Liberdade religiosa ou condescendência com a burrice?

Paulo Ghiraldelli

Conta a história das ideias que ao longo dos debates do século XVIII na França, a respeito do mundo que poderia emergir a partir do movimento do Enciclopedismo, os filósofos franceses Diderot e Voltaire conversavam sobre o futuro da religião, investigando se esta poderia ou não ser abolida. Diderot defendia uma postura radicalmente materialista. Para ele, era possível uma moral completamente laica e, portanto, não se fazia necessária a manutenção da religião. Voltaire concordava com ele, contanto que tal moral laica ficasse apenas para os intelectuais. Para as massas populares nada escolarizadas ou pouco escolarizadas, Voltaire aconselhava que os códigos ético-morais fossem ainda os religiosos. Voltaire não acreditava que as leis morais pudessem ser cumpridas pela população se elas fossem ensinadas como não vindo de entidades divinas.

Esse debate não é mais o nosso, mas vivemos, ainda, sob a esteira de seus dividendos. Uma boa parte dos intelectuais liberais mais sofisticados não possui nenhuma prática religiosa. Eles conduzem suas vidas segundo uma moral laica, em geral pragmática. São pessoas que, como eu próprio, não precisam se colocar nem como ateus e nem como crentes religiosos. São aqueles que notaram que a frase “Deus está morto”, de Nietzsche, era uma consequência natural da estocada positivista contra a busca do absoluto, ou seja, contra o que havia restado de movimento metafísico após o ataque de David Hume. Mas uma boa parte da nossa sociedade se move eticamente a partir de preceitos religiosos. Entre estes, havia até pouco tempo dois tipos de pessoas: aqueles que absorviam a ética cristã, principalmente a criada a partir da Igreja de Paulo, independentemente dela ser ou não religiosa, ou seja, sagrada; e aqueles que a absorviam a partir do que entendiam como sendo o seu caráter sagrado.  Mas, agora, há uma nova forma de entrelaçamento entre ética e religião, aquela nascida do crescimento das igrejas evangélicas entre nós e, como reação a isto, o aparecimento de correntes altamente conservadoras na Igreja Católica. Um novo tipo de brasileiro tem emergido entre nós, a partir dessa situação que passou a vingar principalmente no final dos anos oitenta.

Esse terceiro grupo de pessoas não possui nenhuma ética organizada. Eles não sabem o que é o certo e o que é errado a partir de uma relação entre suas faculdades racionais e determinados códigos éticos, laicos ou religiosos. Eles se movem por regras simples de uma pseudo-ética. E então são presas fáceis de outra pseudo-ética, a das igrejas. Essa falsa ética ou pseudo-ética, no Brasil, lhes é dada por pequenos preceitos supérfluos, criados no interior do movimento de proliferação de igrejas dos anos noventa e de agora. É onde essas pessoas um tanto perdidas encontram uma certa “comunidade” que as acolhe e lhes dá uma mínima “visão de mundo”, que lhe dá algo que parece um sentido para suas vidas mentais até então simplórias ou apenas desorganizadas.

Uma ética e uma moral se consubstanciam, no limite, em conjuntos de apontamentos sobre o que é interessante fazer e o que é inútil ou nocivo de levar adiante. Ou seja, trata-se do ethos de um povo transformado em código de conduta explícito, fácil de ser absorvido pelas crianças, relembrado pelos adultos e ensinado aos estrangeiros. Todavia, isso não pode ser aplicado pelas igrejas, uma vez que isso afastaria a população dos templos — antes somente os dos evangélicos, agora também os dos católicos. Na competição para arrecadar almas pagantes ou almas que pela presença conferem poder ao pastor (que ele pode reverter em poder político e financeiro), as igrejas perceberam que precisam criar um sistema facilitador em relação às proibições. Eis um exemplo: não se pode condenar um fiel que vende um terreno para outro fiel pelo dobro do preço que vale, pois esta é a regra geral pela qual todos vivem ali na “comunidade”, então, pode-se substituir essa proibição por uma como “não dizer palavrões”. Outro exemplo: não se pode condenar um fiel por ele não ter nenhuma piedade com um mendigo na frente da igreja, pois na comunidade ninguém pode parar a vida para cuidar dos que estão na rua (repare como os “crentes” têm ficado endurecidos de coração, como os católicos já foram acusados disso), então pode-se substituir tal condenação por uma aleatória, a de ter faltado no culto do dia X ou Y. As regras de uma conduta ético moral ligada à religião, no caso, a cristã, são substituídas por regras de cada igreja, segundo um sistema de proibições rígido, porém irracional e baseado apenas na necessidade de que se tenha, ainda, algo que é dito que “não pode”. Sobra da religião não o “pode isto e não pode aquilo”, da doutrina que, por sua vez, estaria fundada numa filosofia e numa teologia, e sim o “não pode aquilo”, mas “aquilo” é apenas algo sem sentido.

É claro que tudo isso é ajudado por outros mecanismos, principalmente o atrativo do “milagre”, da “cura imediata” ou da “salvação” que, enfim, não é a salvação contra o Mal, e sim a salvação financeira ou o desemprego ou a falta de sorte etc. Ou seja, o Mal se traduz em males da cada um, em um sentido moral bem empobrecido. O pastor promete dar ao fiel não um Deus ou um Jesus ou coisa parecida, nos cânones do cristianismo que conhecíamos antes dos anos noventa. Ele promete dar um Mágico, alguém do Além que pode ser chamado, a qualquer momento, para resolver problemas cotidianos. O azar na vida é coisa mostrada como produto de uma entidade denominada “Demônio”. A sorte pode ser restabelecida pela fé, uma fé esvaziada de religiosidade, ou seja, algo que se faz sentir a partir do pronunciamento de palavras do tipo “Sangue de Jesus tem poder”, exatamente como Mandrake poderia dizer “Abracadabra”. Isso quando não é o caso do pastor, na própria igreja transformada em picadeiro de circo, fazer uns movimentos físicos para dominar o Tinhoso! Esse tipo de prática, semelhante a um resto de neopaganismo de tipo bárbaro, agora atinge não só evangélicos, mas católicos e espíritas que começam a se sentir atraídos para o mundo da completa incapacidade de se adaptar a uma mentalidade científica. Mas se engana aquele que acredita que isso agarra somente os desescolarizados no Brasil de hoje. Há muitas pessoas nas universidades “pensando” dessa maneira.

Volto a Diderot e Voltaire. Este, quando dizia que a religião deveria ser mantida mesmo num mundo reconstruído pelo Iluminismo, imaginava que a religião cristã poderia se limitar aos cânones de sofisticação teológica que havia alcançado. Isso implicava, então, a manutenção da completa transcendência de Deus. Desse modo, Deus ou Jesus ou qualquer coisa parecida com entidades divinas, estaria em contato com os homens por meio de rituais privados, ouvindo os homens. Caso houvesse qualquer intervenção divina no mundo dos homens, tal intervenção seria “filtrada” pela alma humana que, então, ao lembrar-se dos exemplos das entidades divinas (por exemplo, a vida de Jesus ou dos santos etc.), inspiraria atos mentais, de caráter intelectual e moral. Mas não foi assim que as coisas evoluíram em nossos tempos recentes. No movimento de proliferação de igrejas dos anos noventa, e que continua agora mais forte que nunca, ninguém é “tocado” pela inspiração dessa maneira. Todos são tocados de modo mágico. Entidades tais como Deus, Jesus ou o Demônio, atacam diretamente a Terra, interferindo nas relações causais, ou seja, quebrando a ordem natural (mandando a Física, a Biologia etc às favas). O que antes se chamava de milagre — em relação ao qual a Igreja Católica criava todo um processo enorme de investigação para conceder fé — agora se tornou possível para qualquer corretor de imóveis sem registro ou vendedor de carnê do Baú, que pode colocar um terno surrado e virar pastor ao carregar embaixo do braço um negócio que ele chama de Bíblia. E os “abracadabras” correm o país. Não há nada menos religioso que isso. Mas é isto que domina a juventude brasileira e, pasmem, já domina também boa parte de nosso professorado na escola básica.

Nós não vamos tornar o Brasil um bom lugar de viver deixando nossas crianças nas mãos desse tipo de gente, com essa mentalidade. Estamos dando diplomas de professores, na universidade pública, para pessoas que não pensam de maneira racional. Elas são cativas dessas igrejas. Logo teremos uma mentalidade mística em cargos importantes da República. Gente incapaz de entender como funciona mecanismos de inflação ou como que é possível evitar a dengue. Será difícil fazer do país uma grande nação com esse tipo de mão de obra, completamente imbecilizada. Estamos confundindo liberdade religiosa com condescendência à burrice. Temo que paguemos todos, de modo drástico, por esse nosso descuido. Esse descuido de nossas universidades para com a evolução da barbárie embaixo de nossos narizes.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.