Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral

Howard Kahane

De acordo com um ser extraterrestre tralfamadoriano, no livro Slaughterhouse Five de Kurt Vonnegut, Jr., os tralfamadorianos viajaram até aos confins do universo e só na Terra se fala de livre-arbítrio. Talvez. Mas fala-se mesmo muito.

1. Livre-arbítrio versus determinismo

O problema do livre-arbítrio versus determinismo surge devido a uma aparente contradição entre duas ideias plausíveis. A primeira é a ideia de que os seres humanos têm liberdade para fazer ou não fazer o que queiram (obviamente, dentro de certos limites — ninguém acredita que possamos voar apenas por querermos fazê-lo). Esta é a ideia de que os seres humanos têm vontade livre — ou livre-arbítrio. A segunda é a ideia (…) de que tudo o que acontece neste universo é causado, ou determinado, por acontecimentos ou circunstâncias anteriores. Diz-se de aqueles que aceitam esta ideia que acreditam no princípio do determinismo e chama-se-lhes deterministas. (De aqueles que negam esta segunda ideia diz-se que são indeterministas.)

Pensa-se frequentemente que estas duas ideias conflitam porque parece que não podemos ter livre-arbítrio — as nossas escolhas não podem ser livres — se são determinadas por acontecimentos ou circunstâncias anteriores.

2. Somos nós sempre responsáveis pelas nossas ações?

Além disso, algumas pessoas defenderam que se tudo o que fazemos é determinado pelo que aconteceu no passado de uma forma tal que as nossas escolhas nunca são livres, então não somos moralmente responsáveis por nenhuma das nossas ações, porque nesse caso não escolhemos livremente fazê-las. Pode esta ideia estar correta?

Determinismo radical, determinismo moderado e libertarianismo

Na história da filosofia, foram propostos essencialmente três tipos diferentes de respostas a esta questão. Um consiste em morder a isca e aceitar que o determinismo é verdadeiro e, por conseguinte, que a responsabilidade moral não tem sentido. A este ponto de vista chama-se geralmente determinismo radical, e àqueles que o aceitam deterministas radicais. Um segundo ponto de vista é o de que tem efetivamente sentido sustentar que as pessoas são moralmente responsáveis pelas suas ações, porque o determinismo está errado e nós no fim de contas temos livre-arbítrio. Chama-se com frequência libertarianismo a este ponto de vista e aos seus defensores libertarianos. Finalmente, um terceiro ponto de vista é o de que ao aceitarmos o determinismo e a liberdade da vontade não nos contradizemos, pelo que podemos ser considerados moralmente responsáveis pelas nossas escolhas livres embora elas sejam determinadas. Chama-se geralmente determinismo moderado a este ponto de vista e aos seus advogados deterministas moderados.

3. Determinismo radical

Quando examinado, o determinismo radical revela basear-se em três princípios:

  1. O princípio do determinismo — que tudo o que acontece tem uma causa;
  2. O princípio de que se uma ação é determinada, então não é livre (a pessoa não poderia realmente ter escolhido não a fazer); e
  3. O princípio de que a pessoa é moralmente responsável apenas por ações livres.
Argumentos a favor do determinismo radical

Os deterministas radicais tendem a acreditar que a segunda e a terceira das afirmações necessárias para apoiar a sua posição são óbvias (e o mesmo fazem os libertarianos). Parece-lhes óbvio que as ações determinadas, digamos, pela hereditariedade e pelo ambiente não podem ser ações livremente escolhidas; e igualmente óbvio que as pessoas são apenas responsáveis pelas ações que escolheram livremente. Por isso, os deterministas radicais concentraram o seu fogo no primeiro princípio — que o determinismo é verdadeiro. Os seus argumentos são muito fortes.

Em primeiro lugar, as provas a favor do determinismo em geral baseadas na vida diária parecem ser extraordinariamente fortes. Quando pomos açúcar no café, esperamos que o café seja doce e ficaríamos muito surpreendidos se não fosse. Quando passeamos, o solo suporta-nos sempre — não nos enterramos lentamente na terra. Do mesmo modo, a gravidade nunca falha — nunca flutuamos suavemente até as estrelas. Quando os astronautas vão para o espaço, milhares de peças de equipamento têm de trabalhar de forma exatamente correta milhões de vezes — “exatamente correta” significa exatamente como foi predito pelas teorias científicas acerca das leis da natureza que explicam como as coisas estão determinadas para acontecer.

A verdade é que nós não podemos fazer um movimento sem confiar em pelo menos algo que funcione como funcionou no passado. Assim, cada experiência que temos parece apoiar a tese geral de que tudo o que acontece neste universo é causado ou determinado pelo que aconteceu no passado.

Mas a questão principal entre os deterministas radicais e os seus opositores não é a propósito do determinismo ou da causalidade em geral. A questão diz respeito apenas a um conjunto limitado de acontecimentos ou circunstâncias no universo, a saber, a escolhas e ações humanas, em particular, a escolhas e ações morais. São as nossas ações livres (não-determinadas)? São as nossas escolhas livres? Há suficiente “folga” nas leis que governam o universo para que estas coisas possam acontecer? Os deterministas dizem que não e as provas parecem estar fortemente a seu favor.

Em primeiro lugar, na vida diária fazemos constantemente predições acerca do que as pessoas irão fazer. Como é óbvio, não podemos fazer predições com 100% de precisão, mas as pessoas perspicazes, de algum modo, fazem-nas razoavelmente bem. Elas rotulam as pessoas de pessoas em quem se pode confiar, egoístas, sem escrúpulos, sociáveis, agressivas, hostis, e tudo o mais, com um sucesso moderado que é difícil explicar se as nossas ações e as nossas escolhas não são determinadas.

Além do mais, sabemos pela vida diária quão facilmente podemos alterar os nossos estados e capacidades mentais tomando drogas. É essa a razão do amplo uso do álcool, da marijuana, da cafeína, da nicotina, da aspirina, do Valium, e de outros modificadores da mente — alteramos as nossas percepções, libertamos as nossas inibições ou livramo-nos da dor. No caso do álcool, com frequência enfraquecemos a vontade moral ou abalamos, por exemplo, a resolução de nos abstermos de relações sexuais imorais. Tudo isto apoia o ponto de vista dos deterministas e opõe-se à ideia de vontades livres (não-causadas).

Além disso, há as provas decisivas da ciência. Os cientistas assumem que as leis da natureza que descobriram se aplicam a tudo no universo, incluindo as minúsculas partículas que constituem o cérebro e o sistema nervoso humanos. Quando escolhemos fazer algo — digamos, apertar um dedo indicador contra o gatilho de uma arma carregada apontada a um inimigo —, impulsos elétricos viajam do cérebro para os músculos apropriados do corpo. Há uma grande quantidade de provas científicas (e nenhumas contraprovas convincentes) de que estes impulsos elétricos são causados por outros impulsos no cérebro, que em última instância são causados por interações químicas algures no corpo (por exemplo, em várias glândulas que segregam hormônios e na retina do olho). A noção de uma vontade livre (não-causada) parece assim contraditar alguns princípios científicos muito bem estabelecidos. [1]

Por último, deve ser notado que os indeterministas, tal como todas as outras pessoas, na vida diária agem como se acreditassem realmente em que o determinismo é verdadeiro. Em particular, eles antecipam as escolhas morais das outras pessoas exatamente como toda a gente. E assumem que a exortação moral, o treino moral e a educação moral serão eficazes, embora o objetivo do treino moral seja influenciar as decisões morais dos estudantes. Se as pessoas tomam efetivamente as suas decisões morais libertos de forças causais, como é que o treino moral tem algum efeito?

O argumento contra o determinismo radical

Como vimos, o determinismo radical baseia-se em três princípios. Não o podemos refutar rejeitando o primeiro destes princípios (o princípio do determinismo), como acabamos de defender. Por isso, para refutá-lo, devemos atacar o segundo e o terceiro princípio (embora praticamente ninguém escolha o terceiro). Como veremos, esta é exatamente a forma como os deterministas moderados refutam o determinismo radical. Mas por detrás desta refutação encontra-se um desejo muito forte de que as pessoas sejam responsáveis pelas suas ações e escolhas e uma enorme necessidade de admirar e premiar aqueles que se sacrificam pelo seu dever e de abominar e punir a obra do diabo. E essa é, em última instância, a razão fundamental para rejeitar o determinismo radical. (Seja o que for que alguns filósofos possam afirmar, a verdade é que quando julgamos moralmente os outros não nos importa se as nossas escolhas morais são determinadas ou não — uma vez mais, repara no comportamento quotidiano de todos, incluindo os deterministas radicais.)

4. Libertarianismo

Ao contrário dos deterministas radicais, os libertarianos (com frequência chamados indeterministas) negam que o determinismo seja verdadeiro. O libertarianismo é o ponto de vista segundo o qual as escolhas morais são em geral livres; isto é, não-causadas (ou autocausadas) e que, portanto, temos razões para considerar que as pessoas são moralmente responsáveis pelas suas ações. Isto é outra forma de dizer que o determinismo é falso, pelo que há liberdade da vontade e, portanto, a moralidade faz de fato sentido.

Como é óbvio, os libertarianos sabem que não podemos fazer exatamente qualquer coisa — é completamente impossível ter poderes sobre-humanos. Mas, afirmam eles, somos geralmente livres nas situações morais típicas em que podemos escolher fazer ou não o mal, que é o que importa para justificarmos a prática da moralidade.

Razões para aceitar o libertarianismo

Há duas razões fundamentais para o libertarianismo ser tão popular. A primeira é a crença em que de outro modo não temos justificação para considerar as pessoas responsáveis pelas suas ações. (Deste modo, os libertarianos concordam com os deterministas radicais em que se as nossas escolhas morais são determinadas, então não são livres.)

Sentimo-nos livres

A segunda razão importante pela qual os libertarianos acreditam que temos vontades livres (não-causadas) é que sentimos que somos livres. Digamos que, em geral, quando escolhemos mentir sentimos que poderíamos ter escolhido não mentir, que a nossa escolha não nos foi imposta pelo que nos aconteceu no passado. Por outras palavras, sentimos que podíamos ter escolhido caminhos verdadeiramente alternativos.

Argumentos contra o libertarianismo

Infelizmente, estas duas defesas libertarianas são defeituosas. Peguemos a segunda — de acordo com a qual temos uma sensação de liberdade. Mesmo que isto seja verdade (e alguns deterministas também pensam que é) não prova que temos de fato livre-arbítrio, porque muitas sensações são enganadoras (por exemplo, a sensação de que num dia frio o ar está mais frio do que a água da praia). Assim, o simples fato de nos sentirmos livres não é razão suficiente para acreditarmos que somos realmente livres.

Mas poderia ser uma prova de que somos livres, tal como, digamos, sentirmos que partimos um osso é uma prova de que partimos. Não nos sentimos livres quando escolhemos fazer isto em vez de aquilo? Sim, claro. Mas não no sentido relevante de liberto de causas, porque uma causa não pode ser sentida! Portanto, a ausência de causa também não pode ser sentida.

Peguemos um caso em que toda a gente concorda não existir liberdade de escolha — digamos, um ato reflexo como o movimento automático da perna. Quando o médico bate no lugar certo do joelho do paciente e a sua perna se eleva, ele não sente a causa do movimento da perna — sente unicamente o movimento da perna. Em casos deste gênero, certamente que o movimento do nosso corpo é causado, mas não sentimos essa causa. Por que devemos então acreditar que sentimos a ausência de causa? Contudo, para sentirmos uma escolha como livre temos de senti-la como não-causada, temos de sentir a ausência da causa. E isto é algo que não podemos fazer. (Se pensas que podemos, pergunta a ti mesmo que sensação as causas — enquanto opostas a vontades — têm [2].)

É verdade que podemos nos sentir compelidos (forçados) ou não-compelidos (não forçados) a fazer certas escolhas. Mas, como veremos quando discutirmos o determinismo moderado, ser compelido é muito diferente de ser causado e não ser compelido muito diferente de não ser causado.

Não somos responsáveis por ações não-causadas

Vejamos agora o segundo argumento importante a favor do libertarianismo — que apenas o libertarianismo torna racional a ideia de responsabilidade moral. Supõe que o Silva decide roubar o Banco de Portugal e que ninguém o forçou a fazê-lo (razão pela qual a sua ação não implica qualquer compulsão). Para serem consistentes, os libertarianos têm de dizer que só temos justificação para considerar o Silva moralmente responsável pela sua ação se ela não foi causada, nem mesmo pelos seus próprios motivos, desejos ou objetivos [3].

O problema é que os libertarianos têm ossos no armário. Só faz sentido considerar uma pessoa moralmente responsável por escolhas que resultem pelo menos em parte de necessidades ou desejos que tentou satisfazer fazendo essas escolhas! Esta inversão impressionante da pretensão libertariana é de crucial importância. Para ver a sua força, imagina que és livre em sentido libertariano. Isto é, imagina que as tuas escolhas não são causadas, nem mesmo pelos teus desejos, motivos ou objetivos. Supõe que vais a descer a rua principal quando de súbito puxas de uma pistola e matas alguém a sangue frio. Se te perguntassem por que fizeste essa coisa horrível, que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste fazê-la, porque se soubesses a razão, saberias o que te tinha motivado a fazê-la e, assim, saberias (em parte) a causa de o teres feito. (Algumas pessoas diriam que o teu desejo não foi a causa da ação mas antes um efeito do mesmo processo fisiológico que causou a ação.)

Para perceber a ideia, imagina que dizes que mataste porque querias mostrar que te poderias libertar das limitações vulgares das ações humanas, querias quebrar a regra contra o assassinato unicamente para mostrar que podes fazê-lo (tal como há uns anos algumas pessoas corriam nuas unicamente para provar que o podiam fazer). Por conseguinte, o teu desejo de provar isto seria (parte de) a causa da tua ação. Para que o assassinado seja uma ação verdadeiramente livre, nenhum desejo destes ou de qualquer outro tipo pode ter causado a tua escolha. Assim, se te perguntassem por que razão fizeste aquele ato, terias de responder que não tinhas qualquer razão e te limitaste a escolher fazê-lo.

Portanto, se o libertarianismo estivesse correto, o que escolhes fazer não poderia ser causado pelo teu caráter ou resultar de algum dos teus desejos, motivos ou valores. Não poderia ser causado pela inveja, pelo teu desejo de provar algo, pelo desejo de vingança ou qualquer outra coisa. Não poderia, por conseguinte, ter qualquer ligação efetiva contigo ou com quem tu és. Assim, se as tuas escolhas fossem verdadeiramente não-causadas, seria um erro elogiar-te, censurar-te, recompensar-te ou punir-te pelo que escolhes fazer, o que é precisamente o inverso de aquilo que os libertarianos pretendem.

Podemos escolher livremente os nossos desejos e motivos?

Confrontados com objeções deste tipo, alguns libertarianos admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos, mas defendem que podemos escolher livremente os nossos desejos e motivos ou, pelo menos, decidir com base em quais agir.

Mas é isto correto? Em primeiro lugar, como mostramos antes, todas as provas parecem indicar que os nossos desejos e motivos são tão causados como tudo o resto. E, em segundo lugar, se fôssemos realmente livres para escolher coisas como desejos, não haveria nenhuma razão para escolhermos um desejo em vez de outro. Não teríamos mais razões para desejar o amor do que o ódio, tortas de maçã do que veneno, a vingança do que crianças ou a vida do que a morte.

Para ver que as coisas são assim, imagina que és livre de escolher os teus próprios desejos, objetivos e motivos — não com base nos que tens agora, mas a partir do zero. Digamos que escolhes um conjunto A de desejos em vez de um outro conjunto B. Supõe que o conjunto A contém o desejo de assassinar a tua avó e que o fazes. Se te perguntassem por que desejaste fazer uma coisa tão horrível, o que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste esse desejo, porque se soubesses a razão, saberias o que te teria motivado a fazê-lo, e estamos a assumir que começaste do zero, isto é, que escolheste sem ter quaisquer desejos ou motivos anteriores. Portanto, se fosses completamente livre para escolher os teus próprios desejos e motivos, livre até dos desejos e motivos que tens efetivamente agora, os desejos que escolherias não teriam a mínima ligação contigo, como defendemos antes. (Não serviria de nada dizer que poderias escolher livremente os teus próprios desejos com base nos desejos que já tens, porque nesse caso os novos desejos alegadamente “escolhidos livremente” derivariam na realidade dos antigos e não da tua escolha livre.)

Podemos nós escolher resistir aos nossos desejos e motivos?

Confrontados com objeções deste tipo, alguns libertarianos admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos e que não podemos escolher os nossos desejos e motivos independentemente dos que já temos. Mas eles argumentam que podemos escolher livremente resistir a agir com base nos nossos motivos e desejos imorais empregando a nossa força de vontade (ou empregando mais força de vontade) e, portanto, somos moralmente responsáveis pelas ações realizadas para satisfazer esses desejos. (Por exemplo, diz-se frequentemente que não nos podemos libertar dos desejos da carne, mas podemos dominar estes desejos se nos esforçarmos bastante.)

Mas a experiência diária assim como as teorias psicológicas indicam que a quantidade de força de vontade que podemos empregar para resistir à tentação de fazer uma ação imoral depende da força relativa do desejo de cometer a ação má comparada com o desejo de fazer aquilo que é moralmente correto. Por exemplo, se Silva resistirá ou não à tentação de fazer amor com a mulher (que também está disposta) de um amigo depende da força do seu desejo de fazê-lo comparada com o seu desejo de ser leal ao amigo ou de evitar o que acredita ser errado. É-nos tão impossível escolher livremente a intensidade dos nossos desejos quanto escolher livremente os próprios desejos.

Pensa por um momento no que seria escolher a intensidade dos nossos desejos. Supõe que o desejo de Silva por sexo é o dobro da intensidade do seu desejo de ser leal ao seu amigo e que ele escolhe duplicar a intensidade do desejo de ser leal. Se lhe perguntassem por que razão escolheu aumentar a intensidade do seu desejo de ser leal, o que poderia dizer? Tão somente que não tinha qualquer ideia da razão pela qual o escolheu. Em particular, ele não poderia apelar a nenhum motivo ou desejo de o fazer, porque estamos a assumir que escolheu livremente aumentar o seu desejo, o que significa que escolheu fazê-lo sem um motivo ou desejo como causa para o fazer.

Ou então supõe que ele escolhe duplicar a sua vontade de poder, isto é, escolhe resistir à tentação de pecar com duas vezes mais força. Uma vez mais, se lhe perguntassem por que razão escolheu fazê-lo, que poderia ele responder? Ele não poderia apelar a nenhum motivo ou desejo de tentar com mais força porque estamos a assumir que ele escolhe livremente tentar com mais força.

Estamos presos à conclusão de que as nossas escolhas e ações têm de derivar dos nossos desejos e motivos ou, mais exatamente, do nosso caráter. É óbvio que podemos escolher livrarmo-nos, ou intensificar, um desejo particular, mas apenas baseados em outros desejos e motivos que tenhamos. De outro modo, fazê-lo não teria nenhuma ligação com quem somos — teria caído do céu — e certamente que não teríamos nenhuma responsabilidade por o ter feito.

Parece, então, que o libertarianismo não é satisfatório.

5. Determinismo moderado

Parece que ficamos encurralados num canto. Temos de rejeitar o determinismo radical porque nega a validade da responsabilidade moral. Mas temos igualmente de rejeitar o libertarianismo, porque se fosse verdadeiro nunca teríamos justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis pelas suas ações.

O problema está na nossa definição de liberdade. Dissemos antes que chamaríamos livre a uma escolha se ela não fosse causada. Mas há uma outra e mais útil concepção de escolha livre. Para ilustrá-lo, imagina os soldados Silva e Nunes de sentinela durante a guerra, Silva depois de 72 horas acordado em batalha e Nunes depois de um bom descanso. Supõe que Silva tenta ao máximo estar acordado, enquanto que Nunes, digamos, por travessura, se deixa deliberadamente dormir. Parece que neste caso deveríamos repreender Nunes por se ter deixado adormecer, mas não Silva, porque Nunes, se quisesse, poderia ter estado acordado, enquanto Silva não poderia, ainda que de fato o desejasse. Nunes deveria ser considerado culpado porque ele quis fazer a ação maldosa, enquanto Silva deve ser considerado inocente ou, pelo menos, ser perdoado, porque ele quis fazer o seu dever, estar acordado e tentou ao máximo fazê-lo. Podemos dizer que Nunes ter adormecido foi um ato livre, porque não foi compelido — não foi forçado a adormecer “contra a sua vontade”. Mas Silva ter adormecido não foi livre, porque ele foi compelido pela fadiga corporal a fazer o que desesperadamente não queria fazer, a saber, adormecer.

Os deterministas moderados consideram a ausência de compulsão, e não a ausência de causa, como o critério da liberdade de escolha. Em termos gerais, defendem que as pessoas agem livremente quando fazem o que querem e escolhem fazer e não agem livremente quando o que fazem é forçado ou compelido. Por outras palavras, de acordo com os deterministas moderados, uma vontade livre é simplesmente uma vontade não-compelida.

Compulsão interna e externa

As ações compulsivas dividem-se em dois tipos, internas e externas, consoante a origem da força compulsiva. A sentinela que tenta ao máximo estar acordada mas apesar disso adormece é vítima de compulsão interna, porque forças psicológicas no interior do seu corpo são a causa de que adormeça. As crianças fechadas nos quartos pelos pais são vítimas de compulsão externa, porque as forças que constrangem o seu comportamento são externas aos seus corpos. Os deterministas moderados defendem que a ausência de compulsão, e não a ausência de causa, é a marca de um ato livre. Todos os atos são causados, mas apenas alguns são compelidos.

Ações determinadas podem ser livres

Recorda agora os três princípios que conduzem ao determinismo radical, a saber, 1) que o determinismo é verdadeiro, pelo que todas as nossas escolhas e ações são determinadas por circunstâncias passadas; 2) que as ações determinadas por circunstâncias passadas não podem ser livres; e 3) que somos moralmente responsáveis apenas por ações livres. Deve ser óbvio neste momento que os deterministas moderados aceitam os princípios 1) e 3) mas rejeitam o princípio 2). Eles chamam a atenção para que, na vida diária, o critério de escolha livre não é a escolha ser não-causada mas antes a escolha ser não-compelida, não forçada, pelo que a pessoa faz o que ele ou ela quer e escolhe fazer. Os deterministas moderados “salvam” assim a ideia de responsabilidade moral e resolvem o problema do livre-arbítrio versus determinismo defendendo que a liberdade necessária para justificar considerar as pessoas moralmente responsáveis pelas suas ações não é a liberdade do determinismo, que nunca temos, mas a liberdade da compulsão, a liberdade para fazer o que queremos fazer, o que com frequência temos.

Razões para aceitar o determinismo moderado

A razão fundamental para aceitar o determinismo moderado é que parece resolver o problema sem violar quaisquer intuições fortemente arraigadas. Ao contrário do libertarianismo, o determinismo moderado é consistente com a tese determinista muito bem estabelecida segundo a qual tudo tem uma causa. Ao contrário do determinismo radical, é consistente com a ideia de que temos justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis pela maior parte das suas ações. Além disto, diz-nos grosso modo as ações pelas quais somos responsáveis (as que não são compelidas) e pelas quais não somos (as que são compelidas) e fornece-nos um critério para decidir em casos particulares (as ações que queremos fazer não são compelidas, ou livres, as ações que não queremos fazer mas fazemos na mesma são compelidas, ou não livres). E fá-lo de um modo tal que está razoavelmente de acordo com a prática diária. Uma vez que, em geral, na vida diária somos desculpados pelas ações compelidas e considerados responsáveis apenas pelas não-compelidas.

Dificuldades do determinismo moderado

O determinismo moderado enfrenta dois problemas fundamentais. Primeiro, como os próprios deterministas moderados costumam afirmar, o critério para determinar se as escolhas são livres ou compelidas precisa de ser refinado. Dissemos que, em termos gerais, as ações são livres quando os agentes fazem o que querem fazer e são compelidas quando é ao contrário; e que uma pessoa é responsável apenas pelas suas ações livres. Considera então os casos seguintes:

1. Uma dama imensamente rica da Avenida de Roma rouba um alfinete de gravata de diamantes na Ourivesaria Sarmento, da Rua do Ouro. O alfinete não tem qualquer utilidade para ela e mais tarde irá lamentar tê-lo roubado. Mas, na altura, qualquer que tenha sido a razão, não resistiu à tentação de roubá-lo — o seu desejo de roubar foi mais forte do que o seu desejo de não o fazer — pelo que escolheu fazê-lo. Ainda assim, é frequente dizer-se que uma tal pessoa é doente mental, uma cleptomaníaca que age compulsivamente, e, portanto, não é responsável pelas suas ações. Contudo, de acordo com o critério de compulsão aqui apresentado, a sua ação tem de ser considerada livre.

2. Um prisioneiro de guerra, depois de ter sido barbaramente torturado, entrega segredos ao inimigo. Ele quer revelar os segredos e escolhe fazê-lo (para evitar ser mais torturado). Geralmente julga-se que ele não deve ser castigado por tê-lo feito, porque quase toda a gente, mais cedo ou mais tarde, cede à tortura. Contudo, de acordo com o critério de liberdade que fornecemos, ele escolheu livremente revelar os segredos.

3. Uma pessoa internada num hospital para doentes mentais mata outra numa luta por causa de um parceiro sexual. Essa pessoa quer matar e escolhe matar e, no entanto, a maior parte de nós diria que, devido a ser louco, não é responsável.

4. Um marido que investiu bastante na sua mulher e no seu casamento apanha-a na cama com outro homem e mata-a num acesso de paixão. Na altura, ele quer matá-la e escolhe fazê-lo — ninguém o força. No entanto, algumas pessoas diriam que ele não deveria ser castigado por este ato, uma vez que, nestas circunstâncias, não era livre para dominar a sua raiva.

5. Sob o efeito de sugestão pós-hipnótica, Silva mata a avó. Ele gosta dela e normalmente nem lhe passaria pela cabeça fazer-lhe mal. Apesar disso, na altura da decisão, ele quer matá-la. Deste modo, de acordo com o critério de liberdade dos deterministas moderados, o ato parece ser livre, embora a maior parte de nós dissesse que o Silva não era um verdadeiro agente livre.

6. Quando lhe deram grandes doses para o ajudar a suportar as dores causadas por ferimentos de guerra, Nunes adquiriu, sem quaisquer más intenções, o vício da morfina. Agora arruína a sua vida ao tentar satisfazer o hábito. Embora seja verdade que quer romper com o hábito, também é verdade que, quando cede e toma a droga, quer tomá-la (o seu desejo pela droga é mais forte do que o seu desejo de romper com o hábito) e escolhe tomá-la. A maior parte de nós diria que tomar a droga é uma ação compelida. Contudo, com base no critério aqui apresentado, parece ser livre.

A compulsão não é a única defesa

Como é óbvio, não podemos ter a certeza de que o determinismo moderado resolva o problema até sabermos como lidar com casos como os que acabamos de apresentar. Diferentes deterministas moderados tratam estes casos de forma diferente. Uma forma é chamar a atenção para que a liberdade de compulsão não é o único critério de responsabilidade moral. As crianças, por exemplo, são frequentemente desculpadas por escolherem livremente ações pelas quais os adultos são castigados. O mesmo se passa com os doentes mentais. A questão é que tais pessoas de algum modo carecem de estatuto moral, talvez porque não se pode esperar que saibam a natureza moral dos seus atos (como a criança de três anos que puxa a irmã bebê para fora do berço) ou que saibam as consequências das suas ações (o louco que acidentalmente deita fogo a uma casa) ou tenham a vontade para agir com base nesse conhecimento (o doente esquizofrênico que não sai da cama).

Precisamos um critério de desejo verdadeiro

Outra forma de lidar com o problema é defender que às vezes o que queremos e escolhemos num dado momento — digamos, no calor da paixão, como no Caso 4, acima — não é o que realmente queremos fazer; pensa no arrependimento que se segue a termo-lo feito. Deste ponto de vista, a intensidade relativa dos nossos vários desejos ao longo de um grande período de tempo determina os nossos verdadeiros desejos num dado momento. Desta forma, as ações compelidas têm origem quando os nossos desejos mais fortes num dado momento conflituam com os nossos desejos mais fortes a longo prazo. Um exemplo disto é o desejo de tomar a droga que, num dado momento, um toxicômano tem mesmo que, em geral, o seu desejo mais forte seja o de perder o hábito.

Muitas pessoas ainda consideram o determinismo e a responsabilidade moral incompatíveis

O objetivo da investigação filosófica é ver como as coisas nos parecem depois de termos ouvido os argumentos, especialmente os da outra parte.

Depois de ouvir os argumentos a favor do determinismo moderado, os libertarianos, em particular, ainda acham errado considerar as pessoas responsáveis pelas suas ações se essas ações são causadas por leis naturais sobre as quais os seres humanos não têm qualquer domínio. Também não lhes serve de nenhum consolo ouvir que as pessoas escolhem fazer a maior parte do que fazem, ou que as suas ações resultam dos seus desejos ou motivos, se esses desejos, motivos e, deste modo, todas as escolhas, são determinadas por leis naturais. Considerar pessoas responsáveis em tais circunstâncias parece-lhes ser como considerar robôs responsáveis pelas suas ações.

E talvez este seja o ponto principal. Há alguma razão para tratar os seres humanos de forma diferente das mesas, cadeiras, televisores ou computadores? Há alguma coisa nas relações humanas ou na nossa natureza social que constitua uma razão para olhar os seres humanos como responsáveis pelo que fazem, e os televisores e computadores não? Parece adequado censurar os amigos quando nos decepcionam, mas não um computador (limitamo-nos a mandar arranjá-lo). A forma como nos sentimos a propósito de pessoas é substancialmente diferente da forma como nos sentimos a propósito de máquinas inanimadas, e esse sentimento diferente é a justificação — se há alguma — para considerar as pessoas e não as máquinas responsáveis pelas suas ações (não-compelidas).

Por que, então, continuam a existir discordâncias sobre este tema? Em parte, talvez, devido a uma falta de atenção aos argumentos dos outros lados da questão. Mas, em parte, devem-se também a diferenças a propósito de outras questões filosóficas que estão com ele relacionadas, talvez mesmo a diferenças acerca da natureza do próprio empreendimento filosófico. Por exemplo, alguém cujas convicções religiosas exigem que as pessoas sejam consideradas responsáveis por algumas das suas ações não pode consistentemente apoiar a posição do determinismo radical acerca da questão do livre-arbítrio. Embora não seja prático lidar com todas as questões relacionadas ao mesmo tempo, o que eventualmente dissermos a seu propósito ajuda a determinar que respostas à questão do livre-arbítrio versus determinismo podemos aceitar.

Sumário

1. O problema discutido neste capítulo nasce de uma aparente contradição entre a ideia quase universal de que os seres humanos têm livre-arbítrio e várias outras ideias que são plausíveis, a saber, que a) tudo o que acontece, incluindo todas as escolhas e ações humanas, é determinado ou causado por acontecimentos ou circunstâncias anteriores; b) que se as nossas ações e escolhas são determinadas, não são livres; e c) que não somos moralmente responsáveis por ações ou escolhas que não são livres.

2. Os deterministas radicais resolvem o problema negando que tenhamos livre-arbítrio, concluindo que de fato não somos moralmente responsáveis pelas nossas ações ou escolhas. Dizem isto porque estão convencidos de que o determinismo é verdadeiro e o livre-arbítrio é, por conseguinte, uma ilusão. Eles tendem a defender o seu ponto de vista principalmente defendendo a teoria determinista segundo a qual tudo é causado. Assim, chamam a atenção para experiências e crenças comuns que parecem implicar que as coisas se comportam de uma forma regular (o açúcar não faz as coisas serem doces num dia e amargas no dia seguinte), para o comportamento humano diário (nem mesmo pilotos de carros de corrida podem escolher conduzir bem estando bêbados), e também para o enorme sucesso da ciência moderna na descoberta de relações causais (não podemos escolher bater os braços e voar para a Lua).

Embora muitas pessoas argumentem contra o determinismo radical defendendo que o determinismo em geral está errado, as provas a favor do determinismo são muito fortes, razão pela qual se quisermos rejeitar o determinismo radical teremos de o fazer com base na ideia de que a liberdade de ação e de escolha não contradiz o determinismo, pelo que temos efetivamente justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis mesmo que as suas ações e escolhas sejam causadas ou determinadas.

3. Os libertarianos defendem que o livre-arbítrio é possível apenas se o determinismo for falso e que, pelo menos nas situações morais típicas, temos de fato livre-arbítrio. Por este motivo, temos justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis pelo que escolhem e fazem.

Os libertarianos defendem o seu ponto de vista com base em que, primeiro, apenas o seu ponto de vista permite considerar as pessoas moralmente responsáveis pelas suas ações (eles não têm nenhuma vontade em acreditar que não tem sentido fazê-lo), e, em segundo lugar, sentimo-nos livres quando fazemos escolhas morais.

Os adversários tendem a opor-se ao libertarianismo por três razões. Primeiro, acreditam que o determinismo é verdadeiro e não temos vontades sem causas ou autocausadas. Em segundo lugar, eles defendem que não nos sentimos livres de forças causais (porque as causas não são o tipo de coisas que possamos sentir), mas antes de compulsão ou coerção. E, em terceiro lugar, defendem que se tivéssemos efetivamente vontades não causadas, não faria qualquer sentido considerarmo-nos responsáveis pelas nossas ações, porque não resultariam do nosso caráter e, assim, não seriam uma indicação de quem realmente somos.

4. Os deterministas moderados defendem que os deterministas radicais e os libertarianos estão errados, em parte porque usam uma concepção errada de liberdade da vontade. A concepção pertinente é que somos livres quando escolhemos e fazemos o que queremos fazer e não somos forçados ou compelidos contra a nossa vontade. Eles distinguem frequentemente entre dois tipos de compulsão — interna e externa — consoante a força compulsória é interior ou exterior aos nossos corpos.

Os deterministas moderados defendem a sua posição apelando a todas as provas que favorecem o determinismo em geral e apontando que o seu ponto de vista se conforma com a prática diária. Quando temos de decidir na vida diária se as pessoas devem ser consideradas responsáveis pelo que fazem, não perguntamos se as nossas ações são causadas mas antes se são ou não compelidas ou forçadas. Quando as pessoas fazem o que querem fazer, sentimos (com algumas exceções devido a razões precisas) que são moralmente responsáveis pelo que fazem.

Algumas pessoas rejeitam o determinismo moderado porque rejeitam o determinismo em geral. Outras rejeitam-no devido a acreditarem que até agora os deterministas moderados não foram capazes de lidar com certos tipos de casos e porque não explicaram adequadamente o seu critério de compulsão. Além disso, após terem ouvido a teoria dos deterministas moderados, especialmente os libertarianos ainda consideram totalmente implausível considerar as pessoas responsáveis pelas suas ações se essas ações são determinadas por acontecimentos ou circunstâncias passados. Se o determinismo é verdadeiro, afirmam eles, então os seres humanos são exatamente como robôs ou computadores complexos e ninguém se sente justificado em repreender ou punir um computador quando ele avaria.

Finalmente, foi sugerido que talvez seja este o ponto principal. Tratamos os seres humanos, quer sejam ou não máquinas, de forma diferente dos robôs ou computadores porque nós de alguma forma sentimos de forma diferente a seu respeito.

  1. Até há pouco tempo, os cientistas sociais e os biólogos que estudam a natureza humana não tiveram tanto sucesso como os seus colegas das ciências físicas. Mas a tendência recente, em particular na biologia, tem sido para um sucesso maior, pelo que há muitas razões para pensar que irá acelerar e só o pensamento ilusório poderá levar alguém a acreditar que se inverterá. (Por exemplo, provas recentes sugerem fortemente que a depressão mental está associada a um desequilíbrio num dos vários químicos do cérebro.)
  2. De modo análogo, vemos a água na panela evaporar e sentimos o calor da chama, mas não vemos o calor causar a água ferver. Se pudéssemos ter experiência das causas, os cientistas não teriam de se dar ao trabalho de construir teorias acerca de ligações causais; limitar-se-iam a vê-las, a ouvi-las ou a saboreá-las.
  3. Ou então têm de dizer que podemos escolher livremente os nossos próprios motivos, desejos e objetivos, uma opção que discutiremos em breve.
  • autor: Howard Kahane
  • tradução:Álvaro Nunes
  • fonte: Filosofia e Educação
  • original: Howard Kahane, Thinking About Basic Beliefs, Wadsworth, Belmont, 1983, pp. 43-64.