemplação pura uma coisa desfavorável à vontade, contemplação mantida apenas pelo afastamento da vontade e pela elevação acima de seu interesse, o que perfaz justamente o engrandecimento, a exaltação da disposição; assim, ao contrário, o provocante arrasta o observador da sua contemplação pura, requerida para qualquer compreensão do belo, para baixo, provocando necessariamente sua vontade, mediante objetos que lhe agradem de modo imediato, o observador tornando-se, de sujeito puro do conhecimento, em sujeito carente e dependente da vontade. O denominarmos comumente tudo o que é belo de um modo agradável de provocante é um conceito demasiado amplo, motivado por ausência de correta distinção, que afasto e desaprovo inteiramente. Porém, no sentido indicado e explicitado, encontro no âmbito da arte somente dois tipos de provocante e ambos indignos. O primeiro, bem inferior, na natureza morta dos flamengos, quando estes se encaminham a representar objetos comestíveis, que em sua imitação perfeita necessariamente excitam apetite, que é uma excitação da vontade e que põem um fim a toda contemplação estética do objeto. Ainda que se permita a pintura de frutas, pois se apresentam como desenvolvimento posterior da flor e, pela forma e pela cor, como um belo produto da natureza, sem que haja premência de se pensar em sua comestibilidade; contudo infelizmente encontramos com frequência, em enganosa naturalidade, refeições preparadas e servidas, ostras, arenques, caranguejos, pães com manteiga, cerveja, vinho etc., o que é totalmente condenável. Na pintura histórica e na escultura o provocante consiste em figuras despidas, cuja posição, seminudez e modo de apresentação se dispõem a provocar no observador a lascívia, com que imediatamente se suprime a pura observação estética, contrapondo-se ao objetivo da arte. Este erro corresponde inteiramente ao atribuído há pouco aos flamengos. Os antigos, apesar de toda beleza e nudez total de suas figuras, quase sempre estão livres disto, porque o artista as criou com finalidade puramente objetiva, plena da beleza ideal, e não no espírito de desejo subjetivo e indigno. O provocante portanto há que ser evitado sempre na arte.

Há também um negativamente-provocante, ainda mais condenável do que o positivamente-provocante acima elucidado: e este é repugnante. Do mesmo modo que o propriamente provocante, estimula a vontade do observador, destruindo assim a contemplação estética pura. Mas é um violento não-querer, uma repulsa que, por meio dela, é estimulada; desperta a vontade, apresentando-lhe objetos de sua aversão. Por isto desde sempre se reconheceu ser inadmissível na arte, onde pode ser tolerado mesmo o feio, enquanto não for repugnante, como veremos mais adiante.

§41

A marcha de nosso exame tornou necessário interromper a explicação do sublime aqui, onde a do belo se encontrava apenas pela metade, completado que estava somente de um de seus lados, o subjetivo. Pois unicamente uma particular modificação deste lado subjetivo diferenciava o sublime do belo. Se o estado do conhecimento puro independente da vontade, pressuposto por toda contemplação estética e por ela exigido, ocorre sem resistência, por convite e inferência do objeto, pelo simples desaparecimento da vontade do interior da consciência; ou se este estado foi atingido apenas pela elevação livre consciente acima da vontade com que o próprio objeto contemplado possui uma relação desfavorável, hostil, que perseguida eliminaria a contemplação; esta é a diferença entre o belo e o sublime. No objeto, ambos não são essencialmente distintos, pois em qualquer caso o objeto da observação estética não é a coisa individual, mas a ideia que nele pretende a revelação, isto é, a objetivação adequada da vontade em um determinado grau, seu correlato necessário, tal como ela liberta do princípio de razão, é o sujeito puro do conhecimento, assim como o correlato da coisa individual é o indivíduo cognoscente, ambos situados no âmbito do princípio de razão.

Ao designarmos uma coisa de bela, exprimimos assim ser ela objeto de nossa observação estética, o que encerra duas explicações: em primeiro lugar, de que sua visão nos torna objetivos, i.e. que nós em sua observação não mais somos conscientes de nós mesmos como indivíduos mas como sujeitos puros do conhecimento independentes da vontade; em segundo lugar, que reconhecemos no objeto não a coisa individual, mas uma ideia, o que se verifica apenas enquanto nossa observação do objeto não se submete ao princípio de razão, sem perseguir uma relação sua com algo que lhe é exterior (que em última instância sempre está ligada a relações com a nossa vontade), repousando sobre o objeto ele próprio. Pois a ideia e o sujeito puro do conhecimento, como correlativos necessários, sempre se apresentam simultaneamente à consciência, com que se alia de imediato o desaparecimento de toda diferença temporal, já que ambos são inteiramente estranhos ao princípio de razão em todas as suas formações, encontrando-se exteriormente às relações por ele determinadas, de modo comparável ao arco-íris e ao sol, que não participam da queda e sucessão contínua das gotas d’água. Por isto, ao contemplar, p. ex., uma árvore esteticamente, isto é, duma vista artística, conhecendo não a ela, mas a sua ideia, não possuía menor importância o se tratar desta árvore ou sua antecessora de há mil anos, e também o ser o observador este indivíduo, ou um outro existido num lugar qualquer, numa época qualquer; com a eliminação do princípio de razão, desaparece também a coisa individual e o indivíduo cognoscente, nada restando além da ideia e o sujeito puro do conhecimento, a constituir em conjunto a objetividade adequada da vontade neste grau. E não só ao tempo, mas também ao espaço se furta a ideia: não é a configuração espacial aos meus olhos, mas a expressão, o significado puro da mesma, sua essência mais íntima, que se revela e me provoca, constitui propriamente a ideia, podendo permanecer idêntica apesar da grande diversidade das condições espaciais de sua conformação.

Como duma parte toda coisa existente pode ser contemplada de modo puramente objetivo e exterior a todas as relações; e doutra parte também em toda coisa se apresenta a vontade, em um grau qualquer de sua objetividade, tornando-se expressão de uma ideia; assim toda coisa é bela. Que também a coisa mais insignificante permite a consideração objetiva e independente da vontade, constituindo-se assim como bela, já o comprova a natureza morta flamenga aventada acima (§38). Porém, uma coisa é mais bela do que outra, por facilitar esta pura observação objetiva, lhe vir ao encontro, forçando-a mesmo, quando então a denominaremos muito bela. Isto se verifica em parte por exprimir de modo puro, como coisa individual, pela relação muito nítida, claramente determinada, inteiramente significativa, a ideia de seu gênero, e, graças à nela reunida completeza de todas as exteriorizações possíveis a seu gênero, destes a ideia revelando completamente, facilitando ao observador a transição da coisa individual à ideia e desta forma também o estado da contemplação pura; em parte aquela preferência de beleza especial dum objeto reside no possuir a própria ideia que dele se nos apresenta, um alto grau de objetividade da vontade, conferindo-lhe importância ampla e decisiva. Por isto é o homem a mais bela das coisas, e a revelação da sua natureza o mais alto objetivo da arte. A figura e a expressão humanas são o objeto mais importante das artes plásticas, assim como a atividade humana o mais importante objeto da poesia. Contudo, toda coisa possui sua beleza específica: não apenas tudo o que é orgânico e se apresenta na unidade de uma individualidade, mas também tudo que é inorgânico, disforme, inclusive todo artefato. Pois tudo isto revela as ideias, pelas quais a vontade se objetiva nos graus mais inferiores, constituindo a afinação pelos contrabaixos mais retumbantes da natureza. Gravidade, rigidez, fluidez, luz etc., são as ideias que se exprimem em rochas, edifícios, correntes de água. A arquitetura de parques e prédios nada pode além de auxiliá-las a desdobrar aquelas suas qualidades de modo claro, múltiplo e completo, oferecendo-lhes oportunidade de expressão pura, com o que provocam e facilitam a contemplação estética. Ambientações e edificações más, contudo, relegadas pela natureza ou arruinadas pela arte, realizam-no pouco ou nada. Porém, mesmo aqui aquelas ideias gerais básicas da natureza não são totalmente ausentes. Também elas estimulam o observador que as procura, e mesmo edificações más etc., ainda são aptas a uma contemplação estética; as ideias das propriedades mais gerais de sua matéria permanecem reconhecíveis nelas, apenas a forma artificial que lhes é atribuída não constitui meio que facilite, mas obstáculo a dificultar a contemplação estética. Consequentemente também artefatos se prestam à expressão de ideias: mas não é a ideia do artefato que neles se manifesta, mas a ideia da matéria a que se conferiu esta forma artificial. Na linguagem dos escolásticos, isto permite expressão mui cômoda em duas palavras: no artefato se exprime a ideia de sua forma substantialis e não de sua forma accidentalis, conduzindo esta última não a uma ideia, mas a um conceito humano de que procedeu. É claro aqui expressamente que com artefato não se designa obra das artes plásticas. De resto, os escolásticos compreendiam sob forma substantialis o que eu denomino grau de objetivação da vontade numa coisa. Em breve, ao considerarmos a arquitetura, retornaremos à expressão da ideia do material. De acordo com nossa visão, não podemos concordar com Platão (De Rep., X, e Parmênides), ao afirmar que mesa e cadeira exprimem a ideia mesa e cadeira; a nosso ver exprimem as ideias já expressas por seu material puro, como tal. Contudo, segundo Aristóteles (Metafísica, XI, cap. 3), Platão teria estatuído ideias unicamente dos seres naturais: ho Pldton éphe, hóti eideestyn hóposa physei (Plato dixit, quod ideae eorum sunt, quae natura sunt), [28] e no capítulo 5 se afirma que, conforme os platônicos, não há ideias de casa e anel. Seguramente os discípulos mais próximos a Platão, como relatado por Alquino (Introductio in Platonicam Philosophiam, cap. 9), negaram a existência de ideias de artefatos. Declara este: Horíxontai dê tèn idéan, parddeigma tõn katà physin aidnion. Qúte gâr tois pleistois tõn apô Plátonos aréskei, tõn tekhnikõn eiñai idéas, hoíôn aspídos he lyras, oúte mên tõn parà physin, hoíôn pyretôn ka~ kholéras, oúte tõn katà mjros, hoTôn Socrátous., kai Pldtonos, all’oúte tõn eutelõn tinos, hoTôn rypou ka~ kdrphous, oúte tõn prô’s ti, hàion meixonos ka~ hyperelchontos e?nai gâr tàs idéas noéseis theote aioníous te ka~ autoteleis. (Definiunt autem ideam exemplar aeternuni eorum, quae secundum naturam existunt. Nam plurimis ex iis, qui Platoneni secuti sunt, minime placuit, arte factorum ideas esse, ut clypei atque lyrae; neque rursus eorum, quae praeter naturam, utfebris et cholerae; neque particularium, ceu Socratis et Platonis; neque etiam rerum vilium, veluti sordium et festucae; neque retationum, majoris et excedentis: esse nam que ideas inteltectiones dei aeternas, ac seipsis perfectas.) [29] Seja mencionado ainda nesta oportunidade um outro ponto, em que nossa doutrina das ideias, diverge da de Platão: Ensina este (De Rep., X., p. 288) que o objeto que a arte pretende produzir constitui o modelo da pintura e da poesia, não a ideia, mas a coisa individual. Todo o nosso exame anterior afirma precisamente o contrário, e a opinião de Platão tanto menos nos iludirá, quanto é a origem de um dos maiores e reconhecidos enganos deste grande homem, ou seja, seu menosprezo e sua condenação da arte, particularmente da poesia: seu falso juízo acerca desta se prende imediatamente àquela passagem.

§42

Retornemos agora ao nosso exame do sentimento estético. O conhecimento do belo sempre situa simultânea e inseparavelmente sujeito cognoscente puro e ideia conhecida como objeto. Porém a fonte do prazer estético se localizará, ora mais na concepção das ideias conhecidas, ora mais na tranquilidade e paz de espírito do conhecer puro, liberto de todo querer e assim de toda individualidade e de todo sofrimento daí decorrentes; e este predomínio de uma ou de outra parte do prazer estético dependerá de ser a ideia intuitivamente apreendida um grau mais ou menos elevado da objetividade da vontade. Assim, na contemplação estética (real ou por meio da arte) da bela natureza no inorgânico e no vegetal e nas obras arquitetônicas, o prazer do conhecimento puro independente da vontade será predominante, porque as ideias aqui compreendidas são somente graus inferiores da objetividade da vontade, e portanto não fenômenos de significação profunda e conteúdo amplo. Por outro lado, quando animais e homens são objetos da contemplação e apresentação estética, o prazer consistirá mais na concepção objetiva destas ideias, que são a revelação nítida da vontade; porque estas representam a maior diversidade das figuras, riqueza e significação profunda dos fenômenos, revelando-nos do modo mais perfeito a essência da vontade, seja na sua violência, horripilância, satisfação, ou em seu rompimento (este último nas representações trágicas), por fim mesmo em sua alteração ou autoeliminação, que é particularmente o tema da pintura cristã; como de um modo geral a pintura histórica e o drama possuem como objeto a ideia iluminada pela vontade como conhecimento total. Em seguida examinaremos as artes individualmente, com que a teoria do belo estabelecida adquirirá perfeição e clareza.

§43

A matéria como tal não pode ser a apresentação de uma ideia. Pois ela é, como vimos no primeiro livro, inteiramente causalidade: seu ser é agir. A causalidade contudo é uma configuração do princípio de razão: o conhecimento da ideia porém exclui essencialmente o conteúdo desta proposição. No segundo livro vimos também que a matéria é o substrato comum de todos os fenômenos individuais das ideias, em consequência o elo de ligação entre a ideia e o fenômeno ou a coisa individual. Portanto, por um ou outro motivo, a matéria por si não pode apresentar uma ideia. Mas isto se confirma a posteriori por não ser possível da matéria como tal representação intuitiva alguma, mas somente um conceito abstrato; nela se apresentam apenas as formas e as qualidades, cuja portadora é a matéria, e em cujo interior se revelam as ideias. E também possui correspondência com o não permitir por si a causalidade (o conjunto da essência da matéria) apresentação intuitiva, mas apenas uma conexão causal determinada. Contrariamente, por outro lado, todo fenômeno de uma ideia, já que como tal é assumida na forma do princípio de razão, ou do principium individuationis, deve-se apresentar na matéria como qualidade da mesma. Nesta medida, portanto, a matéria é o elo de ligação entre a ideia e o principium individuationis, que é a forma do conhecimento do indivíduo, ou o princípio de razão. É por isto com toda justeza que Platão alinha, ao lado da ideia e de seu fenômeno, a coisa individual, que em conjunto compreendem todas as coisas do mundo, unicamente a matéria como um terceiro, distinto dos outros dois. (Timeu) O indivíduo, como fenômeno da ideia, é sempre matéria. E também toda qualidade da matéria é sempre fenômeno de uma ideia, e como tal também apto a uma contemplação estética, i.e. conhecimento da ideia nela apresentada. Isto tem validade mesmo para as qualidades mais gerais da matéria, sem as quais não existe, e cujas ideias são a objetividade mais débil da vontade. Tais são: gravidade, coesão, rigidez, liquidez, reação contra a luz etc.

Se considerarmos em seguida a arquitetura, somente como arte, abstraindo de sua destinação a finalidades úteis, em que serve à vontade e não ao conhecimento puro, portanto não sendo mais arte no nosso sentido, não podemos lhe atribuir outro propósito senão o de tomar aptas de uma intuição clara algumas daquelas ideias, que constituem os graus mais inferiores da objetividade da vontade: gravidade, coesão, rigidez, dureza, estas propriedades gerais da pedra, estas primeiras, mais simples e apáticas visibilidades da vontade, tons baixos de afinação da natureza; e então ao seu lado a luz, que em muitas partes se configura em oposição a elas. Mesmo neste grau inferior da objetivação da vontade, vemos sua essência se revelar em ambiguidade, pois em verdade a luta entre a gravidade e a rigidez é a única matéria estética da arquitetura. Fazer com que ressalte com inteira clareza de maneira diversificada é sua tarefa. Ela a resolve, privando estas forças indestrutíveis do caminho mais curto de sua satisfação, retendo-as por meio dum desvio, pelo qual a luta é prolongada e o esforço inesgotável de ambas as forças se torna visível de maneiras variadas. O conjunto da massa do edifício, abandonado às suas disposições originárias, apresentaria um simples montão, ligado tão firmemente quanto possível ao corpo terrestre, em direção ao qual a gravidade, como aparece aqui a vontade, atua continuamente, enquanto a rigidez, igualmente objetividade da vontade, resiste. Justamente esta disposição, esta tendência, é contrariada em sua satisfação imediata pela arquitetura, que lhe permite uma satisfação mediatizada, através de desvios. Assim, por exemplo, o vigamento pode pressionar a terra apenas mediante a coluna; a abóbada deve se sustentar a si mesma, podendo satisfazer sua tendência em direção à terra somente pela mediação do pilar etc. Mas precisamente por estes desvios forçados, por estes impedimentos, se desdobram do modo mais claro e diversificado aquelas forças inerentes à crua massa rochosa, e mais além não pode conduzir o fim puramente estético da arquitetura. Em consequência a beleza de uma edificação consiste na finalidade visível de toda parte, não em relação ao fim exterior casual do homem (nesta medida a obra pertence à arquitetura utilitária); porém de modo imediato à constituição do todo, em relação a que a posição, dimensão e forma de toda parte deve manter uma relação tão necessária que, no possível, retirada uma parte, ruiria o todo. Pois apenas enquanto cada parte sustenta tanto quanto pode, e cada parte é escorada num lugar e dum modo tal, como é necessário, se desdobra aquele antagonismo, aquela luta, entre a rigidez e a gravidade, que perfazem a vida, as exteriorizações da vontade da pedra, para sua completa visibilidade, e se revelam com clareza estes graus mais inferiores da objetividade da vontade. Igualmente a conformação de toda parte deve ser determinada por seu fim e sua relação com o todo, e não por acaso. A coluna é a forma mais simples de sustentáculo, determinada unicamente por seu fim; a coluna torneada é de mau gosto; o pilar quadrado de fato é menos simples, como por acaso de feitura mais fácil, do que a coluna redonda. Igualmente as formas de frisos, vigas, arcos, cúpulas são inteiramente determinadas por seu fim imediato e destarte esclarecem a si mesmas. Os ornamentos dos capitéis etc., pertencem à escultura e não à arquitetura, que somente as admite como ornamentação suplementar, podendo ser suprimidos. Conforme o que foi dito é indispensável à compreensão e ao prazer estético de uma obra da arquitetura, possuir um conhecimento intuitivo, imediato de sua matéria, quanto a peso, rigidez e coesão, e nosso prazer em uma tal obra seria repentinamente mui reduzido pelo esclarecimento de que o material de construção é pedra-pomes, pois nos pareceria então uma edificação imaginária. O efeito seria quase o mesmo, provocado pela informação de ser de madeira, enquanto a pedra é pressuposta; precisamente por isto, alterar e transferir a relação entre rigidez e gravidade, e assim a importância e necessidade de todas as partes, uma vez que aquelas forças naturais se revelam muito mais debilmente na edificação de madeira. Por isso também não é possível realizar uma obra de arte propriamente de madeira, por mais que esta aceite todas as formas. Isto se explica unicamente por nossa teoria. Mas se fôssemos informados que o edifício cuja vista nos apraz consiste de materiais inteiramente distintos, de peso e consistência completamente diferentes, porém indistinguíveis a olho nu, a edificação inteira se tornaria tão insuportável como uma poesia numa língua desconhecida. Isto tudo comprova que a arquitetura não age somente de modo matemático, mas dinâmico, e o que delas se nos apresenta não são simples forma e simetria, mas aquelas forças básicas da natureza, aquelas primeiras ideias, aqueles graus mais baixos da objetividade da vontade. A regularidade do edifício e de suas partes é conduzida parcialmente pela utilidade imediata de toda parcela em relação à existência do todo, parcialmente para facilitar a visão e a compreensão do todo, por fim em parte as figuras regulares, revelando a conformidade do espaço às leis, contribuem para a beleza. Isto tudo porém é de valor e necessidade reduzida e de modo algum o principal, já que mesmo a simetria não é indispensável, pois até as ruínas ainda são belas.

Uma relação muito particular possuem as obras de arte arquitetônica para com a luz: adquirem beleza dupla sob sol pleno, o céu azul como fundo, mostrando um efeito inteiramente diferente sob o luar. Por isso, durante a edificação de uma obra de arquitetura, se toma particular cuidado com os efeitos da luz e com as regiões celestes. O motivo principal disto é que a iluminação clara e forte torna verdadeiramente visíveis todas as partes e suas relações; contudo, sou da opinião de que além disso a arquitetura, como o faz com a gravidade e a rigidez, também é determinada a revelar simultaneamente a essência da luz inteiramente contrária àquelas. Ao ser a luz interceptada, interrompida e refletida pelas grandes, opacas, nítidas e multiformes massas, desdobra sua natureza e propriedades do modo mais claro e distinto, para gáudio do observador, sendo a luz a mais agradável das coisas, como a condição e o correlato objetivo do modo de conhecimento intuitivo mais perfeito.

Como as ideias trazidas à intuição nítida pela arquitetura são os graus mais inferiores da objetividade da vontade, e consequentemente a importância objetiva do revelado pela arquitetura é relativamente reduzida, o prazer estético com a visão de um edifício belo e favoravelmente iluminado não se situará tanto na concepção da ideia como no correlato subjetivo determinado com esta concepção, consistindo preponderantemente esta visão o observador ser arrancado do modo de conhecimento do indivíduo, que serve à vontade e obedece ao princípio de razão, sendo erguido ao modo do sujeito puro do conhecimento, independente da vontade; portanto, à contemplação pura, livre de todo sofrimento do querer e da individualidade. A este respeito constitui o oposto da arquitetura, e o outro extremo na série das belas artes, o drama, a conduzir ao conhecimento das ideias mais importantes, sendo assim predominante no prazer estético do mesmo o lado objetivo.

A arquitetura possui em relação às artes plásticas e à poesia o distintivo de não formar uma cópia, mas a coisa mesma; não reproduz, como aquelas, a ideia conhecida, com o que o artista empresta seus olhos ao observador, mas aqui o artista apenas apresenta o objeto ao observador, facilitando-lhe a apreensão da ideia, ao tornar o objeto individual real na expressão clara e perfeita de sua essência.

As obras de arquitetura mui raramente, assim como as outras obras de arte, são apresentadas para fins puramente estéticos, sendo ao contrário subordinadas a outros fins utilitários, estranhos à arte, e o grande mérito do arquiteto consiste precisamente em impor e atingir os fins puramente estéticos apesar de sua subordinação a fins estranhos, adaptando-os de variada maneira ao momentâneo fim ocasional, julgando com precisão qual beleza estético-arquitetônica suporta e se alia a um templo, um palácio, um almoxarifado. Quanto mais um clima severo multiplica aquelas exigências da necessidade, da utilidade, com determinação mais firme e prescrição mais inexorável, menos campo de ação cabe ao belo na arquitetura. No clima ameno da Índia, do Egito, da Grécia e de Roma, onde as exigências da necessidade eram determinadas menos intensamente e com mais brandura, a arquitetura pôde perseguir do modo mais livre seus fins estéticos; sob o céu nórdico, estes lhe eram contrariados: aqui, onde se exigiam caixões, torres e telhados pontiagudos, a arquitetura, conseguindo desdobrar sua própria beleza somente dentro de limites estreitos, compensava sua decoração com ornamentos emprestados à escultura, tal como o vemos na arte gótica.

Se as exigências da necessidade e da utilidade constituem imensos entraves à arquitetura, estas por outro lado se lhe configuram como poderoso arrimo, pois com a amplitude e o custo de suas obras, e o campo restrito de sua ação estética, não poderia se sustentar unicamente como a arte a arquitetura, não tivesse concomitantemente, como atividade útil e necessária, uma posição firme e digna entre as ocupações humanas. A carência desta última impede uma outra arte de se lhe emparelhar fraternalmente, muito embora do ponto de vista estético fosse antes uma parcela lateral: refiro-me à arte hidráulica. O que a arquitetura é para a ideia da gravidade, onde esta parece relacionada à rigidez, aquela é para a mesma ideia, onde lhe cabe a fluidez, i.e. ausência de forma, grande mobilidade, transparência. Corredeiras espumantes e ruidosas, cataratas que se pulverizam em silêncio, repuxos de elevadas colunas d’água, límpidos lagos espelhantes revelam as ideias da matéria grave líquida, do mesmo modo que as obras arquitetônicas desdobram as ideias da matéria rígida. Com a hidráulica utilitária, a beleza não encontra amparo, pois os fins desta normalmente não se coadunam com os daquela, a não ser excepcionalmente, como, p. ex., na Cascata di Trevi em Roma. [30]

§44

O que para estes graus mais inferiores da objetivação da vontade é realizado pelas duas artes mencionadas, isto para o grau mais elevado da natureza vegetal, é a jardinagem. A beleza paisagística de um torrão repousa em grande parte na diversidade dos objetos naturais que nele se encontram, e em que estes se excluem estritamente, sobressaltam com clareza, e mesmo assim se apresentam em variedade e unidade adequadas. São estas as duas condições que são amparadas pela jardinagem; contudo nem de longe atinge ela a maestria no domínio de sua matéria, como a arquitetura em relação à sua, o que reduz o seu efeito. O belo que apresenta pertence quase inteiramente à natureza; ela própria em pouco colaborou e, por outro lado, quase nada pode contra as adversidades da natureza, e onde esta não trabalha a seu favor, suas realizações são ínfimas.

O mundo vegetal que, sem a mediação da arte, se apresenta por toda parte ao nosso prazer estético, enquanto se constitui objeto da arte, pertence sobretudo à pintura paisagística. Neste âmbito se encontra com ela também todo o restante da natureza destituída de conhecimento. Na natureza morta, e na pintura de arquitetura pura, rumas e interiores de igrejas etc., o lado subjetivo do prazer estético é o predominante, i.e. nosso prazer não consiste principalmente na apreensão imediata das ideias apresentadas, mas muito mais na correlação subjetiva desta concepção, no conhecimento puro independente da vontade, já que, ao mostrar o pintor as coisas através de seus olhos, adquirimos aqui simultaneamente uma sensação póstuma e partilhamos de um sentimento de profunda paz espiritual e de completo silêncio da vontade, indispensáveis para mergulhar o conhecimento inteiramente nestes objetos sem vida e apreendê-los com tal dedicação, i.e. com tal grau de objetividade. O efeito da pintura paisagística propriamente, em conjunto, também ainda é deste tipo, unicamente porque as ideias apresentadas, como graus mais elevados da objetividade da vontade já são mais amplas e importantes, e o lado objetivo do prazer estético se ressalta mais, equilibrando-se com o subjetivo. O conhecimento puro como tal não mais constitui o principal, mas com igual poder atua a ideia conhecida, o mundo como representação em um grau significativo da objetivação da vontade.

Porém um grau ainda mais elevado é revelado pela pintura e pela escultura de animais, de que possuímos importantes remanescentes antigos, p. ex., cavalos em Veneza no Monte Cavaílo, nos altos-relevos de Elgin, em Florença, de bronze e mármore, e no mesmo lugar o antigo javali, os lobos uivantes, os leões do arsenal de Veneza, um salão repleto de animais em sua maior parte antigos, no Vaticano etc. Nestas apresentações, a face objetiva do prazer estético adquire predominância sobre a subjetiva. A tranquilidade do sujeito que conhece estas ideias, que acalmou sua própria vontade, está presente, como em toda observação estética, mas seu efeito não é sentido, pois a agitação e a veemência da vontade representada nos ocupa. É aquele querer que também é nossa essência, que aqui aparece a nossos olhos em formações em que seu fenômeno não é dominado e abrandado pela reflexão, como acontece em nós, mas se revela em traços mais marcantes e com uma nitidez que limita o grotesco e monstruoso, mas em compensação também sem disfarce, [31] modo ingênuo e franco, livre de dissimulação no que repousa justamente nosso interesse pelos animais. O característico dos gêneros já transparecia na apresentação de plantas, revelava-se porém somente nas formas; aqui torna-se muito mais importante, e transparece não apenas na figura, mas em ação, posição e mímica, embora sempre somente como caráter da espécie, não do indivíduo. Deste conhecimento das ideias de graus superiores, que apreendemos na pintura por mediação estranha, também podemos nos tornar possuidores pela intuição puramente contemplativa das plantas e pela observação intuitiva dos animais, destes últimos em seu estado natural de liberdade e tranquilidade. A observação objetiva de suas variadas figuras maravilhosas e de suas atividades e interesses constitui uma lição instrutiva do grande livro da natureza, é uma decodificação das verdadeiras signatura rerum. [32] Percebemos nela os múltiplos graus e modos da manifestação da vontade que, idêntica em todos os seres, quer sempre o mesmo, o que se objetiva como vida, como existência, numa tão ilimitada variedade, numa tão diversificada configuração, todas acomodações para as diversas condições externas, na comparação de muitas variedades do mesmo tema. Quiséssemos contudo transmitir ao observador a chave da natureza interna também para a reflexão, em uma única palavra, de melhor utilizaríamos aquela fórmula em sânscrito, que ocorre seguidamente nos livros sagrados dos hindus, e que é denominada Mahavakya, i.e. a grande palavra: Tat twan asi, ou seja: “Este vivente, és tu”.

§45

Apresentar intuitivamente, de modo imediato, a ideia em que a vontade atinge o lugar mais elevado de sua objetivação é por fim a grande tarefa da pintura histórica e da escultura. O lado objetivo do prazer no belo é aqui inteiramente predominante, e o subjetivo recuou a segundo plano. Há que observar ainda que, no grau imediatamente inferior a este, na pintura de animais, o característico é completamente uno com o belo; o leão, lobo, cavalo, carneiro, touro mais característico sempre também foi o mais belo. O motivo para isto é que os animais possuem somente caráter de gênero, e não caráter individual. Com a apresentação do homem, porém, o caráter de gênero se distancia do caráter do indivíduo; aquele passa a ser denominado beleza (no sentido inteiramente objetivo), este contudo mantém o nome caráter ou expressão, e surge a nova dificuldade de apresentar ambos simultaneamente no indivíduo.

Beleza humana é uma expressão objetiva, que designa a mais perfeita objetivação da vontade no mais alto grau de sua cognoscibilidade, a ideia do homem em geral, expressa inteiramente na forma intuída. Porém, por mais que a face objetiva da beleza seja ressaltada, a subjetiva permanece sua companheira constante; e precisamente por objeto algum nos impelir tão subitamente à pura intuição estética, como o mais belo semblante e figura humana, com cuja visão um prazer indescritível se apropria de nós, elevando-nos acima de nós mesmos e tudo que nos oprime: isto é unicamente possível porque esta cognoscibilidade mais nítida e pura da vontade também nos transfere do modo mais fácil e rápido ao estado do conhecimento puro, em que desaparece nossa personalidade, nosso querer e seu continuo sofrimento, enquanto perdura o prazer puramente estético; por isto afirma Goethe: “Quem contempla a beleza humana, a nada de mal se expõe, está em harmonia consigo e com o mundo”. Que a natureza atinja bom êxito numa bela figura humana, devemos explicá-lo pela completa vitória da vontade, objetivando-se neste mais alto grau num indivíduo, mediante suas forças e circunstâncias felizes, sobre todos os obstáculos e impedimentos opostos pelos graus mais inferiores dos fenômenos da vontade, como o são as forças da natureza, a que sempre é forçado a conquistar e arrancar a matéria pertencente. Além disto, o fenômeno da vontade em seus graus mais superiores sempre mantém a diversidade em sua forma; a árvore é apenas um agregado sistemático de inumeráveis e similares fibras em ascensão; este ajuntamento se amplia na medida em que vamos subindo de grau, e o corpo humano é um sistema altamente combinado de partes inteiramente diferentes, cada uma possuindo uma vida subordinada ao todo, mas também uma vida particular, vita propria; agora que todas estas partes sejam submetidas ao todo, e dispostas lado a lado justamente deste modo, conspirando harmonicamente para a apresentação do todo, sem excessos ou carências; tudo isto forma as raras condições cujo resultado é a beleza, o caráter genérico perfeitamente cunhado. Eis a natureza. Mas e a arte? Cremos agir por imitação da natureza. Contudo, como pode o artista conhecer e distinguir entre as demais a obra bem-sucedida e digna de imitação, se não antecipa o belo antes da experiência? Além disto, alguma vez a natureza produziu um homem de beleza perfeita quanto a todas as suas partes? Acreditava-se ser dever do artista recolher as partes belas distribuídas isoladamente por muitos homens, para assim constituir um todo belo: opinião errada e irrefletida. Pois novamente se pergunta, como saberá que exatamente estas formas são as belas, e aquelas não? Sabemos também até que ponto os antigos pintores alemães atingiram a beleza por imitação da natureza. Contemplemos suas figuras nuas. Estritamente a posteriori e por pura experiência, conhecimento algum do belo é possível; este é sempre, ao menos parcialmente, a priori, muito embora de modo inteiramente diferente, do que as formações do princípio de razão, que também nos são conscientes a priori. Estas se referem à forma geral do fenômeno como tal, como esta fundamenta a possibilidade do conhecimento, o como geral, sem exceção, do fenômeno, conhecimento que produz matemática e ciências naturais puras; aquele outro modo de conhecimento, a priori, porém, que possibilita a apresentação do belo, atinge o conteúdo e não a forma dos fenômenos, o que e não o como do fenômeno. Que todos nós conhecemos a beleza humana, tão logo a percebemos, mas que isto se dá no verdadeiro artista com uma distinção tal, que este a revela de um modo como nunca a viu, superando a natureza em sua apresentação, isto é possível unicamente porque a vontade, cuja objetivação adequada em seu mais alto grau deve ser julgada e apreciada aqui, somos nós mesmos. Somente assim possuímos de fato uma antecipação do que a natureza (que é a vontade que constitui nossa própria essência) se esforça por apresentar; antecipação que no verdadeiro gênio é acompanhada por um grau de reflexão tal, que este, conhecendo na coisa individual a sua ideia, compreende a natureza em meia palavra, proferindo claramente o que ela apenas balbucia, imprimindo a beleza da forma, mil vezes malograda àquela, ao mármore resistente, e, confrontando-a com a natureza, lhe diz ao mesmo tempo: “Eis o que tu querias dizer!” E retruca o conhecedor: “Sim, era isto!” Unicamente assim o grego genial pôde descobrir o arquétipo da figura humana, erguendo-o como cânone da escola da escultura; e também somente devido a uma tal antecipação é facultado a todos nós conhecer o belo, onde este foi individualmente bem-sucedido à natureza. Esta antecipação é o ideal, é a ideia, enquanto conhecida a priori pelo menos em metade, e enquanto tal vem de encontro a posteriori do oferecido pela natureza, completando-o, tornando-se assim prática para a arte. A possibilidade de uma tal antecipação do belo a priori no artista, como seu reconhecimento a posteriori no conhecedor, reside no serem artista e conhecedor eles mesmos o em-si da natureza, a vontade se objetivando. Pois somente pelo mesmo, como afirmava Empédocles, o mesmo é conhecido; apenas a natureza pode entender a si mesma, apenas a natureza pode se aprofundar em si mesma, mas também somente pelo espírito, o espírito pode ser apreendido. [33]

A opinião errônea de que os gregos encontraram o ideal estabelecido de beleza humana de modo inteiramente empírico, por justaposição de partes belas individuais, desvelando e marcando aqui um joelho, ali um braço, possui uma suposição inteiramente análoga na poesia; Shakespeare, p. ex., encontrou e a seguir reproduziu os caracteres de seus dramas, de diversidade inumerável, alto realismo, grande teor e elaboração profunda a partir de sua experiência mundana própria. A impossibilidade e o absurdo duma tal hipótese não exigem explicação; é evidente que o gênio produzindo as obras das artes plásticas somente mediante uma antecipação pressentida do belo, também as obras poéticas são somente por uma tal antecipação do característico; embora em ambos os casos haja necessidade da experiência, como de um esquema, mediante o qual apenas este a priori obscuramente consciente atinge clareza completa, tornando-se então possível uma apresentação sensata. [34]

A beleza humana foi declarada acima como a mais perfeita objetivação da vontade, no mais alto grau de sua cognoscibilidade. Ela se exprime através da forma, que repousa unicamente no espaço e não possui uma relação necessária com o tempo, como a possui, p. ex., o movimento. Assim podemos afirmar: a objetivação adequada da vontade através dum fenômeno unicamente espacial é beleza no sentido objetivo. A planta nada mais é do que um tal fenômeno somente espacial da vontade, pois movimento algum e consequentemente nenhuma relação com o tempo (abstraindo-se de seu desenvolvimento) pertence à expressão de sua essência; sua simples figura exprime e revela toda sua essência. O animal e o homem, porém, necessitam ainda, para a total revelação da vontade que se lhes manifesta, de uma série de ações, mediante as quais aquele fenômeno adquire neles uma relação imediata com o tempo. Tudo isto já foi exposto no livro anterior e se relaciona com nossas considerações presentes pelo seguinte. Assim como o fenômeno somente espacial da vontade pode objetivá-lo, num grau determinado qualquer, perfeita ou imperfeitamente, o que precisamente perfaz a beleza ou a feiura, assim também a objetivação temporal da vontade, i.e. a ação imediata, o movimento, pode corresponder à vontade que nela se objetiva, de modo puro e perfeito, sem participação estranha, sem excessos nem escassez, expressando apenas o ato determinado da vontade considerado em cada caso; ou então ocorrer justamente o contrário. No primeiro caso o movimento ocorre munido de graça, no outro, sem esta. A beleza portanto é a apresentação correspondente da vontade em geral por meio de seu fenômeno estritamente espacial, e a graça a apresentação correspondente da vontade por meio de seu fenômeno temporal, i.e. a expressão justa e correta de todo ato da vontade por meio do movimento e da posição que o objetivam. Como movimento e posição pressupõem o corpo, é correta e oportuna a expressão de Winckelmann: “A graça é a relação peculiar entre a pessoa e a ação”. (Obras, vol. 1, p. 258.) Torna-se claro que às plantas pode-se atribuir beleza, mas não graça, a não ser em sentido figurado; a homens e animais, porém, tanto a beleza quanto a graça. Pelo dito, a graça consiste na realização de todo movimento e toda posição do modo mais leve, apropriado e cômodo sendo assim a pura expressão correspondente à sua intenção ou do ato da vontade, sem excessos, que se apresentam como ações supérfluas e sem significado, ou posições forçadas, sem nada a faltar, o que se traduziria em inflexível parcimônia. A graça pressupõe uma proporcionalidade de todos os membros, um corpo regular e harmonioso; pois somente assim é possível a leveza perfeita e a conveniência transparente em todas as posições e movimentos; portanto a graça nunca existe sem um certo grau de beleza do corpo. Ambas perfeitas e reunidas constituem o fenômeno mais nítido da vontade no grau mais elevado de sua objetivação.

Como foi acima mencionado, um dos distintivos da humanidade consiste em que nela o caráter do gênero e do indivíduo se distinguem, de modo a, como ficou dito no livro precedente, cada homem propriamente apresentar uma ideia inteiramente peculiar. Assim, as artes cujo fim é a apresentação da ideia da humanidade possuem, ao lado da beleza, como caráter do gênero, ainda por tarefa o caráter do indivíduo, preferencialmente denominado de caráter; mas este por sua vez apenas enquanto não se mostrar algo acidental, totalmente peculiar ao indivíduo em sua individualidade, porém, como uma face da ideia da humanidade justamente aparente de modo particular neste indivíduo, cuja apresentação, portanto, é de utilidade para a revelação daquela ideia. Assim o caráter, embora individual como tal, deve ser apreendido e apresentado idealmente, i.e. ressaltando-se sua importância com respeito à ideia da humanidade em geral (para cuja objetivação contribui desta maneira); além disto, a apresentação é um portrait, uma reprodução do individual como tal, com todas as suas contingências. E inclusive o portrait deve ser, nas palavras de Winckelmann, o ideal do indivíduo.

Este caráter a ser apreendido idealmente, que é o realce de uma face peculiar da ideia da humanidade, se apresenta agora visivelmente, em parte pela fisionomia e corporização permanentes, em parte por afeição e paixão passageiras, modificações recíprocas do conhecer e do querer, tudo se traduzindo em movimento e expressão facial. Sendo o indivíduo sempre pertencente à humanidade, e por outro lado, a humanidade sempre se revelando no indivíduo, inclusive com importância ideal particular do mesmo, nem o caráter deve eliminar a beleza nem vice-versa, porque a eliminação do caráter do gênero pelo do indivíduo resultaria em caricatura, e a eliminação do individual pelo do gênero resultaria em insignificância. Em consequência, a apresentação à procura da beleza, o que é feito principalmente pela escultura, sempre modificará em algo o caráter do gênero pelo caráter individual, exprimindo a ideia da humanidade de sempre de um determinado modo individual, realçando um seu lado particular, porque o indivíduo humano como tal possui por assim dizer a dignidade de uma ideia própria, e é essencial à ideia da humanidade se apresentar em indivíduos de especial importância. Por isto encontramos, nas obras dos antigos, a beleza por eles apreendida com clareza, expressa não apenas por uma, mas por várias figuras portadoras de caráter diverso, e igualmente consideradas sempre de uma outra perspectiva, apresentada assim de um modo no Apolo, de outro no Baco, outro ainda no Hércules, e ainda em Antinus; o característico pode inclusive limitar o belo, podendo finalmente se acentuar até a feiura: no Sileno embriagado, no fauno etc. Porém se o característico avança até a verdadeira eliminação do caráter do gênero, e portanto até o desnaturado, torna-se caricatura. Mas, muito menos ainda do que a beleza, a graça deve ser influenciada pelo característico: sejam quais forem a posição e o movimento exigidos pela expressão do caráter, devem ser executados do modo mais leve, conveniente e adequado à pessoa. O que será observado não somente pelo escultor e pelo pintor, como também por todo bom ator, caso contrário inclusive aqui surge a caricatura, como contorção e distorção.

Na escultura, beleza e graça permanecem o principal. O caráter do espírito propriamente, que se mostra na afeição, na paixão, na alternância do conhecer e do querer por meio da expressão da face e dos gestos unicamente, é de preferência propriedade da pintura. Pois embora os olhos e a cor, situados fora do âmbito da escultura, muito contribuam para a beleza, são ainda muito mais essenciais para o caráter. Além disto, a beleza melhor se desdobra à observação a partir de vários pontos de vista; mas a expressão, o caráter permite ser apreendido perfeitamente mesmo a partir de um ponto.

Por ser a beleza, aparentemente, o objetivo principal da escultura, Lessing procurou explicar o fato de que Laoconte não grita, dizendo que o grito não se concilia com a beleza. Como isto se tornou tema, ou pelo menos ponto de partida para um livro de Lessing, antes e após o qual muito sobre isto se escreveu, seja-me permitido aqui relatar episodicamente minha opinião a respeito, embora uma tão específica exposição não caiba propriamente entre estas considerações orientadas estritamente ao geral.

§46

É indubitável que, no célebre grupo, Laoconte não grita, e a estranheza a respeito que sempre retorna deve provir do fato de que todos nós, em sua situação, gritaríamos; e assim o exige a natureza, porque com intensa dor física e o mais elevado súbito medo do corpo, toda reflexão que poderia conduzir a uma resignação silenciosa é banida completamente da consciência, e a natureza procura se aliviar pelo grito, com que ao mesmo tempo exprime a dor e o medo, invoca socorro e espanta o agressor. Já Winckelmann sentia a falta da expressão do grito; mas ao procurar a justificativa do artista, tornou propriamente Laoconte em um estoico, a julgar inadequado à sua dignidade gritar secundum naturam, acrescentando à sua dor ainda a inútil obrigação de reprimir as manifestações desta; assim Winckelmann enxerga nele “o espírito provado de um grande homem, a se digladiar com martírios, procurando sufocar e silenciar a expressão do sentimento, que não se desdobra em altos berros como em Virgílio, mas que exala apenas gemidos temerosos” etc. (Obras, vol. 7, p. 98,100 mesmo, mais detalhado vol. 6. pp. 104 e ss.) Esta opinião de Winckelmann é criticada por Lessing em seu Laoconte, e corrigida do modo acima mostrado. Em lugar do motivo psicológico, dispôs o puramente estético, de que a beleza, o princípio da arte antiga, não admitisse a expressão do grito. Um argumento suplementar que acrescenta, ou seja, de que um estado inteiramente transitório, e incapaz de duração alguma, não devesse ser apresentado por uma obra de arte imóvel, possui em contra cem exemplos de figuras excelentes captadas em movimentos ligeiros, dançando, lutando, agarrando etc. Goethe, em sua composição sobre Laoconte, que inicia os propileus (p. 8), considera a eleição de um tal momento passageiro praticamente indispensável. Atualmente Hirt (em Horen, 1797, parte 10), reorientando tudo pela verdade suprema da expressão, decidiu que Laoconte não grita porque, na iminência da morte por sufocação, não lhe é mais possível gritar. O último a expor e pesar estas três opiniões foi Fernow (Estudos Romanos, vol. 1, pp. 426 e ss.), sem lhes acrescentar nenhuma nova, somente transmitindo e reunindo aquelas três.

Não consigo afastar meu espanto por homens de tal perspicácia e juízo terem com esforço trazido de longe razões insatisfatórias, buscado argumentos psicológicos, mesmo fisiológicos, no intuito de esclarecer algo cuja razão se encontra bem próxima e evidente ao menos perspicaz — e particularmente quanto a Lessing que, tão próximo à solução correta, não atingiu o ponto apropriado.

Antes de qualquer exame psicológico e fisiológico, se Laoconte em sua situação irá ou não gritar, o que aliás eu afirmaria inteiramente, há que decidir com respeito ao grupo, que o gritar nele não podia ser apresentado unicamente pela razão de que a apresentação do grito se encontra completamente fora do âmbito da escultura. Não era possível criar do mármore um Laoconte gritando, mas apenas escancarando sua boca num vão esforço de gritar, um Laoconte a quem a voz está atravessada no pescoço, vox faucibus haesit. A essência, e consequentemente também o efeito do grito sobre o espectador, repousa unicamente no som, e não no escancarar a boca. Este último, fenômeno que necessariamente acompanha o grito, deve primeiro ser motivado pelo som assim produzido que o justifica, sendo assim uma vez característico para a ação, permitido e mesmo necessário, mesmo ocasionando perda de beleza. Contudo representar nas artes plásticas, a que a apresentação do grito é inteiramente estranha e impossível, o violento escancarar da boca, meio indispensável ao grito, perturbador de todas as feições e do restante da expressão, seria completamente incompreensível, porque se apresentaria o meio, ainda mais a exigir concessões, enquanto o fim do mesmo, o grito propriamente, e o efeito deste sobre a sensibilidade, permanece ausente. E, o que é mais grave, produzir-se-ia o aspecto sempre ridículo de um esforço persistindo sem efeito, análogo àquela situação criada por um brincalhão que, tendo enchido com cera a corneta do guarda-noturno adormecido, o desperta aos gritos de fogo e se delicia com suas vãs tentativas de soprar. Por outro lado, onde a apresentação do grito se situa no âmbito da arte, este é totalmente admissível, pois serve à verdade, i.e. a perfeita apresentação da ideia. Assim na poesia, que para uma apresentação intuitiva recorre à fantasia do leitor; por isso em Virgílio, Laoconte grita como um touro que se soltou após atingido pelo machado, por isso em Homero (II, XX, 48-53), Marte e Minerva gritam pavorosamente, sem detrimento de sua dignidade e beleza divinas. Igualmente na arte teatral: Laoconte no palco era obrigado a gritar; também Sófocles atribui o grito a Filocteto, e é certo que no palco da antiguidade este efetivamente o fizera. Como no caso inteiramente análogo, lembro-me de ter visto em Londres o famoso ator Kemble, numa peça vertida do alemão, Pizarro representando o americano Rolla, um semisselvagem mas de mui nobre caráter; ao ser ferido gritou em altos brados, o que produzia intenso e adequado efeito, porque, como algo muito característico, contribuía para a verdade. Mas uma figura muda, pintada ou esculpida, que grita, é ainda mais ridícula do que música pintada, já censurada nos propileus de Goethe; porque o grito prejudica a expressão restante e a beleza muito mais do que a música, que na maior parte dos casos utiliza somente mãos e braços, e que deve ser encarada como uma atividade que caracteriza a pessoa, que nesta medida pode perfeitamente ser pintada, desde que não exija movimento violento do corpo ou deformação da boca: assim, por exemplo, Santa Cecília no órgão, os violinistas de Rafael na Galeria Sciarra em Roma etc. Como, dados os limites da arte, o sofrimento de Laoconte não pode ser expresso por grito, o artista foi forçado a utilizar todas as demais expressões do mesmo; isto realizou com a maior das perfeições, como o descreve magistralmente Winckelmann (Obras, vol. 6, pp. 104 e ss.), cujo relato excelente mantém por isto seu valor e acerto plenos, desde que se abstraia das intenções estoicas. [35]

§47

Porque a beleza e a graça são objeto principal da escultura, esta ama o nu, e admite a vestimenta apenas enquanto não oculta as formas. Ela se serve do drapejado não como disfarce, mas como apresentação mediata da forma, modo de apresentação este que muito solicita o entendimento, ao atingir a intuição da causa, a forma do corpo, apenas pelo efeito, unicamente dado de imediato, das pregas da vestimenta. Assim na escultura o drapejado é aquilo que na pintura é a abreviação. Ambos são indicações, não simbólicas, mas que, bem-sucedidas, obriguem de imediato o entendimento a intuir o indicado como se este fosse realmente dado.

Seja-me permitido intercalar aqui uma analogia com a arte da oratória. Assim como a forma corporal bela é visível com mais facilidade sob vestimenta leve, ou, do modo mais vantajoso, despida, e uma pessoa bela, se provida de bom gosto, e por este pudesse se orientar, deveria andar quase nua, vestida apenas à maneira dos antigos; assim também todo espírito belo e bem-dotado se expressará sempre do modo mais natural, simples e direto, procurando sempre que possível comunicar seus pensamentos a outros, diminuindo assim a solidão a que é obrigado neste mundo; por outro lado, contudo, pobreza de espírito, confusão e extravagância se revestirão com os termos mais rebuscados e as expressões mais confusas, para assim mascarar em frases difíceis e pomposas pensamentos mesquinhos, ínfimos, banais ou cotidianos, como aquele que, desprovido da majestade da beleza, pretende substituir esta carência por meio da vestimenta, e procura ocultar a insignificância ou feiura de sua pessoa sob bárbaros ornamentos, lantejoulas, penachos, babados, peles e mantos. Embaraço idêntico ao sentido por este, quando obrigado a andar nu, sentiria muito autor, se obrigado a traduzir seu livro pomposo e obscuro ao seu claro e reduzido conteúdo.

§48

A pintura histórica possui ao lado da beleza e da graça ainda o caráter como objeto principal, onde deve se entender a apresentação da vontade no mais alto grau de sua objetivação, em que o indivíduo, como realce de um lado particular da ideia da humanidade, possui uma importância especial, que dá a conhecer não apenas pela simples figura, mas mediante ações de todo tipo, e as modificações do conhecer e do querer que as provocam e acompanham, visíveis nas feições e nos gestos. Ao se pretender apresentar a ideia da humanidade num tal âmbito, deve-se ter diante dos olhos o desdobramento de sua multiplicidade em indivíduos significativos, que por sua vez podem ser perceptíveis em sua importância apenas mediante cenas, procedimentos, ações variadas. Esta sua tarefa ilimitada, a pintura histórica resolve, apresentando cenas da vida de toda espécie, de significado amplo ou restrito. Nem qualquer indivíduo nem qualquer ação pode ser destituída de significado; em todas e por todas se desdobra mais e mais a ideia da humanidade. Por isto nenhum procedimento da vida humana há que ser excluído da pintura. Deste modo, procede-se injustamente com os excelentes pintores da escola flamenga, ao se apreciar somente a sua técnica, dedicando-lhes menosprezo quanto ao restante, porque com a maior frequência apresentam objetos da vida comum, mas se consideram significativos somente eventos da história da humanidade ou da história bíblica. Antes de tudo, dever-se-ia considerar que a significação interna de uma ação é inteiramente distinta da externa, e ambas com frequência ocorrem separadamente. A significação externa é a importância de uma ação em relação às consequências da mesma para o e dentro do mundo real; portanto conforme o princípio de razão. A significação interna é o alcance da visão na ideia da humanidade, que revela apresentando facetas mais raras de sua ideia, ao permitir o desdobramento das peculiaridades de individualidades que se mostram de modo claro e decidido mediante circunstâncias convenientemente dispostas. Somente a significação interna tem valor na arte: a externa vale na história. Ambas são inteiramente independentes uma da outra, podem ocorrer em conjunto, mas também aparecer isoladamente. Uma ação muito significativa para a história pode, quanto à significação interna, ser altamente cotidiana e ordinária, e contrariamente, uma cena da vida cotidiana pode ser de grande significação interna, se nela se revelam indivíduos humanos e agir e querer humanos numa luz clara e nítida até as dobras mais escuras. Também, com uma significação externa muito diversa, a interna pode ser única, p. ex., pode ser igualmente importante a disputa de povos e países em um mapa por ministros, ou a disputa de um jogo de cartas ou de dados numa taberna por camponeses; assim como é indiferente jogar xadrez com figuras de madeira ou de ouro. Além disso, as cenas e acontecimentos que perfazem a vida de tantos milhões de pessoas, seu agir e fazer, sua miséria e sua alegria, já possuem importância suficiente para serem objetos da arte, e por sua diversidade devem fornecer matéria suficiente para o desdobramento da múltipla ideia da humanidade. Até a rapidez do momento fixada pela arte num tal quadro (atualmente denominado quadro de genre), possui um contato leve, peculiar: o mundo fugidio, transformando-se constantemente em acontecimentos individuais; representativos do todo, requer, para ser captado num quadro permanente, duma realização da pintura, pela qual esta parece parar o próprio tempo, elevando o individual à ideia de seu gênero. Por fim, os propósitos históricos e de significação externa da pintura trazem frequentemente o inconveniente de que justamente o que neles é significativo não permite apresentação intuitiva mas deve ser acrescentado pelo pensamento. Neste sentido deve se distinguir entre a significação nominal de um quadro e a real: aquela é a externa, que se constitui apenas como conceito; esta é a parte da ideia da humanidade, que se revela à intuição mediante o quadro; p. ex., aquela, seja Moisés encontrado pela princesa egípcia, um momento de grande importância para a história; o significado real, ao contrário, o que realmente é dado à intuição, é uma criança abandonada, salva de seu berço flutuante por uma dama da nobreza; um acontecimento que pode ter acontecido com maior frequência. O costume apenas pode tornar este caso histórico determinado do conhecimento do historiador; porém o costume é válido somente para o significado nominal, sendo indiferente quanto ao real, pois este último conhece apenas o homem como tal, não as formas acidentais. Propósitos subtraídos à história não possuem vantagem alguma em face dos oriundos da simples possibilidade, de denominação apenas geral e não individual: pois o que é propriamente significativo naqueles não é o individual, o acontecimento isolado como tal, mas o que nele há de geral, a parte da ideia da humanidade que nele se exprime. Por outro lado, não há porque rejeitar determinados objetos históricos, apenas a intenção propriamente artística dos mesmos, seja no observador, nunca se dirige ao singular individual neles, o que constitui propriamente o histórico, mas ao geral neles expresso, à ideia. Também devem ser escolhidos unicamente objetos históricos em que o elemento principal permite apresentação, sem necessitar pensamento adicional, caso contrário o significado nominal se afasta excessivamente do real; o que no quadro é apenas pensado torna-se o principal, prejudicando o intuito. Se no palco já não é desejável que (como na tragédia francesa) o principal suceda por trás da cena, no quadro isto é ainda mais grave. Propósitos históricos tornam-se decididamente prejudiciais somente quando limitam o pintor a um campo de escolha acidental, e não motivada por fins artísticos, principalmente se este campo é pobre em objetos pitorescos e significativos, p. ex., quando se refere à história de um povo obscuro, pequeno, isolado, obstinada, de dominação hierárquica, i.e. por meio de ilusões, desprezado pelos grandes povos contemporâneos do Ocidente e do Oriente, como o são os judeus. Como entre nós e todos os povos antigos se situa a grande migração dos povos, assim como entre a atual superfície terrestre e a de outrora, cujas civilizações se revelam somente petrificadas, existe a transformação do leito dos mares: assim deve ser encarado como uma grande infelicidade que o povo, cuja cultura passada se tornaria o principal fundamento da nossa, não eram os hindus ou os gregos, até mesmo os romanos, mas justamente estes judeus. A situação era particularmente infeliz para os geniais pintores da Itália dos séculos XV e XVI, que, restritos em sua liberdade de escolha de propósitos a um estreito circulo, eram obrigados a misérias de toda espécie, porque o Novo Testamento é quanto à sua parte histórica ainda menos adequado à pintura do que o Antigo, e a história dos mártires e pensadores religiosos que lhe sucedeu é um objeto inteiramente desastroso. Contudo, deve-se distinguir, dos quadros cujo objeto é o histórico ou mitológico do judaísmo ou do cristianismo, aqueles em que o espírito propriamente, i.e. ético, do cristianismo, se revela à intuição, pela apresentação de homens plenos deste espírito. Estas apresentações constituem de fato as realizações mais elevadas e dignas de admiração da pintura; também neste campo foram de bom êxito somente os grandes mestres da pintura, especialmente Rafael e Correggio, este último principalmente em seus primeiros quadros. Pinturas deste tipo propriamente não devem ser alinhadas entre as históricas, pois na maioria das vezes não apresentam eventos, ações, sendo simples justaposições de santos, o próprio Salvador, frequentemente ainda como criança, com sua mãe, anjos etc. Em suas feições, particularmente os olhos, vemos a expressão, o reflexo do mais perfeito conhecimento, não o que é dirigido a coisas individuais, mas para as ideias, que apreendeu portanto perfeitamente toda a essência do mundo e da vida, conhecimento que, retroagindo sobre a vontade, não lhe fornece motivos, como aqueles outros, mas ao contrário, constituindo-se em quietivo de todo querer, [36] do qual surgiu a resignação perfeita; que é o espírito mais interior do cristianismo bem como da sabedoria hindu, o sacrifício de todo querer, o rechaçamento, a supressão da vontade, e com ela, de toda essência deste mundo, portanto a salvação. Assim aqueles mestres de eterno valor expressavam de modo intuitivo, por suas obras de arte, a mais alta sabedoria. E aqui se localiza o pináculo de toda arte, que, tendo perseguido a vontade em sua objetividade adequada, as ideias, através de todos os graus, a partir dos mais inferiores, motivado pelas causas, a seguir, pelas excitações, e finalmente, pelos motivos, desdobrando sua essência de modo variado, finalizando agora com a apresentação de sua autossupressão por meio do imenso e único quietivo, a ela revelado pelo mais perfeito conhecimento de sua própria essência. [37]

§49

Todas as nossas considerações precedentes sobre a arte se baseiam no princípio de que o objeto da arte, cuja apresentação é a meta do artista, cujo conhecimento portanto deve preceder sua obra como germe e origem, nada mais é do que uma ideia no sentido platônico: não uma coisa individual, objeto da concepção comum; nem o conceito, objeto do pensar racional e da ciência. Embora ideia e conceito possuam algo em comum, ao estarem ambos no lugar de uma multiplicidade de coisas reais numa unidade, a grande diferença entre ambos adquiriu clareza e distinção suficiente a partir do dito no primeiro livro acerca do conceito, e no livro presente, sobre a ideia. Porém, que Platão tenha percebido com clareza esta distinção, não me parece seguro; alguns de seus exemplos de ideias, bem como algumas explicações acerca das mesmas, são aplicáveis somente a conceitos. Contudo, não nos detenhamos neste assunto, felizes em deparar com os passos dum espírito grande e nobre, sem lhe seguir porém as pegadas, mas os nossos objetivos. O conceito é abstrato, discursivo, inteiramente indeterminado no interior de sua esfera, determinado somente em seus limites, acessível e apreensível por qualquer um, apenas dotado de razão, comunicável através de palavras, sem ulterior mediação, completamente esgotável por sua definição. A ideia, ao contrário, definida como representante adequado do conceito, é totalmente intuível, e embora representando uma infinidade de coisas individuais, é inteiramente determinada: não é conhecida pelo indivíduo como tal, mas somente por aquele que se elevou, sobre todo querer e toda individualidade, a sujeito puro do conhecimento: logo, é acessível apenas ao gênio e àquele que, por elevação de sua faculdade de conhecer, motivada em sua maioria por obras do gênio, se situa numa disposição genial. Por isto, permite comunicação unicamente mediatizada, na medida em que a ideia apreendida e reproduzida na obra de arte se apresenta a cada um conforme seu valor intelectual próprio; motivo por que as melhores obras de arte, os mais nobres resultados do gênio, permanecerão eternamente ilegíveis e inacessíveis à maioria obtusa da humanidade, dela distanciada por extenso abismo, assim como é interdito ao populacho o trato dos príncipes. Mesmo apesar de até os menos dotados valorizarem por mérito as obras reconhecidamente de vulto, para não trair sua própria fraqueza, permanecem contudo sempre dispostos a lançar-lhes seu juízo reprovador, tão logo se lhes permita fazê-lo sem se expor, quando então adquire livre curso seu retido ódio contra tudo que é grande e belo, humilhante por não se lhes revelar, e contra seus criadores. Porque, de um modo geral, para se reconhecer voluntária e livremente valor alheio, deve-se ser dotado de valor próprio. Nisto se baseia a necessidade da modéstia em toda realização, bem como o elogio desmesurado da virtude, única dentre todas as suas irmãs a acompanhar sempre o louvor tecido a um grande homem, para conciliar e apaziguar o rancor da ausência de valor. Pois o que é a modéstia, senão humildade fingida, com que, num mundo exuberante de inveja, mendigar o perdão por méritos e aptidões àqueles que não os possuem? Pois quem a si estes não atribui, não é modesto, mas apenas honesto.

A ideia é a unidade decomposta na multiplicidade em virtude da forma espacial e temporal de nossa apreensão intuitiva; por sua vez, o conceito é a unidade reconstituída a partir da multiplicidade, mediante a abstração da nossa razão; esta pode ser denominada unita post rem, aquela unitas ante rem. Por fim, é possível exprimir a diferença entre conceito e ideia igualmente, dizendo: o conceito se assemelha a um recipiente inanimado em que tudo o que é ali depositado realmente se encontra lado a lado, mas do qual também não podemos extrair mais (por juízos analíticos) do que nele depositamos (por reflexão sintética); a ideia, porém, desenvolve naquele que a apreendeu representações novas no que diz respeito a seus conceitos homônimos: assemelha-se a um organismo vivo, que se desenvolve, dotado de força reprodutiva, a engendrar o que nele não se encontrava guardado.

Consequentemente, o conceito, por mais útil que seja para a vida, por mais aplicável, necessário e compensador para a ciência, permanece eternamente infrutífero para a arte. A ideia apreendida, pelo contrário, é a única e verdadeira fonte de toda genuína obra de arte. Em sua vigorosa originalidade, ela provém unicamente da própria vida, da natureza, do mundo, e apenas por meio do verdadeiro gênio, ou daquele momentaneamente erguido à genialidade. Somente mediante uma tal concepção imediata criam-se obras dotadas de vida eterna. Justamente porque a ideia é e permanece intuitiva, o artista não está consciente in abstracto da intenção e do fim de sua obra; não é um conceito, mas uma ideia que mantém diante dos olhos; por isso não pode justificar a sua atividade. Ele opera, como no dizer popular, unicamente mediante o sentir, e inconscientemente, instintivamente mesmo. Contudo os copistas, maneiristas, imitatores, servum pecus [38] procedem na arte a partir do conceito; marcam o que agrada e atua nas obras verdadeiras, desenvolvem clareza a respeito, apreendem-no no conceito, portanto abstratamente, e imitam-no aberta ou veladamente, movidos por astuta intencionalidade. Quais plantas parasitas, absorvem seu sustento de obras alheias, portanto, como os pólipos, a cor de seu alimento. E mesmo levando adiante a comparação, poderíamos dizer que se assemelham a máquinas a moer e misturar o que nelas se deposita, que contudo não o conseguem digerir, de modo que os componentes estranhos sempre permitem ser reencontrados e isolados no interior da mistura; o gênio unicamente se assemelharia ao corpo orgânico, capaz de assimilação, transformação e produção. Pois ele é criado e formado pelos antecessores e suas obras; mas é fecundado apenas diretamente pela vida e pelo mundo, mediante a impressão do intuitivo. Destarte mesmo a cultura mais primorosa não prejudica sua originalidade. Todos os imitadores, todos os maneiristas apreendem a essência de realizações exemplares alheias pelo conceito; conceitos contudo jamais podem dotar uma obra de vida interna. A época, i.e. a multidão opaca, conhece ela própria somente conceitos e a eles se prende, aceitando obras maneiristas com aplausos rápidos e calorosos: após poucos anos, porém, estas já se tornaram insuportáveis, porque o espírito da época, i.e. os conceitos dominantes, os únicos sobre que aquelas podiam criar raízes, se alteraram. Somente as obras legítimas, sorvidas diretamente da natureza, da vida, como estas permanecem eternamente jovens e originárias. Pois não pertencem a uma época particular, mas à humanidade; e como precisamente por isto foram mal recebidas por sua própria época, a quem desdenhavam o aconchego, e como, por comunicarem e revelarem negativamente os enganos ocorrentes na mesma, foram dotados de reconhecimento tardio e a contragosto; assim também não podem envelhecer, mas apresentam frescor e juventude ainda nos tempos mais remotos; também não são submetidas ao desmerecimento e ao esquecimento, pois se encontram, coroadas e sancionadas pelas poucas cabeças capazes de juízo, a aparecerem individual e parcamente através dos séculos [39] e emitirem o seu parecer, cuja soma lentamente crescente fundamenta a autoridade que constitui unicamente aquele poder de magistrado a que nos referimos quando apelamos à posteridade. São unicamente aqueles indivíduos isolados a aparecerem sucessivamente: porque a massa e multidão da posteridade sempre será tão errada e obtusa como sempre o foi e é agora. Que se leiam os lamentos de grandes espíritos de todos os séculos a respeito de seus contemporâneos, sempre soam atuais, porque a humanidade permanece a mesma. Em todas as épocas e em todas as artes, o medo substitui o espírito, sempre apenas propriedade de uns poucos: o modo, contudo, nada mais é do que a roupa velha e usada da última manifestação do espírito que esteve presente e foi reconhecida. Assim via de regra a aprovação da posteridade se consegue às custas da aprovação dos contemporâneos; e vice-versa. [40]

§50

Se então o objetivo de toda arte é a comunicação da ideia apreendida, que se manifesta numa tal mediação por meio do espírito do artista, limpa e isolada de tudo que lhe é estranho, que também se torna acessível àquele dotado de receptividade menor e nenhuma produtividade e, além disto, a partir do conceito é condenável na arte, então não podemos admitir que se destine uma obra de arte proposital e confessadamente à expressão de um conceito: este é o caso na alegoria. Uma alegoria é uma obra de arte de significado diferente do que apresenta. Mas o intuitivo, e portanto também a ideia, se mostra imediata e perfeitamente, sem necessitar da mediação de um outro a lhe indicar o significado. O que porém é indicado por um outro que está em seu lugar, porque não pode ser trazido em face da intuição, é um conceito. Portanto, a alegoria pretende sempre designar um conceito e consequentemente dirigir o espírito do observador da representação intuitiva apresentada para uma outra, abstrata, não intuitiva, localizada inteiramente fora da obra de arte; aqui portanto quadro ou estátua devem realizar o mesmo que, de modo mais perfeito, é realizado pela escrita. O que nós declaramos como sendo o fim da arte, apresentação das ideias apenas intuitivamente apreensíveis, aqui não é o caso. Mas para o que aqui se pretende, também não é indispensável uma grande perfeição da obra de arte; é suficiente que se veja o que a coisa deve ser, já que, feito isto, o objetivo está atingido e o espírito é dirigido a uma representação inteiramente diferente, um conceito abstrato, que constituía o fim pré-traçado. Em consequência, alegorias na arte nada mais são do que hieróglifos; o valor artístico que possam ter como apresentações intuitivas não lhes corresponde como alegorias, mas de um outro modo. Que a “Noite” de Correggio, o “Gênio da Fama” de Aníbal Caracci, as “Heras” de Poussin, são quadros de grande beleza, há que distinguir inteiramente do fato de serem alegorias. Como alegorias, nada mais realizam do que uma inscrição, antes menos. Recordemos novamente a distinção feita acima entre significação nominal e real de um quadro. A nominal aqui é justamente o alegórico como tal, p. ex., o “Gênio da Fama”, a real é o efetivamente apresentado: um jovem belo e alado, rodeado por um revoar de meninos. Isto transmite uma ideia; este significado real contudo age apenas enquanto esquecemos o nominal, alegórico: pensando neste, esquecemos a intuição, e um conceito abstrato se ocupa do espírito: a transição da ideia ao conceito porém sempre é uma queda. Este significado nominal, este intuito alegórico pode inclusive perturbar o significado real, a verdade intuída: assim, p. ex., a inatural iluminação na noite de Correggio, que por mais bela que seja sua execução é motivada somente alegoricamente, sendo realmente impossível. Portanto, quando um quadro alegórico também possui valor artístico, este é inteiramente distinto e independente do que o quadro realiza como alegoria. Uma tal obra de arte serve simultaneamente a dois fins: à expressão de um conceito e à expressão de uma ideia; somente este último pode ser um objetivo artístico; o outro é um objetivo estranho, uma jocosidade divertida, tornar um quadro apto a servir de inscrição, como hieróglifo, inventado para deleite dos que são inacessíveis à verdadeira essência da arte. Tudo se passa como se uma obra de arte fosse simultaneamente um instrumento utilitário, quando também serve a dois fins. P. ex., uma estátua que é ao mesmo tempo candelabro, ou cariátide, ou um baixo-relevo que é ao mesmo tempo o escudo de Aquiles. Os verdadeiros amigos da arte não aprovarão nem um nem outro. Um quadro alegórico pode também nesta sua qualidade proporcionar uma impressão viva sobre a sensibilidade, mas o mesmo seria válido, sob circunstâncias iguais, para uma inscrição. P. ex., se um homem possui contínua e intensamente o desejo pela fama, encarando mesmo a fama como sua legítima propriedade, que lhe é recusada apenas enquanto ainda não tenha produzido os documentos de sua posse, e subitamente este homem se situa em face do “Gênio da Fama” com sua coroa de louros; toda sua sensibilidade é excitada e sua força incitada à ação; mas o mesmo também sucederia se repentinamente visse na parede à sua frente em grandes e nítidos caracteres a palavra Fama. Ou quando um homem proclamou uma verdade que é importante seja como proposição para a vida prática, seja como afirmativa científica, mas não tenha encontrado receptividade; um quadro alegórico, apresentando o tempo a erguer o véu e permitir a visão da verdade nua, terá um tremendo efeito sobre ele: mas o mesmo seria realizado pela divisa Le temps découvre la vérite. [41] Pois o efeito aqui é sempre produzido pelo pensamento abstrato, e não pelo intuído.

Se pelo dito a alegoria constitui nas artes uma intuição enganosa, a serviço de um fim inteiramente alheio à arte, esta se torna totalmente inadmissível quando se desvia a ponto de a apresentação de indicações recrutadas à força tombar no ridículo. Desta espécie, p. ex., é uma tartaruga como indicação do retraimento feminino; o mirar de Nêmesis para dentro da vestimenta que lhe cobre o próprio seio, a indicar que também percebe o oculto; a exposição de Bellori, segundo a qual Aníbal Caracci teria adornado a volúpia com uma vestimenta amarela, porque quis indicar que suas alegrias murcham com rapidez, adotando o amarelo cor de palha. Quando entre o apresentado e o conceito assim indicado não há relação alguma baseada em subsunção sob aquele conceito ou associação de ideias, mas o sinal e o assinalado se associam de modo inteiramente convencional, mediante disposições positivas, de ocorrência acidental: então denomina-se esta corruptela da alegoria símbolo. Assim a rosa é símbolo da discrição, o louro, símbolo da glória, a palmeira, símbolo da vitória, a concha, símbolo dos peregrinos, a cruz, símbolo da religião cristã; aqui se localizam também todas as indicações diretamente por meio de cores, como amarelo, cor da falsidade, e azul, cor da fidelidade. Tais símbolos podem ser de utilidade na vida prática, mas seu valor é estranho à arte: devem ser encarados como hieróglifos, ou mesmo como os ideogramas chineses, e se situam na mesma classe com os brasões, com o ramo que indica uma taberna, a chave pela qual se reconhece o camareiro, ou o couro com que se reconhece o montanhês. Quando finalmente determinadas pessoas históricas ou míticas, ou conceitos personificados, tornam-se conhecidos duma por todas as vezes mediante símbolos permanentes, haveria que lhes dar o nome de emblemas; desta ordem são os animais dos evangelistas, a coruja de Minerva, a maçã de Páris, a âncora da esperança etc. Entrementes compreende-se por emblema aquelas apresentações em sentido figurado, simples e elucidadas por um lema, que devem apresentar à intuição uma verdade moral, de que existem grandes coleções, de J. Camerarius, Alciatus e outros; estas perfazem a transição à alegoria poética, a que voltaremos a seguir. A escultura grega se dirige à intuição, por isto ela é estética; a hindu se dirige ao conceito, por isto é apenas simbólica.

Este nosso juízo acerca da alegoria, baseado em nossas considerações precedentes sobre a essência interna da arte, e por isto completamente consistente, é precisamente oposto à visão de Winckelmann que, muito longe de declarar a alegoria algo alheio e perturbador do objetivo da arte, lhe tece os maiores elogios, situando mesmo (Obras, vol. 1, pp. 55 s.) o mais alto fim da arte na “apresentação de conceitos gerais e coisas não sensíveis”. Cabe a cada um adotar uma ou outra opinião. Apenas aqui e em outras passagens análogas de Winckelmann relativas à metafísica do belo, me pareceu nítida a verdade de que podemos possuir a maior receptividade e o julgamento mais correto sobre o belo artístico, sem contudo ser capaz de emitir explicações abstratas e propriamente filosóficas sobre a essência do belo e da arte; da mesma forma como se pode ser muito digno e virtuoso, dotado duma consciência que decide em casos individuais com a precisão de uma balança de ouro, sem ser por isto apto a perscrutar filosoficamente o significado ético das ações e apresentá-las in abstracto.

Uma relação completamente diferente, porém, do que com as artes plásticas, a alegoria possui com a poesia, e embora condenável ali, aqui é admissível e conveniente. Pois nas artes plásticas, ela conduz do intuitivo dado, o objeto propriamente de toda arte, a pensamentos abstratos; na poesia porém, a relação é oposta; aqui o que é dado imediatamente por palavras é o conceito, e o primeiro objetivo é conduzir deste ao intuível, cuja apresentação deve ser realizada pela fantasia do ouvinte. Quando nas artes plásticas se conduz de um imediatamente dado a um outro, isto sempre deve ser um conceito, porque aqui somente o abstrato não pode ser imediatamente dado; mas um conceito nunca deve ser a origem, e sua comunicação nunca deve ser o fim de uma obra de arte. Na poesia, o conceito é o material, o dado imediato, que pode muito bem ser abandonado, dando lugar a um intuitivo inteiramente diferente, em que o objetivo é atingido. No conjunto de uma poesia, podem ser imprescindíveis muitos conceitos ou pensamentos abstratos, em si e de modo imediato inaptos à intuição, instalada então mediante qualquer exemplo que lhes é subsumido. Isto ocorre em toda expressão figurada, em toda metáfora, comparação, parábola e alegoria, que diferem somente pela extensão e amplitude de sua apresentação. Por isto, na arte da palavra, comparações e alegorias conduzem a efeitos surpreendentes. Com que beleza diz Cervantes do sono, para exprimir que nos afasta de todos os sofrimentos espirituais e corporais, “é um manto a cobrir o homem por inteiro”. Com que beleza exprime Kleist alegoricamente o esclarecimento proporcionado aos homens por cientistas e filósofos mediante o verso: “Aqueles, cujas noturnas luzes iluminam o mundo inteiro”. Com que força e intuição caracteriza Homero o mau agouro de Ate, filha de Zeus: “possui pés delicados, pois não alcançam o solo rígido, mas caminham somente sobre as cabeças dos homens”. (Ilíada, XIX, 91). Que profundo efeito sobre o povo romano produziu a fábula de Menênio Agripa, do estômago e dos membros. Com que beleza expressa Platão um dogma filosófico da mais alta abstração, no início do sétimo livro da República, pela já mencionada alegoria da caverna. Também como alegoria de tendência filosófica de profundo sentido há que encarar a fábula de Perséfone que permanece no inferno por ter ali provado uma romã; o que se torna particularmente claro pelo tratamento acima de qualquer louvor que Goethe destina a esta fábula, tecida como episódio no transcorrer do triunfo da sensibilidade. São do meu conhecimento três obras alegóricas detalhadas: Uma, aparente e confessada, é o incomparável Criticón de Baltasar Gracián, consistindo num tecido extenso e rico de alegorias altamente significativas interligadas, destinadas ao revestimento agradável de verdades morais, aptas assim à maior apreensão intuitiva e que nos surpreendem pela riqueza de suas invectivas. Duas obras ocultas porém são Dom Quixote e Gulliver em Liliput. O primeiro alegoriza a vida de todo homem, que não pretende apenas perseguir seu bem-estar pessoal, como os outros homens, mas um fim objetivo, ideal, que se apoderou de seu pensamento e vontade, o que francamente o induz a comportamentos estranhos neste mundo. Em Gulliver, somente há que tomar como espiritual tudo o que é físico, para perceber o que quis dizer o satirical rogue, como o chamaria Hamlet. Na medida em que para a alegoria poética, o conceito é sempre o dado, que pretende tornar apto à apreensão intuitiva por meio de um quadro, esta pode ocasionalmente ser muito bem expressa ou sustentada por um quadro pintado; nem por isto este será considerado obra das artes plásticas, mas apenas um hieróglifo indicador, sem pretensões e valor pictórico, mas somente poético. De tal espécie é esta bela vinheta alegórica de Lavater, de efeito tão necessariamente revigorante sobre o coração de todo defensor da verdade: uma mão, portando uma luz, mordida por uma vespa, enquanto em cima insetos se queimam na chama; encimando o lema:

E mesmo que ao inseto se queimem as asas,
A cabeça, seu ínfimo cérebro, nas brasas;
Que a luz sempre luz permaneça;
E a vespa, por mais importuna, travessa,
Não fará com que eu esmoreça.

Aqui também cabe aquela lápide, com luz fumegante apagada, e a subscrição:

Apenas extinta é que se revela,
Se era luz de candeeiro ou luz de vela.

Por fim, também é deste tipo aquela antiga árvore genealógica alemã, em que o último descendente da imensa família expressa a sua decisão em conduzir sua vida em completa abstenção e castidade, condenando à morte a sua linhagem, dispondo-se ele mesmo à raiz da frondosa árvore, que derruba munido duma tesoura. Há que alinhar também os símbolos mencionados acima, comumente denominados emblemas, que também poderiam ser designados como pequenas fábulas pintadas, munidas duma transcrição moral. Alegorias desse tipo sempre devem ser incluídas na poesia e não na pintura, e deste modo justificadas; também sua execução visual é sempre secundária, e dela nada mais se exige do que apresentar a coisa de modo cognoscível. Contudo, como nas artes plásticas, também na poesia a alegoria se transforma em símbolo, quando entre o intuitivamente apresentado e o abstrato assim designado só existe uma relação acidental. No fundo, como tudo o que é simbólico se baseia em convenção, o símbolo ostenta entre outros inconvenientes o de seu significado ser esquecido com o tempo, quando então silencia por completo; quem adivinharia, se não o soubéssemos, por que o peixe é o símbolo do cristianismo? [42] Somente um Champollion, pois é inteiramente um hieróglifo fonético. É por isto que, como alegoria poética, o Apocalipse de João se situa aproximadamente ali, onde os relevos com magnus deus sol Mithra ainda ocupam os pesquisadores. [43]

§51

Se nos dirigirmos agora com nossas considerações sobre a arte em geral, das artes plásticas à poesia, não duvidaremos de que também ela é dotada da intenção de revelar as ideias, os graus da objetivação da vontade, comunicando-as aos ouvintes com clareza e vivacidade com que são apreendidas pela sensibilidade poética. Ideias são essencialmente intuitivas, e portanto quando na poesia o expresso diretamente por palavras constitui apenas conceitos abstratos, a intenção aparente é tornar o ouvinte capaz de apreensão intuitiva das ideias da vida nos representantes destes conceitos, o que se verifica somente mediante o auxílio de sua própria fantasia. Para que esta se mobilize conforme o objetivo, os conceitos abstratos, material imediato da poesia, como da prosa mais seca, devem ser dispostos de maneira tal que suas esferas se cortem de modo a impedir a permanência de qualquer um em sua generalidade abstrata; mas em seu lugar se apresente à fantasia um representante intuitivo, já agora modificado pelas palavras do artista conforme sua intenção. Assim como o químico, partindo de líquidos completamente claros e transparentes, obtém por sua mistura precipitados compactos, assim o poeta, partindo da generalidade abstrata e transparente dos conceitos, pelo modo de combiná-los, sabe conduzir ao concreto, ao individual, à representação intuitiva. Pois a ideia é conhecida somente intuitivamente; e o conhecimento da ideia é o objetivo de toda arte. A maestria na poesia, como na química, torna capaz de obter sempre o precipitado almejado. A este fim servem os muitos epítetos na poesia, com que se restringe a generalidade de todo conceito, até torná-lo apto de apreensão intuitiva. Homero acompanha quase todo substantivo de um adjetivo, cujo conceito corta a esfera do conceito daquele, diminuindo-o consideravelmente, com o que já de muito se aproxima da intuição. Por exemplo:

En d’epes Okeanõ lamprôn pháos heelíoio,
Helkon nyktà melainan epì xeídoron árouran
(Occidit vero in Oceanum splendidum lumen solis,
Trahens noctem nigram super almam terram. [44]

E:

Ein sanfter Wind vom blauen Himmel went,
Die Myrthe still und hoch der Lorbeer steht [45]

apresenta à fantasia, com poucos conceitos, todo o encanto do clima sulino. Um auxiliar todo especial da poesia são o ritmo e a rima. Não consigo explicar seu efeito inacreditavelmente poderoso, a não ser dizendo que as nossas faculdades da imaginação essencialmente associadas ao tempo adquiriram destarte uma particularidade, graças a que em nosso íntimo seguimos e acompanhamos todo ruído de ocorrência regular. Assim, ritmo e rima em parte se constituem em elemento de união de nossa atenção, ao seguirmos com mais vontade a exposição, em parte por meio deles se origina uma concordância com o exposto, anterior a todo julgamento, que adquire assim uma certa forca de persuasão empática, independente de quaisquer causas.

Em virtude da generalidade da matéria de que se serve a poesia, para transmitir as ideias, ou seja, dos conceitos, o âmbito de seu domínio é muito grande. Todo o conjunto da natureza, as ideias de todos os graus, podem por meio dela ser apresentados, ao proceder, em conformidade com a ideia de ser comunicada, ora descrevendo, ora relatando, ora por apresentação dramática direta. Enquanto na apresentação dos graus inferiores da objetividade da vontade, as artes plásticas superam a poesia, porque a natureza desprovida de conhecimento, e mesmo simplesmente animal, revela num único momento apropriado a quase totalidade de sua essência; o homem, não se exprimindo apenas pela simples figura e expressão das feições, mas também por uma cadeia de ações e de pensamentos e afeições que as acompanham, é o objeto principal da poesia, em que nenhuma outra arte se lhe iguala, provida que é do desenvolvimento, ausente às artes plásticas.

Revelação da ideia que constitui o mais elevado grau da objetividade da vontade, apresentação do homem na série conexa de suas aspirações e ações, constitui o grande propósito da poesia. Também a experiência, também a história ensinam a conhecer o homem; contudo, antes os homens do que o homem, ou seja, fornecem mais notícias empíricas do comportamento dos homens entre si, donde surgem regras para o comportamento próprio, do que atiram olhares profundos à natureza interior do homem. Disto contudo também não se excluem; mas sempre que é a própria essência da humanidade, que se nos apresenta na história, ou em nossa experiência; nós já apreendemos esta, e o historiador aquela, com olhos de artista, poeticamente, i.e. conforme a ideia, e não o fenômeno, a natureza interior e não as relações. Condição inevitável para a compreensão da poesia, como da história, é a experiência própria, pois constitui o vocabulário da língua em que ambas se expressam. Porém a história se comporta em relação à poesia, assim como a pintura retratista quanto à pintura histórica: aquela fornece a verdade individual, esta a geral; aquela detém a verdade do fenômeno, que neste se pode verificar, esta detém a verdade da ideia, localizada em nenhum fenômeno individual, mas por todos se exprimindo. O poeta apresenta, por escolha e intenção, caracteres significativos em situações significativas; ambos apreendidos pelo historiador da maneira como se apresentam. Ele não deve encarar os acontecimentos e as pessoas conforme seu significado interno, genuíno, expressão da ideia, e assim elegê-las, mas de acordo com o significado externo, aparente, relativo, em relação com o encadeamento, as consequências. Não deve considerar nada em e para si, conforme sua expressão e caráter essencial, porém tudo conforme a relação, no encadeamento, na influência do que segue, e particularmente com vistas a sua própria época. Assim, não fará pouco caso de uma ação pouco significativa, em si ordinária, um rei; pois ela possui consequências e influência. Mas ações em si altamente significativas de indivíduos singulares destacados, quando permanecem sem consequências, sem influência, não serão por ele mencionadas. Pois sua consideração obedece ao princípio de razão e apreende o fenômeno cuja forma este é. O poeta, porém, apreende a ideia, a essência da humanidade fora de toda relação, de todo tempo, a objetividade adequada da coisa-em-si em seu grau mais elevado. Destarte, embora mesmo com o modo de consideração necessário ao historiador, a natureza interna, a significação dos fenômenos, o cerne de todos estes invólucros nunca se perde inteiramente, e pode ser encontrado e conhecido ao menos por quem está à sua busca; aquilo que em si não é significativo na relação, o verdadeiro desdobramento da ideia, será encontrado com muito mais acerto e clareza na poesia do que na história, nos obrigando a atribuir àquela, por mais paradoxal que possa parecer, muito mais verdade propriamente dita, genuína, interna, do que a esta. Porque o historiador deve seguir os acontecimentos individuais estritamente em conformidade com a vida, como esta se desenvolve no tempo pelas cadeias entrelaçadas das causas e dos efeitos; mas é impossível que possua todos os dados para tanto, que tudo tenha visto e elucidado; a todo instante é abandonado pelo original do seu quadro, ou um falso lhe é apresentado, e isto com uma frequência tal, que acredito poder supor que em toda história o falso seja mais presente do que o verdadeiro. O poeta, ao contrário, apreendeu a ideia da humanidade por um lado determinado qualquer, justamente a ser apresentado, é a essência de seu próprio eu que nele se objetiva; seu conhecimento é, como já indicado acima, por ocasião da escultura, em grande parte a priori; seu quadro de referência se situa diante de seu espírito com firmeza, clareza e nitidez, não pode abandoná-lo; por isto nos apresenta no espelho de seu espírito as ideias clara e distintamente, e seu relato, até os detalhes mais individuais e isolados, é verdadeiro como a própria vida. [46]

Por isto, os grandes historiadores antigos, nos detalhes, onde os dados estão ausentes, p. ex., nos discursos de seus heróis, são poetas, e mesmo todo o seu tratamento da matéria se aproxima do épico; isto confere unidade ao que apresentam, facultando-lhes a manutenção da verdade interior, mesmo onde a exterior lhes é inacessível ou até falsificada; e tendo anteriormente comparado a história com a pintura de retratos, em contraste com a poesia, a quem corresponderia a pintura histórica, nos deparamos com a expressão de Winckelmann, segundo a qual o portrait deve ser o ideal do indivíduo, a ser perseguido também pelos historiadores antigos, já que apresentam o individual de modo a revelar o lado ali presente da ideia da humanidade; os novos, contudo, com raras exceções, fornecem apenas “um barril de detritos e um amontoado de inutilidades, e no máximo uma ação principal e de estado”. Quem portanto pretende conhecer a humanidade conforme sua natureza interna, idêntica em todos os seus fenômenos e desenvolvimentos, sua ideia, para estes as obras dos grandes poetas imortais apresentarão um quadro muito mais fiel e nítido do que são capazes os historiadores; pois mesmo os melhores dentre eles, como poetas nem de longe são os primeiros, e suas mãos também não se encontram desatadas. A relação entre ambos a este respeito também pode ser elucidada pela comparação seguinte: o historiador estrito, puro, a trabalhar somente conforme os dados, se assemelha a alguém que, desprovido de todo conhecimento matemático, busca por meio de mediações obter as relações de figuras encontradas acidentalmente, cujos resultados empíricos estão portanto dotados de todos os erros da figura desenhada; o poeta, ao contrário, se assemelha ao matemático a construir a priori aquelas relações, mediante pura intuição, expressando-as não como a figura desenhada realmente as possui, mas como se encontram na ideia, que o desenho pretende tornar sensível. Por isto, Schiller afirma:

Was sich nie und nirgends hat begeben,
Das allein veraltet nie. [47]

Com respeito ao conhecimento da essência da humanidade, devo mesmo conferir às biografias, sobretudo às autobiografias, valor maior do que à história propriamente dita, ao menos como esta é normalmente conduzida. Pois, em parte, ali é possível reunir os dados mais acertada e completamente do que aqui, em parte na história propriamente dita atuam não apenas homens, mas países e exércitos, e os indivíduos que ocorrem, aparecem a uma distância tal, numa redondez e com um séquito tal, ocultos por vestimentas rígidas ou pesados uniformes, que é realmente difícil conhecer o movimento através de tudo isto. Em contraste, a vida fielmente descrita do indivíduo, numa esfera restrita, revela o procedimento dos homens em todas suas nuanças e configurações, a correção, a virtude e mesmo a santidade de alguns, o engano, a miséria, a falsidade da maioria, a inescrupulosidade de alguns. Muito embora seja totalmente diferente, com respeito ao que aqui unicamente se considera, ou seja, o significado interno do aparente, se os objetos em torno dos quais se movimenta a ação, considerados relativamente, são importantes ou insignificantes, reinos majestosos ou simples propriedades rurais: pois todas estas coisas, sem significado em si, adquirem-no somente por e enquanto mobilizarem a vontade, o motivo possui significação apenas por sua relação com a vontade; a relação que como coisa possui com outras coisas semelhantes não é considerada. Assim como uma circunferência de uma polegada de diâmetro e uma de quarenta milhões de milhas de diâmetro gozam totalmente das mesmas propriedades geométricas, os processos e a história de uma aldeia e de um império são essencialmente os mesmos, e num ou noutro pode-se estudar e conhecer a humanidade. Também é errônea a opinião de que as autobiografias são logros e dissimulações. Pelo contrário, a mentira (embora sempre possível) ali talvez seja mais difícil do que em outra parte. A dissimulação mais fácil possível está na simples conversação; já em uma carta, por mais paradoxal que possa parecer, em princípio é mais difícil, porque ali o homem, abandonado a si mesmo, se volta para o interior e não para o exterior, o alheio e distante se aproximando com dificuldade, e não mantém diante dos olhos a medida da impressão sobre o outro; este outro, porém, tranquilo, numa disposição distinta da do escritor, percorre a carta, lendo-a repetidas vezes e em épocas diferentes, descobrindo a intenção oculta com facilidade. Conhece-se um autor também como homem do modo mais fácil através do seu livro, porque todas aquelas condições atuam aqui com mais intensidade e duração; e é a tal ponto difícil se dissimular numa autobiografia que talvez não haja uma única que em seu conjunto não seja mais verídica do que qualquer outra história escrita. O homem que redige a sua vida, dela possui uma visão de conjunto, o individual se torna diminuto, o próximo se distancia, o longínquo se aproxima, os propósitos se extinguem: ele se confessa voluntariamente a si mesmo; aqui o espírito da mentira dele não se apossa com facilidade, pois há em todo homem também uma inclinação para a verdade, a ser dominada a cada mentira, e que aqui precisamente assumiu uma posição extraordinariamente forte. A relação entre biografia e história dos povos se torna clara pela seguinte comparação: A história nos apresenta a humanidade, como a vista do alto duma montanha nos apresenta a natureza: enxergamos muito duma só vez distâncias extensas, grandes massas; nada porém adquire nitidez na totalidade de sua essência propriamente contraste, a apresentação da vida do indivíduo nos revela o homem modo pelo qual conhecemos a natureza, ao passear entre suas árvores, plantas, rochas e cursos d’água. Mas como pela pintura paisagística, em que o artista nos permite enxergar a natureza através de seus olhos, o conhecimento de suas ideias e o estado do conhecimento puro independente da vontade, para tal requerido, nos é bastante facilitado, como para a apresentação das ideias, que podemos buscar na história e na biografia, em face destas a arte poética se situa vantajosamente, pois também aqui o género nos apresenta o espelho esclarecedor, em que se defronta a nós todo o essencial e significativo reunido e iluminado, o acidental e o estranho porém é suprimido. [48]

A apresentação da ideia da humanidade, obrigação do artista, pode ser por este realizada, sendo o apresentado simultaneamente o apresentador; isto ocorre na poesia lírica, a canção propriamente dita, onde o poeta somente intui e descreve vivamente o seu próprio estado, tornando-se, graças ao objeto deste gênero, essencial uma certa subjetividade; ou, porém, o a ser apresentado é inteiramente distinto do apresentador, como em todos os outros gêneros, onde em maior ou menor grau o apresentador se oculta atrás do apresentado, até por fim desaparecer inteiramente. Na romança, o apresentador ainda exprime seu próprio estado em algo mediante tom e posição do todo; bem mais objetiva do que a canção, ainda detém algo subjetivo, que já desaparece mais no idílio, ainda mais no romance, quase totalmente na epopeia propriamente dita, e finalmente até seu último vestígio no drama, que constitui o gênero mais objetivo, em muitos sentidos mais perfeito, e também mais difícil, da poesia. Pela mesma razão o gênero lírico é o mais fácil, e se em geral a arte corresponde apenas ao tão escasso gênio verdadeiro, até mesmo o homem que no geral não é dotado de eminência, quando erguidas suas forças espirituais por um entusiasmo proveniente de fortes estímulos externos, é capaz de produzir uma bela canção, pois para tanto se requer somente uma intuição viva de seu próprio estado no momento da excitação. Isto é comprovado por muitas canções de indivíduos desconhecidos, especialmente as canções populares alemãs, de que o Wunderhorn é uma excelente coleção, e inumeráveis canções de amor e de outros assuntos dos povos de todas as línguas. Porque toda a realização deste gênero poético consiste na apreensão da disposição do momento e sua fixação na canção. Porém na poesia lírica de poetas verdadeiros se reproduz o interior de toda a humanidade, e tudo o que milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram ou sentirão em situações idênticas, em constante retorno, ali encontra a expressão correspondente. Como aquelas situações, pelo seu constante retorno, se situam como permanentes, assim como a própria humanidade, originando sempre as mesmas sensações, os produtos líricos de poetas genuínos permanecem corretos, atuantes e ativos durante milênios. Pois o poeta é propriamente o homem em geral; tudo o que agitou o coração dum homem qualquer e que é produzido pela natureza humana em qualquer situação, que habita e fervilha num peito humano, constitui seu tema e sua matéria, como a seu lado também a totalidade da natureza. Por isto, o poeta pode cantar a luxúria ou a mística, ser Anacreonte ou Angelus Silesius, escrever tragédias ou comédias, apresentar o sublime ou o ordinário, conforme apenas sua vontade e vocação. Destarte ninguém pode prescrever ao poeta o ser nobre e sublime, moralista, religioso, cristão, isto ou aquilo, e muito menos recriminar-lhe o ser isto e não aquilo. Ele é o espelho da humanidade, a cuja consciência traz o que ela sente e pratica.

Examinemos mais de perto a essência da canção, escolhendo como exemplos amostras ao mesmo tempo puras e convenientes, e não aquelas que já se aproximam de um outro gênero, como a romança, a elegia, o hino, o epigrama etc., e descobriremos que a essência peculiar da canção, em seu sentido mais estreito, é a seguinte. É o sujeito da vontade, i.e. o próprio querer, que preenche a consciência do cantante, muitas vezes como um querer liberto, satisfeito (alegria), com frequência provavelmente e maior ainda como um querer impedido (luto), e sempre com afeição, paixão, disposição espiritual agitada. Ao lado disto, contudo, e simultaneamente, mediante a visão da natureza em torno, o cantante se torna consciente de si como sujeito do conhecimento puro, independente da vontade, cuja inabalável paz espiritual se situa agora em contraste com o impulso do querer, sempre limitado, sempre carente; a sensação deste contraste, deste jogo de alternativas é propriamente o que se exprime no todo da canção e que constitui o estado lírico. Neste também o conhecimento puro se acerca de nós, para nos aliviar do querer e do seu impulso; nosso acompanhamento porém se dá por instantes; o querer, a recordação de nossos objetivos pessoais nos arranca da serena intuição; mas sempre de novo a beleza ambiental mais próxima em que se apresenta o conhecimento independente da vontade nos afasta do querer. Por isto, na canção e na disposição lírica, o querer (o interesse pessoal dos objetivos) e a intuição pura do ambiente que se apresenta estão maravilhosamente misturados; buscam-se e imaginam-se relações entre ambos, a disposição subjetiva, a afeição da vontade, participa ao ambiente intuído, e este reciprocamente àquele, sua coloração refletida, de toda esta disposição, assim misturada e repartida, a canção é a expressão genuína. Para tornar acessível por exemplo todo este desdobramento abstrato de um estado bem distante de toda abstração, pode-se considerar qualquer uma das imortais canções de Goethe; por sua especial clareza quanto a esta finalidade, recomendo: “O lamento do pastor”, “Boas-vindas e despedida”, “A lua”, “Sobre o lago”, “Impressões de outono”, e também as canções do Wunderhorn são exemplos excelentes, particularmente aquela que inicia: “Oh, Bremen, preciso te deixar”. Como paródia cômica, muito justa, do caráter lírico, existe uma particular canção de Voss, em que descreve as impressões dum telhador embriagado, ao cair da torre e observar, muito alheio ao seu estado, e portanto conforme um conhecimento independente da vontade, que o relógio do campanário marca onze e meia.

Quem partilha meu ponto de vista sobre o estado lírico há de concordar também que o mesmo constitui propriamente o conhecimento intuitivo e poético da proposição, já apresentada em minha dissertação sobre o princípio de razão, e também já mencionada no presente trabalho, de que a identidade do sujeito do conhecimento com o sujeito do querer pode ser denominada a maravilha kat’ éxokhén, de tal modo que o efeito poético da canção repousa em última instância sobre a verdade desta proposição. Durante o transcorrer da vida, estes dois sujeitos, ou em linguagem popular, a cabeça e o coração se distanciam progressivamente, isolando sempre mais sua impressão subjetiva de seu conhecimento objetivo. Ambos ainda permanecem indistintos na criança, que mal consegue se diferenciar de seu ambiente, com que se confunde. No jovem, toda percepção age em primeiro lugar como sensação e disposição, e mesmo com estas se confunde, como expresso nos belos versos de Byron:

I live not in myself, but I become
Portion of that around me; and to me
High mountains are a feeling.

Precisamente por isto o jovem se prende tanto ao lado exterior das coisas, justamente por isto se presta somente à poesia lírica, e apenas o adulto à dramática. O ancião, no máximo podemos pensá-lo como épico, como Ossian, Homero, pois relatar pertence ao caráter da velhice.

Nos gêneros poéticos mais objetivos, particularmente o romance, a epopeia e o drama, o fim, a revelação da ideia da humanidade, é alcançado especialmente por dois meios: pela apresentação correta e profunda de caracteres significativos e pela invenção de situações significativas, em que estes se desdobram. Pois como não constitui a obrigação única do químico apresentar de modo puro e verdadeiro as matérias simples e suas combinações principais, mas também submetê-las à influência de reagentes tais, que conferem clareza e visibilidade notável às suas peculiaridades, da mesma forma é obrigação do poeta não somente apresentar com clareza e fidelidade próprias da natureza os caracteres significativos, mas, para que estes sejam acessíveis ao nosso conhecimento, introduzi-los em situações tais que em suas peculiaridades se desdobram inteiramente, e se revelam claramente em contornos nítidos por isto chamadas situações significativas. Na vida real e na história, ao acaso apenas raramente produz situações deste feitio, localizadas então individualmente, perdidas e ocultas pela quantidade do insignificante. A significação contínua das situações deve distinguir o romance, a epopeia, o drama da vida real, do mesmo modo como a conjunção e escolha de caracteres significativos; em ambos os casos, porém, a veracidade rigorosa é condição indispensável de sua atuação, e a carência de unidade nos caracteres, a oposição dos mesmos contra si mesmo ou contra a essência da humanidade em geral, como a impossibilidade, ou inverossimilhança próxima a esta, nos eventos, mesmo que em circunstâncias secundárias, chocam a poesia, do mesmo modo como figuras mal traçadas, perspectiva falsa ou iluminação errada em pintura; pois ali como aqui exigimos o espelho fiel da vida, da humanidade, do mundo tornado claro unicamente pela apresentação, e significativo pela combinação. Como o fim de todas as artes é um só, apresentação das ideias, e sua diferenciação consiste apenas em qual dos graus da objetivação da vontade é a ideia de ser apresentada, pelo que novamente se determina o material da apresentação, mesmo as artes mais distanciadas entre si permitem esclarecimento recíproco por comparações. Assim, p. ex., para se apreender por completo as ideias que se apresentam na água, não é suficiente observá-la no lago tranquilo ou no curso uniforme, porém, estas ideias se desdobram por inteiro, quando a água aparece sob todas as circunstâncias e obstáculos, que agindo sobre ela, a induzem à expressão total de todas as suas propriedades. Por isto achamos bonito sua queda, seu estrondo, seu espumar, seu arremessar ao alto e tornar em forma de vapor, ou finalmente, seu lançamento ao alto por jato artificial; assim, se revelando distintamente em circunstâncias diferentes, sempre afirma contudo com fidelidade seu caráter: o jorrar para o alto lhe é tão natural quanto o repouso espelhante; está apta para um como para outro, tão logo ocorram as circunstâncias. O que o artista hidráulico realiza com a matéria líquida, o arquiteto realiza com a matéria rígida, e justamente isto o poeta épico ou dramático faz com a ideia da humanidade. Desdobramento e esclarecimento da ideia apresentada no objeto de toda arte, da vontade se objetivando em todo grau, constitui o fim comum de todas as artes. A vida do homem, como com frequência maior se revela na realidade, se assemelha à água como esta se apresenta no lago ou em fluxo; mas na epopeia, no romance ou na tragédia, caracteres eleitos são dispostos em situações tais, em que todas as suas peculiaridades se desdobram, as profundezas do espírito humano se revelam e se apresentam em ações extraordinárias e significativas. Assim, a poesia objetiva a ideia do homem, a quem é peculiar a apresentação por caracteres altamente individuais.

Como o ápice da arte poética, tanto com respeito à grandiosidade do efeito como à dificuldade da realização, deve-se considerar a tragédia, que como tal é reconhecida. É muito significativo e digno de atenção para o conjunto de nossas considerações, que o fim desta mais alta realização poética seja a apresentação do lado terrível da vida, que o sofrimento inominável, a miséria da humanidade, o triunfo da maldade, o cínico domínio do acaso, a queda sem salvação do justo e inocente, nos sejam aqui revelados, pois nisto reside uma indicação significativa sobre a constituição do mundo e da existência. É o conflito da vontade consigo mesma que aqui, no mais alto grau de sua objetividade, desdobrado com a maior perfeição, se revela aterrorizante. Torna-se visível no sofrimento da humanidade, que se apresenta em parte por acidente e por erro, que se revelam personificados como dominadores do mundo e como destino, graças a sua astúcia que atinge os limites da intencionalidade; em parte provindo da humanidade pelos entrecruzados impulsos da vontade dos indivíduos, pela maldade e incorreção da maioria. Uma vontade única neles habita e se apresenta, cujos fenômenos contidos se combatem e destroem. Neste indivíduo se revela imponente, naquele mais débil, aqui mais, ali menos consciente e abrandado pela luz do conhecimento, até que por fim individualmente este conhecimento, purificado e elevado pelo próprio sofrimento, atinge o ponto em que o fenômeno, o véu de Maya, já não mais ilude, é percebida a forma do fenômeno, o principium individuationis, desaparece o egoísmo nele baseado, com o que os motivos, outrora poderosos, perdem seu poder, e em seu lugar o conhecimento perfeito da essência do mundo, atuando como quietivo da vontade, apresenta a resignação, a renúncia, não unicamente da vida, mas mesmo de todo querer-viver. Assim vemos na tragédia, após longa luta e padecimento, os mais nobres renunciarem aos fins até então perseguidos com tamanha intensidade, e abdicar para sempre a todos os prazeres da vida, ou renunciar a ela mesma, voluntária e prazerosamente; assim o impassível príncipe de Calderón, assim Gretchen no Fausto, assim Hamlet, a quem Horácio deseja seguir, mas a quem aquele pede a permanência neste mundo de sofrimentos durante o tempo requerido para o esclarecimento do destino e a purificação da memória de Hamlet, assim também a donzela de Órleans, a noiva de Messina: todos morrem purificados pelo sofrimento, i.e. após neles extinta a vontade de viver; no Maomé de Voltaire, isto é explicitamente dito nas palavras finais dirigidas a Maomé pela agonizante Palmira: “O mundo é para os tiranos; que vivas tu!” Mas a exigência da assim denominada justiça poética repousa em total desconhecimento da essência da tragédia, até mesmo da essência do mundo. Com ousadia ela se apresenta em toda sua inépcia nas críticas obtusas dirigidas pelo Dr. Samuel Johnson às peças de Shakespeare, em que de maneira muito ingênua se lamenta sobre a contínua negligência da justiça, que aliás ocorre; pois de que são culpadas as Ofélias, as Desdêmonas, as Cordélias? Porém unicamente a visão de mundo obtusa, otimista, racionalista-protestante, ou mais propriamente judaica fará a exigência da justiça poética e na satisfação desta encontrará a sua própria. O verdadeiro sentido da tragédia constitui a visão mais profunda, de que o expiado pelo herói não são seus pecados particulares, mas sim o pecado original, i.e. a culpa da existência ela própria:

Pues el delito mayor
Del hombre és haber nacido

conforme as palavras francas de Calderón…

Considerando mais de perto o procedimento da tragédia, permito-me apenas uma observação. Unicamente essencial à tragédia é a apresentação de um grande infortúnio. Os variados e distintos caminhos, contudo, pelos quais este é conduzido pelo artista, podem ser enquadrados em três tipos: pode ocorrer pela perversidade extraordinária, no limite de suas possibilidades, de um caráter, que se torna o causador do infortúnio; constituem exemplos deste tipo Ricardo o Iago de Otelo, Shylok no O Mercador de Veneza, Franz Moor, [49] Fedra, de Eurípedes, Creon na Antigone etc. Além disto, pode ocorrer pelo destino cego, i.e. por acaso ou engano: constitui verdadeiro modelo deste tipo o Édipo Rei de Sófocles, também as Traquínias, e de modo geral a maioria das tragédias dos antigos; entre os modernos, os exemplos são: Romeu e Julieta, Tancredo, de Voltaire, A Noiva de Messina. Finalmente, a desgraça pode também ser produzida pela simples disposição das pessoas, pelas relações recíprocas; de modo que não se requer dum engano imenso ou de um acaso inaudito, nem dum caráter cuja perversidade atinge os limites do humano, mas caracteres comuns do ponto de vista moral, em circunstâncias de ocorrência frequente, estão dispostos de tal modo que são forçados por sua posição, embora conhecendo e percebendo uns aos outros, a criar a maior infelicidade sem que a culpa recaia unicamente num lado. Este último tipo me parece preferível aos outros: pois nos apresenta o maior infortúnio não como exceção, não como algo produzido por circunstâncias especiais ou caracteres monstruosos, mas algo que provém por si e com facilidade do agir e do caráter dos homens, quase como essencial, e deste modo se aproxima terrivelmente de nós. E se os dois outros tipos nos mostram o horrível destino e a terrível perversidade como forças monstruosas, cuja ameaça porém é conduzida de longe, a que podemos nos subtrair sem recuar até a renúncia, esta última espécie nos apresenta estas forças destruidoras da felicidade e da vida de um modo tal que seu caminho está aberto também a nós a qualquer momento, e que o maior sofrimento é produzido mediante associações, cujo essencial poderia ser assumido também pelo nosso destino, e por ações que talvez também nós seríamos capazes de realizar, assim retirando-nos o direito a queixas sobre a injustiça; então, horrorizados, já nos sentimos em pleno inferno. Contudo, a realização mediante este último tipo porta também as maiores dificuldades; porque nela, com o menor dispêndio de meios e causas, unicamente pela posição e distribuição, devemos criar o maior efeito; por isto, mesmo na maioria das melhores tragédias, esta dificuldade é contornada. Como amostra perfeita deste tipo, porém, há que se referir a uma peça, sobrepujada a outros respeitos por muitas do mesmo grande mestre: [50] trata-se de Clavigo. Hamlet dum certo modo pertence a este gênero, se nos ativermos estritamente a sua relação com Laerte e Ofélia: também Wallenstein possui esta preferência; Fausto se enquadra totalmente neste tipo, se considerarmos ação principal os acontecimentos com Gretchen e seu irmão; igualmente o Cid de Corneille, somente que a este falta o desfecho trágico, que por outro lado existe na relação análoga de Max e Thekla. [51]

§52

Após havermos considerado todas as belas-artes, na generalidade apropriada a nosso ponto de vista, iniciando pela arquitetura, tendo por fim a expressão da objetivação da vontade no grau mais inferior de sua visibilidade, onde se mostra como impulso opaco, regular, destituído de conhecimento, de massa, mas mesmo assim revelando antagonismo e disputa interna entre a gravidade e a rigidez; e encerrando nossa consideração com a tragédia, que apresenta no mais alto grau de objetivação da vontade precisamente esta sua luta consigo mesma com clareza e dimensões terríveis; percebemos que uma das belas artes permaneceu excluída de nossas considerações, e era necessário que assim fosse, pois no encadeamento sistemático de nossa apresentação não havia lugar apropriado para ela: a música. Esta se situa inteiramente isolada de todas as outras. Não reconhecemos nela nenhuma cópia, reprodução de uma ideia dos seres no mundo; contudo trata-se de uma arte a tal ponto grandiosa e majestosa, a atuar tão intensamente sobre o que há de mais interior no homem, onde é compreendida com tal intensidade e perfeição, como se fosse uma linguagem totalmente comum, cuja clareza ultrapassa mesmo a do próprio mundo intuitivo; que certamente nela existe mais do que um exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi, como a designava Leibniz, [52] aliás com toda razão, enquanto considerava seu significado imediato e exterior, a sua casca. Nada mais fosse, a satisfação que proporciona se assemelharia à que sentimos com a solução correta de um exemplo de cálculo, e não poderia se constituir na intensa alegria com que vemos se expressar o que há de mais profundo no interior de nosso ser. Segundo nosso ponto de vista, portanto, em que o efeito estético é a nossa referência, devemos lhe atribuir um significado muito mais sério e profundo, relacionado com a essência mais intima do mundo e de nós mesmos, a cujo respeito as proporções numéricas em que é possível seu desdobramento não se comportam como o assinalado, mas apenas como o sinal. Que deve se comportar em relação ao mundo em algum sentido como apresentação em relação a apresentado, como cópia em relação a modelo, podemos deduzi-lo a partir da analogia com as demais artes, às quais todo este caráter é próprio, e com cujo efeito sobre nós o seu é inteiramente idêntico, somente mais intenso, rápido, necessário, infalível. Também sua relação reprodutora com o mundo deve ser muito íntima, infinitamente verdadeira, precisamente correta, porque é compreendida instantaneamente por qualquer um, dando a conhecer uma certa infalibilidade, por permitir remeter sua forma a regras bem determinadas, de expressão numérica, de que não se pode desviar sem deixar de ser música. Contudo o ponto de comparação entre a música e o mundo, o modo pelo qual aquela se relaciona com este como cópia ou reprodução, se encontra profundamente oculto. A música foi exercitada em todas as épocas, sem poder fornecer satisfação a este respeito; contentes com sua compreensão imediata, abdicamos a uma apreensão abstrata desta compreensão imediata.

Abandonando meu espírito totalmente à impressão da arte sonora em todas as suas diversas formas e retornando em seguida à reflexão e ao curso dos meus pensamentos apresentados no presente escrito, dei-me conta de uma explicação sobre sua essência interior e sobre o modo desta sua relação reprodutora com o mundo, pressuposta necessariamente por analogia, que me parece suficiente e inteiramente satisfatória para minha pesquisa, assim como talvez também será evidente àquele que me tivesse seguido até aqui e concordado com minha visão do mundo; explicação esta porém que reconheço de impossível demonstração; pois supõe uma relação da música, como uma representação, com o que essencialmente nunca pode ser representação, e pretende apresentar a música como reprodução de um modelo, ele próprio jamais passível de representação. Assim nada mais me resta do que, ao término deste terceiro livro, dedicado principalmente à consideração das artes, apresentar esta explicação, suficiente a meu parecer, sobre a maravilhosa arte dos sons, deixando a confirmação ou rejeição de meu ponto de vista a critério do efeito produzido sobre cada leitor em parte pela música, em parte pela totalidade do pensamento por mim relatado neste ensaio. Além disto, para apreciar devidamente a apresentação a ser dada aqui sobre o significado da música, considero necessária a audição frequente desta mesma música, com espírito munido de reflexão persistente, para o que por sua vez é indispensável uma familiaridade razoável com o conjunto do pensamento por mim apresentado.

A objetivação adequada da vontade são as ideias (platônicas); estimular o conhecimento destas (o que é possível somente mediante uma transformação proporcional no sujeito cognoscente) pela apresentação de coisas individuais (pois as obras de arte outra coisa não são), é o fim de todas as artes. Todas elas portanto objetivam apenas mediatizadamente, por mediação das ideias, e como nosso mundo nada mais é do que o fenômeno das ideias na multiplicidade, mediante enquadramento no principium individuationis (a forma do conhecimento possível ao indivíduo como tal), a música, seguindo além das ideias, também é inteiramente independente do mundo aparente, que ignora, e sua existência seria possível mesmo com a inexistência do mundo: o que não se pode afirmar das outras artes. Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a vontade, como a constitui o próprio mundo, como o são as ideias, cujo fenômeno multiplicado forma o mundo das coisas individuais. Portanto de modo algum a musica é, como as outras artes, reprodução das ideias, mas reprodução da própria vontade, cuja objetividade também são as ideias; por isto o efeito da música é tão mais poderoso e incisivo do que o das outras artes; pois essas somente se referem à sombra, aquela porém à essência. Como entrementes é a mesma vontade que se objetiva, ora nas ideias, ora na música, apenas em cada uma de modo inteiramente diverso: assim deve haver, mesmo que não uma semelhança direta, pelo menos um paralelismo, uma analogia entre a música e entre as ideias, cujo fenômeno na multiplicidade e imperfeição constitui o mundo visível. A comparação desta analogia facilitará como elucidação a compreensão desta explicação dificultada pela obscuridade do objeto.

Reconheço nos tons mais graves da harmonia, no baixo fundamental, os graus mais inferiores da objetivação da vontade, a natureza inorgânica, a massa do planeta. Todos os tons mais agudos, de grande mobilidade e rápido ocaso, como é sabido, devem ser considerados como originados por vibrações concomitantes do baixo fundamental, cuja emissão sempre acompanham suavemente, e constitui lei da harmonia que devem acompanhar uma nota grave somente aqueles tons agudos que efetivamente ressoam simultaneamente com aquela (seus sons harmoniques) por meio das vibrações concomitantes. Isto forma analogia com o fato de que o conjunto dos corpos e organizações da natureza devem ser considerados como originados pelo desenvolvimento gradual a partir da massa do planeta; esta, como é seu portador, também é sua fonte, e a mesma relação possuem os tons mais agudos com o baixo fundamental. Há um limite para a gravidade dos tons, além do qual nenhum mais é audível; isto corresponde a que matéria alguma é perceptível sem forma e qualidade, isto é, sem expressão de uma força, destituída de maiores explicações, em que se apresenta justamente uma ideia, e de um modo mais geral, que matéria alguma pode ser inteiramente desprovida de vontade; portanto, assim como do tom é inseparável um certo grau de altura, assim da matéria um certo grau de expressão da vontade. O baixo fundamental, portanto, e para nós, na harmonia, o que no mundo da natureza inorgânica forma a massa mais bruta, em que tudo repousa, e de que tudo se origina e desenvolve. Além disto, no conjunto das vozes que produzem a harmonia, entre o baixo e a voz condutora, que executa a melodia, reconheço a totalidade da série gradual das ideias em que a vontade se objetiva. As mais próximas do baixo constituem os mais inferiores destes graus, os corpos ainda inorgânicos, mas que já se expressam de várias maneiras; as mais elevadas representam para mim o mundo vegetal e animal. Os intervalos determinados da escala tonal são paralelos aos graus determinados da objetivação da vontade, às espécies determinadas na natureza. O desviar da correção aritmética dos intervalos, por uma temperatura qualquer, ou produzida pela escolha, é análogo à divergência do indivíduo em relação ao tipo da espécie, e as dissonâncias impuras, que não formam intervalo determinado, podem mesmo ser comparadas aos resultados monstruosos do cruzamento de duas espécies animais, ou do homem com animal. A todas estas vozes baixas e intermediárias que formam a harmonia, falta aquela conexão no desenvolvimento, que possui unicamente a voz mais alta, que canta a melodia, única também a se mover com rapidez e agilidade em modulações e gamas, enquanto todas aquelas outras executam um movimento lento, sem uma conexão existente por si em cada uma. O movimento mais lerdo corresponde ao contrabaixo, representante da mais bruta massa; seu ascenso e descenso se verificam apenas em degraus amplos, terças, quartas, quintas, jamais de um tom, quando seria baixo contraposto por duplo contraponto. Este movimento lento lhe é essencial também fisicamente, uma veloz gama ou trinado com notas baixas não pode mesmo ser imaginado. Com rapidez maior, contudo ainda sem conexão melódica e progresso significativo, se movimentam as vozes intermediárias mais altas, a correrem paralelamente ao mundo animal. O movimento desconexo e a determinação regular de todas as vozes intermediárias é análogo ao fato de que, em todo o mundo irracional, do cristal ao animal mais perfeito, nenhum ser possui propriamente uma consciência conexa, capaz de tornar sua vida um todo significativo, nenhum ser experimenta uma sucessão de desenvolvimentos espirituais, nenhum se aperfeiçoa mediante cultura, mas tudo está aí, uniformemente, a qualquer tempo, como é em conformidade com sua espécie, determinado por rígida lei. Finalmente, na melodia, na voz principal, aguda, que canta, apresentando um todo, dirigindo o conjunto e se desenvolvendo ao acaso do começo ao fim, numa conexão contínua e significativa de um só pensamento, conheço o grau mais elevado da objetivação da vontade, a vida e as aspirações providas de reflexão do homem. Como unicamente ele, porque dotado de razão, lança continuamente seu olhar para frente e para trás, sobre a via de sua realidade efetiva e das inumeráveis possibilidades, percorrendo uma existência com reflexão e por isto interligada como um todo; deste modo, unicamente a melodia possui conexão significativa, intencional, do começo ao fim. Ela relata, em consequência, a história da vontade iluminada pela reflexão, cuja impressão na realidade efetiva constitui a série de seus atos; ela diz mais, porém, relata sua história mais secreta, descreve toda agitação, todo impulso, todo movimento da vontade, tudo o que a razão reúne sob o amplo e negativo conceito de sentimento, e que não pode continuar recebendo em suas abstrações.

É também por isto que sempre se afirmou ser a música a linguagem do sentimento e da paixão, assim como as palavras são a língua da razão; já Platão a designa he tõn melon kínesis memimeméne, en tois pathémasin hótan psykhê gínetai (melodiarum motus, animi affectus imitans), [53] Leis, VII, e também Aristóteles afirma: dià ti oi rythmoi kaì íàméle, phonè oúsa éthesin éoike (cur numeri musici et modi, qui voces sunt, nioribus similes sese exhibent?), Probi. c. 19. [54]

Como a essência do homem consiste em que sua vontade deseja, é satisfeito e deseja novamente, e assim indefinidamente, e como sua felicidade e bem-estar consistem apenas em que a transição do desejo à satisfação, e desta ao novo desejo, prossiga com rapidez, uma vez que a ausência da satisfação é sofrimento, e a do novo desejo, ansiedade vazia, languor, tédio; assim em conformidade, a essência da melodia é um vagar contínuo, um desvio do tom fundamental, por caminhos mil, não somente em direção aos graus harmônicos, terço e dominante, mas a todo tom, à sétima dissonante e graus ulteriores; mas sempre segue um retorno finito ao tom fundamental; em todos estes caminhos a melodia exprime o impulsionar múltiplo da vontade, porém sempre também mediante o reencontro finito de um grau harmônico, e mais ainda do tom fundamental, a satisfação. A invenção da melodia, o desvelar de todos os mais profundos segredos do querer e sentir humanos, é a obra do gênio, cuja atuação se situa aqui de modo mais visível do que em outra parte qualquer, longe de toda reflexão e intencionalidade consciente, e poderia se denominar uma inspiração. O conceito aqui, como em toda parte na arte, é infrutífero; o compositor revela a essência mais intima do mundo e a mais profunda sabedoria, em uma linguagem incompreensível à sua razão; assim como um sonâmbulo magnético [55] fornece informações sobre coisas, de que em vigília não possui noção alguma. Por isto, em um compositor, mais do que em qualquer outro artista, o homem é inteiramente separado e diferenciado do artista. Mesmo na explicação desta arte maravilhosa, o conceito mostra sua carência e seus limites; contudo, tentarei prosseguir em nossa analogia. Assim como a passagem veloz do desejo à satisfação e desta ao novo desejo constitui felicidade e bem-estar, assim melodias ligeiras, sem grandes desvios, são alegres; lentas, resultando em dissonâncias dolorosas, e reencontrando o tom fundamental somente muitos compassos além, são análogas à satisfação retardada, dificultada, triste. O retardamento do novo movimento da vontade, o languor, não permitiria expressão outra senão o prolongado tom fundamental, cujo efeito em breve se tornaria insuportável; deste já se aproximam melodias vazias, muito monótonas. Os motivos curtos e palpáveis da rápida música de dança parecem se referir apenas à felicidade fácil e comum; por outro lado, o allegro maestoso, em motivos grandes, movimentos longos, extensos desvios, designa um desejo mais nobre e maior de um objetivo distante e sua satisfação infinita. O adágio conta o sofrimento de uma nobre e grande ambição, a desprezar toda felicidade mesquinha. Mas o efeito produzido pelos modos maior e menor é realmente maravilhoso! É espantoso como a alteração de um semitom, a substituição do terço maior pelo menor, imediatamente força em nós um sentimento desagradável, de angústia, de que com igual rapidez nos vemos libertos pelo modo maior. O adágio atinge no modo menor a expressão do maior sofrimento, torna-se mais comovente lamento. A música de dança neste modo parece designar a perda do frívolo, que antes deveria ser tratado com desdém, parece contar o sucesso de um fim mesquinho à custa de esforços e sacrifícios. A imensidade inesgotável de melodias possíveis corresponde àquela da natureza, quanto à variedade dos indivíduos, fisionomias e modos de vida. A modulação de um tom a um outro totalmente distinto, eliminando inteiramente a conexão com o anterior, assemelha-se à morte, ao nela o indivíduo chegar ao fim; mas a vontade que nele se manifestava continua a viver, manifestando-se em outros indivíduos, cuja consciência contudo não possui ligação com a do primeiro.

Porém, apresentando todas estas analogias, nunca devemos esquecer que a música não mantém nenhuma relação direta com elas, apenas mediatizada; pois ela jamais manifesta o fenômeno, mas unicamente a essência interna, o em-si de todos os fenômenos, a vontade mesma. Por isto, ela não exprime esta ou aquela alegria individual e determinada, esta ou aquela aflição, ou dor, ou espanto, ou júbilo, ou humor, ou serenidade, mas a alegria, a aflição, a dor, o espanto, o júbilo, o humor, a serenidade ela própria, por assim dizer in abstracto, o que neles há de essencial, sem nenhum acessório, portanto também sem os seus motivos. Contudo, nós as compreendemos perfeitamente nesta quintessência, estampada. Eis a origem do estímulo fácil que exercem sobre nossa fantasia, que agora procura dar figura a este mundo fantasmagórico, a se dirigir a nós de modo tão imediato, invisível e ao mesmo tempo com tanta vivacidade, dotando-a de carne e osso, portanto corporificando-a num exemplo análogo. Eis a origem do canto falado, e finalmente, da ópera — que precisamente e por isto nunca deveriam abandonar esta posição subordinada, tornando-se o principal, e a música simples meio de sua expressão, o que constitui crasso engano e conclusão improcedente. Pois em toda parte a música expressa somente a quintessência da vida e de seus processos, nunca estes próprios, cujas diferenças portanto nem sempre influenciam aquelas. Justamente esta generalidade exclusiva sua, concomitante à maior precisão, lhe fornece este alto valor, que possui como panaceia de todos os nossos sofrimentos. Assim, quando a música procura se apegar demais às palavras, e se acomodar aos acontecimentos, ela se esforça em falar uma linguagem que não é a sua. Ninguém soube se eximir deste erro como Rossini: por isto sua música manifesta com tanta pureza e nitidez sua própria língua, que não requer palavras, e por isto, mesmo execução instrumental, produz seu efeito total.

Em consequência disto tudo, podemos encarar o mundo fenomênico, ou a natureza, e a música como duas expressões distintas da mesma coisa, ela mesma a única mediadora da analogia de ambos, cujo conhecimento é indispensável para perceber esta analogia. Destarte, a música, vista como expressão do mundo, é uma linguagem do mais alto grau de generalidade, que se refere mesmo à generalidade dos conceitos quase como estes às coisas individuais. Sua generalidade, porém, de modo algum é aquela generalidade vazia da abstração, mas dum tipo inteiramente distinto, e está combinada a uma precisão nítida e contínua. Nisto se assemelha às figuras geométricas e aos números, que são determinados como as formas mais gerais de todos os objetos possíveis da experiência, e a priori aplicáveis a todos eles, contudo não de modo abstrato, mas intuitivo e geral. Todas as possíveis aspirações, excitações e manifestações da vontade, todos estes processos no interior do homem, lançados pela razão no conceito amplo, negativo, de sentimento, permitem expressão na imensidade inumerável das melodias possíveis, porém sempre na generalidade de simples forma, sem a matéria, sempre apenas conforme o em-si, e não conforme o fenômeno, assim como a alma mais íntima da mesma, sem corpo. Por esta íntima relação que possui a música em relação à verdadeira essência de todas as coisas, deve-se explicar também por que, quando para qualquer cena, ação, circunstância, ocorrência, soa a música adequada, esta parece nos revelar o seu sentido mais oculto, e se apresentar como seu comentário mais correto e nítido; e igualmente, que quem se abandona completamente às impressões de uma sinfonia, se sente como se desfilassem ante seus olhos toda uma variedade de acontecimentos, do mundo e da vida; contudo, mediante reflexão posterior, não é capaz de indicar semelhança entre aqueles motivos musicais e as coisas que lhe ocorriam. Pois a música, como já dito, se diferencia de todas as outras artes, por não ser reprodução do fenômeno, ou mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da vontade ela própria, apresentando portanto para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, para todo fenômeno, a coisa-em-si. Desta forma, poderíamos denominar o mundo tanto música corporificada quanto vontade corporificada; assim se explica por que a música realça em qualquer pintura, e mesmo em qualquer cena da vida real e do mundo, uma significação superior; tanto mais quanto mais análoga é sua melodia ao espírito interior do fenômeno dado. Eis a razão por que é possível sobrepor a música a uma poesia como canto, ou a uma apresentação como pantomima, ou ambas, como ópera. Tais quadros isolados da vida humana, submetidos à linguagem geral da música, nunca são associados ou correspondentes a ela com necessidade geral, mas situam-se em relação a ela apenas como um exemplo qualquer em relação a um conceito geral; apresentam na precisão da realidade aquilo que a música exprime na generalidade da simples forma. Pois as melodias são, de certo modo, assim como os conceitos gerais, uma abstração da realidade, esta, o mundo das coisas individuais, fornece o intuitivo, o particular e o individual, o caso isolado, tanto para a generalidade dos conceitos como para a generalidade das melodias, generalidades, porém, que são reciprocamente opostas numa certa medida. Na medida em que os conceitos contêm apenas as formas abstraídas principalmente da intuição, a casca exterior das coisas, sendo portanto propriamente abstrações; a música contudo fornece a semente interna anterior a todas as formações, ou o coração das coisas. Esta correspondência permitiria expressão bem apropriada na linguagem dos escolásticos, que afirmavam: os conceitos são os universalia post rem, a música porém constitui as universalia anterem, e a realidade a universalia in re. Ao sentido geral da melodia, associada a uma poesia, podem corresponder igualmente outros exemplos, escolhidos ao acaso, da generalidade neles expressa, por isto a mesma composição se adapta a muitas estrofes, donde o vaudeville. Mas que uma correspondência entre uma composição e uma apresentação intuitiva é possível, deve-se a que ambas constituem somente expressões inteiramente distintas da mesma essência interna do mundo. Quando, em um caso individual, uma tal correspondência realmente procede, portanto o compositor soube exprimir os movimentos da vontade, que formam o cerne de um evento, na linguagem geral da música, então a melodia da canção, a música da ópera, são expressivas. Porém a analogia encontrada entre ambos pelo compositor deve ter-se originado do conhecimento imediato da essência do mundo, inconsciente de sua razão, e não deve se constituir em reprodução, mediatizada numa intencionalidade consciente por conceitos, pois neste caso a música não expressaria a essência interna, a vontade ela mesma, mas somente copiaria de modo imperfeito o seu fenômeno; como aliás ocorre em toda música imitativa, p. ex.: “As estações do ano” de Haydn, e também a sua “Criação” em muitas passagens, em que fenômenos do mundo intuitivo são reproduzidos diretamente; da mesma forma, todas as peças de batalhas, o que deve ser rejeitado totalmente.

A intimidade indescritível de toda música, graças a que se apresenta a nós qual paraíso de nossa familiaridade, e contudo infinitamente distante, inteiramente inteligível e contudo inexplicável, reside em que reproduz todos os movimentos de nossa mais íntima essência, mas totalmente destituídos de realidade e sofrimento. Do mesmo modo há que explicar sua seriedade essencial, o que exclui inteiramente o ridículo do seu âmbito de propriedade imediata, por ser o seu objeto não a representação a respeito de que são possíveis a ilusão e o ridículo, mas seu objeto é diretamente a vontade, e esta é essencialmente o que há de mais sério, como sendo aquilo de que tudo depende. Até que ponto é rica de conteúdo e significativa a linguagem da música, testemunham mesmo os sinais de repetição, ao lado do Da capo, que seriam insuportáveis em obras escritas em palavras, mas que naquela são úteis e convenientes: pois a apreensão completa exige uma audição repetida.

Se em toda esta representação da música eu me esforcei em tornar claro que ela expressa, numa linguagem da maior generalidade, a essência interna, o em-si do mundo, que nós, em correspondência à sua mais nítida manifestação, pensamos sob o conceito de vontade, em uma matéria única, ou seja, simples tons, e com a maior precisão e veracidade; se além disto, conforme minha visão e pretensão, a filosofia nada mais é do que uma perfeita e correta repetição e expressão da essência do mundo, mediante conceitos muito gerais, já que somente nestes é possível uma visão de conjunto suficiente e conveniente da totalidade desta essência, então quem seguiu e adotou meu modo de pensamento não achará paradoxal minha afirmação de que, suposta uma explicação perfeitamente correta, completa e detalhada da música, portanto uma reprodução pormenorizada do que ela exprime, por meio de conceitos, esta imediatamente seria também uma reprodução e explicação suficiente do mundo mediante conceitos, ou que lhe é equivalente, constituindo portanto a verdadeira filosofia, e que em consequência a expressão de Leibniz referida mais acima, inteiramente correta segundo ponto de vista inferior, no sentido de nosso ponto de vista superior em relação à música, poderia ser parodiada da seguinte maneira: Musica est exertitium metaphysices occultum, nescientis se philosophari animi. [56] Pois scire, saber, sempre significa possuir por meio de conceitos abstratos. Como porém, graças à veracidade amplamente confirmada da expressão leibniziana, a música, abstraindo de seu significado estético ou interior, e considerada apenas externa e empiricamente, nada mais é do que o meio de apreender diretamente e in concreto grandes números e relações numéricas combinadas, que de outro modo seriam passíveis de conhecimento apenas por percepção em conceitos; destarte podemos, pela reunião destas duas concepções da música, tão distintas e mesmo assim corretas, formar uma noção da possibilidade de uma filosofia numérica, como o foi a de Pitágoras e também a dos chineses no Y-King, e então esclarecer o sentido daquele ditado pitagórico referido por Sexto Empírico (adv. Math. L. VII): tõ aristhmõ dê tà pant epéoiken (número cuncta assimilantur). [57] E, finalmente, se aproximarmos esta concepção de nossa interpretação precedente da harmonia e da melodia, consideraremos uma pura filosofia moral sem explicação da natureza, como a almejava introduzir Sócrates, inteiramente análoga a uma melodia destituída de harmonia, como pretendia Rousseau, e em contraposição, uma física e metafísica pura, sem ética, corresponderá a uma harmonia sem melodia. Que me seja permitido ainda acrescentar a estas considerações paralelas algumas observações referentes à analogia da música com o mundo fenomênico. No livro precedente, víamos que o mais alto grau da objetivação da vontade, o homem, não era capaz de manifestação só e destacado, pressupondo os graus a ela inferiores, que, por sua vez, remetiam aos seus inferiores: da mesma forma, a música, que, como o mundo, objetiva imediatamente a vontade, adquire perfeição apenas na harmonia completa. A aguda voz condutora da melodia requer, para produzir a totalidade do seu efeito, o acompanhamento de todas as outras vozes, até o baixo mais grave, a ser encarado como a origem de todas as outras: a melodia penetra a harmonia como parte integrante, como também vice-versa; e como unicamente na plenitude de vozes do todo a música exprime o que intenta, assim a vontade única e extratemporal encontra sua objetivação perfeita apenas na combinação perfeita de todos os graus que, por uma clareza crescente por graduações inumeráveis, revelem a sua essência. Notável é ainda a analogia seguinte. Vimos no livro anterior que, malgrado a adaptação recíproca de todos os fenômenos da vontade no que se refere aos modos dispostos pela consideração teleológica, permanece uma disputa insolúvel entre aqueles fenômenos como indivíduo, aparente em todos os graus dos mesmos, tornando o mundo arena constante de todos aqueles fenômenos de uma vontade única, revelando assim sua contradição interna consigo mesma. Também disto existe o correspondente na música. Porque um sistema perfeito puramente harmônico dos tons não é apenas física, mas também aritmeticamente impossível. Os próprios números, pelos quais os tons permitem expressão, ostentam irracionalidades insolúveis; não é possível calcular uma escala, em cujo interior toda quinta se relaciona com o tom fundamental, na proporção de 2 para 3, toda terça maior, como 4 para 5, toda terça menor como 5 para 6 etc. Pois se os tons estão corretos em relação ao tom fundamental, não o são entre si, na medida em que, p. ex., a quinta deveria ser a terça menor da terça etc.; pois os tons da escala são comparáveis a atores, representando ora este, ora aquele papel. Por isto, uma música perfeitamente correta não pode sequer ser pensada, quanto mais executada; e por isto toda música possível se desvia da pureza perfeita: ela consegue apenas ocultar as dissonâncias que lhe são essenciais, mediante a distribuição das mesmas a todos os tons, i.e. por meio do temperamento. Veja-se a este respeito a Acústica de Chladni, §30, e o seu Pequeno tratado de teoria do som e da harmonia, p. 12. [58]

Poderia ainda, em adição, afirmar muito sobre como a música é percebida, ou seja, única e exclusivamente em e mediante o tempo, com inteira exclusão do espaço, sem influência do conhecimento da causalidade, e portanto do entendimento; pois os tons criam a impressão estética como simples efeitos, e sem retorno à sua causa, como no caso da intuição. Entretanto não desejo prolongar ainda mais estas considerações, já que talvez neste terceiro livro me estendi demasiado, ou com exagerada minúcia acerca de muitos pontos. Contudo, isto era indispensável para o meu objetivo, e o desagrado será tanto menor, quanto mais se torna presente a importância e o imenso valor, raramente reconhecidos, da arte, considerando que, a nosso ver, a totalidade do mundo visível constitui somente a objetivação, o espelho da vontade, acompanhando-a para seu autoconhecimento, e mesmo, como veremos a seguir, para possibilidade de sua redenção, e, simultaneamente, que o mundo como representação, observado isoladamente, permitindo, liberto do querer, que apenas este preencha a consciência, forma a face mais agradável e única inocente da vida; devemos considerar a arte a elevação superior, o desenvolvimento mais perfeito de tudo isto, ao realizar essencialmente o mesmo, somente com mais concentração, com mais perfeição, intenção e reflexão, que o próprio mundo visível, podendo portanto ser denominada, no sentido pleno da palavra, a florescência da vida. Se o mundo todo, como representação, é apenas a visibilidade da vontade, a arte é o esclarecimento desta visibilidade, a Camara obscura, a mostrar os objetos com mais pureza, e permitir uma melhor visão de conjunto e combinação dos mesmos, o teatro no teatro, o palco sobre o palco no Hamlet.

O gosto do belo, o consolo proporcionado pela arte, o entusiasmo do artista, a lhe fazer esquecer as penas da vida, esta única prerrogativa do gênio em relação aos outros, a compensá-lo pelo sofrimento também crescente na mesma medida da lucidez da consciência e pela solidão árida numa multidão heterogênea — tudo isto repousa em que, como veremos a seguir, o em-si da vida, a vontade, a própria existência, é um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível; o mesmo, porém, considerado única e puramente uma representação, ou reproduzido pela arte, apresenta um espetáculo significativo, destituído de sofrimentos. Este lado puramente cognoscível do mundo e a reprodução do mesmo numa arte qualquer constitui o elemento do artista. Ele é cativado pela observação do espetáculo da objetivação da vontade; ali se detém, não se cansa em sua contemplação e reprodução, e entrementes sustenta os custos da apresentação deste espetáculo, i.e. ele mesmo é a vontade que se objetiva, e permanece em contínuo sofrimento. Este conhecimento puro, verdadeiro, profundo da essência do mundo torna-se para ele um fim em si: nele ele se detém. Por isto, com ele este não se torna, como ocorrerá com o santo dotado de resignação, como veremos no próximo livro quietivo da vontade, salvação eterna, mas apenas por momentos da vida, e ainda não se constitui na via para além desta, mas apenas um consolo em seu bojo; até que uma força, assim erguida, se cansa do jogo, e se atém ao sério. Como símbolo desta transição podemos considerar a Santa Cecilia, de Rafael. E agora, também nós dirigiremos ao sério, no próximo livro.

Notas

  • [1] O que é o ser eterno, que nunca nasce? Como é aquele que nasce sempre, e que nunca existiu? (N. do T.)

  • [2] F. H. Jacobi. (N. do A.)

  • [3] Há muitos condutores de Tirso, mas somente poucos Bacantes. (N. do T.)

  • [4] Por isto a filosofia caiu na infâmia, pois que a ela não há dedicação suficiente: porque não deveria ser ocupação de charlatães, mas de profissionais. (N. do T.)

  • [5] Veja-se por exemplo: Immanuel Kant, um Monumento de Fr. Bouterweck, p.49,e a História da Filosofia, de Buhle, tomo 6, p. 802 até 815 e 823. (N. do A.)

  • [6] Trata-se do adendo ao 1.° vol. de O Mundo Como Vontade e Representação, que se denomina Crítica da filosofia kantiana, e que porta a seguinte epígrafe: “C ‘est le privilège du vrai génie, et surtout du génie qui ouvre une carriêre, defaire impunement de grandes fautes (Voltaire.) (É o privilégio do verdadeiro gênio, e sobretudo daquele que abre novos rumos, de fazer impunemente grandes erros.) (N. do T.)

  • [7] Ser no presente. (N. do T.)

  • [8] O tempo é o quadro em movimento da eternidade. (N. do T.) Veja-se cap. 29 do 2º vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [9] Do sublime ao ridículo não há mais do que um passo. (N. do T.)

  • [10] O espírito é eterno enquanto apreende as coisas do ponto de vista da eternidade. (N. do T.)

  • [11] Recomendo também o que afirma em L. li, prop. 40. schol. 2, e ainda L V. prop. 25 a 38, sobre o cognitio tertii generis, sire intuitiva* para elucidar o modo de conhecimento aqui referido, e particularmente prop. 29, schol.; prop. 36. schol. e prop. 38 demonstr. e schol. (N. do A.) * O conhecimento da terceira espécie, i.e. o intuitivo. (N. do T.)

  • [12] Não são as montanhas, ondas e nuvens, como uma parte/ De mim e de minha alma, como eu para elas? (N. do T.)

  • [13] Sou todas essas criaturas em conjunto, e fora de mim não há nenhum outro ser. (N. do T.) Ver também cap. 30 do 2º vol. [de O mundo…]. (N. do A.)

  • [14] Traduzimos Wille zum Leben por querer-viver, conforme a versão francesa vouloir-vivre. (N. do T.)

  • [15] Esta última citação não pode ser entendida sem o livro seguinte (IV. O Mundo…). (N. do A.)

  • [16] Como para nós Satz vom Grunde se torna princípio de razão, o termo aqui referido, originalmente Grunde des Seins, poderia ser também razão do ser; pois der Satz vom Grunde des Seins é O princípio de razão do ser. (N. do T.)

  • [17] O que isso demonstra? (N. do T.)

  • [18] Nenhum grande espírito existiu sem mescla de loucura. (N. do T.)

  • [19] Demócrito nega que tivesse havido qualquer grande poeta isento de loucura; o mesmo afirma Platão. (N. do T.)

  • [20] O grande espírito à loucura por certo é bem aliado, e estreitas divisões mantêm suas áreas em separado. (N. do T.)

  • [21] Ver cap. 31 do 2º vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [22] Ver cap. 32 do 2° vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [23] Ver cap. 33 do 2º vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [24] “Objeto imediato do conhecimento”, conforme os livros precedentes, é o corpo humano tal como percebido pelo indivíduo. (N. do T.)

  • [25] Quarenta anos após exprimir este pensamento de modo tão tímido e vacilante, tanto maior é a alegria e surpresa ao descobrir que já Santo Agostinho o havia expresso: Arbusta formas suas varias, quibus mundi hujus visibilis structura formosa est, sentiendas sensibus praebent; ut pro eo quod fosse non possunt, quasi innotescere velle videantur. (De Civitate Dei, XI, 27.) (N. do A.)

  • [26] Nosso idioma não permite a aproximação entre o estado de exaltação (Erhebung) e o sublime” (Erhaben). (N. do T.)

  • [27] …pois tu sempre foste / Como quem, sofrendo tudo, nada sofre; / Um homem, que os golpes e prémios da sorte / Com igual gratidão aceitaste etc. (N. do T.)

  • [28] Platão diz que há tantas ideias quanto coisas. (N. do T.)

  • [29] Mas definem a ideia como modelo eterno do que existe na natureza; pois para a maioria dos seguidores de Platão não parece haver ideias de produtos artísticos, como as do escudo ou da lira, nem de coisas que são contrárias à natureza, como a febre e a cólera, nem de pessoas individuais, como Sócrates ou Platão, nem, finalmente, de coisas secundárias, como a sujeira e os trastes, nem também de relações, como ser maior ou excedente. As ideias são as eternas intelecções de Deus, e propriamente perfeitas. (N. do T.)

  • [30] Ver Cap. 35 do 2.º vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [31] O termo alemão utilizado é Verstellung — disfarce, dissimulação, fingimento; Vorstellung é a representação, tanto no sentido psicológico, como no da representação teatral; para clareza do texto, sempre vertemos “Darstellung” por apresentação: a obra de arte não representa, mas apresenta. (N. do T.)

  • [32] Jacob Boehme, em seu livro De Signatura Rerum, cap. 1, §§15, 16 e 17, afirma: “E não há coisa na natureza que não revele sua figura interna também externamente, pois o interior sempre opera em direção à revelação. Toda coisa possui a sua boca para a revelação, e esta é a linguagem da natureza, em que toda coisa fala a partir de suas propriedades, sempre revelando e apresentando a si mesma. Pois toda coisa revela sua mãe, que fornece a essência e a vontade à configuração”. (N. do A.)

  • [33] Esta última frase constitui uma versão do il n’y a que l’ésprit qui sent l’ésprit de Helvétius, o que não indiquei na primeira edição. Mas desde então a influência daninha da sabedoria sedal hegeliana tornou tão decadente e áspero o tempo, que a alguém poderia parecer que também aqui haja referência à oposição “Espírito e Natureza”; por este motivo sou obrigado a me prevenir explicitamente contra a atribuição de tais filosofemas do populacho. (N. do A.)

  • [34] O termo original é besonnen, cujo significado direto seria “iluminar pelo sol”, contrapondo assim esta apresentação à consciência obscura. (N. do T.)

  • [35] Também este episódio foi completado no cap. 36 do 2° vol. (de O Mundo…) (N. do A.)

  • [36] Trata-se de um neologismo de Schopenhauer, de significado óbvio. (N. do T.)

  • [37] Esta passagem requer para sua compreensão o L. IV do 1° vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [38] Imitadores, rebanho de escravos. (N. do T.)

  • [39] Apparent rari, nantes in gurgite vasto*. (N. do A.) *Aparecem raramente, flutuando no imenso turbilhão. (N. do T.)

  • [40] Ver cap. 34 do 2° vai. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [41] O tempo revela a verdade. (N. do T.)

  • [42] Peixe, ikhthys, é formado pelas iniciais das palavras: Iesous, Khristós, Theou, (H) Yiós, Sóter, o que significa: Jesus ungido de Deus, filho redentor. (N. do T.)

  • [43] Ver cap. 36 do 2º vol. [de O mundo…] (N. do A.)

  • [44] No oceano mergulhava do Sol a brilhante luz, / estirando a negra noite sobre a mãe terra. (N. do T.)

  • [45] Céu azul, brando vento, / Louro alto, murta sem movimento. (N. do T.)

  • [46] É evidente que sempre me refiro exclusivamente ao raro, grande e verdadeiro poeta, e a ninguém menos do que ao obtuso populacho de poetas medíocres, fazedores de rima e inventores de histórias, particularmente tão difundidos na Alemanha de hoje, a quem sempre deveria soar aos ouvidos:

    Mediocribus esse poëtis Non homines, non Di, non concessere columnae.*

    Inclusive há que considerar mais seriamente a quantidade de tempo, próprio e alheio, e de papel que é desperdiçada por este bando de medíocres poetas, e como é prejudicial sua influência, na medida em que o público adota sempre em parte o novo, em parte o errado e insípido, que lhe parece mais homogêneo e para que tem mais disposição natural, motivo por que as obras dos medíocres o retêm e copiam das genuínas obras-primas e de sua cultura, operando consequentemente contra a influência dos gênios, deteriorando gradativamente o gosto e barrando o progresso da época. Por isto, a crítica e a sátira, sem nenhuma compaixão ou consideração, deveriam martirizar os poetas medíocres, até serem estes convencidos a aplicarem sua musa antes lendo coisas boas do que escrevendo coisas ruins. Pois se mesmo o brando deus das musas ficou tão irado com a inoperância dos incapazes, a ponto de mandar torturar Mársias, não vejo em que a poesia medíocre possa basear suas pretensões de demência. (N. do A.) *A mediocridade, não a permitem aos poetas, / Nem os homens, nem os deuses, nem as colunas [em que os editores apregoam suas obras]. (N. do T.)

  • [47] O que nunca e em lugar algum aconteceu, / Somente isto jamais envelhece. (N. do T.)

  • [48] Ver cap. 38 do 2° vol. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [49] Personagem de Os Bandidos de Schiller. (N. do T.)

  • [50] Goethe. (N. do T.)

  • [51] Ver Cap. 37 do 2° vai. [de O Mundo…] (N. do A.)

  • [52] Um exercício oculto de aritmética, sem que o espírito saiba que está lidando com números. (N. do T.)

  • [53] O movimento da melodia, imitando a paixão da alma. (N. do T.)

  • [54] Por que os ritmos e as melodias, que são apenas tons, se mostram semelhantes aos estados da alma? (N. do T.)

  • [55] Expressão da época para pessoa hipnotizada. (N. do T.)

  • [56] A música é um exercício oculto de metafísica, sem que o espírito saiba que está filosofando. (N. do T.)

  • [57] Para o número todas as coisas são semelhantes. (N. do T.)

  • [58] Ver cap. 39 do 2° vol. [de O Mundo…]