Ciência e Superstição

Patrick J. Hurley

A ideia de que a mente humana no seu esforço para compreender a realidade é capaz de operar a níveis diferentes é tão velha quanto a própria filosofia. Há vinte e quatro séculos Platão traçou uma distinção entre aquilo a que chamou opinião e conhecimento. Ele disse que a opinião é uma espécie de consciência incerta, confinada ao particular, inexata e sujeita à mudança, ao passo que o conhecimento é certo, universal, exato e eternamente verdadeiro. Cada ser humano começa por operar na vida ao nível da opinião e só com grande luta e esforço pode escapar-lhe e elevar-se ao nível do conhecimento. Chama-se a esta luta educação e abre os olhos da mente para realidades que do ponto de vista da opinião não podem sequer ser imaginadas.

A distinção atual entre ciência e superstição é a equivalente moderna da distinção de Platão entre ciência e opinião. Todos reconhecem que a ciência revelou verdades extraordinárias acerca do mundo natural. Pôs homens na Lua, erradicou doenças mortais e conduziu-nos à era dos computadores. Quase todos reconhecem também que a superstição pouco mais é do que tolice. Leva as pessoas a recearem passar por debaixo de escadas, partir espelhos e derramar sal. Quase toda a gente concorda que se uma afirmação tem fundamento científico, provavelmente vale a pena acreditar nela, ao passo que se tem por fundamento a superstição, provavelmente não vale a pena. Onde as pessoas não concordam, porém, é no que constitui ciência e no que constitui superstição. Aquilo a que uma pessoa chama ciência, outra chama tolices supersticiosas.

Tanto a ciência como a superstição recorrem a hipóteses, pelo que os quatro critérios apresentados na Secção 9.5 para avaliar hipóteses são relevantes para a distinção entre ciência e superstição. Estes critérios são a adequação, a coerência interna, a consistência externa e a fecundidade. Mas a distinção entre ciência e superstição também envolve elementos psicológicos e volitivos. Envolve fatores como de que forma os estados subjetivos do observador influenciam o modo como vê o mundo e de que forma as suas necessidades e desejos têm um papel na formação das suas crenças. Consequentemente, para explorarmos a distinção entre ciência e superstição, temos de introduzir critérios que incluam estes elementos psicológicos e volitivos. Os critérios que sugerimos são o apoio em provas, a objetividade e a integridade. A descrição que iremos fazer do apoio em provas inclui a adequação e a fecundidade e a descrição da integridade inclui a adequação, a coerência interna e a consistência externa.

A ciência e a superstição são, em larga medida, pólos opostos. Onde a atividade científica reconhece a importância do apoio em provas, a objetividade e a integridade, a superstição ignora-as. Consequentemente, estes critérios podem ser usados como uma espécie de régua para medir as diversas crenças que as pessoas têm acerca do mundo. Quanto mais essas crenças são apoiadas em provas, são objetivas e resultam de uma investigação que reflete integridade, mais se aproximam do ideal de ciência e mais justificadas estão. Inversamente, quanto mais as nossas crenças não partilham estas características, mais se aproximam do “ideal” de superstição e menos justificadas estão.

Chamamos, no entanto, a atenção para que dizer que uma crença está justificada não é dizer que é de certeza absoluta verdadeira. Como vimos na Secção 9.5, todas as crenças que têm origem na ciência são na melhor das hipóteses tentativas. Mas essas crenças são as melhores que por agora podemos ter. Do mesmo modo, dizer que uma crença não está justificada não é dizer que é absolutamente falsa. É muito possível que uma crença que se funda hoje na superstição possa amanhã fundar-se na ciência. Mas essa crença não merece aquiescência hoje. Pode-se encontrar uma analogia no lançamento dos dados. Nenhuma pessoa com juízo apostaria um para um em que um par de dados sairá “snake eyes” [1] no próximo lançamento, mesmo que perceba que amanhã se possa descobrir que os dados estavam viciados a favor deste resultado.

Apoio em provas

Na secção anterior deste capítulo vimos que as hipóteses em si mesmas são meras conjecturas e que antes que acreditemos nelas devem ter o apoio de provas. Esta regra aplica-se quer às hipóteses que sustentam a ciência quer às que sustentam a superstição. Esta regra é cumprida à risca na ciência, mas é frequentemente ignorada no reino da superstição. Por exemplo, no século XVI Copérnico formulou a hipótese de que o Sol é o centro do nosso sistema planetário e que a terra gira em torno do Sol — em oposição à hipótese ptolemaica dominante, que colocava a terra no centro. Nos anos que se seguiram, o telescópio foi inventado e foram feitas milhares de observações que confirmaram a hipótese copernicana e infirmaram a hipótese de Ptolomeu. Sem estas observações, a hipótese copernicana nunca teria sido adotada.

Por oposição, considerem a superstição segundo a qual permitir que um gato preto cruze o caminho de alguém trará má sorte. Nunca foram coligidas quaisquer provas que apoiem esta hipótese. Nunca foram levados a cabo quaisquer testes nem realizadas quaisquer experiências. É possível que numa ocasião ou noutra alguém permita que um gato preto cruze o seu caminho e depois perca dinheiro na bolsa ou seja ferido num acidente de carro, mas seria certamente irracional acreditar que permitir que um gato preto cruze o caminho de alguém cause a perca ou o acidente. Um tal raciocínio constitui um caso clássico de falácia do post hoc ergo propter hoc (falsa causa). Mas apesar da falta de provas, muitas pessoas acreditam na hipótese do gato preto.

Contudo, antes de investigarmos mais a necessidade de provas, temos de investigar primeiro o que é considerado como uma prova. Deve o testemunho de autoridades ser considerado como uma prova? E de autoridades antigas? A resposta é que as hipóteses científicas são acerca do mundo natural, pelo que apenas as observações do mundo natural são consideradas como provas. Cada experiência científica é uma questão que o experimentador pergunta sobre o mundo e o resultado dessa experiência é a resposta da natureza. O problema com o testemunho de autoridades é que não temos conhecimento certo de que a avaliação que a autoridade faz está correta. O mesmo é verdade da Bíblia. Não temos nenhuma forma de saber se o que a Bíblia diz sobre o mundo natural é verdade. Se alguém respondesse que a Bíblia é inspirada por Deus, a resposta óbvia seria: como é que sabemos? Temos alguma prova observacional a seu favor? Os apelos a autoridades e a Bíblia equivalem a fugir à responsabilidade de explicar.

Outro gênero de prova que é considerado duvidoso é a prova anedótica. Supõe que tens cancro e que um amigo te diz que se comeres alho, curas-te. Decides seguir este conselho e depois de comer um dente de alho todos os dias durante um ano, o cancro entra em remissão. O alho curou o cancro? A esta espécie de prova chama-se anedótica e é normalmente rejeitada pela ciência. O problema da prova anedótica é que é demasiado isolada para estabelecer qualquer ligação causal. Deste modo, a prova do alho ignora as milhares de pessoas com cancro que comeram alho e não se curaram; e ignora as milhares de pessoas em que se deu a remissão espontânea do cancro e não comeram qualquer alho. Além de que não é possível fazer o relógio andar para trás e tentar a experiência outra vez.

Uma das características fundamentais do processo de obtenção de provas científicas é que uma experiência possa ser repetida sob condições controladas. Isto significa que a experiência tem de poder ser repetida por cientistas diferentes em ocasiões e locais diferentes. A replicabilidade ajuda a assegurar que o resultado da experiência não resulta de algo peculiar a um determinado experimentador a operar num único local e numa única ocasião. Além de que as condições controladas são desenhadas para eliminar a influência de fatores estranhos. Talvez, no que se refere ao exemplo do alho, a cura fosse efetuada não pelo alho mas por outra coisa que comeste, por algum dos outros milhares de fatores que ocorreram durante este período ou por alguma combinação desses fatores.

As provas apresentadas para apoiar as hipóteses supersticiosas raramente podem ser repetidas e, quando podem, não apoiam a hipótese. Por exemplo, a crença em fantasmas é normalmente apoiada pelo que um ou mais indivíduos alegam ter visto numa única ocasião. Esta ocasião não pode ser repetida. Às vezes afirma-se que a crença em fenômenos psíquicos como a percepção extra-sensorial é suportada por experiências com cartas Zener: cartas impressas com cruzes, círculos, linhas onduladas, estrelas, e quadrados, cujas imagens um observador pode “transmitir” a um receptor com capacidades psíquicas. Mas quando estas experiências foram repetidas sob condições cuidadosamente controladas, o resultado foi sempre o que seria de esperar que ocorresse por mero acaso.

Outro defeito das hipóteses supersticiosas é serem frequentemente tão vagas que é praticamente impossível confirmá-las de forma inequívoca. Por exemplo, no caso da hipótese do gato preto, o que, realmente, se entende por má sorte? O que é interpretado hoje como má sorte pode revelar-se amanhã uma sorte incrível. Se uma pessoa perde 1 000€ hoje na bolsa, isso pode levá-la a ser mais cuidadosa e fazer com que não perca 10 000€ no futuro.

Por oposição, as hipóteses da ciência são frequentemente construídas em linguagem matemática ou, pelo menos, podem ser traduzidas para expressões matemáticas. Este fato propicia confirmações extremamente precisas e é em larga medida responsável pelo sucesso extraordinário de que a ciência tem gozado nos últimos 500 anos. Por exemplo, em 1802 o químico francês Joseph Louis Gay-Lussac formulou a hipótese de que se se subisse em 1 grau Celsius a temperatura de qualquer gás contido num recipiente fechado, a pressão do gás aumentaria 0.3663 por cento. A hipótese foi testada milhares de vezes por químicos e por estudantes em laboratórios de química e revelou-se sempre correta.

Relacionado de perto com o problema da vagueza está a amplitude da hipótese. Se a hipótese é concebida com uma amplitude e uma abrangência tais que até provas contraditórias servem para confirmá-la, então a hipótese não é de fato confirmada por nada. Supõe, por exemplo, que um profissional de cuidados de saúde inventava uma hipótese sobre dieta. É garantido que seguir esta dieta te vai fazer sentir bem, mas antes que isso ocorra pode fazer-te sentir muito mal ou como te costumas sentir. Após teres seguido a dieta durante seis meses dás a saber que te sentes como antes. O profissional responde que a tua experiência confirma a hipótese, porque é isso que a dieta supostamente faz. Por outro lado, supõe que após seis meses te sentes-te muito bem ou talvez muito mal. Novamente o profissional dirá que a tua experiência confirma a hipótese. As hipóteses deste tipo não são genuinamente científicas.

O filósofo Karl Popper descobriu em 1919 este mesmo problema a respeito das hipóteses. Em resposta, defendeu que qualquer hipótese genuinamente científica tem de ser forjada de forma suficientemente precisa para que proíba que certas coisas aconteçam. Por outras palavras, a hipótese tem de ser falsificável. Nos anos que se seguiram ao seu anúncio, muitos filósofos criticaram o critério de falsificabilidade de Popper porque, em rigor, as hipóteses raramente podem ser refutadas. Mas, como vimos na Secção 9.5, as hipóteses podem ser refutadas (ou tornadas menos plausíveis). Desse modo, podemos reter a inspiração fundamental de Popper exigindo que qualquer hipótese genuinamente científica seja refutável. Isto significa que a hipótese deve ser forjada de forma suficientemente precisa para que as provas possam pô-la em causa. A hipótese gravitacional de Newton, por exemplo, satisfaz este critério porque se fossem descobertos dois corpos grandes que não se atraíssem mutuamente isso tenderia a infirmar a hipótese. Mas a hipótese dietética que acabamos de mencionar não passa o critério de refutabilidade, porque nenhum resultado poderia alguma vez pô-la em causa.

Um problema intimamente associado com as hipóteses excessivamente amplas é o que surge a propósito daquilo a que se chama modificações ad hoc das hipóteses. Por exemplo, supõe que és um sociólogo e que estás a fazer uma investigação sobre o alcoolismo. Formulas a hipótese de que o alcoolismo é causado por fatores culturais que tornam atrativo o consumo de álcool. Contudo, quando reúnes provas para apoiar esta hipótese descobres que são relativamente poucas as pessoas vindas dessas culturas que são alcoólicas. Assim, modificas a hipótese para dizer que o alcoolismo é causado por fatores culturais mas apenas quando existe uma predisposição genética. Mas nessa altura descobres que muitos alcoólicos bebem para ajudar a suportar a dor da depressão e outros problemas psicológicos. Posto isto, modificas a hipótese mais uma vez para ter em conta este fato. Investigações posteriores mostram que os padrões de consumo dos pais têm influência, pelo que acrescentas outra modificação. Chama-se a estas mudanças modificações ad hoc (“para isto”) porque são introduzidas apenas para encobrir um problema ou anomalia que não foi identificado quando a hipótese foi inicialmente concebida.

O problema com as modificações ad hoc é que o seu propósito é escorar uma falha nas provas que apoiam a hipótese original. À medida que são acrescentadas mais modificações, a hipótese torna-se autossuportada; torna-se uma mera descrição do fenômeno que supostamente explica. Por exemplo, supõe que introduzimos uma certa hipótese h para explicar a ocorrência de um certo fenômeno x num grupo de entidades A, B, C, D, E. À medida que são acrescentadas modificações ad hoc, descobrimos que A tem x devido a algum atributo único de a, B tem x devido a b, e assim por diante. No fim, a nossa hipótese afirma que quem quer que tenha os atributos a, b, c, d, e exibe x. Mas o conjunto de atributos a, b, c, d, e é meramente uma descrição de A, B, C, D, E. Se tivéssemos de perguntar por que a entidade A tem x, a resposta seria que A tem x devido a a, onde a é meramente algo único que A tem. Aplicando esta análise à hipótese do alcoolismo, se perguntamos por que determinada pessoa (chamemos-lhe Silva) é alcoólico, a resposta é que Silva é alcoólico devido a ter determinado atributo s que o faz ser alcoólico. A explicação é vazia.

Outro problema com as modificações ad hoc é que resultam em hipóteses que são tão complicadas que se torna difícil aplicá-las. A ciência favoreceu sempre a simplicidade em detrimento da complexidade. Dadas duas hipóteses que explicam o mesmo fenômeno, a mais simples das duas é sempre a preferível. Em parte esta preferência é estética. A hipótese mais simples é mais “bonita” do que a mais complexa. Mas a preferência pela simplicidade também resulta da aplicação daquilo a que se chamou a “navalha de Occam”. Este é um princípio, introduzido pelo filósofo do século XII Guilherme de Occam, que sustenta que as entidades teóricas não devem ser multiplicadas sem necessidade. Por que contentar-se com uma teoria complicada quando uma mais simples faz o trabalho igualmente bem? Além disso, a mais simples é mais simples de aplicar. Voltando à questão do apoio em provas, uma das formas mais seguras de saber que as nossas hipóteses estão apoiadas em provas é que levam a predições que se revelam verdadeiras. Cada predição verdadeira representa um pilar que apoia a hipótese. Mas algumas predições são melhores do que outras, e as melhores são as que revelam formas de ver o mundo que nunca teriam sido sonhadas sem as hipóteses. Se a hipótese conduz a predições deste gênero, e se essas predições são confirmadas pelas provas, então a hipótese adquiriu um tipo muito especial de apoio. Uma tal hipótese revela verdades escondidas sobre a natureza que nunca teriam sido identificadas sem ela.

Um exemplo clássico de uma predição deste gênero resultou de uma hipótese que está na base da teoria da relatividade geral de Einstein. Uma das consequências preditas por esta hipótese é a de que a luz é afetada pela gravidade. Em particular, a hipótese predisse que um raio de luz vindo de uma estrela e passando pelo Sol deveria curvar-se na direção do Sol. Como consequência, a posição da estrela por relação a outras estrelas pareceria ser diferente da que era normalmente observada. É óbvio que testar uma tal hipótese em circunstâncias normais seria impossível, porque a luz do Sol é tão brilhante que bloqueia completamente a luz das estrelas. Mas poderia ser testada durante um eclipse solar. Uma oportunidade dessas surgiu em 29 de Maio de 1919 e os cientistas aproveitaram-na. A predição revelou-se verdadeira e, em consequência disso, a teoria de Einstein foi rapidamente adotada. Em poucos anos a teoria levou à descoberta da energia atômica.

As hipóteses que produzem predições arrojadas e desconhecidas são em larga medida responsáveis pelo progresso na ciência. E é precisamente este gênero de predições que, defende o filósofo Imre Lakatos, distingue a ciência da pseudociência. É óbvio que nem todas as hipóteses científicas levam a predições tão impressionantes quanto as de Einstein, mas na pior das hipóteses podem ser integralmente ligadas a hipóteses mais abrangentes, mais amplas, que levaram a tais predições. Por oposição, as hipóteses que estão na base da astrologia existem há vinte e sete séculos e não produziram uma única predição impressionante que tenha sido provada nem uma única visão inovadora do curso dos acontecimentos humanos. Não produziram qualquer grande plano para o futuro da civilização nem qualquer pista sobre descobertas futuras em física ou em medicina. Esta falta de progresso ao longo dos séculos é uma das razões que levaram o filósofo Paul Thagard a concluir que a astrologia é uma pseudociência.

Objetividade

As nossas crenças acerca do mundo são objetivas na medida em que não são afetadas por condições peculiares ao sujeito. Estas condições podem ser tanto motivacionais como observacionais. Por exemplo, uma crença que seja motivada pelas emoções do sujeito e cujo fim seja principalmente satisfazer essas emoções tende a ter falta de objetividade. Tem igualmente falta de objetividade uma crença que se funde em observações peculiares ao sujeito, como as alucinações visuais. Embora a objetividade seja um ideal que nunca pode ser completamente atingido, quase toda a gente concordaria que as crenças merecem mais confiança se o seu conteúdo não for distorcido pelo sujeito. O cientista luta constantemente para evitar tais distorções, mas a mente supersticiosa deleita-se com elas ou, em casos mais trágicos, sucumbe-lhes.

As superstições existem pelo menos em parte para satisfazer as necessidades emocionais do sujeito. As principais emoções que estão na origem das crenças supersticiosas são o medo e a ansiedade, e são com frequência reforçadas por uma predisposição para a fantasia e para a preguiça mental. Muito do medo e da ansiedade são provocados pelo fato de toda a gente morrer. A morte pode ser súbita, como num acidente numa autoestrada, numa queda de um telhado, numa avalanche, ou pode resultar de um cancro, de um ataque cardíaco ou de uma trombose. Para além da morte, toda a gente está sujeita a ferimentos e aos sofrimentos que os acompanham, e a maior parte das pessoas numa altura ou noutra sentem o sofrimento mental que acompanha a rejeição, a solidão e o fracasso.

As pessoas têm um domínio limitado sobre estes fatos da vida e, para aliviar a ansiedade que eles produzem, muitas recorrem aos encantamentos e aos amuletos, aos rosários de contas pendurados do espelho retrovisor ou do escapular, ou às medalhas exibidas em redor do pescoço. Se nenhuma outra coisa nos proteger dos terrores da vida, talvez estes objetos o façam. Afinal de contas, a ciência revelou-se incapaz de vencer a doença e a morte, e oferece ao crente apenas verdades temporárias que podem mudar amanhã. Para as pessoas que enfrentam um futuro incerto, o desânimo ou a solidão, pode parecer mais razoável ligar para a Psychic Friends Network e comprar um pouco de consolação imediata.

Um segundo elemento na condição humana que origina ansiedade é a liberdade e a responsabilidade que ela implica. A ideia de que tu, e apenas tu, és responsável pelo teu destino pode ser uma ideia muito assustadora. Muita gente assusta-se com a ideia e procura refúgio num líder ou guru. Elas entregam todo o seu poder de pensamento crítico a este líder e seguem cegamente as suas instruções em detalhe. Quando o líder lhes ordena uma qualquer forma de tolice, por muita idiota que seja, obedecem-lhe. Dizem-lhes que a crença ou prática que o líder ordena é essencial para a sua proteção. E quando o líder lhes ordena que enviem um cheque de cinquenta dólares para auxiliar no restauro da torre da televisão ou para completar a mansão na colina, obedecem-lhe. Recusar significa que terão de enfrentar a sua própria liberdade. Às vezes, seguir tais ordens pode conduzir à tragédia, como aconteceu no massacre de Jonestown em 1978 e nos suicídios de Heavens Gate em 1997.

Uma predisposição para formas de pensar mágicas e para a preguiça mental facilita imenso o voo para a superstição. Muitas pessoas, talvez mesmo a maior parte, ficam fascinadas com o misterioso, o secreto e o oculto, e algumas preferem acreditar numa explicação que parece mágica do que numa explicação cientificamente fundada. Os psicólogos Barry E. Singer e Victor A. Benassi realizaram uma série de experiências com os seus alunos nas quais tinham um mágico a fazer de conta que era um “médium” e realizaram demonstrações de façanhas psíquicas. Antes de as demonstrações começarem, disseram várias vezes aos estudantes com a mais clara das linguagens que o mágico estava apenas a fingir ser um médium, e que o que eles iriam testemunhar era realmente uma série de truques de ilusionista. No entanto, apesar destas advertências, a maior parte dos estudantes concluíram, experiência após experiência, que o mágico era de fato um médium. Além disso, muitos concluíram que o mágico era um agente de Satanás.

A predisposição para o mágico e o fantástico é enormemente reforçada pela mídia, em particular a televisão e os filmes. As mídias são servilmente subservientes para com os desejos de entretenimento das suas audiências, pelo que, dado o amplo fascínio com o mágico, as mídias lançam uma corrente constante de filmes, minisséries e “notícias” devotadas ao tema. Estes programas abordam tudo desde vampiros e espíritos desencarnados até conspirações irracionais e a intervenção de anjos. Esta atenção contínua para com o fantástico aumenta a aceitação pública de explicações supersticiosas sempre que explicações realísticas não estão prontamente disponíveis, ou até mesmo quando estão.

Uma predisposição para a preguiça mental também ajuda na formação das crenças supersticiosas. É, na verdade, extremamente difícil assegurar que as crenças de alguém estão apoiadas em provas e passam o teste da coerência interna. A lógica desleixada é tão fácil que não é de admirar que as pessoas lancem mão dela. A maior parte das falácias informais tratadas no Capítulo 3 pode ter origem no pensamento desleixado. Após a velha Sra. Chadwicke passar a mancar pela igreja, um raio atingiu o campanário e queimou completamente a igreja. É óbvio que a velha Sra. Chadwicke é uma bruxa (falsa causa). Além disso, a velha Sra. Chadwicke veste uma capa preta e um capuz preto. Não há dúvida de que todas as bruxas vestem dessa maneira (generalização apressada). E é óbvio que as bruxas existem, porque toda a gente na aldeia acredita nelas (apelo ao povo).

Outro gênero de pensamento desleixado é o que envolve um apelo ao que se pode chamar falsa coerência. Um agricultor descobre que uma das suas vacas foi morta. Ao mesmo tempo o agricultor lê uma história num tabloide local contando que há um culto satânico na vizinhança. O culto pratica os seus ritos no décimo terceiro dia de cada mês. A vaca foi morta a treze. Assim, o agricultor conclui que a vaca foi morta por adoradores de Satanás. Esta forma de pensar tem muitas pontas soltas, mas isso raramente impede as pessoas de tirar uma conclusão. Tornar-se um pensador crítico e esclarecido é um dos principais objetivos da educação, mas infelizmente tornar-se educado é tão difícil para os estudantes de hoje como o era para os do tempo de Platão.

Até agora centramos a nossa atenção nas emoções e nas predisposições do sujeito que conduzem às crenças supersticiosas. Voltamo-nos agora para algumas das muitas formas como a nossa observação do mundo pode ser distorcida. Estas distorções constituem avenidas pelas quais as condições peculiares ao sujeito entram no conteúdo da observação. Quando estas observações distorcidas se combinam com as emoções e as disposições referidas anteriormente, é provável que as crenças supersticiosas surjam. As observações distorcidas podem ocorrer na mesma pessoa que tem as emoções e as disposições ou podem ser transmitidas em segunda mão. Em qualquer dos casos, a combinação conduz à superstição.

Um fenômeno bem documentado que influencia a nossa observação dos nossos próprios estados corporais é o do chamado efeito placebo. Um placebo é qualquer gênero de “medicamento” ou procedimento que não fornece nenhum benefício medicinal ou terapêutico em si mesmo, mas que pode efetuar uma cura quando se diz ao paciente que tem esse benefício. Por exemplo, disse-se a pacientes com dores no joelho que uma operação os curaria e, após uma pequena incisão que, em si mesma, não tem qualquer efeito terapêutico, a dor desapareceu. Disse-se também a pacientes que sofriam de tensão nervosa ou de depressão que um pequeno comprimido colorido (que é apenas açúcar) os curaria e, após terem tomado o comprimido, a tensão ou depressão desapareceu. É óbvio que nestes casos não é apenas o placebo que efetua a cura, mas o placebo juntamente com a sugestão implantada na mente do paciente pelos seus médicos.

Outro efeito bem documentado que influência a nossa observação do mundo em nosso redor é a chamada pareidólia. Este é o efeito devido ao qual podemos olhar para as nuvens, para o fumo ou para os revestimentos texturizados das paredes e dos tetos e ver animais, faces, árvores e assim por diante. Projetamos as imagens visuais com que estamos familiarizados em estímulos sensoriais vagos e relativamente sem forma e “vemos” essas imagens como se estivessem realmente lá. A pareidólia é responsável por uma boa parte da superstição religiosa. Por exemplo, em Fevereiro de 1999, voluntários que trabalhavam na Igreja Episcopal do Bom Pastor em Wareham, no Massachusetts, viram a imagem de Jesus nos nódulos de madeira de uma porta que estavam a pintar. Concluíram que a imagem era uma aparição miraculosa de Jesus. Afinal de contas, observou um deles, Jesus era um carpinteiro. Centenas de incidentes como estes foram relatados nos órgãos de informação, mas nunca aconteceu que alguém que tivesse sido educado como Budista ou Hindu tivesse visto uma imagem de Jesus.

Relacionado de perto com a pareidólia está o conceito de conjunto perceptivo, em que “conjunto” se refere à nossa tendência para perceber acontecimentos e objetos da forma que a nossa experiência anterior nos levou a esperar. A ideia de conjunto perceptivo é um produto da psicologia Gestalt, segundo a qual observar é uma forma de resolução de problemas. Quando somos confrontados com um problema, como encontrar a solução para um enigma ou para um quebra-cabeças, entramos num estado de incubação mental em que as potenciais soluções são reviradas nas nossas cabeças. Este estado é seguido por um momento de inspiração (assumindo que somos capazes de resolver o quebra-cabeças) após o qual a solução parece óbvia. Quando examinamos o quebra-cabeças numa outra altura, a solução pula para a nossa mente. Essa solução é chamada uma Gestalt, que, em alemão, significa forma ou configuração. Analogamente, qualquer ato de percepção envolve resolver o quebra-cabeças de organizar os estímulos sensoriais em padrões com significado. Cada padrão é uma Gestalt perceptiva, ou conjunto e, uma vez esse conjunto formado, serve para guiar o processamento de percepções futuras. Em consequência, percepcionamos o que esperamos percepcionar.

triângulo gestalt

Consegues ver o triângulo branco?
O triângulo branco está de fato “ali”?
(Retirado de Kanizsa, 1979, 74.)

Em 1949 os psicólogos Jerome S. Bruner e Leo J. Postman realizaram uma experiência famosa na qual eram mostradas aos sujeitos réplicas de cartas de jogar vulgares — mas em que algumas das cartas foram alteradas invertendo a cor. Por exemplo, em alguns grupos de cartas, o três de copas era preto e o seis de espadas era vermelho. Em vinte e oito indivíduos, vinte e sete viram inicialmente as cartas alteradas como sendo normais. Um indivíduo identificou o três preto de copas como um três de espadas em quarenta e quatro apresentações sucessivas. Esta experiência mostra com clareza que percepcionamos o que esperamos percepcionar e, na verdade, este fato é-nos a todos familiar. Por exemplo, esperamos receber um telefonema e, enquanto tomamos ducha pensamos ouvir o telefone tocar, apenas para que alguém em outra divisão nos diga que o telefone não tocou. Ou, ao conduzir, podemos nos aproximar de um sinal octogonal vermelho no qual se lê ST_P (a nossa visão do sinal estando parcialmente bloqueada por um ramo de árvore entre o S e o P). No entanto, paramos o carro, porque percebemos que o sinal se lê STOP. Na verdade, o que o nosso sentido da visão recebeu foram três consoantes (S, T, P), sem sentido até terem sido processadas por meio da percepção.

Um outro fator que também influência o nosso sentido da visão é o efeito autocinético. De acordo com este efeito, uma pequena luz fixa rodeada por escuridão será com frequência vista como estando-se a mover. Podemos provar para nós próprios a existência deste efeito olhando para uma estrela brilhante numa noite escura ou observando um pequeno ponto de luz fixo num quarto às escuras. O objeto iluminado parecerá com frequência mover-se. Os psicólogos conjeturam que o efeito autocinético é o resultado de pequenos movimentos involuntários do globo ocular do observador e mostraram que o efeito é aumentado pelos relatos de outros observadores. Se alguém que esteja próximo disser que acabou de ver o objeto mover-se, com frequência outras pessoas confirmarão este relato. Pensa-se que o efeito autocinético seja responsável por muitas alegações de avistamentos de OVNIS.

Os vários tipos de alucinações também podem distorcer o conteúdo da percepção. Dois gêneros de alucinações que afetam muitas pessoas nos momentos de sonolência entre dormir e vigília são as alucinações hipnagógicas e hipnopompicas (Hines, 1988, 61-62). As primeiras ocorrem imediatamente antes de adormecermos, quando as ondas cerebrais alfa mudam para ondas teta e as últimas ocorrem precisamente antes de acordar. Durante estes momentos o sujeito pode ver imagens extremamente vívidas e emocionalmente fortes, que parecem ser muito reais. Pensa-se que estas alucinações são responsáveis pelos fantasmas e outras aparições que as pessoas às vezes veem nos quartos.

As alucinações coletivas são outro gênero de distorção perceptiva que pode ocorrer com grandes multidões. Antes que as alucinações possam acontecer, a multidão tem de ser levada a um estado emocional muito elevado, que pode ser causado pela expectativa de verem algo importante ou miraculoso. Pode ter acontecido uma ocorrência deste tipo em 13 de Outubro de 1917, quando cerca de 70.000 pessoas reunidas na aldeia de Fátima, em Portugal, esperavam ver um sinal miraculoso dos céus. Ao meio-dia, uma das crianças que alegadamente estava em contato com a Virgem Maria gritou para as pessoas olharem para o Sol. Elas assim fizeram e, em consequência disso, viram o Sol rodopiar por entre as nuvens e precipitar-se para a Terra. Claro que se o Sol se tivesse de fato movido, teria feito disparar os sismógrafos em todo o mundo. Além disso, muitas pessoas presentes não viram nada de invulgar, mas os seus relatos não foram tidos em conta. Contudo, mesmo hoje em dia muitos fiéis consideram esta observação do rodopiar do Sol como uma prova de milagre.

Finalmente, a operação da memória pode distorcer a forma como recordamos as nossas observações. A memória humana não é como o processo pelo qual um computador lê a informação do seu disco, com exatidão total. Em vez disso, é um processo criativo passível de muitas influências. Quando as imagens são chamadas da memória humana, são recuperadas em pedaços. O cérebro preenche depois as lacunas por um processo chamado confabulação. O cérebro, de forma natural e inconsciente, tenta produzir uma descrição coerente do que aconteceu, mas como as lacunas são exatamente preenchidas depende dos sentimentos da pessoa na altura da recordação, das sugestões de outras pessoas acerca do acontecimento recordado e dos nossos próprios relatos do que aconteceu. Dado que, para começar, a recordação é seletiva e que muitos detalhes são inevitavelmente deixados de fora, a imagem final recordada pode ir desde uma representação bastante precisa até uma completa invenção.

Estes efeitos representam apenas algumas das formas como a observação e a memória humanas podem ser influenciadas pelo estado subjetivo do observador. Para evitar estas distorções a investigação científica limita a observação humana a circunstâncias em que é menos provável que as aberrações conhecidas da percepção e da recordação ocorram. Nas ciências naturais, a maior parte ou mesmo todas as observações são feitas através de instrumentos, como voltímetros, contadores de Geiger e telescópios, cujo comportamento é bem conhecido e altamente previsível. Os resultados são então gravados em suportes relativamente permanentes, como papel fotográfico, fitas magnéticas ou discos de computador. Nas ciências sociais, técnicas como a amostragem duplamente cega [2] e a análise estatística de dados isolam o observador do resultado da experiência. Estes processos fornecem a garantia importante de que os dados não são distorcidos pelo estado subjetivo do experimentador.

Integridade

Os nossos esforços para compreender o mundo no qual vivemos são íntegros na medida em que envolvem honestidade na reunião e apresentação de provas e pensamento lógico e honesto na resposta aos problemas teóricos que surgem ao longo do caminho. A maior parte da superstição envolve elementos de desonestidade na reunião de provas ou uma falha lógica na resposta a problemas teóricos. Estas falhas lógicas podem ser encontradas na falta de resposta da comunidade de praticantes aos problemas que envolvem a adequação, a coerência e a consistência externa das hipóteses relativas às suas práticas.

A falta de integridade mais grave ocorre quando as provas são forjadas. Um dos exemplos mais impressionantes de provas forjadas é o caso do entertainer israelita Uri Geller. A partir dos princípios da década de 70, Geller apresentou-se em numerosos encontros em todo o mundo como um médium que podia realizar proezas maravilhosas, como dobrar colheres, chaves, pregos e outros objetos de metal por intermédio do simples poder da sua mente. Estes objetos pareciam dobrar-se quando ele meramente os acariciava com o seu dedo ou mesmo sem que sequer lhes tocasse. Os cientistas foram chamados para testemunhar estas proezas e muitos regressaram convencidos da sua autenticidade. Mas, na realidade, Geller era apenas um hábil charlatão que enganava as suas audiências fazendo-as pensar que tinha poderes psíquicos. A fraude de Geller foi em larga medida revelada pelo mágico James Randi.

Depois de ver gravações das atuações de Geller, Randi descobriu como Geller fazia os seus truques e tornou-se num instante também capaz de os fazer. Às vezes Geller preparava uma colher ou uma chave previamente, dobrando-a várias vezes até estar quase a partir-se. Mais tarde, tocando-lhe apenas ao de leve, podia fazê-la dobrar-se. Noutras ocasiões, Geller, ou os seus cúmplices, usavam manobras de prestidigitação para substituir os objetos direitos por objetos dobrados. Num outro truque ainda, Geller afirmava ser capaz de desviar uma agulha de uma bússola meramente concentrando a sua atenção nela. No momento em que ele agitava as suas mãos sobre a bússola, a agulha girava — e as suas mãos tinham sido exaustivamente examinadas antes em busca de imãs escondidos. Mas Geller tinha escondido um poderoso imã na boca e, à medida que se inclinava sobre a bússola, a agulha girava em harmonia com a rotação da sua cabeça.

Donald Singleton, jornalista do New York Daily News, estava familiarizado com a alegada capacidade psíquica de Uri Geller para dobrar colheres e chaves e identificar desenhos feitos à mão que tinham sido fechados dentro de dois envelopes, um dentro do outro. Ele suspeitava de que este último truque era realizado pondo os envelopes contra uma luz forte enquanto se distraía a atenção do indivíduo. Antes de escrever um artigo sobre Geller, Singleton fez o seguinte teste:

Fui a um serralheiro e obtive uma duplicata da chave mais forte e grossa do meu porta-chaves. Tentei com toda a minha força e não pude dobrá-la, mesmo pressionando-a contra o canto de uma secretária de aço. Depois fiz um desenho simples (de um olho), envolvi-o em folha de alumínio e pu-lo em dois envelopes.

Visitei Geller na tarde seguinte.

Durante mais de uma hora, ele tentou, comigo tendo sempre o envelope debaixo de olho, perceber o desenho. E falhou.

Depois ele fez um esforço para dobrar a chave, uma vez mais comigo tendo sempre a chave debaixo de olho. Uma vez mais, nada aconteceu. Uri disse que estava muito desapontado e que aquele tinha sido somente um dia muito mau para ele (Citado in Randi, 1982, 29).

Para outro exemplo de provas forjadas, olhemos para aquelas pessoas que caminham no fogo. Os praticantes desta arte alegam que os seus seminários de autoajuda podem alterar a química do corpo de uma pessoa de modo a permitir-lhe andar descalço sobre uma camada de carvão incandescente sem se queimar. Um dos principais gurus deste ramo é Tony Robbins do Robbins Research Institute. Robbins usa aquilo a que chama “programação neurolinguística” para curar todo o gênero de afecções físicas e psíquicas, desde medos irracionais e impotência até dependência da droga e tumores. Como prova da eficácia desta técnica, ele convida aqueles que fizeram o seu seminário a caminhar no fogo. Só por acreditarem, diz-lhes ele, não queimarão os pés e sobreviverão à experiência ilesos.

A verdade é que qualquer pessoa, quer tenha ou não frequentado o seminário e seja o que for aquilo em que acredite, pode, em condições controladas, caminhar pelas brasas e escapar ileso. O físico Bernard J. Leikind provou-o, pelo menos para sua satisfação, quando apareceu num seminário de Robbins no Outono de 1984 (Frazier, 1991,182-193). Embora ele não tenha frequentado as sessões e tenha declinado pensar pensamentos frios [3] conforme as instruções dos organizadores, verificou que podia caminhar no fogo sem sequer ficar queimado. Ele explicou o seu sucesso chamando a atenção para certas leis básicas da física. Apesar da sua alta temperatura, o carvão de madeira contém uma quantidade muito baixa de calor e conduz muito mal o calor. Além disso, o pé está em contato com as brasas apenas por um segundo de cada vez, permitindo assim que apenas uma pequena quantidade de energia térmica flua para o pé. Como consequência, o pé daqueles que caminham no fogo raramente fica ferido (ou, pelo menos, seriamente ferido).

Para um terceiro exemplo de provas forjadas basta que olhemos para os milhares de cartomantes, leitores de sinas, e mentalistas que usam a arte da “leitura fria” para adivinhar todo o gênero de verdades espantosas acerca das vidas dos seus clientes. A maior parte das pessoas que contratam os serviços destes “leitores” fazem-no porque têm problemas de amor, de saúde ou de finanças. O leitor sabe isto e frequentemente começa a leitura com um falatório lisonjeador que é talhado para servir a praticamente a toda a gente. Este recital tem por objetivo pôr o cliente à vontade e levá-lo a abrir-se com o leitor. Ao mesmo tempo, o leitor capta todos os pormenores: idade do cliente, sexo, peso, atitude, padrões de discurso, vocabulário, contato visual, constituição, mãos, vestuário (estilo, época, limpeza, e custo), penteado, joias e tudo o que o cliente possa trazer ou carregar (livros, chaves do carro, etc.). Tudo isto fornece pistas sobre a personalidade, a inteligência, a profissão, o estatuto socioeconômico, a religião, a educação e a filiação política do cliente.

O leitor usa esta informação para formular hipóteses que depois apresenta ao cliente na forma de sutis questões. Dependendo das reações do cliente — expressão facial, movimento dos olhos, dilatação da pupila —, o leitor pode com frequência dizer se está no caminho certo. Quando o leitor encontra algo próximo da verdade, o cliente geralmente reage com admiração e revela mais detalhes sobre si. Depois de deixar passar um intervalo de tempo aceitável, o leitor reformula esta informação numa sequência diferente e comunica-a ao cliente, para cada vez maior espanto deste. O cliente fornece então mais detalhes, que o leitor combina com tudo o resto que soube. O uso de uma bola de cristal, de capa de cetim ou de cartas de tarot conjuntamente com um sentimento refinado de confiança transmite ao cliente a ideia de que o leitor pode efetivamente ler a sua mente.

O psicólogo Ray Hyman, que, enquanto adolescente, leu a sina para complementar os seus rendimentos, estudou a arte da leitura fria com alguma profundidade. Ele relata uma história acerca de uma jovem que visitou um leitor de mentes durante os anos 30:

Ela usava joias caras, uma aliança e um vestido preto de material barato. O leitor atento reparou em que ela usava sapatos que são normalmente publicitados para pessoas com problemas nos pés. Ele assumiu que esta cliente vinha vê-lo, como fazia a maior parte das clientes do sexo feminino, por causa de um problema de amor ou de finanças. O vestido preto e a aliança levaram-no a pensar que o marido dela tinha morrido recentemente. As joias caras sugeriam que, durante o casamento, ela não tinha problemas financeiros, mas o vestido barato indicava que a morte do marido a tinha deixado sem dinheiro. Os sapatos ortopédicos significavam que ela tinha agora de estar em pé mais tempo do que antes, implicando que ela trabalhava para se sustentar desde a morte do marido.

A sagacidade do leitor levou-o à seguinte conclusão — que se revelou correta: a senhora conheceu um homem que a pediu em casamento. Ela queria casar com o homem para deixar de ter dificuldades econômicas, mas sentia-se culpada por casar-se pouco tempo depois da morte do marido. O leitor disse-lhe o que ela queria ouvir — que não havia qualquer problema em casar quanto antes (Frazier, 1981, 85-86).

Se as técnicas enganadoras do mágico que finge ser médium, do programador neurolinguístico e do leitor frio são aceitas acriticamente, parecem constituir provas que suportam realmente as hipóteses na base destas atividades. Mas, falsificar as provas não é a única forma pela qual os praticantes da superstição carecem de integridade. A outra forma diz respeito à reação da comunidade de praticantes a problemas que surgem ligados à adequação, à coerência e à consistência externa dessas hipóteses.

Problemas destes surgem também ligados às hipóteses científicas. Quando surgem em ciência, a comunidade de cientistas muda para o que o filósofo Thomas Kuhn chama um modo de solução de quebra-cabeças, e os cientistas trabalham neles com grande persistência até que os problemas sejam resolvidos. Esta atividade de solução de quebra-cabeças conquista a atenção da maior parte dos cientistas durante a maior parte das suas carreiras e constitui o que Kuhn chama “ciência normal”. Além disso, é precisamente o fato de a ciência normal consistir na solução de quebra-cabeças, defende Kuhn, que a distingue da pseudociência.

Por exemplo, após a hipótese copernicana ter sido introduzida, descobriu-se um problema a respeito de aquilo a que se chama a paralaxe estelar. Se, como sustenta a hipótese, a Terra gira em torno do Sol, então, no decurso da sua órbita, as estrelas longínquas deveriam parecer mudar de posição por relação às estrelas próximas. Podes observar um fenômeno semelhante à medida que mudas de posição num quarto. A lâmpada distante, que originalmente aparecia à esquerda da cadeira que está em primeiro plano, aparece agora à direita. No caso das estrelas, no entanto, nenhuma paralaxe podia ser observada. A explicação dada na altura foi que as estrelas estavam demasiado longe para que alguma paralaxe pudesse ser detectada. Contudo, a paralaxe estelar constituía um problema de adequação, que a comunidade de astrônomos via como um quebra-cabeças e trabalhou nele durante 300 anos. Finalmente, foram construídos telescópios mais poderosos que detectaram efetivamente uma mudança na posição das estrelas à medida que a Terra orbitava em torno do Sol.

Por oposição, quando uma predição astrológica não se verifica, a comunidade de astrólogos nunca se lança ao trabalho para compreender o que falhou. Os astrólogos nunca voltam a verificar o local e a data de nascimento do cliente ou a posição exata dos planetas na altura do seu nascimento. Lançam-se pura e simplesmente para diante e fazem mais predições. Analogamente, quando as dobras da cabeça de uma pessoa não indicam características essenciais da personalidade da pessoa ou quando as linhas na palma da sua mão não revelam traços da sua vida, a comunidade de frenólogos e a comunidade de leitores da sina nunca tentam explicar os fracassos. Ignoram-nos e avançam para o grupo seguinte de clientes. Uma tal resposta revela uma falta de integridade da parte destes praticantes para com as suas respectivas hipóteses. Há algo obviamente errado com as hipóteses ou com as medições, mas ninguém se preocupa o suficiente para fazer o que quer que seja em relação a isso.

Uma resposta semelhante ocorre em relação a problemas de coerência. A maior parte das superstições envolve incoerências sérias, muitas delas com origem na falta de ligações causais conhecidas. Por exemplo, se a astrologia alega que os planetas influenciam as nossas vidas, então tem de existir alguma conexão causal entre os planetas e os indivíduos humanos. Mas o que pode ser esta conexão? A gravidade? Se sim, então os astrólogos têm de mostrar como flutuações gravitacionais muitíssimo pequenas podem afetar a vida das pessoas. Por outro lado, se é uma outra causa, os astrólogos têm de especificá-la. Que gênero de leis a governam? É uma lei da razão inversa do quadrado da distância, como a lei da gravidade, ou algum outro gênero de lei? Analogamente, se as linhas da palma da mão de uma pessoa indicam algo acerca da vida da pessoa, então que forma de causalidade opera aqui? As linhas influenciam a vida ou é ao contrário? E a que leis obedece esta forma de causalidade?

Qualquer ausência de conexão causal é um defeito de coerência, porque indica a falta de uma conexão entre as ideias que constituem uma hipótese. Contudo, uma tal falta de coerência não tem de ser fatal para a hipótese. Desde o tempo de Hipócrates que os médicos sabiam que as folhas de salgueiro, que contêm o ingrediente essencial da aspirina, tinha o poder de aliviar a dor, mas até recentemente não conseguiram compreender a conexão causal. Mas o que distingue a comunidade biomédica da comunidade de astrólogos são as reações de uma e de outra a problemas desse tipo. Os membros da comunidade biomédica reconheceram o problema da aspirina como um quebra-cabeças e trabalharam nele até que encontraram a solução, mas os membros da comunidade astrológica não estão interessados em identificar o mecanismo causal pelo qual os planetas influenciam as vidas humanas. De modo idêntico, os membros da comunidade de leitores da sina e os membros da comunidade de frenológos não se preocupam com identificar as conexões causais essenciais decorrentes das suas respectivas hipóteses.

As hipóteses inconsistentes com as teorias ou as leis estabelecidas constituem um problema ainda mais sério. As alegações dos promotores do movimento de Meditação Transcendental são um bom exemplo. A prática da MT foi popularizada nos anos 60 pelo Maharishi Mahesh Yogi e, desde então, atraiu milhares de aderentes. Consiste na repetição silenciosa de um mantra, que induz um estado mental semelhante à auto-hipnose. Para muitos dos que a experimentaram, os benefícios são o relaxamento mental e físico que leva a um sentimento de rejuvenescimento. Mas com instrução suplementar em MT (a um elevado custo para o estudante), podem ser induzidos transes maiores e mais profundos que, o Maharishi alega, permitem ao meditador levitar — pairar no ar sem qualquer suporte físico. Ele alega que milhares de discípulos aprenderam a fazê-lo e divulgou fotografias que pretendem confirmar esta afirmação. Mas, claro, se a levitação ocorre efetivamente, constitui uma violação ou uma suspensão da lei da gravidade.

A inconsistência da hipótese de Maharishi com uma teoria tão bem confirmada quanto a lei da gravitação constitui provavelmente razão suficiente para colocá-la na categoria de superstição. Mas a reação da comunidade de praticantes a esta inconsistência deixa pouca margem para dúvidas. Em 1971 o Maharishi comprou os terrenos e os edifícios do que era anteriormente o Colégio Parsons em Fairfield, no Iowa, e converteu o local na Maharishi International University. A Universidade tornou-se então a sede do International Center for Scientific Research, que, poderíamos pensar, seria o fórum perfeito para investigar a levitação. Dada a disponibilidade de grandes quantidades de alegados levitadores, os “cientistas” da casa poderiam conduzir estudos detalhados sobre este fenômeno. As suas descobertas poderiam fornecer a base para viagens espaciais interplanetárias, já para não falar do que poderiam fazer por aviões seguros. Contudo, desde o princípio, o International Center não conduziu a menor investigação em levitação. Não se realizaram quaisquer experiências e não foram escritos quaisquer ensaios acadêmicos. Esta resposta é inconcebível para qualquer bona fide centro de pesquisa científica.

Sumário

Distinguir ciência da superstição não é preocupação fútil de filósofos de poltrona, como alguns sugeriram, mas uma questão vital para o futuro da civilização. Na Rússia Estalinista os cientistas responsáveis eram enviados para os gulag devido a recusarem submeter-se às ideias do Estado acerca do que era científico. E na América, travaram-se batalhas judiciais sobre o que é considerado ciência para a reforma curricular das escolas públicas. Além disso, a tentativa de distinguir ciência de superstição tem raízes antigas na história da filosofia. Pode ser vista como o equivalente moderno da mesma questão colocada por Platão há muito tempo; desde então muitos filósofos abordaram a questão da sua própria perspectiva.

Nas páginas anteriores delineamos alguns traços que são característicos da investigação científica e alguns traços opostos que são característicos da superstição. O propósito desta exposição não foi fornecer as condições necessárias e suficientes para traçar uma linha de demarcação absoluta entre ciência e superstição. Em vez disso, o propósito, mais modesto, foi o de apresentar um grupo de semelhanças familiares que um investigador honesto pode usar para emitir o juízo de que é mais provável que um conjunto de crenças seja científico ou mais provável que seja supersticioso.

Termos-chave introduzidos nesta seção
Modificações ad hoc Navalha de Occam
Provas anedóticas Pareidólia
Efeito autocinético Conjunto perceptivo
Alucinação coletiva Efeito placebo
Confabulação Replicabilidade
Disconfirmability Progresso científico
Alucinação hipnagógica Predições impressionantes
Alucinação hipnopompica Hipóteses vagas

Na medida em que um conjunto de crenças se apoia em hipóteses que são coerentes, precisas, estritamente definidas, suportadas por evidências genuínas e produzem novas ideias, pode ser considerado cientificamente fundado. Este juízo é reforçado pela resposta conscienciosa da comunidade científica aos problemas que surgem a respeito da adequação, coerência e consistência externa dessas hipóteses. Mas, na medida em que um conjunto de crenças se apoia em hipóteses que são incoerentes, inconsistentes com teorias bem estabelecidas, vagas, excessivamente amplas, motivadas por necessidades emocionais, suportadas por provas que não são de confiança e que não levam a novas ideias, então essas crenças tendem a ser supersticiosas. Tal juízo é reforçado por uma reação de indiferença inconsciente por parte da comunidade dos praticantes a problemas que surgem em relação à adequação, à coerência e à consistência externa dessas hipóteses.

Leituras selecionadas

Best, John B. Cognitive Psychology. St. Paul: West Publishing Company, 1986.

Bruner, Jerome S., and Leo J. Postman. “On the Perception of Incongruity: A Paradigm.” In Beyond the Information Given, by Jerome S. Bruner. New York: W. W. Norton and Company, 1973.

Feyerabend, Paul. Against Method. London: New Left Books, 1975.

Frazier, Kendrick (ed.). Paranormal Borderlines of Science. Buffalo, New York: Prometheus Books, 1981.

Frazier, Kendrick (ed.). The Hundredth Monkey, and Other Paradigms of the Paranormal. Buffalo, New York: Prometheus Books, 1991.

Gardner, Martin. Fads and Fallacies in the Name of Science. New York: Dover Publications, 1957.

Hines, Terence. Pseudoscience and the Paranormal. Amherst, New York: Prometheus Books, 1988.

Kaniza, Gaetano. Organization in Vision. New York: Praeger Publishers, 1979.

Kitcher, Philip. Abusing Science: The Case against Creationism. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1982.

Kuhn, Thomas S. “Logic of Discovery or Psychology of Research.” In Criticism and the Growth of Knowledge, ed. by Imre Lakatos and Alan Musgrave. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, 4—10.

Kuhn, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions, 2nd ed. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

Lakatos, Imre. Philosophical Papers, Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.

Popper, Karl. Conjectures and Refutations. London: Routledge and Kegan Paul, 1963.

Radner, Daisie, and Michael Radner. Science and Unreason. Belmont, California: Wadsworth Publishing Company, 1982.

Randi, James. Flim Flam. Buffalo, New York: Prometheus Books, 1982.

______. The Truth About Uri Geller. Buffalo, New York: Prometheus Books, 1982.

Schick, Theodore, and Lewis Vaughn. How to Think About Weird Things. Mountain View, California: Mayfield, 1995.

Singer, Bary, and Victor A. Benassi. “Fooling Some of the People All of the Time.” In The Skeptical Inquirer, Winter, 1980-81, 17-24.

Thagard, Paul. “Why Astrology Is a Pseudoscience.” In Preceedings of the Philosophy of Science Association, Vol. 1, pp. 223-234.

Notas

[1] Sai o um em cada um dos dados do par. (N. do T.)

[2] Trata-se de uma técnica de teste de um produto em que o investigador, ao analisar uma amostra de pessoas, não sabe se essas foram as pessoas que tomaram, por exemplo, o comprimido cujos efeitos se pretende determinar ou se elas pertencem ao chamado grupo de controle, que tomou apenas um comprimido de farinha; e as pessoas também não sabem se tomaram o comprimido que está a ser testado ou se tomaram apenas farinha. (N. do T.)

[3] Uma vez que o objetivo é andar sobre as brasas, os pensamentos frios teriam o efeito de arrefecer as pessoas permitir-lhes fazer o que pretendem. (N. do T.)

  • autor: Patrick J. Hurley
  • tradução: Álvaro Nunes
  • fonte: Filosofia e Educação
  • original: A Concise Introduction to Logic, Wadsworth, Belmont, 2000, pp. 588-606