Sobre a filosofia universitária

Arthur Schopenhauer

Os fins estatais da filosofia universitária foram, porém, os que propiciaram à Hegelharia um favor ministerial tão impar. Pois, para ela, o Estado era o “organismo ético absolutamente perfeito”, e ela fazia com que todo o fim da existência humana se absorvesse no Estado. Poderia haver uma melhor orientação para os futuros referendários e, em breve, funcionários do Estado do que aquela segundo a qual toda a sua essência e ser, como corpo e alma, pertencera completamente ao Estado, como a abelha à colmeia, e do que aquela, segundo a qual eles não teriam de buscar outra coisa, nem neste nem num outro mundo, a não ser cooperar como engrenagens úteis para manter em funcionamento a grande máquina do Estado, este ultimus finis bonorum [1]? Portanto, o referendário e o homem eram um e o mesmo. Essa era uma autêntica apoteose do filisteísmo.

Mas a relação de tal filosofia universitária para com o Estado é diferente de sua relação para com a filosofia verdadeira e em si, que, sob esse aspecto, poderia ser diferenciada, enquanto filosofia pura, daquela enquanto filosofia aplicada. Ou seja, a filosofia pura não conhece nenhum outro fim a não ser a verdade; donde se poderia concluir que qualquer outro fim visado por seu intermédio é pernicioso para ela. Sua meta superior é a satisfação daquela nobre carência, por mim chamada de carência metafísica, que é sentida íntima e vivamente pela humanidade em todos os tempos, mas de modo mais forte quando, como agora, a reputação da doutrina da fé está cada vez mais baixa. Aliás, sendo adequada e pensada em relação à grande massa do gênero humano, a doutrina da fé só pode conter verdade alegórica, que ela, todavia, tem de fazer valer como verdadeira senso próprio [2]. Porém, com a difusão cada vez maior de toda espécie de conhecimentos históricos, físicos e mesmo filosóficos, aumenta o número de homens para quem a verdade alegórica não pode mais satisfazer, e esses exigem cada vez mais a verdade senso próprio. Mas o que pode fazer diante desta demanda uma marionete de cátedra “nervis alienis mobile” [3]? O que mais se alcançará com a outorgada filosofia de casaca ou com ocas construções de palavras, ou mesmo com as verdades mais comuns e compreensíveis, transformadas, pela verborragia, em inapreensíveis flores de retórica que nada dizem? Ou ainda, o que mais se alcançará com o absoluto “nonsense” hegeliano? E, por outro lado, se de fato chegasse do deserto o honesto João, vestido de peles e alimentado de gafanhotos, que, tendo ficado longe de toda confusão e se dedicado, com coração puro e total seriedade, à pesquisa da verdade e viesse agora oferecer seus frutos, que recepção deveria ele esperar daqueles negociantes de cátedras alugados para os fins do Estado, que têm de viver da filosofia com mulher e filhos, e cujo lema é primum vivere, deinde philosophari [4]? Por causa disso, esses negociantes apossaram-se do mercado e cuidaram para que ali nada valha a não ser aquilo que eles deixam valer, pois méritos só existem, se eles e sua mediocridade quiserem reconhecê-lo. É que eles levam pelo cabresto a atenção do público, de resto pequeno, que se ocupa com filosofia, pois esse mesmo público não empregará seu tempo, fadiga e esforço em coisas que não proporcionam deleite (como as produções poéticas), mas sim instrução, e instrução pecuniariamente infrutífera, sem antes ter plena garantia de que tais coisas serão largamente recompensadas. Ora, de acordo com a crença generalizada de que quem vive de alguma coisa é também o que dela entende, o público espera obter tal garantia dos especialistas que se portam confiantemente nas cátedras, compêndios, diários e jornais literários como verdadeiros mestres no assunto: são eles, pois, que degustam e escolhem aquilo que é mais digno de atenção e seu contrário. Oh, que será de ti, meu pobre João do Deserto, se, como é de se esperar, aquilo que tu trazes não estiver redigido. Segundo a convenção tácita dos senhores da filosofia lucrativa! Eles te verão como alguém que não compreendeu o espírito do jogo e ameaça arruinar todos eles, como seu adversário e inimigo comum. Mesmo se aquilo que trazes fosse a maior obra-prima do espírito humano, jamais poderia encontrar clemência diante dos olhos deles. Pois não estaria redigida ad normam conventionis [5], logo não a modo de poderem torná-la objeto de sua conferência de cátedra, para também dela viver. De fato, não ocorre a um professor de filosofia verificar se um novo sistema estreante é verdadeiro, mas apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas da religião do Estado, com as intenções do governo e com as opiniões dominantes da época. Depois disso, ele decide sobre seu destino. Mas, não obstante, se o novo sistema se impusesse, se despertasse a atenção do público como instrutivo e contendo conclusões — e fosse por este considerado digno de estudo —, nesta mesma medida ele acabaria com a atenção, com o crédito e, o que é ainda pior, com a vendagem da filosofia habilitada para a cátedra. Di meliora [6]! Por isso, tal coisa não pode ocorrer, e aí tem de ser um por todos e todos por um. O método e a tática para isso é logo posto à disposição por um instinto favorável que é concedido a todo ser para sua preservação. Ou seja, o refutar e contradizer uma filosofia que vai contra a norma convencionis é muitas vezes uma coisa arriscada, que não se deve ousar nem em último caso — sobretudo onde se farejam méritos e virtudes que seguramente não são alcançáveis pelo diploma de professor —, pois desse modo as obras indexadas alcançariam notoriedade e os curiosos acorreriam; mas então poderiam ser feitas comparações extremamente desagradáveis e o desenlace seria incerto. Unânimes, porém, como irmãos de mesmo caráter e capacidade, os professores universitários tratam tal produção inoportuna como “mon avenue”. Com o ar mais despreocupado, tomam o mais significativo como totalmente insignificante, o profundamente pensado e presente por séculos como não merecedor de discussão, para então sufocá-lo. Mordem perfidamente os lábios e se calam, se calam com aquele “silentium, quod livor indixerit”, já denunciado pelo velho Sêneca [7]; mas enquanto se calam sobre isso, gralham tanto mais alto em relação aos filhos abortivos do espírito e às monstruosidades de seus camaradas, com a consciência tranquila de que aquilo que ninguém sabe, é como se não existisse, e de que as coisas do mundo valem pela aparência e pelo nome, não por aquilo que são. Sendo esse o método mais seguro e menos perigoso contra méritos, gostaria de recomendá-lo a todos os cabeças ocas que buscam seu sustento em coisas para as quais é necessário o mais alto talento, sem, todavia, me responsabilizar por suas consequências posteriores.

No entanto, os deuses não devem ser invocados aqui de forma nenhuma como num “inauditum nefas” [8]: pois isso tudo é apenas uma cena do espetáculo que temos diante dos olhos em todas as épocas, em todas as artes e ciências, ou seja, a velha luta daqueles que vivem para a coisa com aqueles que dela vivem, ou daqueles que a são, com aqueles que a representam. Para os primeiros, ela é o fim para o qual sua vida é mero meio; para os outros, o meio, isto é, a penosa condição para a vida, o bem-estar, a fruição, a felicidade — as únicas coisas nas quais reside sua verdadeira seriedade: porque aqui está traçado, pela natureza, o limite de sua esfera de ação. Quem quiser ver isso exemplificado e conhecê-lo mais de perto, deve estudar a história da literatura e ler as biografias dos grandes mestres em todo engenho e arte. Ali verá que isso foi assim em todos os tempos e compreenderá que assim também há de permanecer. No passado, isso é reconhecido por todos; no presente, por quase ninguém. As páginas resplandecentes da história da literatura são, quase sem exceção, as trágicas. Em todas as disciplinas, elas nos mostram como, via de regra, o mérito teve de esperar até que os tolos tenham deixado de sê-lo, o banquete tenha chegado ao fim e todos tenham ido para a cama: é então que o mérito se levanta da noite profunda, como um fantasma, para finalmente, ainda que como sombra, tomar seu lugar de honra usurpado.

Entretanto, temos de lidar aqui apenas com a filosofia e seus representantes. Em primeiro lugar, constatamos que, desde sempre, muito poucos filósofos foram professores de filosofia e, proporcionalmente, ainda menos professores de filosofia, filósofos. Daí se poderia dizer que, do mesmo modo que os corpos idiolétricos não são condutores de eletricidade, também os filósofos não são professores de filosofia. De fato, esse cargo põe mais barreiras que qualquer outro para aquele que pensa por si próprio. Pois a cátedra de filosofia é de certo modo um confessionário público, onde se faz profissão de fé coram populo [9]. Logo, para a obtenção efetiva de conhecimentos mais fundamentais ou mesmo mais profundos, ou seja, para se tornar verdadeiramente sábio, quase nada é tão contrário quanto a coerção constante de parecer sábio, o alardear de pretensos conhecimentos diante de alunos ávidos em aprender e ter respostas prontas para todas as questões imaginárias. Mas o pior é que, a todo pensamento que de algum modo ainda ocorra a um homem em tal situação, logo lhe assalta a preocupação de saber se tal pensamento poderia convir às intenções dos superiores: isso paralisa tanto seu pensar, que os próprios pensamentos já não ousam ocorrer. A atmosfera de liberdade é indispensável à verdade. Sobre a exceptio, quae firmat regulam [10], ou seja, sobre o fato de Kant ter sido professor, já mencionei acima [11] o necessário, e acrescento apenas que também a filosofia de Kant ter-se-ia tornado mais elevada, decidida, pura e bela, se ele não tivesse se investido naquela cátedra. Embora ele, mui sabiamente, tivesse mantido o filósofo o mais longe possível do professor, já que não expunha sua própria doutrina na cátedra [12].

Fazendo, porém, uma retrospectiva dos pretensos filósofos que entraram em cena no meio século depois de encerrada a atividade de Kant, infelizmente não vejo nenhum a quem eu pudesse dizer em seu louvor que sua verdadeira e total seriedade tivesse sido a pesquisa da verdade: pelo contrário, observo todos eles (ainda que nem sempre tenham clara consciência) pensando em aparecer, em causar efeito, em se impor e até mistificar, esforçando-se para obter o aplauso dos superiores e, em seguida, dos estudantes — sempre com o objetivo último de deglutir o rendimento da coisa com mulher e filhos. Mas isso está bem de acordo com a natureza humana, que, como toda natureza animal, só conhece como fins imediatos o comer, o beber e o cuidado da cria, mas que recebeu ainda, como apanágio especial, a ambição de brilhar e aparecer. Ora, a primeira condição para produções verdadeiras e genuínas na filosofia, como na poesia e nas belas artes, é, pelo contrário, uma inclinação completamente anôlama que, contra a regra da natureza humana, põe, no lugar do esforço subjetivo para o bem próprio, um esforço plenamente objetivo, dirigido para uma produção que lhe é exterior, esforço que, por isso mesmo, é chamado apropriadamente de excêntrico e também às vezes escarnecido como quixotismo.

Sobre a Teologia

… o tema essencial é próprio da metafísica entre os filósofos de cátedra é a explicação da relação de Deus para com o mundo: as mais prolixas discussões sobre este tema enchem seus manuais. Acreditam-se empregados e pagos, sobretudo, para tornar claro este ponto, e aí é divertido ver o quão sisuda e eruditamente falam do absoluto ou de Deus, portando-se bem seriamente como se de fato soubessem algo do assunto: isso faz lembrar a seriedade com que as crianças brincam. Então surge, a cada feira de livros, uma nova metafísica que, consistindo num relatório minucioso sobre o bom Deus, explica como ele tem passado e como chegou a fazer, parir ou, sabe-se lá como, produzir o mundo — dando a impressão de que recebem notícias fresquinhas sobre ele de meio em meio ano. Alguns caem, porém, numa confusão de efeito altamente cômico. É que têm de ensinar um Deus inteiramente pessoal, tal como aparece no Velho Testamento — e eles sabem disso. Mas, por outro lado, há cerca de quarenta anos o panteísmo de Espinosa, segundo o qual a palavra Deus é sinônimo de mundo, tornou-se predominante e virou moda entre os eruditos e até entre os apenas cultos: ora, tampouco desejam rejeitar inteiramente esta doutrina, não se permitindo, porém, estender a mão até esta iguaria proibida. Então procuram ajudar-se com seu recurso habitual: frases obscuras, emaranhadas e confusas, palavrório oco, em que se viram e reviram penosamente; veem, então, alguns asseverar de um só fôlego que Deus é total, infinitamente e de longe, bem de longe, diferente do mundo, mas ao mesmo tempo a ele estreitamente ligado e unido, ou seja, que está enterrado nele até as orelhas: por isso, fazem-me lembrar todas as vezes do tecelão Botton do “Sonho de uma Noite de Verão”, que promete rugir como um apavorante leão, mas, ao mesmo tempo, trinar tão docemente, como só um rouxinol pode fazê-lo. Executando isso, caem na mais extraordinária confusão: é que afirmam não haver nenhum lugar para Deus fora do mundo; mas já que também não podem usá-lo no mundo, fazem o roque com ele de lá para cá e da cá para lá, até perder as duas posições [13].

Por outro lado, a “Crítica da Razão Pura”, com suas provas a priori da impossibilidade de todo conhecimento de Deus, é para eles uma tolice pela qual não se deixam enganar: sabem para que existem. A objeção de que não se pode pensar nada mais não-filosófico do que falar sem cessar sobre a existência de algo de que não se tem comprovadamente nenhum conhecimento, e de cuja essência não se tem nenhum conceito, é para eles uma réplica impertinente: sabem para que existem. Sou para eles, reconhecidamente, um dos que não merece sua deferência e atenção, e, pela desconsideração total das minhas obras, pretenderam evidenciar aquilo que eu sou (se bem que, com isso, evidenciaram justamente aquilo que eles são): como tudo que produzi durante trinta e cinco anos, também será falar para as paredes se eu lhes disser que Kant não estava brincando, que a filosofia não é nem jamais poderá ser, séria e efetivamente, teologia, pois é antes algo total e completamente diferente dela. Como todas as outras ciências são reconhecidamente corrompidas pela intromissão da teologia, assim também o é a filosofia, e, na verdade, em seu grau máximo, como testemunha a sua história. Que isso valha até mesmo para a moral, eu o demonstrei claramente na minha dissertação sobre o fundamento dela [14]. Por isso, esses senhores agiram sorrateiramente também em relação a esta obra, fiéis à sua tática de resistência passiva. Ora, a teologia recobre com seu véu todos os problemas da filosofia e torna, com isso, impossível não só sua solução, como até mesmo sua compreensão. Portanto, como se disse, a “Crítica da Razão Pura” foi rigorosamente a carta de demissão da até então ancilia theologiae [15], que, com isso, abandonou para sempre o serviço de sua severa senhora. Desde então, esta teve de contentar-se com um mercenário que veste ocasionalmente o libré abandonado pelo antigo serviçal, apenas para manter as aparências: como na Itália, onde tais substitutos são vistos sobretudo aos domingos, e são por isso chamados pelo nome de “domenichini”.

Mas na filosofia universitária as críticas e argumentos de kant tiveram de soçobrar. Pois ali isso significa: “Hoc volo, hoc iubeco, stat pro ratione voluntas” [16], a filosofia deve ser teologia, mesmo que a impossibilidade disso fosse provada por vinte Kantes; pois sabemos para que existimos: existimos in maioirem Dei gloriam [17]. Todo professor de filosofia é, tanto quanto Henrique 8°, um defensor fidei [18] e reconhece nisso sua primeira e principal vocação. Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possíveis da teologia — tão incisivamente que desde então ninguém mais pôde meter-se com elas —, o esforço filosófico, em quase cinquenta anos, tem consistido nas diversas tentativas de insinuar, sutil e astuciosamente, a teologia, e os escritos filosóficos nada mais são, na sua maioria, do que tentativas infrutíferas de reanimar um cadáver sem vida. Assim, por exemplo, os senhores da filosofia lucrativa descobriam no ser humano uma consciência de Deus, que até então tinha passado despercebida de todo mundo, e, encorajados pelo seu acordo recíproco e pela inocência do público mais próximo, jogavam com ela atrevida e temerariamente, até que por fim seduziram os honestos holandeses da universidade de Leiden, de tal forma que estes, tomando as tergiversações dos professores de filosofia por progressos da ciência, instituíram bem ingenuamente, no dia 16 de fevereiro de 1844, o concurso sobre a questão: “Quid statuendum de ensu Dei, qui dicitir menti humanae indito” etc. [19]. Em virtude de tal “consciência de Deus”, aquilo que todos os filósofos até Kant se esfaltaram para provar seria algo imediatamente consciente. Mas que simplórios deveriam ter sido todos aqueles filósofos de outrora, que se esforçaram durante toda a sua vida para aduzir provas a uma coisa da qual já somos conscientes, isto é, a conhecemos mais imediatamente do que duas vezes dois quatro, para o que ainda se exige reflexão. Querer provar tal coisa seria o mesmo que querer provar que os olhos veêm, os ouvidos ouvem e o nariz, cheira. Mas então que rebanho irracional não seriam os budistas, seguidores da principal religião da terra segundo o número de seus adeptos? Seu zelo religioso é tão grande que, no Tibete, quase um sexto dos homens pertence à casta sacerdotal, passando a viver em celibato, e sua doutrina da fé, embora suporte e apoie uma moral altamente pura, elevada, caritativa e rigorosamente ascética (que não se esqueceu dos animais, como a moral cristã), não só é decididamente ateísta, mas até recusa expressamente o teísmo. A personalidade é um fenômeno que, aliás, só nos é conhecido a partir de nossa natureza animal e, por isso, dela separada, não é mais claramente pensável: fazer de tal fenômeno origem e princípio do mundo é um enunciado que não entra imediatamente na cabeça de todos, e menos ainda o fato de que ele já estaria na cabeça de todos e já viveria na nossa natureza animal. Em contrapartida, um Deus impessoal é uma mera peta de professores de filosofia, uma contradictio in adiecto, uma palavra vazia para satisfazer os que não pensam ou para tranquilizar os vigilantes.

De fato, os escritos dos nossos filósofos universitários respiram o mais vivo zelo pela teologia; e, ao contrário, o menor pela verdade. Pois, sem recato diante dela e com uma audácia inaudita, empregam-se e acumulam-se sofismas, insinuações, distorções e asserções falsas, e são até mesmo, como se disse acima, falsamente atribuídos, ou melhor, exigidos da razão conhecimentos supra-sensíveis imediatos — ou seja, ideias inatas —; tudo isso única e exclusivamente para revelar a teologia: só teologia! Só teologia! teologia, a qualquer preço! Eu gostaria de oferecer despretensiosamente à reflexão desses senhores o fato de que, embora a teologia possa ser de grande valor, conheço algo que ainda é sempre mais valioso, a saber, a honestidade — a honestidade, tanto no modo de vida como no pensar e ensinar; eu não a venderia por nenhuma teologia.

Mas no estado em que as coisas estão, quem tomou isso a sério, junto com a “Crítica da Razão Pura”; quem pensou honradamente e não possui teologia para levar ao mercado, tem de sair perdendo diante daqueles senhores. Mesmo se trouxesse a coisa mais excelente já vista pelo mundo e servisse à mesa toda a sabedoria do céu e da terra, eles, todavia, desviariam olhos e ouvidos se não fosse teologia. Quanto mais mérito tiver o feito, mais despertará, não a admiração, mas o rancor deles, mais oporão a ele uma resistência determinadamente passiva, mais pérfido será o silêncio com que procurarão abafá-lo, mas, ao mesmo tempo, mais altos os encômios que entoarão aos encantadores filhos do espírito de seus camaradas ricos de pensamentos, para que, com isso, não triunfe a voz da inteligência e da sinceridade por eles odiada. Aliás, assim o exige, nesta época de teólogos céticos e de filósofos crédulos, a política daqueles senhores que, com mulher e filhos, se nutrem da ciência, ciência à qual uma pessoa como eu sacrifica todas as suas forças durante toda a vida. Pois o que lhes importa, de acordo com a advertência de seus superiores, é — cada qual na sua linguagem, locução e disfarce — a filosofia como teologia especulativa, e declaram, de forma bem ingênua, que a caça à teologia é o alvo essencial da filosofia. Eles nada sabem do fato de que se deve considerar o mundo (junto com a consciência na qual ele se apresenta) como o único dado, o problema, o enigma da antiga esfinge, diante da qual nos postamos com ousadia. Eles ignoram, com esperteza, que a teologia, se desejar entrar na filosofia, deve primeiro, como todas as outras doutrinas, apresentar sua credencial, que será depois examinada no cartório da “Crítica da Razão Pura”, a qual mantém ainda seu total prestígio junto a todos os pensadores, nada tendo perdido dele, apesar das caretas cômicas que os filósofos de cátedra de hoje esforçam em lhe fazer. Portanto, sem credencial válida diante da “Crítica”, a teologia não obtém permissão de entrada e não deve obtê-la nem por ameaças, nem por astúcia, nem por mendicância, alegando para isso que os filósofos de cátedra não conseguem vender nenhuma outra coisa — então que façam o favor de fechar sua butique. Pois a filosofia não é igreja nem religião. A filosofia é um cantinho no mundo só acessível a poucos, onde a verdade, em toda parte sempre odiada e perseguida, uma vez livre de toda pressão e coerção, deve como que celebrar suas saturnais onde também o escravo pode falar livremente, ter até prerrogativas e a última palavra; ela é o cantinho onde a verdade deve dominar absolutamente sozinha, nada admitido a seu lado. Ora, já que o mundo todo e tudo nele é pleno interesse e, na maioria das vezes, interesse mesquinho, ordinário e ruim, só um cantinho deve decididamente ficar livre dele e estar aberto tão-só ao conhecimento das relações mais importantes e urgentes de todas — isso é a filosofia. Ou se entende isso de outra forma? Então, tudo é diversão e comédia “como se tem frequentemente dado” [20]. Certamente, para julgar com base nos compêndios dos filósofos de cátedra, deveríamos antes pensar que a filosofia seria um guia para a devoção, um instituto para formar beatos, pois, na maioria das vezes, a teologia especulativa é pressuposta abertamente como o fim e o alvo essencial da questão, e se navega para ela a todo pano. Mas é certo que todo e qualquer artigo da fé causa um dano decisivo para a filosofia, seja ele introduzido aberta e francamente nela, como acontecia na escolástica, seja contrabandeando através de petitiones principii, axiomas falsos, fontes internas de conhecimento inventadas, consciências de Deus, provas ilusórias, frases empoladas e galimatias, como é de uso hoje em dia, porque tudo isso torna impossível a compreensão clara, descompromissada e puramente objetiva do mundo e da nossa existência, que é a primeira condição de toda investigação da verdade.

Expor, sob o nome e firma da filosofia, mas em roupagens estranhas, os dogmas fundamentais da religião do Estado, que é depois intitulada com uma expressão digna de um Hegel — “a religião absoluta” —, pode ser uma coisa muito útil, desde que sirva para adequar melhor os estudantes aos fins do Estado, como também firmar na fé o público leitor; mas vender isso por filosofia é o mesmo que vender uma coisa por aquilo que ela não é. Se isso e tudo o que foi dito acima mantêm o seu avanço imperturbável, a filosofia universitária tem de se tornar cada vez mais uma remora para a verdade. Pois todos os filósofos estão perdidos, quando se toma, como escala de seu juízo e fio de prumo de suas proposições, outra coisa além da verdade, verdade que é tão difícil de alcançar mesmo com toda investigação e fadiga da força espiritual mais elevada. Segue-se daí que a verdade se torna uma mera “fable convenue”, como Fontenelle chama a História. Também nunca se dará um só passo na solução dos problemas que nos são colocados, de todos os lados, por nossa existência tão infinitamente enigmática, se filosofa segundo um alvo predeterminado. Mas ninguém negará que este seja o caráter genérico das diferentes espécies da atual filosofia universitária.

Notas
  1. “O último fim dos bons” (NT).
  2. “Em sentido próprio” (NT).
  3. “Movida por fios alheios”. Lohneysen indica que a expressão é de Horácio, “Sermones”, 2, 7, 82. (NT).
  4. “Primeiro viver, depois filosofar”. (NT).
  5. “De acordo com a norma convencional”. (NT).
  6. “Deus me livre!” Segundo Lohneysen: Virgilio, “Georgica”, 3, 513. (NT).
  7. “Silêncio que a inveja impôs”. Sêneca, “Epistulae”, 79. (NT).
  8. “Crime inaudito”. (NT).
  9. “Na presença do povo”. (NT).
  10. “Exceção que confirma a regra”. (NT).
  11. Em trecho anterior ao da presente tradução. (NT).
  12. C. Rosenkranz. “História da Filosofia Kantiana”, pág. 148. (NA).
  13. De uma confusão análoga é que surge o elogio que me fazem alguns deles, para salvar a honra de seu bom gosto, já que agora minha luz já não está mais oculta: mas apressam-se em acrescentar ao elogio a afirmação de que eu não tenho razão na questão principal, pois se guardarão, como é de praxe entre eles, de concordar com uma filosofia que é totalmente avessa a uma mitologia judáica, magnificamente adornada e escondida num palavrório empolado (NA).
  14. “Sobre o Fundamento da Moral” — escrito não premiado pela Sociedade Real de Ciências da Dinamarca, em Kopenhagen, 30 de janeiro de 1840. Esta dissertação foi publicada junto com o escrito “Sobre a Liberdade da Vontade” nos “Dois Problemas Fundamentais da Ética” (S.W., tomo 4, pág. 481). Veja-se pág. 49, nota 64, e pág. 75, nota 86, da presente tradução (NT).
  15. “Serva da teologia” (NT).
  16. “Assim quero, assim decreto, que o querer fique no lugar do fundamento”. Segundo Lohneysen, a frase é de Juvenal, “Saturarum”, livro 4, 223 (NT).
  17. “Para a maior glória de Deus” (NT).
  18. “Um defensor da fé” (NT).
  19. “O que se pode determinar sobre a consciência de Deus, que é dita inata à mente humana?” (NT).
  20. Goethe, “Fausto”, primeira parte, 529 (os versos dizem: “WAGNER — Quantas vezes tenho ouvido declarar / Que um comediante pode até um padre ensinar / FAUSTO — Pois sim, sendo também um padre um comediante; / Como se tem frequentemente dado”. Trad. Jenny Klabin Segall, obra citada, pág. 46 (NT).
  • autor: Arthur Schopenhauer
  • fonte: Folha de S.Paulo, sexta-feira, 19 de fevereiro de 1988