O Mundo como Vontade e Representação (livro 4)

Arthur Schopenhauer

O MUNDO COMO VONTADE
CONSIDERAÇÃO SEGUNDA

CHEGANDO A CONHECER-SE A SI MESMA,
A VONTADE DE VIVER AFIRMA-SE; DEPOIS NEGA-SE

Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit [1]

EXPLICAÇÕES PRELIMINARES

Esta parte do nosso estudo apresenta-se como a mais grave, em virtude de ser atinente às ações humanas, o que é um argumento que nos toca diretamente e ao qual ninguém pode permanecer estranho ou indiferente; muito ao contrário, é tão natural no homem o fato de tudo referir à conduta humana que, em seguindo o que quer que seja, é sempre a parte referente a essa conduta que ele considera como o escopo das suas investigações, por pouco que a matéria lhe interesse, e é este ponto que tem por hábito fixar a mais séria atenção, ainda quando descura de todos os outros. Neste sentido e, consoante uma expressão comum, a parte de que vamos ocupar-nos se denominaria filosofia prática, em oposição à filosofia teórica de que até aqui tratamos. Na minha opinião, entretanto, a filosofia é sempre teórica; porquanto, o que está na sua essência, qualquer que seja o objeto da sua investigação, é manter-se exclusivamente no terreno da observação e da análise, e não no de ditar preceitos. Atentar para o sentido de tornar-se prática, querer guiar a conduta e reformar os caracteres são pretensões que já viveram o seu tempo; em nossos dias, educada pela experiência, a filosofia deveria pôr à margem tais pretensões; pois que, quando se trata do valor ou da nulidade da existência, da salvação ou da perdição, não serão certamente as frias abstrações da filosofia as mais próprias a fazerem lastro na balança, senão que aquilo que para isso concorre é a própria natureza do homem, o demônio que o dirige sem se ter imposto, o qual, ao contrário, foi o próprio homem que chamou sobre si, como diz Platão, — o seu caráter inteligível, como diz Kant. — A virtude e o gênio são coisas que não se ensinam; para eles a noção é infrutífera, tanto quanto para a Arte, e pode quando muito servir de instrumento. Seria tão insensato querer que os nossos sistemas de moral fabricassem gente virtuosa, nobre, santa, como pretender que os nossos tratados de estética criassem poetas, escultores ou pintores.

A filosofia não pode fazer outra coisa que não seja interpretar e explicar aquilo que é; ela deve dar à Razão o conhecimento claro e exato da essência do mundo, que sob forma concreta, ou seja, no domínio do sentimento, todos compreendem às mil maravilhas; mas tal interpretação quer ser apresentada sob todas as relações e sob todos os pontos de vista. Por consequência, tudo quanto procurei explicar nos três livros precedentes, com a generalidade própria da filosofia e com outras considerações, procurei agora demonstrar do mesmo modo nesta quarta parte, sob o ponto de vista da conduta humana: ver-se-á, como linhas acima dizia, que este lado do mundo, julgado não apenas subjetiva, mas também objetivamente, é de todos o mais importante. Nas considerações que seguem permanecerei fiel ao método até aqui seguido, baseando-me sempre sobre o que precede, bem como sobre dados admitidos: o pensamento único, que constitui a substância de toda a obra e que desenvolvi sob todos os outros aspectos, será estudado agora na sua relação com a conduta do homem e, deste modo, terei esgotado tudo quanto estou em condições de fazer para dar a este respeito a exposição mais completa possível. [2]

O nosso ponto de vista, bem como o método anunciado, deixam perceber suficientemente que, deste livro sobre a ética, não se devem esperar preceitos ou tratados de moral; e muito menos tenho eu a intenção de fornecer um princípio geral ou uma espécie de receita universal suscetível de criar todas as virtudes. E nem mesmo tratarei do “dever incondicionado” visto que tal “dever”, como explico na sequência deste livro, inclui uma contradição; nem uma “lei da liberdade” que está no mesmo caso. Dum modo geral não falarei em “dever”, esta linguagem só se usa quando se dirige a rapazes ou a povos ainda infantis, e nunca a homens que se apoderaram de todas as luzes dum século que atingiu o seu mais perfeito desenvolvimento. E não é, porventura, uma contradição perfeitamente palpável, o dizer que a vontade é livre e ao mesmo tempo prescrever-lhe leis segundo as quais deve querer? — Dever querer! — E o mesmo que falar em madeira de ferro! — De acordo com o conjunto dos nossos pontos de vista, a vontade é, não somente livre, mas também onipotente; e produz não somente a sua conduta, como também o seu mundo; tal a vontade qual a ação e qual o seu mundo; ambas não são senão vontade consciente de si própria e nada mais; a vontade se determina a si mesma e determina com isto a conduta e o mundo, por isso que sem ela nada existe: compreendida assim, a vontade é verdadeiramente autônoma; compreendida doutro modo, é heterogênea. Nossas investigações filosóficas só podem tender à interpretação da conduta humana e das máximas tão variadas e contraditórias de que é a expressão viva, explicá-las na sua essência e na sua substância, referindo-as às nossas considerações precedentes e conforme temos feito até aqui a respeito de todos os outros fenômenos do mundo, reduzi-las a noções abstratas, bem inteligíveis. Nossa filosofia continuará na “imanência”: fiel às grandes lições de Kant, não se servirá das formas do fenômeno, das quais o princípio da “razão suficiente” é a expressão geral, como dum apoio para saltar por cima do próprio fenômeno, que é coisa que só lhe poderia dar um significado, para atingir o domínio inconfinado das ficções vazias. O mundo real e visível, em que vivemos e que vive em nós, continuará a ser o sujeito constante e o limite das nossas pesquisas: este mundo é suficientemente rico de conteúdo, de tal modo que não poderão exauri-lo as mais profundas investigações de que é capaz o espírito humano. E pois que para as nossas presentes considerações morais, tanto quanto para as anteriores, o mundo real e cognoscível não nos deixará nunca faltar matéria e realidade, não teremos necessidade de recorrer a conceitos negativos e vazios, para depois nos iludir a nós mesmos, com a possibilidade de ter dito alguma coisa, se falássemos com gravidade de “absoluto”, de “infinito” de “supersensível” ou de outras negações duma tal espécie: Tudo isto não é nada, nada senão o nome da privação, com ideias obscuras a ele associadas (Jul. or. 5), conceitos que com mais brevidade poderiam denominar-se, em seu conjunto, “cidade dos pássaros volantes”.

Não! Bem podemos dispensar-nos do trabalho de servir-nos desses pratos cobertos mas vazios; e finalmente, agora como dantes, não vamos contar histórias para fazê-las passar por filosofia. Porquanto é minha opinião que está ainda infinitamente longe de possuir um conhecimento filosófico do mundo, aquele que imagina poder apreender-lhe a essência “historicamente” sob qualquer forma que seja, e quaisquer que sejam as finuras que use em dissimulá-lo; tal, porém, é o caso do momento em que esse tal, na ideia que forma da natureza das coisas em si, faz intervir a noção dum vir-a-ser, no presente, no passado ou no futuro; do momento em que “antes” e “depois” têm para ele o mesmo significado; do momento em que, em seguida, aberta ou hipocritamente, procura e descobre o ponto onde começa o mundo e o ponto onde acaba, com o caminho que vai de um a outro; e do momento em que, com mais razão ainda, o indivíduo que acredita fazer assim filosofia, sabe indicar de que modo o homem veio a ser posto nesta vida. Semelhantes sistemas históricos conduzem geralmente a uma cosmogonia da qual se dão muitas variedades; ou também uma doutrina de emanação, coisa já sem prestígio; ou finalmente, quando desesperados por tantas tentativas inúteis feitas nesse sentido, se é lançado para a última que resta, resulta uma teoria da criação perpétua, da descendência, da geração, do aparecimento à luz do dia, oriundo do seio da noite, ou do escuro abismo, ou da matéria-prima, ou do caos sem fundo, e mil outras extravagâncias da mesma natureza, fáceis aliás de cortar pela raiz: tenha-se em conta que toda uma eternidade, isto é, um tempo infinito tendo decorrido até ao momento presente, tudo quanto podia e devia nascer, já deve ter nascido. Isto porque, todos estes sistemas históricos, por maior que seja a importância de que pretendam inflar-se, como se Kant nunca tivesse existido, tomam o tempo como um atributo da coisa em si, e não vão além daquilo que Kant chama o fenômeno em oposição à coisa em si, ou daquilo que Platão chama “o que sempre se torna, mas nunca é”, em oposição àquilo que é e não se torna nunca, ou enfim, daquilo que os hindus chamavam o “véu de Maya”; eis precisamente o que caracteriza o conhecimento submetido ao princípio da razão, por meio da qual nunca se chega à essência íntima das coisas e se seguem eternamente fenômenos, apenas; deste modo se é agitado sem trégua e sem finalidade tal como certos rocinantes fechados na sua roda, até que, cansados de tanto giro, se faça paragem num ponto qualquer, arbitrariamente escolhido, em alto ou em baixo, e que se quer depois constranger os outros a aceitar com o mesmo respeito. A única maneira verdadeiramente filosófica de considerar as coisas, a maneira que nos ensina a conhecer-lhes a essência e que nos conduz para além do fenômeno, é precisamente aquela que não se preocupa com saber donde vem o mundo, para onde vai ou por que existe, mas examina unicamente aquilo que é, sem olhar as coisas do ponto de vista das suas relações, dos seus princípios ou dos seus fins, numa palavra, sem as estudar sob qualquer categoria do princípio de razão — antes, ao contrário, tomando por objeto da sua investigação, aquilo mesmo que sobra das coisas que foram estudadas segundo este princípio, suas ideias, a essência do mundo que aparece nas relações sem lhes estar sujeita e que permanece sempre idêntica a si própria. Sim, é tal conhecimento que nos conduz à filosofia; e tal como o vimos dar origem à arte assim também no presente livro veremos que é ele a fonte donde dimana essa disposição psíquica, que é a única capaz de conduzir à verdadeira santidade e à salvação.

VIDA E MORTE [3]

Espero que os três primeiros livros hajam feito compreender que o mundo como representação é o espelho da vontade, no qual a vontade se reconhece a si mesma com uma clareza e uma precisão que vão gradualmente crescendo: no homem esta consciência atinge a perfeição, mas a essência do homem não encontra a sua expressão completa, salvo na concatenação das ações que ele pratica e é a razão que torna o indivíduo capaz de abranger de relance e in abstracto a unidade consciente da sua conduta.

A vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples tendência, cega e irresistível, a qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do vegetal e nas suas leis, como também na parte vegetativa da nossa vida: mas pelo acréscimo do mundo da representação que se desenvolveu pelo seu uso, ela adquire a consciência do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo que quer não é outra coisa senão o mundo e a vida como são; dizemos, por isso, que o mundo visível é a sua imagem ou a sua objetividade; e como o que a vontade quer é sempre a vida, pois que a vida para a representação é a manifestação da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro pleonasmo se em vez de dizer simplesmente “a vontade”, dissermos “a vontade de viver”.

Sendo a vontade a coisa em si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocupar-nos pela nossa existência nem mesmo diante da morte. Bem vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; não existe senão pelo conhecimento submetido ao princípio de razão, que é o princípio de individuação: nesta ordem de ideias, certamente o indivíduo recebe a vida como um dom: oriundo do nada e despojado do seu dom pela morte, ao nada retorna. Mas para quem, como nós, contempla a vida do ponto de vista filosófico, isto é, das Ideias, nem a vontade ou a coisa em si de todos os fenômenos, nem o sujeito dos conhecimentos, espectador dos fenômenos, são de qualquer forma tocados pelo nascimento ou pela morte. Nascer e morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade, e aparecem nas criaturas individuais, manifestando fugitivamente e no tempo, aquilo que em si não conhece tempo e deve exatamente manifestar-se sob esta forma com o fim de poder objetivar a sua verdadeira natureza. Pela mesma razão, nascimento e morte pertencem à vida e equilibram-se mutuamente como condições recíprocas, ou melhor, como polos do fenômeno total. A mitologia hindu, entre todas a mais sábia, exprime este pensamento, dando por atributo a Çiva que simboliza a destruição ou a morte (como Brama, o deus ínfimo e pecador da Trimurti, simboliza a procriação, o nascimento e Vishnu simboliza a conservação), o colar dos mortos, juntamente com o Lingam, símbolo da geração, o qual conseguintemente aqui aparece para compensar a destruição; o que significa que nascimento e morte são pela sua essência correlativos que se neutralizam e se compensam a seu turno. Pelas mesmas razões, Gregos e Romanos cobriam seus preciosos sarcófagos, tais como podem ser vistos no dia de hoje, com ornamentos que representavam festas, danças, casamentos, caças, combates de feras e bacanais e colocavam deste modo em cena os fatos mais animados da vida expressos não unicamente sob a forma de divertimentos, mas também por meio de grupos voluptuosos e até mesmo de cópulas de sátiros com cabras. Tinha isto o fim evidente de subtrair ao indivíduo pranteado o pensamento da morte, para levá-lo à vida imortal da natureza, acentuada com energia, mostrando assim, embora estivessem muito longe de possuir a consciência abstrata deste fato, que toda a natureza não é mais que o fenômeno e a realização da vontade de viver. A forma de tal fenômeno é o tempo, o espaço e a causalidade, donde a individuação, que tem por consequência que o indivíduo deve nascer e morrer; mas a vontade de viver de que o indivíduo não constitui por assim dizer, mais que um exemplar ou uma parcela singular de manifestação, não é perturbada pela morte do ser individual, tanto quanto não o é o conjunto da natureza. Pois que não é pelo indivíduo, mas unicamente pela espécie que a natureza se interessa e é dela unicamente que estuda seriamente a conservação, circundando-a de grande luxo de precauções e por meio da superabundância ilimitada dos germes e do poder imenso do instinto de reprodução. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para a natureza e nem pode tê-lo, desde que é apenas um ponto num tempo infinito e num espaço infinito que compreende um número infinito de indivíduos possíveis. A natureza está sempre pronta a abandonar o indivíduo que não somente está exposto a perecer de mil modos e pelas causas mais insignificantes, como também é, desde o princípio, destinado a uma perda certa, para a qual é arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão que tem de conservar a espécie. Com isto a natureza exprime ingenuamente esta grande verdade, que são as Ideias e não os indivíduos que têm uma verdadeira realidade, isto é, são a objetividade perfeita da vontade. Ora bem, sendo o homem a própria natureza cônscia de si no mais alto grau, e sendo a natureza a vontade de viver objetivada, é natural e justo que o homem, desde que haja atingido e se mantenha neste ponto de vista, se console da morte dos seus e da sua própria, vislumbrando a vida imortal da natureza que não é mais que ele mesmo. Eis o que se deve compreender por Çiva com o Lingam e por aqueles antigos sarcófagos que com suas imagens da mais ardente vida, gritam ao espectador desolado: Natura non contristatur (a natureza ignora a aflição).

Um fato que além disso prova muito bem que nascimento e morte são condições inerentes à vida e essenciais para esse fenômeno da vontade, é que se apresentam ambos simplesmente como a expressão mais decidida do que constitui também todo o resto da vida. Esta, efetivamente, não é senão uma variação perpétua da matéria com permanência invariável da forma: nisto consiste igualmente a destrutibilidade dos indivíduos e a constância da espécie. A nutrição e a reprodução incessante não diferem da geração e a excreção não difere da morte, senão quanto ao grau. O reino vegetal apresenta-nos o primeiro caso, sob forma fácil de ser compreendida. A planta por sua natureza é uma repetição constante da mesma semente, da sua fibra mais simples que se dispõe em folhas e ramos: é um agregado sistemático de plantas semelhantes que se sustêm umas às outras e cuja única tendência é a reprodução indefinida: com esta finalidade a planta se transforma, grau a grau, em flores e em frutos que reassumem a seu turno toda a sua existência e todas as suas tendências; atinge desta sorte pelo caminho mais curto aquilo que era sua mira constante, realizando de um só golpe e em exemplares inumeráveis, o que até então só realizava em pormenor, isto é, a sua multiplicação. Seu desenvolvimento até à frutificação tem relação com o fruto, como a escrita tem relação com a imprensa. O mesmo sucede com o animal. O processo de nutrição é uma geração contínua e o processo de geração é uma nutrição de potência superior: a volúpia durante o coito é o bem-estar reforçado que resulta do sentimento da vida. Por outro lado, a excreção, isto é, a recusa e a evaporação da matéria, excetuando o grau, é idêntica à morte que é o oposto da geração. Ora, nós nos sentimos perfeitamente satisfeitos com o conservar a nossa forma, e não sentimos mágoa pela matéria eliminada; é preciso manter tal atitude também quando a morte vem realizar por grosso e em mais larga escala, o que sucede a cada dia e cada hora na excreção: como no primeiro caso permanecemos indiferentes, não devemos espantar-nos com o segundo. Deste ponto de vista, é tão insensato desejar a perpetuação da nossa individualidade, que é substituída por outros indivíduos, como também é insensato desejar a permanência da matéria do nosso corpo, que é continuamente substituída por outra matéria: donde resulta que é tão absurdo embalsamar os cadáveres, como conservar com cuidado as nossas dejeções. E com referência à consciência individual ligada ao corpo do indivíduo, vem o sono todos os dias suspendê-la totalmente. Frequentemente a passagem do sono para a morte não é sequer advertida, como por exemplo no caso em que o homem morre gelado; o sono profundo, por isso, não difere da morte quanto à duração do momento, mas unicamente quanto à duração do futuro; ou por outras palavras, quanto ao despertar. A morte é um sono de que o adormecido por esquecimento não foi despertado: tudo o mais desperta, ou antes, permanece desperto.

Antes de mais nada é preciso que nos convençamos de que a forma de fenômeno da vontade, ou por outras palavras, a forma da vida ou da realidade, é o presente, e não o futuro, nem o passado; estes não existem senão na abstração por meio da concatenação do conhecimento submisso ao princípio de razão. Ninguém viveu no passado e ninguém viverá no futuro; o presente, somente ele, é a forma exclusiva da vida, propriedade certa, que nada poderá jamais subtrair-lhe. O presente está sempre ali, com tudo quanto abrange: continente e conteúdo quedam-se parados, imóveis, como o arco-íris sobre a catarata. Por isso que a vida é assegurada à vontade, e o presente é assegurado imutavelmente à vida. Certamente, quando pensamos nos milhares de anos decorridos e nos milhões de homens que viveram, perguntamos: Que eram eles? — Que se tornaram? — Mas basta-nos em compensação recordar o passado da nossa própria vida e chamar vivamente suas cenas à nossa imaginação, para então perguntarmos de novo: — Que é, então, tudo isto? — A que se reduziu? — Como para a nossa vida, assim também para a existência daqueles milhões de homens. Ou seria porventura necessário acreditar que por haver recebido o sigilo da morte, o passado haja adquirido uma nova existência? O nosso próprio passado, ainda o mais próximo, o dia apenas transcorrido, não é mais que um sonho vácuo da Imaginação, e nada mais que isto é o passado de todos esses milhões de seres. Que é aquilo que foi? — Que é aquilo que é? — Aquilo que foi, aquilo que é, assim é a verdade de que a vida é o espelho, e o conhecimento disjunto do querer que no espelho vê distintamente essa vontade. Quem quer que não haja ainda aprendido ou não queira aprender esta verdade, quando se propõe as questões acima acentuadas sobre o destino das gerações que foram, deve agregar-lhes ainda uma: é preciso que se pergunte a si próprio, como sucede que ele, interrogador, tenha a graça de possuir tal presente tão precioso, tão fugitivo, o único real; por que razão tantas centenas de gerações, esses sábios e esses heróis doutros tempos, caíram na sombra do passado, desapareceram em nada, enquanto ele, esse “eu” insignificante, em realidade existe? — ou, em palavras mais breves e bizarras, deverá perguntar-se a si mesmo, por que esse presente, o seu presente, existe precisamente neste momento e não tenha já existido há muito tempo. Propondo-se a estranha interrogação, ele considera a sua existência e o seu tempo independentes um do outro e a primeira, de certo modo, como lançada no segundo: admite, a bem dizer, dois presentes, dos quais um pertence ao objeto e outro ao sujeito e maravilha-se do afortunado acaso que os fez coincidir. Mas na realidade (como o demonstrei na minha dissertação sobre o princípio de razão) o que constitui o presente não é mais que um ponto de contato entre o objeto, de que o tempo é forma, e o sujeito que não tem por forma nenhum dos modos do princípio de razão. Ora, o objeto é a verdade tornada representação e o sujeito é o correlativo necessário do objeto; mas não se dão objetos reais senão no presente porque o passado e o futuro contêm apenas abstrações e fantasias do espírito: portanto o presente é a forma essencial e inseparável do fenômeno da vontade. O presente, só ele, é o que é sempre e que permanece imóvel. Essencialmente fugaz, considerado do lado empírico, apresenta-se ao olhar metafísico que vê além das formas da percepção empírica, como a única coisa permanente, como o “Nunc stans” dos escolásticos. Fonte e portadora do seu conteúdo, assim é a vontade de viver, ou a coisa em si: por outras palavras, nós mesmos. O que nasce e passa sem trégua, seja por já ter nascido, seja por dever suceder depois, pertence ao fenômeno como fenômeno em virtude das formas deste, que tornam possível o nascer e o morrer. É preciso dizer por conseguinte: Quid fuit? — Quod est; — Quid erit? — Quod fuit; o que é preciso tomar no sentido literal das palavras e não entender com isto semelhante mas idem. Entendido que a vida é assegurada à vontade e o presente à vida. Cada um pode dizer, portanto:

Eu sou para sempre possuidor do presente; ele me acompanhará como sombra por toda a eternidade; por conseguinte é inútil que procure donde vem o presente e como acontece que existe precisamente neste instante.

Pode-se comparar o tempo a uma circunferência que gira continuamente; a metade que sempre desce seria o passado, e a que sempre sobe, o futuro; ao alto, o ponto indivisível que encontra a tangente seria o presente que não tem dimensões; como a tangente não é arrastada pelo giro, assim permanece imóvel o presente, ponto de contato entre o objeto, com a sua forma do tempo, e o sujeito que não tem forma, pois que é a condição de tudo o que pode ser conhecido, sem que possa ele mesmo ser conhecido. Poderia ainda comparar-se o tempo a um rio impetuoso e o presente a uma barreira contra a qual o rio se frange sem poder, todavia, arrastá-la consigo. A vontade como coisa em si, é tão pouco submissa ao princípio de razão, quanto o sujeito do conhecimento, que de certo modo, vem a ser, enfim, a vontade ou a sua representação; e da mesma maneira pela qual a vida, o fenômeno, é assegurado à vontade, assim lhe é assegurado o presente, única forma da vida real. Não devemos, por conseguinte, investigar do passado, antes da vida, nem do futuro, depois da morte: devemos reconhecer que o presente é a única forma sob a qual a vontade se aparece a si mesma: [4] esta forma não lhe faltará nunca, e nunca decerto virá a falecer-lhe. Quem ama a vida como é, quem a afirma com todo o poder, pode, com toda a segurança, considerá-la infinita e afastar o pavor da morte com uma ilusão que lhe faz temer sem razão a possibilidade de perder algum dia a posse do presente e que lhe acena com a imagem falaz dum tempo que não teria presente. Essa ilusão em relação ao tempo, é o mesmo que em relação ao espaço, é essa outra ilusão em virtude da qual cada um imagina estar no alto o ponto por si ocupado sobre o globo terrestre, enquanto tudo o mais estaria embaixo: assim, igualmente cada um liga o presente à sua própria individualidade, imaginando que com ela todo o presente desaparece e que dele ficam então o passado e o futuro despojados. Mas como em nosso globo, o alto se encontra em qualquer ponto, assim o presente é a forma de toda vida: temer a morte porque nos tira o presente não é mais razoável do que ter medo de cair do globo terrestre tendo a fortuna de se lhe achar no alto, no momento atual. A objetivação da vontade tem por forma necessária o presente, ponto indivisível que talha o tempo prolongando-se ao infinito nas duas direções e que permanece imóvel, tal como um eterno meio-dia que nenhuma noite apagasse, ou como o Sol real que brilha, continuamente, conquanto nos pareça que imerge no seio da noite: temer a morte como destruição é como se o Sol no crepúsculo exclamasse, gemendo: “Ai de mim que vou perder-me numa noite eterna!”. [5] Mas, vice-versa, também o contrário é verdadeiro: aquele que, oprimido pelo peso da vida, e embora a amando e afirmando-a lhe teme as dores e, sobretudo, não quer suportar por mais tempo o triste destino que lhe toca, em vão espera encontrar a libertação na morte e salvar-se com o suicídio: o porto que lhe oferece o Orco, escuro e gelado, cuja calma o atrai, não é mais que uma vazia miragem. A Terra gira incessantemente do dia para a noite; o indivíduo morre: mas o Sol arde sem trégua e o meio-dia é eterno. A vontade de viver está certa de viver: a forma da vida é um presente sem fim; e pouco importa que os indivíduos, fenômenos da Ideia, nasçam e morram como sonhos fugazes. O suicídio, portanto, desde já nos aparece como um ato inútil e porventura insensato: na sequência das nossas considerações há-de se nos apresentar sob um aspecto ainda mais desfavorável.

Mudam os dogmas e é falaz o nosso saber, mas a natureza não se engana jamais: o seu passo é seguro e ela não o esconde. Tudo nela é completo e ela efetivamente é completa em tudo. A natureza tem o seu centro em cada ser animado: o animal encontrou com segurança o caminho para entrar na existência, como com segurança o encontrará para sair dela: nesse entretempo vive sem temor da destruição e sem cuidados na consciência de ser a própria natureza e como ela imperecível. O homem, somente o homem, leva consigo a convicção abstrata da própria morte: mas, coisa estranha! Tal convicção não o inquieta senão a intervalos, quando alguma circunstância lhe evoca à mente. A reflexão é quase importante contra a poderosa voz da natureza. No homem, portanto, como no animal que não pensa, reina permanentemente esta segurança, oriunda da consciência profunda de ser ele próprio a natureza e o mundo; o que impede que o sentimento duma morte inevitável e sempre iminente o torture de modo demasiado vivaz, enquanto lhe permite levar avante tranquilamente a vida, como se esta nunca tivesse que cessar; isto chega até mesmo a tal ponto, que se poderia afirmar que nenhum homem possui a convicção real e viva de que tem de morrer; sem o que não poderia subsistir uma diferença tão grande entre o seu estado habitual de espírito e o dum condenado à morte: cada um possui, a bem dizer, esta certeza in abstracto e em teoria, mas cada um a põe de parte, como se costuma fazer com muitas verdades teóricas que não encontram aplicação prática, e não lhe dá nunca acesso na sua consciência vivente. Para quem estuda atentamente tal disposição especial ao homem, é claro que nem o hábito, nem a resignação se revelam suficientes para explicá-la e que deste fato, a verdadeira fonte, bem mais íntima, é aquela que acabamos de indicar. Isto, aliás, nos explica como sucede que o dogma duma continuação qualquer do indivíduo depois da morte existiu sempre, e foi tido em grande consideração junto de todos os povos, ainda que as provas sobre as quais se apoia devam ter sido sempre muito insuficientes, enquanto as da tese contrária são fortes e numerosas: antes, esta última pode em rigor dispensar provas, por isso que o senso comum a reconhece como um fato que vem melhor corroborar a certeza de que a natureza não mente nem se engana jamais, e que mostra franca e ingenuamente o que é e o que faz e que somos nós que velamos tudo isto com as nossas ilusões, com a finalidade de lhe dar uma interpretação no sentido que melhor convenha aos horizontes limitados do nosso espírito.

Vimos assim, claramente, não ser senão o fenômeno individual da vontade o que principia e acaba no tempo, enquanto não concerne à vontade como coisa em si, nem ao correlativo de todo objeto, o sujeito cognoscente e jamais conhecido; vimos, também, que à vontade de viver é sempre assegurada a vida: — mas estas reflexões nada têm com os dogmas da perpetuidade ora vindos em questão. Porque a vontade considerada como a coisa em si, e o puro sujeito cognoscente, olho eterno do mundo, que existem ambos fora do tempo, não conhecem um melhor que o outro, a permanência e a destruição que são condições temporais. Assim, o egoísmo do indivíduo (este fenômeno particular da vontade, esclarecido pelo sujeito do conhecimento) não poderá colher nos horizontes que acabei de expor, alimento nem conforto para o seu desejo de durar indefinidamente, como também não os poderia colher na certeza de que depois da sua morte o resto do mundo continuará a existir; o que é a expressão do mesmo modo de ver, mas dum ponto de vista objetivo e, portanto, atinente ao tempo. Por isso que, se é constante que o indivíduo perece unicamente como fenômeno; e como coisa em si, é independente do tempo, a saber, eterno, por outro lado, é sempre como fenômeno que é distinto dos outros objetos; como coisa em si é a vontade que se manifesta por toda parte; a morte apenas vem dissipar a ilusão que separa a sua consciência da consciência universal: eis aqui, portanto, a perpetuidade. A isenção da morte, atributo exclusivo da coisa em si, coincide como fenômeno com a duração do remanescente do mundo exterior. [6] A consciência profunda, mas em estado de simples sentimento, daquilo que acabamos de elevar ao estado de noção distinta, preserva, como dissemos, o próprio ser dotado de razão de ver a sua existência envenenada pelo pensamento da morte; é o que efetivamente lhe dá essa coragem de viver que sustenta tudo o que vive e que o faz prosseguir galhardamente avante como se a morte não existisse, ao menos por todo o tempo em que ele ama e procura a vida; o que não impede, contudo, que quando a morte se lhe apresenta em realidade, ou mesmo somente na imaginação, e ele tenha de fitá-la face a face, não seja dominado pelo medo e não procure por todos os meios salvar a própria vida. Por isso mesmo que, se a sua inteligência, enquanto era dirigida sobre a vida como vida, devia reconhecer nela a eternidade, quando a morte se lhe apresenta deve reconhecê-la por aquilo que é, a saber, pelo fim natural do homem natural. O que tememos na morte não é a dor, porque, por um lado a dor existe evidentemente, deste outro lado da morte, ou inversamente, preferimos frequentemente suportar os mais cruéis sofrimentos para subtrair-nos um instante que seja a uma morte que todavia seria pronta e fácil. A morte e a dor são, portanto, aos nossos olhos, dois males distintos: o que tememos na morte é efetivamente a destruição do indivíduo porque estamos sob essa forma em que ela se nos apresenta abertamente; e como o indivíduo é a vontade de viver em qualquer objetivação, todo o seu ser se rebela contra a morte. Mas onde nos falha o sentimento, vem a razão que vence em grande parte estas impressões penosas, elevando-nos a um ponto de vista donde possamos compreender o geral no lugar do particular. Um conhecimento filosófico da essência do mundo, uma vez atingido o ponto a que chegamos, mesmo sem ir mais adiante, poderia ajudar o homem a vencer os terrores da morte, e isto na proporção em que nele a reflexão dominasse o sentimento imediato. Um homem que estivesse fortemente penetrado pela verdade que estabeleci, mas que, ou por experiência própria, ou por capacidade superior da mente, não estivesse em estado de reconhecer que o fato da vida é um contínuo sofrimento; que, ao contrário, estivesse satisfeito com a vida e se encontrasse nela perfeitamente à vontade e que refletindo a sangue-frio desejasse que a vida lhe durasse indefinidamente ou recomeçasse incessantemente; um homem, enfim, que possuísse suficientemente o ardor da vida para pagar-lhe as alegrias ao preço das moléstias e dos tormentos aos quais está sujeita, esse “pousaria com pé seguro sobre o solo bem batido da eterna máquina rotunda” e não teria coisa alguma a temer: munido da consciência que lhe infundimos, com vista indiferente veria chegar a morte sobre as asas do tempo; fitá-la-ia qual miragem mentirosa, qual impotente fantasma, feito para espantar os débeis, mas que não tem poder sobre quem sabe que é aquela mesma vontade de que o mundo inteiro é a objetivação ou a cópia, sobre quem sabe que para sempre lhe foi assegurada a vida, como também o presente, forma real e única do fenômeno da vontade; nenhum passado e nenhum futuro infinito em que ele não existisse poderia intimidá-lo, pois que ele os consideraria como vazia miragem, como o véu de Maya; a morte será tanto por ele temida, quanto a noite pelo Sol. Tal é o modo de ver com que Krishna, no Bhagavat Gita, ensina a seu discípulo estreante, Ardjuna, quando este, ao aspecto dos exércitos que estavam na iminência de combater, é tomado de tristeza (quase como Xerxes) e quer renunciar à luta para evitar a morte de tantos milhares de homens: Krishna chega a convencê-lo, e desde então a destruição de tantas existências não mais o retém: dá o sinal de combate. E também o que exprime o Prometeu de Goethe e especialmente quando diz:

Aqui será a minha morada; aqui farei homens,
À minha imagem;
Raça que se parece comigo;
Fá-los-ei para o sofrimento, para as lágrimas,
Para a alegria e para o prazer,
E fá-los-ei a não te respeitarem
Como eu!

A este resultado igualmente conduziriam as filosofias de Giordano Bruno e de Spinoza se os erros ou as imperfeições não viessem turbar ou enfraquecer a convicção. Na filosofia de Bruno não existe uma verdadeira moral; a moral da filosofia de Spinoza não ressalta com efeito das suas doutrinas: conquanto bela e louvável em si mesma, não se lhes atém senão por meio de argumentos débeis e sofismas palpáveis. Finalmente, é a este ponto de vista que teriam sido levadas muitíssimas pessoas se o seu conhecimento procedesse de par com a sua vontade e fossem capazes de repelir qualquer ilusão a fim de compreenderem perfeitamente a si mesmas. Porque este é, para o conhecimento, o ponto de vista absoluto da afirmação do querer-viver.

Entendamo-nos sobre a vontade que se afirma: inda que a sua objetividade, isto é, a vida e o mundo, lhe tenham feito conhecer nitidamente e inteiramente sua própria essência sob a forma de representação, tal conhecimento não detém, todavia, o seu querer; continua a desejar a vida como é e como aprendeu a conhecê-la; e do modo como a queria, como por cego impulso, sem conhecê-la, assim também a quer agora depois de a ter conhecido, como consciência e reflexão. Eis a vontade que se afirma. O oposto, a negação da vontade de viver, tem lugar quando o conhecimento aniquila o seu querer; os fenômenos isolados que reconhece não agem mais sobre ela como motivos para estimulá-la; antes, na concepção das Ideias que refletem a sua própria imagem e lhe ensinam a reconhecer a essência do mundo, encontra um sedativo que a acalma e a leva a anular-se livremente a si mesma. Estas noções, inteiramente novas e difíceis de compreender, expressas sob formas gerais, tornar-se-ão, assim o espero, bastante claras quando tiver exposto os fenômenos, ou antes, neste caso, as ações por cujo intermédio se manifestam; por um lado, a afirmação nos seus diferentes graus e por outro, a negação. Sabido que ambas derivam na verdade do mesmo conhecimento; não de um conhecimento abstrato que encontra expressão perfeita em palavras, mas antes dum conhecimento vivo que se não explica senão por meio de fatos e da conduta do homem, independentemente de qualquer dogma que lhe possa ocupar a razão sob forma de noções abstratas. Aqui meu escopo único é o de as expor a ambas e de procurar torná-las bem compreendidas, sem as impor ou recomendar absolutamente uma ou outra; o que seria aliás tão absurdo quanto inútil, visto que a vontade é em si, absolutamente livre, determina-se unicamente por si mesma e não conhece leis. Esta liberdade e a sua relação com a necessidade, eis o que devemos agora examinar e precisar com toda a exatidão antes de proceder a quanto linhas acima expusemos; devemos, além disso, apresentar sobre a vida, de que a afirmação ou a negação é o nosso problema, algumas considerações gerais inerentes à vontade e aos objetos da vontade; tudo isto nos ajudará muito a compreender na sua mais profunda essência o significado moral da conduta que é o objeto do nosso estudo.

O presente trabalho, já o disse, não é mais que o desenvolvimento dum pensamento único; donde se segue que todas as suas partes têm entre si a mais estreita relação; não somente cada qual tem relação necessária com a que lhe precede imediatamente e que se supõe conhecida pelo leitor, como é o caso para todas as obras de filosofia que se compõem unicamente duma sequência de deduções, mas cada parte se liga também às outras admitindo-lhes o conhecimento: tal método requer que o leitor retenha presente na memória não apenas o que precede imediatamente, como também tudo quanto até ali precedeu, de maneira que possa conjugar o pensamento atual ao pensamento anterior, qualquer que seja a distância que os separe; condição que exige igualmente Platão, porquanto nos seus Diálogos, de tão complicado processo, não retoma a tese fundamental senão depois de longos episódios, que servem contudo para mais esclarecer o seu pensamento. Na presente obra, tal condição é obrigatória, visto que o meio que tinha para apresentar meu pensamento único era o de decompô-lo e pô-lo sob a forma de quatro considerações, forma que por nada é essencial mas antes, artificial. Para expor e fazer compreender mais facilmente o meu pensamento, distingui quatro pontos e tive o cuidado de bem juntar, concatenando, a matéria igual e homogênea; entretanto, a natureza do assunto não admitia o caminho em linha reta, como o admite a história, e me impôs uma ordem mais complicada; donde resulta a obrigação de ler a minha obra muitas vezes, posto que é este o único meio de aprender a engrenagem de cada uma das partes com qualquer outra delas, e é então somente que, conquanto os quatro livros mutuamente se esclarecem, o seu conjunto poderá revelar-se com toda a clareza.

NECESSIDADE DOS ATOS DA VONTADE

Que a vontade como tal seja livre, deriva do fato que, tal como a consideramos, ela é a coisa em si, a substância do fenômeno.

Este, como sabemos, é inteiramente submisso ao princípio de razão nas suas quatro categorias; e como sabemos também que ser necessário é idêntico a ser efeito duma causa dada, que as duas noções são recíprocas, daí resulta que tudo o que pertence ao fenômeno, a saber, tudo o que é objeto para o sujeito cognoscente como indivíduo, constitui a causa por uma parte e, por outra, o efeito, que permanece determinado necessariamente nesta última qualidade e de nenhum modo pode ser diverso daquilo que é.

Tudo quanto a natureza compreende, o conjunto dos seus fenômenos, é absolutamente necessário e a necessidade de cada parte, de cada fenômeno, de cada acontecimento pode ser demonstrada em qualquer caso, desde que se possa encontrar a causa de que dependem como duma consequência. Isto não oferece exceções e resulta da autoridade ilimitada do princípio de razão. Por outro lado, o mundo, em todos os seus fenômenos, é objetividade da vontade, a qual, não sendo ela própria nem fenômeno, nem representação, nem objeto, mas a coisa em si, não está submetida ao princípio de razão que é a forma de qualquer objeto: não é, portanto, o efeito duma causa, não é, por conseguinte, necessária; isto quer dizer que é livre.

O conceito de liberdade é, portanto, um conceito negativo, porque contém, unicamente, a negação da necessidade, isto é, a negação da relação de efeito para causa, segundo o princípio de razão. Encontramos aqui, bem pronunciado, o nivelamento dum grande contraste, a união da liberdade com a necessidade, de que tanto se tem falado nos últimos tempos e sobre o que nada se tem dito, que eu saiba, de claro e de sensato. Qualquer coisa, como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessária: em si, essa é a vontade inteiramente e eternamente livre. O fenômeno, o objeto, é necessariamente e imutavelmente determinado na concatenação das causas e efeitos, que não admite interrupção de sorte alguma. Mas a existência em geral deste objeto e o seu modo de existir, isto é, a Ideia que se manifesta nele, ou, por outras palavras, o seu caráter, é fenômeno imediato da vontade! Esta sendo livre, esse objeto poderia, efetivamente, não existir, ou ser outro, original e essencialmente; mas nesse caso, também toda a cadeia, de que é anel, e a qual é também fenômeno da vontade, seria de todo diferente; mas, uma vez realizada, esse objeto tomou na série de causas ou efeitos um lugar necessariamente fixado e já não pode ser outro, como não pode trocar, nem sair da série, nem desaparecer. O homem é, como qualquer outra parte da natureza, objetividade da vontade; por conseguinte, o que acabamos de dizer aplica-se, igualmente, a ele. Como qualquer coisa na natureza tem as suas forças e as suas qualidades que contra uma ação determinada reagem duma determinada maneira, e constituem o seu caráter, assim também o homem tem um caráter, em virtude do qual os motivos lhe provocam os atos de necessidade. É por meio destes atos que se manifesta o seu caráter empírico, que revela a seu turno o caráter inteligível, a vontade em si, de que ele é o fenômeno determinado. Mas o homem é o fenômeno mais perfeito da vontade: a sua conservação exigia que fosse assistido por uma inteligência de tal sorte desenvolvida que fosse capaz de elevar-se até ao ponto de tornar-se, na representação, uma repetição adequada da essência do mundo; esta repetição, este espelho que reflete o mundo é a concepção das Ideias: apreendemo-lo no livro terceiro. A vontade no homem pode, portanto, chegar ao pleno conhecimento de si: pode conhecer claramente e inteiramente a sua própria essência tal qual se reflete no mundo inteiro. O conhecimento projetado a este grau, dá origem à arte, como expus no livro terceiro. Mas a sequência das nossas considerações nos mostrará também outro resultado: veremos que esta faculdade, empregada pela vontade em estudar-se a si mesma, permite-lhe afirmar-se ou negar-se no seu mais perfeito fenômeno: de modo que a liberdade, que doutra maneira só pertence à coisa em si, pode em tal caso manifestar-se também no fenômeno; e como essa lhe suprime a essência enquanto o indivíduo continua a existir no tempo, assim provoca o antagonismo do fenômeno consigo mesmo, criando assim o estado de santidade ou de renúncia. Mas tudo isto só se nos tornará compreensível no fim do livro. Para o momento quero somente expor aqui, de modo geral, que o homem se distingue de todos os outros fenômenos da vontade, nisto que a liberdade, isto é, a qualidade de não depender do princípio de razão, qualidade que pertence apenas à coisa em si e que esta em contradição com o fenômeno, pode eventualmente surgir também neste último, onde se manifesta fatalmente como uma contradição do próprio fenômeno. Em tal sentido se pode certamente dizer, que não somente a vontade em si, mas também o homem é livre, o que pode servir para distingui-lo de todos os outros seres. A sequência nos ensinará como se deve entender tudo isto; do que não vamos para o momento ocupar-nos. Por isso que, antes de mais nada, devemos pôr à margem o erro que consiste em acreditar que a conduta dum indivíduo determinado não esteja submissa à necessidade, isto é, que o poder do motivo seja menos positivo que o poder da causa, ou duma conclusão extraída de premissas estabelecidas. A liberdade da vontade como coisa em si, abstração feita do único caso excepcional acima recordado, não se transmite diretamente ao fenômeno, nem àquilo em que a vontade aparece mais visivelmente, isto é, ao animal racional dotado dum caráter individual; por outras palavras: à pessoa humana. Esta não é nunca livre, embora seja o fenômeno da vontade livre, por isso que é precisamente um fenômeno já determinado por essa vontade livre; submetendo-se à forma de todo objeto, ou seja, ao princípio de razão, ela desenvolve, é verdade, a unidade da vontade em ações inumeráveis, mas tal pluralidade de ações conserva o rigor de uma lei natural, por causa da unidade extratemporânea dessa vontade em si. Ao mesmo tempo, como é precisamente a mesma vontade livre que se mostra na pessoa e em toda a conduta humana, a que se refere com uma noção à sua definição, assim, cada ação isolada deve ser também atribuída à vontade livre, e assim, sempre como livre, a vontade se apresenta à consciência, de primeira vista: eis pois, e já o dissemos no livro segundo, por que razão qualquer homem, a priori (quer dizer aqui, por um sentimento primitivo) se crê livre em qualquer dos seus atos, no sentido em que, em qualquer caso, acredita poder cumprir qualquer ação: somente a posteriori, por meio da experiência e meditando sobre ela, ele se apercebe de que seus atos resultam com inteira necessidade do seu caráter combinado com motivos. Eis aí como sucede que os homens vulgares, até os mais incultos que não ouvem senão o próprio sentimento, sustentam calorosamente a perfeita liberdade de todas as ações isoladas, enquanto os grandes pensadores, e até as doutrinas religiosas mais profundas, a negaram. Mas quando se chega a ser compenetrado perfeitamente de que toda a essência do homem não é senão vontade, que o próprio homem não é mais que um fenômeno dessa vontade, que tal fenômeno tem o princípio de razão — aqui lei de motivação — por forma necessária e já reconhecível do ponto de vista subjetivo, não se pode duvidar da fatalidade da ação, dados que sejam o caráter e os motivos, como não se poderia duvidar de que no triângulo a soma dos três ângulos é igual a duas retas. A necessidade de qualquer ato da conduta foi com suficiência estabelecida por Priestiey na sua Doctrine of Philosophical Necessty; mas foi Kant [7] quem teve o mérito eminente de ter sido o primeiro a demonstrar não ser a necessidade incompatível com a liberdade da vontade em si, ou seja, fora do fenômeno, fazendo revelar a diferença entre o caráter inteligível e o caráter empírico: eu admito plenamente tal distinção, por isso que o caráter inteligível é a vontade como coisa em si enquanto aparece num grau determinado num indivíduo determinado, e o caráter empírico é o fenômeno tal como se manifesta no tempo por meio da conduta do homem e no espaço por meio da sua própria corporização. A melhor expressão para fazer compreender a sua relação é a que adotei na dissertação que serve de introdução à presente obra, onde eu dizia que o caráter inteligível é um ato extratemporâneo da vontade, conseguintemente indivisível e invariável, cujo fenômeno, desenvolvido e multiplicado no tempo, no espaço e nas formas do princípio de razão, constitui o caráter empírico que se revela experimentalmente no conjunto da conduta e em toda a existência do indivíduo. Como a árvore é o fenômeno, repetido sem pausa, dum só e mesmo germe que tem a forma mais simples, cuja fibra, folhas, fustes, ramos e tronco representam constante e visível aglomeração, assim também todas as ações do homem são a manifestação sempre renovada e que varia ligeiramente só na forma do seu caráter inteligível; a indução resultante da soma das várias ações nos dá o seu caráter empírico. Ademais, não pretendo repetir aqui, retocando-a, a inimitável exposição de Kant: devo admitir que o leitor a conheça.

Em 1840 tratei a fundo e com todo o desenvolvimento, o importante argumento do livre-arbítrio na minha monografia premiada: [8] demonstrei especialmente donde nasce a ilusão pela qual se crê descobrir na própria consciência, como fato real, uma liberdade absoluta da vontade, conhecida empiricamente, liberum arbitrium indifferentiae: por isso que era precisamente sobre este ponto, escolhido com muito critério, que estava posta a questão para o concurso. Recomendo-a, portanto, ao leitor como faço também com o §10 da minha outra memória de concurso sobre o fundamento da moral: os dois trabalhos estão publicados e reunidos sob o título: “Os Dois Problemas Fundamentais da Moral”. Por conseguinte suprimi na presente edição aquilo que sobre este ponto dizia na primeira, de modo ainda muito incompleto, sobre a necessidade dos atos da vontade, e substituo-lhe uma breve explicação destinada a pôr bem clara a ilusão de que acima falava: tal explicação que pressupõe o capítulo 19 do volume segundo, não podia conseguintemente ser dada na monografia linhas acima recordada.

Sem contar com que do momento em que a vontade é a verdadeira coisa em si, portanto, primária e independente, os seus atos, ainda que já determinados, devem igualmente ser acompanhados na consciência do sentimento da sua natureza primitiva e autônoma — a aparência duma liberdade empírica da vontade (em lugar duma liberdade transcendental que efetivamente lhe pertence), isto é, da liberdade das ações, uma por uma, resulta também da posição separada e subordinada do intelecto em relação à vontade, de que tratamos no capítulo 19, do 20 volume, principalmente no sobreverso 3. O intelecto, com efeito, só é informado das decisões da vontade a posteriori e empiricamente. Não possui, portanto, dados para saber qual será essa decisão em presença duma escolha a fazer. Isto pela razão de não ter nenhum conhecimento do caráter inteligível em virtude do qual, estabelecidos os motivos, uma só decisão é possível e, por consequência, necessária; não pode conhecer senão o caráter empírico e isto em seguida por meio dos seus atos singulares. Parece, então, ao entendimento consciente (intelecto) que, apresentando-se tal caso, duas resoluções opostas seriam igualmente possíveis para a vontade. É como se disséssemos que uma haste vertical, movida da posição do seu equilíbrio e oscilante, pode cair à direita ou à esquerda; este pode só tem sentido subjetivo e em realidade significa: enquanto nos são conhecidos os dados: porque objetivamente a direção da queda é necessariamente determinada apenas principia a oscilação. O mesmo sucede para a vontade individual: — sua decisão só é determinada para o seu espectador, o intelecto; a indeterminação é relativa e subjetiva, ou seja, existe unicamente em relação ao sujeito cognoscente; mas em si e objetivamente, em presença duma escolha a fazer a decisão é imediatamente determinada e necessária. Apenas a determinação não chega ao nosso conhecimento senão por meio da decisão que a segue. Há, também, um meio para nos convencer empiricamente de que assim vão as coisas: quando, por exemplo, nos encontramos diante duma escolha importante e difícil, mas submetidos antes de tudo a uma condição, cuja realização não veio ainda, de modo que para o momento nada podemos fazer e devemos ficar passivos. Não nos pomos então a refletir sobre o partido a tomar, antes que se realizem as circunstâncias que virão dar-nos a liberdade de ação e de decisão. Mui frequentemente sucede que um dos partidos é recomendado pela prudência e a razão, enquanto o outro é mais conforme à nossa tendência imediata. Enquanto temos de permanecer inativos, toda a preponderância parece estar do lado da razão; mas já prevemos com que força o outro lado nos atrairá quando chegar o momento de agir. Até esse momento trabalhamos com o fim de nos inteirar dos motivos que militam a favor de cada uma das alternativas: friamente pesamos o pró e o contra, a fim de que tais motivos, chegado o momento, possam agir com toda sua força sobre a nossa vontade, e a fim de que um erro do intelecto não a induza a decidir-se diferentemente do que o faria se tudo agisse de modo uniforme. E eis, pois, aqui toda a parte que o intelecto assume em presença duma escolha a fazer: não pode senão expor claramente as razões respectivas. Com referência à decisão de fato, o intelecto está em expectativa passiva, e com a mesma febril curiosidade como se se tratasse da decisão duma vontade estranha. É, portanto, muito bem compreensível que do seu ponto de vista as duas decisões lhe pareçam igualmente possíveis: ora, aqui precisamente está o que constitui a ilusão duma liberdade empírica da vontade. A decisão não chega, é verdade, ao conhecimento do intelecto senão por meio da experiência, como resultado final da questão; mas ela nasce da natureza íntima, do caráter inteligível da vontade individual no seu conflito com os motivos estabelecidos e por conseguinte com uma absoluta necessidade. Em tudo isto o intelecto somente pode esclarecer, quando seja possível e de cada lado, a natureza dos motivos; mas não pode determinar a vontade mesma, por isso que, não somente não lhe é dado de modo algum chegar até ela, mas também, como já o vimos, a vontade é para ele efetivamente incompreensível.

Se nas mesmas circunstâncias o homem pudesse agir uma vez dum modo e outra vez de outro, seria preciso que no intervalo a sua vontade tivesse podido modificar-se: o que suporia que ela existisse no tempo, no qual somente é possível uma mudança; mas então, de duas uma: ou a vontade não é senão fenômeno, ou então o tempo é um atributo da coisa em si. Com o que vemos que a discussão acerca da liberdade de cada ação, acerca do liberum arbitrium indifferentiae verte em realidade sobre a questão de saber se a vontade existe no tempo, ou não. Se, como ensina Kant, e como resulta necessariamente de quanto expus, a vontade é a coisa em si, posta fora do tempo e de qualquer forma do princípio de razão, segue-se não somente que o homem nas mesmas condições deve agir da mesma maneira e que qualquer ação má é segura garantia duma infinidade de outras más ações que o indivíduo deve cometer e que não pode subtrair-se a cometê-las; mas também, como o diz Kant, se o caráter empírico e os motivos pudessem ser plenamente conhecidos, seria fácil calcular antes no homem a conduta que seguirá, como se calcula um eclipse de Sol ou de Lua. O caráter é tão consequente quanto a natureza: todas as ações, uma a uma, se cumprem em harmonia com o caráter, precisamente como todos os fenômenos se realizam de acordo com a sua lei natural: a causa, no segundo caso, e os motivos, no primeiro, não são mais que causas ocasionais, como o demonstrei no livro segundo. A vontade, de que toda a essência e a existência humana são a mera manifestação, não pode desmentir-se nos casos isolados e, o que o homem quer no total, deve sempre querê-lo também no pormenor.

Esta hipótese duma liberdade empírica da vontade, dum livre-arbítrio de indiferença, está intimamente ligada ao fato de ter posto a essência do homem numa alma que originariamente seria um ser cognoscente, ou melhor ainda, um ser pensante abstratamente e que chegaria somente de segunda mão e como de consequência a fazer-se um ser volitivo, dando assim à vontade uma natureza secundária, enquanto ao contrário, em realidade é secundário o conhecimento. A vontade foi também considerada como um modo do pensamento e identificada com a faculdade de julgar (juízo), especialmente nos sistemas de Descartes e de Spinoza. De acordo com este modo de ver, todo homem se teria tornado o que é, em seguida ao seu conhecimento: — ele vem ao mundo como um zero moral; conhece então as coisas cá de baixo e se decide em seguida a ser tal ou qual outro, a conduzir-se de tal ou qual modo; poderia muitíssimo bem, adquirindo novos conhecimentos, adotar nova conduta, tornar-se, portanto, outro homem. Além do que, com esta teoria ele começaria por conhecer que uma coisa é boa e por isso a quereria: enquanto, ao contrário, primeiramente a quer e depois é que a qualifica de boa. Com efeito, do mundo mesmo da minha teoria ressalta que o primeiro modo de ver é o transtorno completo da verdadeira relação. O primordial, o primitivo sim é que é a vontade; mais tarde veio unir-se-lhe a inteligência, simples instrumento pertencente ao fenômeno da vontade. Em consequência todo homem é aquilo que é por meio da sua vontade e o seu caráter é primitivo, pois que o querer constitui a base do seu ser. Por meio do conhecimento que se lhe veio unir ele aprende, em curso da experiência, aquilo que é, ou seja, aprende a conhecer o seu caráter. Portanto se conhece em consequência de sua vontade e conformemente à natureza dela enquanto, na velha teoria, quer conseguintemente e conformemente ao seu conhecimento. Segundo tal sistema, o homem só teria que refletir como lhe agradaria melhor ser, e assim o seria: eis o seu livre-arbítrio. E este em realidade consiste nisto que o ser humano é a sua própria obra, criada à luz do conhecimento. Quanto a mim, digo ao contrário, que ele é a sua própria obra antes de qualquer conhecimento, e que este veio juntar-se-lhe para esclarecê-la. Não pode jamais trocá-lo: o que é, é uma vez por todas, e o conhece depois. No outro sistema o homem quer o que conhece; no meu, conhece o que quis.

Os gregos denominavam (C. g.) [9] o caráter, e (C. g.) as suas manifestações, ou seja, os costumes; ora, esta palavra deriva de hábito; eles a tinham escolhido com o fim de exprimir metafisicamente a constância do caráter por meio da constância do hábito: (C. g.).

Da palavra ethos, ou seja, caráter que vem de hábito, deriva ética de habituar-se, diz Aristóteles (Eth. magna, 1, 6, p. 1186; Eth. Eud. p. 1229; e Eth. Nic. p. 1103). Stobeu releva: “Os Estoicos, em verdade, seguindo as doutrinas de Zenon, definem metaforicamente o caráter fonte da vida de que procedem as ações especiais”, II, Cap. 7. — Na religião cristã, o dogma da predestinação, consequência da eleição à graça e à desgraça (Epíst. aos Romanos IX, 11-24), deriva evidentemente da crença segundo a qual o homem não muda nunca, que sua vida e sua conduta, isto é, o caráter empírico, não são senão a manifestação do caráter inteligível, o desenvolvimento de disposições decididas e invariáveis, já reconhecíveis na criança, e que por conseguinte a conduta é, por assim dizer, bem determinada desde o nascimento, permanecendo nos traços essenciais igual até ao fim. Estou perfeitamente de acordo com tudo isto, mas acerca das consequências resultantes da união destes pontos de vista tão justos, com os dogmas que já existiam na religião judaica, e que deram origem às maiores dificuldades, produzindo aquele inextricável nó górdio em torno do qual verte a maior parte das discussões da Igreja — não assumo a tarefa de os defender, desde que o próprio apóstolo Paulo não o conseguiu no seu apólogo do oleiro, por ele composto especialmente com tal fim; e depois o resultado seria o que dizem os seguintes versos:

Ela tem medo dos deuses,
A raça dos homens!
Já que eles têm o poder
Nas suas mãos eternas:
E podem usá-lo
Segundo o seu prazer.
(Goethe, Ifigênia, 4, 5)

Mas, em verdade, tais considerações são estranhas ao nosso assunto. Passemos, portanto, a coisas mais úteis e examinemos a relação que existe entre o caráter e o conhecimento que lhe fornece todos os seus motivos.

Os motivos, que constituem o que determina a manifestação do caráter, a conduta, agem por intermédio do conhecimento: ora, o conhecimento é modificável; oscila frequentemente entre o erro e a verdade, corrigindo-se em regra geral sempre maiormente no curso da vida, mas em graus muito diferentes: donde se segue que a conduta dum homem pode mudar de modo notável, sem que se possa dali reduzir a modificação do seu caráter. O que o homem quer real e principalmente, a tendência do seu ser íntimo e a finalidade a que, por conseguinte, tende, são coisas que nenhuma influência externa, nenhum ensinamento poderão, jamais, alterar: sem o que poderíamos regenerá-lo. Di-lo Sêneca admiravelmente: “Velle non discitur” (não se aprende a querer), e dizendo-o prova que amava a verdade até mais que os seus estoicos que ensinavam “poder a virtude ser aprendida” (doceri posse virtutem). Os motivos somente podem, pelo exterior, agir sobre a vontade. Mas não podem nunca modificá-la, por isso que não têm poder sobre ela, senão sob a condição de ser ela precisamente tal qual é. Tudo o que podemos fazer é, portanto, modificar a direção das suas aspirações, ou seja, levá-la a procurar o que não cessará de procurar, sobre uma vida diversa da que tinha até então levado. Como os ensinamentos, assim também um conhecimento mais perfeito, portanto, uma influência externa poderá fazê-la aprender que se enganava nos meios, e poderá também decidi-la a procurar por caminhos diversos, ou a colocar sobre outro objeto, o escopo a que não cessa de mirar em virtude da sua natureza íntima; mas não se conseguirá fazê-la querer qualquer coisa absolutamente diversa do que tenha querido sempre; isto é imutável, porquanto é o que constitui a vontade mesma, a qual seria, então, necessário suprimir. Por outro lado, a modificação possível do conhecimento, logo, da conduta, vai tão adiante que, ainda quando o escopo invariável fosse, por exemplo, o paraíso de Maomé, a vontade procuraria atingi-lo, ora no mundo real, ora num mundo imaginário, e escolheria os seus meios em consequência, recorrendo, no primeiro caso, à prudência, à força ou à fraude; no segundo à continência, à justiça, à caridade ou à peregrinação a Meca. Mas a sua aspiração nem por isso mudou, nem se mudou ela mesma. Se a sua conduta de fato nos parece diferente em épocas diversas, o seu querer, em compensação, permaneceu completamente o mesmo. Não se aprende a querer, velle non discitur.

Para que os motivos ajam não basta a sua presença; é também preciso que sejam reconhecidos: — é por essa razão que, segundo a justa expressão dos escolásticos: causa finalis movet non secundum suum esse reale; sed secundum esse cogitum (a ação da causa final não depende do que ela tem de ser real, mas da porção do seu ser que é conhecida). Por isso que, por exemplo, a respeito de certo homem se ponha à baila a relação entre o egoísmo e a compaixão, não é suficiente que ele possua riquezas e que veja a miséria alheia; urge que saiba, igualmente, como pode servir-se das riquezas não somente para si, mas também para os outros: também não basta que se aperceba das dores alheias, deve também saber o que é dor e o que é gozar. Talvez não soubesse ele tudo isto na primeira ocasião, como na segunda; e se, pois, em caso semelhante se conduz diferentemente, será apenas porque na parte relativa ao conhecimento, as circunstâncias em fundo são diversas, ainda que pareçam idênticas ao primeiro aspecto. Pelo mesmo modo em que a ignorância das circunstâncias realmente existentes lhes tolhe qualquer ação, assim também, em compensação, circunstâncias de todo imaginárias podem agir como a realidade, e isto não apenas no caso duma ilusão única, mas também de maneira geral e contínua. Quando se chega, por exemplo, a convencer um homem de que cada ato de beneficência lhe será pago pelo cêntuplo na vida futura, tal convicção terá para ele o valor e os efeitos duma letra de câmbio perfeitamente segura e a longo prazo e esse tal poderá, então, dar por egoísmo, como por egoísmo poderia também tomar, se tivesse uma convicção diferente. Mas ele mesmo não mudou: Velle non discitur. Esta poderosa influência do conhecimento sobre a conduta, malgrado a imutabilidade da vontade, faz com que o caráter não se desenvolva senão progressivamente, e com que os seus vários atos não se manifestem senão grau por grau. Eis a razão pela qual ele nos parece diferente em cada idade da vida, e uma juventude violenta e impetuosa poderá ser sucedida por uma virilidade repousada e calma. Contudo é especialmente o lado mau do caráter que o tempo faz ressaltar sob cores cada vez mais fortes: mas ainda assim, algumas vezes o homem chega a refrear voluntariamente paixões a que se abandonava na juventude, e isto porque aprendeu a conhecer os motivos contrários. Eis por que em origem somos de todo inocentes, o que significa que nem a nós, nem aos outros é notória a perversidade da nossa natureza: esta não se patenteia em virtude dos motivos, que são conhecidos apenas com o tempo. Longe iríamos com isto de nos conhecer a nós mesmos, e nos vemos bem diferentes do que críamos ser a priori: espantamo-nos frequentemente.

O arrependimento não nasce nunca do que é a vontade (porquanto seria impossível), mas sim do que é o conhecimento, o qual se modificou. Pelo que haja de essencial ou de especial que eu quis, devo querê-lo ainda, porque sou eu mesmo esta vontade que se pôs fora do tempo e de qualquer modificação. Assim, não posso jamais arrepender-me do que quis, senão do que fiz, por isso que, guiado por falsas noções, fiz algo que não era conforme à minha vontade. Cobrar o conhecimento disto, quando a consciência se ajustou, eis aí o arrependimento. E isto não é verdade apenas no que se refere à experiência da vida, à escolha dos meios e ao justo apreçamento do escopo melhor adaptado à minha verdadeira vontade; é também verdadeiro do lado puramente moral da conduta. Por exemplo, posso ter agido com mais egoísmo do que o comum ao meu caráter, em virtude de ter sido induzido em erro por uma ideia exagerada sobre a necessidade em que eu mesmo me achava, ou sobre a astúcia, a falsidade, a malvadez alheia, ou ainda por ter procedido com muita precipitação, ou seja, sem reflexão, deixando-me determinar não pelos motivos nitidamente reconhecidos in abstracto, mas por motivos de simples intuição, por impressão de momento, pela emoção que se lhe derivou e cuja força foi tal, que me tolheu de certa guisa o uso da razão; mas, ainda neste caso, o retorno à reflexão não é mais que um conhecimento, que se anunciará sempre por meio de esforços tendentes a reparar o passado do melhor modo possível. Observamos, todavia, que, com o fim de nos enganar a nós mesmos, preparamos às vezes precipitações aparentes, que são, no fundo, atos secretamente premeditados.

Porque não há pessoa que melhor enganemos e adulemos com artifícios sutis do que a nós mesmos. Mas pode suceder o contrário do caso citado: demasiada confiança em outrem, ou ignorância sobre o valor relativo dos bens da vida, ou ainda algum dogma abstrato em que já não creia, podem decidir-me a agir menos egoisticamente do que o que é conforme ao meu caráter, e preparar, assim, um arrependimento doutro gênero. O arrependimento, portanto, é sempre um conhecimento mais preciso da relação entre a ação e a intenção real. Assim como a vontade, enquanto manifesta suas ideias somente no espaço, ou seja, por simples configuração, encontra o antagonismo da matéria já submissa ao poder de outras ideias, isto é, das forças naturais que raramente permitem à figura tendente a tornar-se visível, produzir-se perfeitamente clara e distinta, isto é, em toda a sua beleza, assim também a vontade, quando se manifesta somente no tempo, ou seja, por meio de atos, encontra um impedimento análogo no conhecimento que raramente lhe fornece dados bem precisos, o que faz com que a ação não chegue a corresponder inteiramente à vontade, preparando assim o arrependimento. Repito, portanto, que o arrependimento nasce sempre dum conhecimento retificado e nunca da modificação impossível da vontade. O remorso que produz um ato não é arrependimento; é a dor que faz provar o conhecimento de si mesmo tomado em si, isto é, como vontade. Funda-se precisamente na convicção adquirida de que a vontade permaneceu sempre a mesma. Se a vontade se tivesse modificado, se o remorso não fosse senão arrependimento, este se anularia a si próprio, visto que o passado não poderia acordar angústias na consciência, já que seria a manifestação duma vontade que não é mais a do arrependido. Na sequência desta obra voltarei com mais pormenores sobre o remorso.

Esta influência que o conhecimento, na sua qualidade de agente intermediário dos motivos, exerce não sobre a vontade, mas sobre a manifestação desta por meio de atos, estabelece também a diferença principal entre a conduta do homem e a conduta do animal, e esta é a razão por que seus modos de conhecimento diferem consideravelmente, dum para outro. O animal, com efeito, não tem mais que representações intuitivas; o homem, em virtude da razão, possui, para além, representações abstratas, noções. Se bem que os motivos ajam com a mesma necessidade sobre o animal e sobre o homem, é este último somente que tem o privilégio duma perfeita determinação eletiva, que frequentemente foi considerada como constituinte da liberdade da vontade nas ações, ainda que outra coisa não seja senão a possibilidade dum conflito que deve seguir até um resultado definitivo entre muitos motivos, dos quais o mais forte determina então necessariamente a volição. Mas para isto é preciso que os motivos hajam revestido a forma de conceitos, pois que não é senão por intermédio destes que uma verdadeira determinação, isto é, um apreçamento de motivos de conduta oposta, se torna possível. O animal só tem escolha entre motivos presentes e visíveis; a escolha, portanto, é restrita à esfera limitada da sua compreensão atual e intuitiva. Por isso, somente nos animais a necessidade com que se efetua a determinação da vontade por meio dos motivos, igual à do efeito para a causa, pode manifestar-se visível e diretamente, pelo que o observador tem sob os olhos de maneira imediata simultaneamente os motivos e seus efeitos; no homem, ao contrário, os motivos são quase sempre representações abstratas que o espectador ignora, e além do que, a necessidade de ação deles se dissimula pelo mesmo agente ativo, sob o seu conflito. Efetivamente não é senão in abstracto, sob forma de juízos e de concatenações de conclusões, que múltiplas representações podem coexistir na consciência e reagir depois, umas contra as outras, libertas de qualquer condição de tempo, até que a mais enérgica vença e determine a vontade. Eis a perfeita determinação eletiva, ou faculdade deliberativa que o homem possui de preferência ao animal, e que se lhe fez supor um livre-arbítrio porque se supôs que o querer era um mero resultado de operações intelectuais, que não se fundava sobre nenhum impulso instintivo, enquanto em realidade os motivos não agem senão sobre a base e com a condição dum instinto bem determinado, o qual é no homem instinto individual, por outras palavras, caráter. Encontrar-se-á uma exposição mais pormenorizada de tal faculdade de deliberar e da diferença que estabelece na volição consciente no homem e no animal, na obra: Os Dois Problemas Fundamentais da Ética (l.ª edição, pág. 35, e seg.; II ed. pág. 34 e seguintes); a essa leitura convido o leitor. Ademais, tal faculdade de deliberação, no homem, faz parte das coisas que lhe tornam a existência infinitamente mais dolorosa que a do animal; por isto que, em geral, as nossas maiores dores não se encontram no presente sob forma de representações intuitivas e de sensações imediatas, mas sim na razão sob forma de noções abstratas, de pensamentos que nos torturam, o que não possui o animal que vive somente no presente e, por conseguinte, num estado de descuidada quietação que devemos invejar-lhe.

O fato pelo qual, no homem, a faculdade de deliberação depende da de abstração, e portanto também a faculdade de julgar depende da de concluir, parece ter induzido Descartes e Spinoza a identificar as decisões da vontade com a faculdade de afirmar e de negar (Juízo): por onde concluía Descartes que se devia atribuir à vontade, dotada segundo ele da liberdade de indiferença, também a culpa de qualquer erro teórico; Spinoza concluía ao contrário que os motivos determinam a vontade precisamente como os princípios determinam por necessidade o juízo; [10] isto é exato e nos oferece o exemplo duma conclusão verdadeira tirada de premissas falsas.

A diferença que acabamos de fazer ressaltar entre o animal e o homem quanto ao modo pelo qual os motivos agem sobre eles, exerce também a maior influência sobre o seu ser em geral, e constitui o elemento principal dessa diferença profunda e muito aparente que lhes separa o gênero de vida. O animal é sempre movido por alguma representação intuitiva. O homem, ao contrário, esforça-se continuamente por deixar à margem tal maneira de motivação e por deixar-se determinar unicamente pelas representações abstratas; utiliza-se, assim, com a maior vantagem do seu privilégio da razão, torna-se independente do momento e, em lugar de escolher o prazer fugaz ou de fugir à dor passageira, reflete nas suas consequências. Na maior parte dos casos, salvo nas ações insignificantes, nos determinam motivos abstratos, meditados, e não as impressões da hora. Qualquer privação isolada, portanto, nos resulta bastante fácil para o momento, mas qualquer renúncia nos é sobremodo difícil; por isto que a primeira só está ligada ao presente fugitivo, enquanto a segunda se estende ao futuro e guarda consigo privações inumeráveis das quais é o equivalente. Por consequência, a causa das nossas dores ou das nossas alegrias, não reside, de ordinário, na realidade presente, mas em pensamentos abstratos; e são estes que se nos tornam frequentemente molestos até ao ponto de nos criar tormentos a cujo confronto todas as dores dos animais são insignificantes, pois que tais torturas morais nos impedem às vezes de advertir até mesmo as nossas dores físicas e pois que, sob o império de sofrimentos intelectuais extremos, procuramos os sofrimentos físicos com o único fito de distrair a nossa atenção daqueles para estes: razão pela qual vemos o homem dominado por violenta dor moral, arrancar os cabelos, bater o peito, arranhar o rosto, rolar por terra, meios violentos para distrair-se dalgum pensamento tornado insuportável. É igualmente porque os sofrimentos morais, como os mais fortes, nos tornam insensíveis aos sofrimentos físicos, que o suicídio se torna quase fácil ao homem desesperado ou a quem se sinta dilacerado por uma tristeza mórbida mesmo quando no estado anterior de calma física ou moral este pensamento o tivesse feito recuar. Da mesma maneira os afãs ou as paixões, que são movimentos do pensamento, consomem o corpo mais rápida e profundamente do que o teriam feito os males físicos. Com razão, portanto, diz Epíteto: não as coisas por si mesmas perturbam o homem, mas a ideia que fazem delas, e Sêneca: nós temos sempre mais medos do que males, e sofremos mais em ideia do que na realidade (Ep. 5). Eulenspiegel, que ria na subida e chorava na descida, zombava assim, com muito engenho, da natureza humana. Mas há melhor: a criança que se fere, muitas vezes não grita nem se lamenta de dor, senão quando se lh’a chora; deste modo, é o pensamento que se lhe acordou que a faz chorar. Tais são as imensas diferenças na maneira de agir e de viver que derivam da diversidade entre o modo de conhecimento do homem e o do animal. Além do que, a manifestação do caráter individual bem nítido e decisivo que distingue o homem do animal, possuidor quase que unicamente do caráter da espécie, tem igualmente por condição esta escolha entre motivos diversos, escolha tornada possível pelas noções abstratas. Eis a razão por que, não é senão quando houve escolha preliminar, que as resoluções, que diferem nos diversos indivíduos, serão a marca do caráter individual variável de homem para homem: no animal, ao contrário, o ato não tem por condição senão a existência duma impressão, suposto, bem entendido, que esta constitua em geral um motivo para a espécie. Finalmente, no homem, aos seus próprios olhos como aos alheios, somente a resolução é o signo autêntico do seu caráter e não o simples desejo. E a resolução não se torna certa, tanto para si quanto para os outros, senão por meio da ação. O desejo é simplesmente a consequência necessária da impressão atual, seja quando esta derive da excitação externa, seja quando derive da disposição interna transitória; é tão necessário diretamente e tão inconsiderado quanto a ação do animal e como esta, efetivamente, exprime apenas o caráter especifico e não o individual; quero dizer que manifesta o que seria capaz de fazer o homem em geral e não o indivíduo que deseja. Como a ação, enquanto é ação humana, requer sempre uma certa premeditação; como além do mais, o homem é, ordinariamente, senhor da sua razão, isto é, reflete, ou em outros termos, se decide em virtude de motivos abstratos e meditados, segue-se daí que não há mais que o ato executado que exprima a máxima inteligível da sua conduta, que seja o resultado da sua mais íntima vontade: a ação comparece como uma das letras da palavra que desenha o seu caráter empírico, que outra coisa não é, mais que a manifestação no tempo, do seu caráter inteligível. Eis a razão por que, quando o espírito não é doentio, somente os atos e não os desejos pesam na consciência. Isto porque eles representam, aos nossos olhos, o espelho da nossa vontade. Quanto a essas ações de que falamos anteriormente, cometidas sem reflexão alguma no ímpeto cego duma paixão, elas são qualquer coisa de intermediário entre o simples desejo e a resolução: por isto um arrependimento sincero, um arrependimento que se manifeste com fatos, pode cancelá-las como ato falho, da imagem da nossa vontade, ou seja, da nossa existência.

Faço notar, de passagem e a título de curioso confronto, que a relação entre o desejo e a ação tem uma analogia, de todo acidental, mas perfeita, com a relação que existe entre a distribuição e a comunicação elétrica.

Como consequência do conjunto destas considerações sobre a liberdade da vontade e sobre o que lhe diz respeito, achamos que a vontade, conquanto livre, onipotente até, tomada em si e fora da sua manifestação, é determinada desde que se observa nesses fenômenos individuais que esclarecem o conhecimento dos homens e nos animais, por meio dos motivos contra os quais cada caráter especial reage regular e necessariamente e sempre do mesmo modo. Vemos, também, que o homem, dotado dum conhecimento abstrato ou de razão, tem sobre o animal a vantagem de possuir a faculdade de determinação eletiva; mas esta faculdade mesma faz dele um campo de batalha pelo conflito dos motivos a cujo domínio não o subtrai todavia; ela é em verdade a condição que torna possível a manifestação completa do caráter individual, mas não se deve considerá-la como constituinte do livre-arbítrio para o indivíduo, ou como vontade liberta da lei da causalidade por isto que, a necessidade da causalidade se aplica ao homem como a qualquer outro fenômeno. Até aqui, e não para além, se estende a diferença que a razão, ou conhecimento abstrato, cria entre a volição humana e a volição do animal. Dá-se, contudo, um fenômeno da vontade bem diferente, impossível no animal, que pode produzir-se no homem, quando, rejeitado o conjunto do conhecimento das coisas particulares, que é o modo de conhecer feito pelo princípio de razão, e elevando-se ao conhecimento das Ideias, a sua inteligência penetra o princípio de individuação: chegado a este ponto torna-se possível uma real manifestação de verdadeira liberdade da vontade, por cujo meio o fenômeno se põe em certa contradição consigo mesmo, contradição designada pela palavra negação de si e que pode, em última análise, chegar até o aniquilamento da própria essência do fenômeno: tal manifestação particular, a única dirigida por um livre-arbítrio que se produz no mesmo fenômeno, não pode ainda ser exposta de modo a tornar-se bem compreensível: faremos dela o objeto final das nossas considerações.

Mas como tudo quanto expusemos até aqui nos dá claramente demonstrada a imutabilidade do caráter empírico, que não é senão o desenvolvimento do caráter inteligível extratemporâneo, e assim também a necessidade com que, do seu encontro com os motivos derivam as nossas ações, urge antes de mais nada pôr à margem uma conclusão que dali se poderia facilmente tirar em proveito de más inclinações. Efetivamente, pois que o nosso caráter é o desenvolvimento no tempo de um ato voluntário que, existindo fora do tempo, é indivisível e invariável: em outras palavras, é o desenvolvimento do caráter inteligível, por cujo meio tudo quanto há de essencial em nossa existência, ou seja, o seu conteúdo moral, é determinado de modo invariável e deve conseguintemente exprimir-se no seu fenômeno, constituído pelo caráter empírico, enquanto o que há de não-essencial em tal fenômeno, a forma externa da nossa existência, depende do aspecto sob o qual se apresentam os motivos — se poderia concluir que seria trabalho perdido cansar-se a corrigir o próprio caráter ou a resistir ao poder das más inclinações, e que o melhor partido a tomar seria resignar-se ao que não se pode mudar e ceder logo a qualquer tendência, ainda que má. Mas com tal questão sucede como com a teoria da fatalidade e da consequência que se lhe extrai, chamada em nossos dias de fatalismo oriental. Cícero, no seu livro, De Fato (cad. 12 e 13), apresenta a boa refutação que, segundo se diz, foi dada por Chrysippo.

De fato, ainda que tudo possa ser considerado como irrevogavelmente estabelecido “a priori” pela sorte, esta não o é, contudo, senão em virtude do concatenamento das causas. Em nenhum caso, portanto, pode ter sido estabelecido que nasça um efeito sem causa. O acontecimento não é premeditado pura e simplesmente, mas sim como resultado de causas anteriores: a sorte não decide apenas o resultado mas também as circunstâncias de que depende. Por conseguinte, se os meios não se produzirem, evidentemente não se produzirá o resultado; as duas eventualidades estão submissas às decisões da sorte, mas nós não o sabemos senão posteriormente.

Assim como é em virtude da sorte, isto é, do concatenamento sem fim das causas que sucede qualquer acontecimento, assim também as nossas ações se cumprem sempre de conformidade com o nosso caráter inteligível: mas assim como não conhecemos anteriormente o destino, assim também não conhecemos “a priori” o caráter; somente “a posteriori”, por experiência, aprendemos a nos conhecer a nós mesmos e aos outros. Se o nosso caráter inteligível é feito de modo que não possamos tomar uma boa resolução senão depois de prolongada luta contra alguma tendência má, é preciso que tal luta a preceda e só temos a esperar pelo êxito. As reflexões sobre a invariabilidade do caráter, sobre a fonte única donde emanam todas as nossas ações, não devem levar-nos a pressagiar em favor duma parte ou doutra, sobre a decisão a que nos conduzirá o caráter: é pela resolução que lhe derivará que conheceremos a natureza de que somos compostos e poderemos contemplar-nos no espelho das nossas ações. Isto nos explica a satisfação ou a angústia de ânimo com que volvemos mentalmente para o curso de nossa vida: não nascem tais sentimentos porque os atos do passado subsistam ainda: esses sucederam, foram e já não são; o que lhes dá a nossos olhos tão alta importância, é o seu significado, é o serem a imagem do caráter, o espelho da vontade a que não podemos deitar os olhos sem ver o nosso eu mais íntimo, sem reconhecer a substância da nossa vontade. Como antecipadamente nada conhecemos de tudo isto, como não o aprendemos senão mais tarde, toca-nos trabalhar ou lutar durante a nossa existência no tempo, a fim de que o quadro que resultar de nossos atos seja de natureza a confortar-nos e não a inquietar-nos. Quanto ao significado dessa inquietude ou dessa ansiedade de ânimo, mais adiante o estudaremos, como já o disse, aliás. Mas em compensação, eis o lugar para expor a consideração seguinte que posso apresentar isolada.

Ao lado do caráter inteligível e do caráter empírico, um terceiro existe, diferente de ambos, de que temos que tratar aqui; é esse o caráter adquirido que só se obtêm no curso da vida, por meio das relações com o mundo; é a ele que se fala quando se louva a alguém o ter caráter ou quando se lamenta a sua falta. Na verdade poderia crer-se que, desde que o caráter empírico, fenômeno do caráter inteligível, é invariável e consequente consigo mesmo como qualquer fenômeno natural, também o homem deveria parecer sempre semelhante a si próprio e permanecer consequente, e que não teria necessidade de criar artificialmente um novo caráter, com a experiência e com a meditação. Entretanto, não é assim, e, embora permaneçamos sempre os mesmos, nem sempre chegamos a nos compreender a nós mesmos; antes, com muita frequência nos desconhecemos até que tenhamos adquirido certo grau do verdadeiro conhecimento de nós mesmos. O caráter empírico, simples instinto natural, é em si desprovido da razão: suas próprias manifestações são impedidas pela razão e isto tanto mais quanto melhor é o homem dotado de reflexão e de força intelectual. Por isso que suas faculdades lhe apresentam sem tréguas aquilo que pertence ao homem em geral como caráter da espécie e o que lhe é possível como querer e como agir. O que lhe agrava a dificuldade de reconhecer aquilo que, no meio de tudo isto, em virtude da sua individualidade, quer e pode exclusivamente. Encontra em si disposições para todas as aspirações e para todas as forças, tão diversas e próprias à humanidade; mas sem o auxílio da experiência não pode conhecer claramente o grau de energia que elas têm na sua individualidade: e ainda que se entregue somente aos impulsos conformes ao seu caráter, sente, contudo, particularmente em certos momentos e em certas disposições uma tendência que o conduz a impulsos opostos, os quais deve sufocar inteiramente se quer abandonar-se aos primeiros sem obstáculo. Porque, tal como o nosso caminho material sobre a terra não é uma superfície mas uma linha, assim também na vida, quando queremos apoderar-nos de alguma coisa e conservá-la, é preciso que nos resignemos a abandonar uma imensidade de outras. Não saber resolver-se, estender, como as crianças nas feiras, a mão para tudo o que na passagem nos tenta, é uma conduta absurda, é querer mudar em superfície a linha da nossa vida: corremos então em ziguezague, como fogos-fátuos erramos por aquém e acabamos com chegar a nada. Tentemos outra comparação: segundo a teoria do direito em Hobbes, cada homem em origem possui um direito sobre todas as coisas, mas este direito não é exclusivo; para que se torne tal sobre certas coisas, é preciso que o homem renuncie ao resto, e em compensação os outros farão o mesmo em relação ao que foi escolhido por ele; assim sucede na vida, em que não podemos perseguir seriamente e com esperanças de êxito, qualquer aspiração determinada, o prazer, a glória, a riqueza, a ciência, a arte ou a virtude, senão sob a condição de renunciar a qualquer outra pretensão, de desistir de quanto seja estranho ao escopo de nossos esforços. Eis por que o simples querer e poder não bastam por si mesmos; o homem deve também saber o que quer e saber do que é capaz: então somente dará prova de caráter, então somente fará convenientemente quanto empreender.

Antes de chegar a este ponto, a despeito da coerência natural do caráter empírico, será desprovido de caráter e conquanto deva, em suma, permanecer fiel a si mesmo e seguir o seu caminho, será arrastado pelo seu demônio; e deste modo não descreverá uma linha perfeitamente reta, mas desigual e serpenteante; vacilará, desviar-se-á, revolverá sobre seus passos e há de semear arrependimentos e dissabores: tudo isto porque vê, nas grandes como nas pequenas coisas, tudo quanto está no poder e ao alcance do homem em geral, sem distinguir em tal confusão, o que é conforme à sua natureza, o que pode empreender, como também o que pode dar-lhe prazer. Invejará pessoas por posições e condições que convêm ao caráter delas e não ao seu e que o fariam porventura infeliz, que talvez lhe tornariam insuportável a existência. Como o peixe não vive bem senão na água, o pássaro no ar e a toupeira sob a terra, assim também o homem não se sente à vontade senão no ambiente que lhe é apropriado: o ar das cortes, por exemplo, não é respirável a todos. Por não saber isto suficientemente, mais de um indivíduo tentará infrutuosos esforços; nos pormenores fará violência ao seu próprio caráter e deverá ceder-lhe ainda no seu todo: o que adquirir assim, penosamente e de modo contrário à sua natureza, não lhe trará prazer; ficará letra morta, o que aprender em tais condições. Também no terreno moral, uma ação demasiado nobre para o seu caráter, ação que não partir de um impulso espontâneo, mas antes de algum conceito ou de algum dogma, perderá o seu mérito, mesmo a seus próprios olhos pelo arrependimento egoísta de que será sucedida. Velle nou discitur. Quanto aos outros, desde que a experiência não nos haja convencido de inflexibilidade do caráter, imaginamos ingenuamente poder, com sábios conselhos, com súplicas e instâncias, com o nosso exemplo e com a nossa generosidade, reduzi-los à correção de seus maus hábitos, a mudarem de conduta, a modificarem o sentimento, talvez mesmo a desenvolverem as suas faculdades: a nossa situação para conosco mesmos é precisamente igual. A experiência é que deve ensinar-nos o que queremos e o que podemos: antes dela nós o ignoramos, somos, como se costuma dizer, sem caráter, e o mais das vezes, nos constrangem a que semeemos, em nosso caminho, os ásperos solavancos do mundo externo. Quando chegamos, enfim, a saber tudo isto, nós, como se diz comumente, possuímos caráter, o caráter adquirido, o qual não é outra coisa senão o conhecimento mais perfeito possível da nossa individualidade; o conhecimento abstrato, claro, portanto, das qualidades imutáveis do nosso caráter empírico e assim também do grau e da direção do nosso poder intelectual e físico: por conseguinte, do conjunto de forças e fraquezas da nossa personalidade. Esta parte pessoal, imutável em si, que vínhamos até agora sustentando de modo desregrado, poderemos doravante desempenhar com reflexão e método, cobrindo, sob guia de noções fixas, as lacunas oriundas de fantasias e debilidades. A conduta, que já nos foi traçada pela natureza individual, baseia-se sobre princípios sempre claros, sempre presentes à nossa consciência, aos quais nos conformamos com a mesma segurança com que recitaríamos uma lição aprendida, sem nos deixar desviar pela influência passageira do humor, ou pela impressão do momento, sem nos deixar embargar pela amargura ou a doçura de qualquer particularidade encontrada em meio do caminho, sem hesitações, sem incertezas, sem incoerências. Não somos já desses noviços que devem esperar, provar, tatear antes de saber o que querem e o que podem: sabemo-lo já e duma vez por todas; quando nos encontramos em presença duma escolha não temos senão que aplicar preceitos gerais a um caso particular e chegaremos logo a uma decisão. Conhecedores da vontade geral, já nos não deixamos induzir por disposições de humor ou por circunstâncias externas, a querer no particular aquilo que lhe é contrário no conjunto. Conhecemos, ademais, o grau e a natureza da nossa força e da nossa fraqueza e deste modo evitaremos muitos males. Porque prazer não existe, a bem dizer, senão no emprego e no sentimento de nossas forças, e não há dor maior do que a percepção da própria fraqueza, quando se tem necessidade de ser forte. Por conseguinte, após ter conhecido quais são os nossos lados fortes e quais os débeis, desenvolveremos as nossas disposições naturais mais argutas, as quais aplicaremos sempre para as direções em que foram úteis e necessárias; evitaremos absolutamente, ainda que tal devesse custar uma vitória sobre nós mesmos, tudo quanto está fora de nossas faculdades nativas, e nos guardaremos muito bem de empreender coisas cuja falência é certa. Unicamente aquele que atingir este ponto, será sempre, inteiramente e com plena consciência, o homem que é; seu ego não o trairá jamais, porque saberá sempre o que dele se pode esperar. Tal homem provará não poucas vezes a satisfação de sentir-se forte; de raro sofrerá a dor de ser chamado ao sentimento de suas fraquezas, coisa que constitui uma humilhação que provoca talvez as mais vivas angústias do espírito; tal a humilhação que faz com que se suporte mais facilmente a certeza duma desgraça que a certeza duma inaptidão. Quando possuímos a firme consciência da nossa força e da nossa fraqueza, não tentaremos nunca fazer aparato de qualidades que não possuímos, não jogaremos com moeda falsa, porquanto qualquer trapaça dum tal gênero acaba sempre com fugir ao seu fim. O homem, no seu todo, nada mais sendo que o fenômeno da vontade, não pode, na verdade, haver maior absurdo do que o querer-se deliberadamente ser qualquer coisa que não seja aquilo que se é: trata-se duma contradição direta da vontade consigo mesma. Imitar qualidades ou particularidades alheias é coisa que traz vergonha muito maior do que vestir-se de alheios trajos: constitui a declaração de que não se tem valor próprio.

Conhecer as próprias tendências e as próprias qualidades de qualquer sorte que sejam, e assim também os limites que não se podem ultrapassar, eis, a tal respeito, o caminho mais seguro para chegarmos à maior satisfação possível conosco mesmos. Porquanto o que sucede conosco, é o mesmo que com os acontecimentos externos, quer dizer, não há consolação mais eficaz do que a perfeita certeza duma necessidade inflexível. Não nos tortura tanto uma desgraça que nos golpeia, quanto o pensamento das circunstâncias por cujo meio poderia ter sido desviada; nada, portanto, contribui mais para nos acalmar do que considerar todos os acontecimentos sob o ponto de vista da sua necessidade, ou seja, como instrumento dum destino soberano, e a desdita presente como a consequência dum concurso inevitável de circunstâncias internas e externas: donde o fatalismo, fato por que, a bem dizer, nem choramos, nem reclamamos, senão até ao ponto em que esperamos agir assim sobre os outros, ou quando queremos excitar-nos a esforços supremos. Mas, crianças ou homens que sejamos, bem sabemos resignar-nos, apenas consigamos ver claramente que nada poderia mudar o que sucedeu:

Domando o nosso coração no nosso peito,
Visto que assim é o destino.
(Homero, Ilíada, 18,133)

Semelhamos elefantes prisioneiros que se debatem raivosamente por alguns dias, mas que, enfim, reconhecida a inutilidade do furor, aceitam com tranquilidade o jugo, para sempre domesticados. Fazemos como o Rei Davi que, até ao instante em que o filho respirava, não cessou de implorar Jeová, mostrando-se desesperado, sem se dar mais cuidados desde que o filho morreu. Pela mesma razão tanta gente suporta com indiferença tão grande séquito de males, por exemplo, deformidade, miséria, baixa condição, brutalidade, alojamento infecto; coisas de que sofrem como de chagas cicatrizadas, unicamente porque sabem que alguma necessidade interna ou externa não lhes permite mudá-las em nada, enquanto os mais afortunados não compreendem como possa alguém fazer frente a tantos males. Tal como para a necessidade externa, coisa alguma nos reconcilia melhor com uma necessidade interna, do que o reconhecê-la bem nitidamente. Desde que tenhamos aprendido, uma vez por todas, a reconhecer perfeitamente nossas boas e más qualidades, nossas forças e nossas debilidades, e desde que em relação com elas tenhamos ordenado nossa vida e tomado partido sobre o que nos resulta inacessível, desde então fugiremos com segurança, desde que o permita nossa individualidade, à mais amarga de todas as dores, ao descontentamento de nós mesmos, inevitável consequência da ignorância ou da falsa opinião sobre o nosso ego, bem como da presunção que dali deriva. Os seguintes versos de Ovídio aplicam-se maravilhosamente bem a este amargo capítulo do conhecimento de si mesmo.

Recomendamo-los:

Optimus ilie animi vindex laedentia pectus
Vincula qui rupit dedoluitque semel. [11]
(Remedia amoris, 293)

Eis tudo sobre o caráter adquirido; mais do que na ética propriamente dita, tem ele importância na vida social, mas o trato de tal assunto encontra lugar ao lado do argumento sobre o caráter inteligível e o caráter empírico, onde o caráter adquirido forma uma terceira espécie: tivemos de estudar os dois primeiros com algumas particularidades, a fim de chegar a compreender claramente como a vontade se acha sujeita em todos os seus fenômenos à necessidade, enquanto em si mesma é livre, ou antes, onipotente.

VIVER É SOFRER

Esta liberdade, esta onipotência, de que o conjunto no mundo visível é o fenômeno, a manifestação, a imagem, desenvolvendo-se progressivamente segundo as leis que comporta o mundo do conhecimento, pode manifestar-se uma segunda vez, isto no seu fenômeno mais perfeito, nesse fenômeno donde saiu a consciência completamente adequada da sua essência; essa nova manifestação pode cumprir-se por duas maneiras: ou, atingido que for, o sumo do conhecimento ou da consciência de si, a vontade quer o mesmo que queria cega e inconsciente, e, nesse caso, o conhecimento, particular ou geral continua sempre a ser para ela um motivo; ou então, inversamente, o conhecimento torna-se um sedativo que faz calar-se e anular qualquer querer. Eis a afirmação ou a negação do querer-viver de que falamos anteriormente de modo geral: do ponto de vista do indivíduo, não se trata duma manifestação particular à vontade, mas sim duma manifestação geral; não interrompe, nem modifica o desenvolvimento do caráter e não se exprime por atos singulares, senão que se traduz de maneira viva, por meio da acentuação cada vez mais pronunciada, ou, contrariamente, por meio da modificação de qualquer conduta até então seguida, a máxima livremente adotada pela vontade, tornada consciente. As considerações até aqui apresentadas incidentalmente sobre a necessidade e sobre o caráter, facilitaram e iniciaram a exposição mais compreensível de toda esta matéria; tal exposição, entretanto, há de tornar-se ainda mais clara quando, diferindo-a mais uma vez, tivermos retomado o fio do nosso estudo sobre a vida mesma, porquanto a grande questão consiste exatamente no querer ou no não-querer-viver: conduziremos tal estudo de modo a tentar o conhecimento em geral daquilo que pode ganhar, afirmando-se a vontade, essa essência íntima da vida universal; de que maneira e em que medida tal afirmação a satisfaça, se pode, contudo, satisfazê-la; em breve examinaremos qual pode ser a sua condição geral e essencial neste mundo que lhe pertence sob todos os aspectos.

Antes de mais nada, peço ao leitor recordar-se da reflexão apresentada no fim do segundo livro, quando procurávamos o escopo que a vontade tem em vista; em lugar duma resposta, fiz ver que a vontade, em todos os graus do seu fenômeno, dos mais baixos aos mais altos, não tem absolutamente nenhum escopo final, que aspira sempre, porque sua essência é uma aspiração perpétua que nenhum escopo atingido consegue exaurir, que não pode, portanto, ter satisfação final, que os obstáculos só podem produzir suspensão, mas que em si, a vontade se persegue ao infinito. Já o constatamos para o mais simples dos fenômenos naturais, para a gravidade, que não cessaria de funcionar e de tender para um ponto central sem extensão, ainda mesmo que todo o universo se concentrasse numa única massa e ainda que a própria gravidade, com toda a matéria, se aniquilasse atingindo esse ponto. Vemo-lo, igualmente, em todos os outros fenômenos simples da natureza; o que é sólido tende por fusão ou por dissolução, ao estado líquido, que é o único em que suas qualidades químicas adquirem liberdade de ação: a rigidez é um estado de prisão mantida pelo frio. A matéria no estado líquido aspira à evaporação, a que chega apenas possa subtrair-se à pressão. Não há corpo sem afinidade, ou seja, sem aspiração, ou ainda, como se exprime Jacó Bôehme, sem paixões e sem apetites. A eletricidade propaga ao infinito o seu autoantagonismo, embora a massa terrestre lhe absorva continuamente o efeito. O galvanismo, por todo o tempo em que funciona a pilha, é igualmente um ato sem escopo, sem trégua repetido, de discórdia e de reconciliação consigo mesmo. Também a vida da planta é uma aspiração contínua a germinar através de formas gradualmente progressivas, até ao momento em que o ponto final, o fruto, retorna ao ponto inicial. E tudo isto se repete ao infinito sem que exista jamais um escopo, sem que haja uma satisfação final, sem que haja um instante de repouso. Ao mesmo tempo podemos evocar à mente o que expus no livro segundo e precisamente isto que, em tudo, as várias forças naturais e as formas orgânicas contendem com a matéria, em que querem manifestar-se, porque cada uma delas não possui senão aquilo que tirou às outras, durando assim “ad-perpetuum” uma luta de vida e de morte; da qual nasce exatamente a resistência pela qual essa aspiração, essa essência íntima de tudo, ou é por todo modo atravancada, ou age inutilmente, sem poder modificar a sua natureza, persistindo em meio de mil tormentos, até que tal fenômeno pereça e outros lhe tomem avidamente o lugar e a matéria.

Muito há que aprendemos ser essa aspiração, a substância e o em si de cada coisa, idêntica àquilo que se chama vontade, em nós, que somos aqueles em quem ela se manifesta mais distintamente e à luz da consciência mais perfeita. Quando surge um obstáculo entre ela e o seu escopo momentâneo, chamamos a tal obstáculo sofrimento; seu bom sucesso ao invés é o que chamamos satisfação, bem-estar, felicidade. Podemos aplicar estes mesmos nomes aos fenômenos do mundo inconsciente, mais débeis quanto ao grau, mas idênticos quanto à natureza. Vemo-los, então, a seu turno presas da dor e sem estável felicidade. Porquanto cada aspiração nasce duma necessidade, dum descontentamento com o próprio estado; existe, portanto, sofrimento até que tal aspiração não seja satisfeita; mas não existe satisfação durável: esta não é senão o ponto de partida duma nova aspiração, sempre embargada por toda maneira, sempre lutando, portanto, sempre causa de dor: para ela jamais um escopo final, jamais para ela um limite ou termo de sofrimento.

Mas aquilo que não podemos descobrir na natureza inconsciente, senão por meio da mais penetrante observação e ao preço de grandes fadigas, se nos mostra distintamente na natureza consciente, na vida animal, cujo contínuo sofrimento é fácil de demonstrar-se. Porém, sem retardar-nos nesse degrau intermediário, queremos chegar logo àquele em que, esclarecido pela consciência mais luminosa, tudo se revela com nitidez, seja dito a vida humana. Porquanto à medida que o fenômeno da vontade se aperfeiçoa, na mesma medida se torna o sofrimento cada vez mais patente. Na planta em que não há sensibilidade, não há, portanto, nenhuma dor: os animais inferiores, infusórios e radiados, não possuem certamente, senão um grau mínimo de sofrimento: igualmente nos insetos a faculdade de sentir e de sofrer é bastante limitada; é como o perfeito sistema nervoso dos vertebrados que essa faculdade atinge um grau elevadíssimo e tanto mais elevado quanto mais for a inteligência desenvolvida. À medida que o conhecimento se torna mais claro e em que a consciência aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo; e é neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado da lucidez de conhecimento, quanto mais é excelsa a sua inteligência: aquele em quem está o gênio, é sempre aquele que maiormente sofre. Neste sentido, isto é, como conhecimento em geral, e não como simples saber abstrato, entendo e cito a sentença do Eclesiastes: Qui auget scientiam, auget dobrem (quem aumenta a sua ciência, aumenta também a sua dor). — Tischbein, verdadeiramente pintor-filósofo, ou filósofo-pintor, exprimiu num desenho com representações maravilhosas e que parecem falar, esta relação exata entre o grau do conhecimento e o grau do sofrimento. A parte superior do desenho mostra algumas mulheres a quem foram os filhos roubados e que em vários grupos e em atitudes diversas exprimem todos os graus da dor, da angústia, do desespero materno; a parte inferior representa, amalgamadas e dispostas do mesmo modo, ovelhas a que se tolheram os cordeirinhos: cada cabeça, cada atitude humana do alto tem o seu encontro e a sua analogia com os animais de baixo, deixando destarte perceber claramente a relação entre a dor possível a uma consciência obtusa como a dum animal, e a angústia violenta de que se torna capaz a lucidez do conhecimento, a clareza da consciência.

Pelo que, aliás, examinaremos qual possa ser na existência humana o destino próprio e essencial da vontade. Cada um poderá reencontrar a analogia expressa com diferentes graduações, mas com mais debilidade, na vida do animal, e convencer-se, também, por meio do sofrimento dos animais de que, em essência, viver é sofrer.

CONTINUIDADE DA DOR

A vontade, em qualquer dos seus graus de objetivação esclarecidos pelo conhecimento, aparece sempre a si mesma como indivíduo. Lançado na infinidade do espaço e do tempo, o indivíduo humano, quantidade finita, imperceptivelmente pequena em confronto com as outras duas, não possui à vista dessas imensidades, uma existência cujas condições sejam absolutas; são-lhes relativos o quando e o onde, porquanto sua duração e sua situação são partes finitas, dum todo que é infinito e ilimitado. Sua existência propriamente dita está unicamente no presente; e este foge sem trégua para o passado, sendo tal fuga um caminho incessante para a destruição, uma morte perpétua: abstração feita das consequências possíveis ao presente, bem como do testemunho que traz sobre a natureza da vontade da qual é o cunho, sua vida passada se encerra em definitivo; é morta e já não existe e razoavelmente para o homem deveria ser indiferente que houvesse sido repleta de tormentos ou de alegrias. Mas, em suas mãos, o presente se volve constantemente passado; o futuro é de todo incerto e sempre de fugitiva duração. Portanto, ainda que não a considerássemos senão sob a forma, a vida desse homem é uma continua reversão ao passado, uma morte contínua. Se a considerarmos agora sob a relação física, é evidente que, assim como o caminho não é em realidade senão uma sucessão de quedas evitadas, também nossa vida corpórea não é senão uma morte incessantemente impedida, uma destruição do nosso corpo sempre retardada; enfim, a atividade do nosso espírito não é mais que um esforço constante para desviar o fastio. Cada sopro da nossa respiração afasta a morte que nos assalta; lutamos contra a morte a cada segundo, e lutamos ainda com largos intervalos toda vez que nos alimentamos, que dormimos, que nos aquecemos etc. Mas a morte é destinada, enfim, a vencer: porquanto nos tornamos sua herança desde que nascemos e ela não faz mais que brincar com sua presa antes de devorá-la. Até lá mantemos nossa vida com todo o cuidado a fim de fazê-la durar o mais longamente possível, tal como se infla uma bolha de sabão o mais grandemente e longamente que se possa, ainda que tenhamos a certeza de que está sempre por estourar.

Se para a natureza ininteligente já constatamos que sua essência é uma aspiração constante sem finalidade e sem trégua, o mesmo constatamos com muito maior clareza no homem e no animal. Querer e aspirar, eis toda a sua essência, estreitamente igual a uma sede que nada pode mitigar. Mas a base de cada querer é uma falta, é uma indigência, é a dor; pela sua origem, pela sua essência, o querer está, portanto, destinado a sofrer. Ainda que não tivesse objetos a desejar, uma satisfação demasiado fácil de súbito lhos tolheria, e o homem sentir-se-ia invadido por um vácuo espantoso e pelo fastio, em outros termos, seu ser e sua existência se lhe tornariam um peso insuportável. A vida, portanto, oscila como um pêndulo entre a dor e o tédio que são, de feito, os elementos que a constituem. Fato estranho que deveis exprimir de maneira assaz estranha: depois de ter colocado no inferno todas as dores e todos os suplícios, o homem nada encontrou para colocar no paraíso, além do tédio.

Tais esforços contínuos que formam a essência de qualquer fenômeno da vontade, quando ela galga os graus mais elevados da sua objetivação, encontram a sua razão de ser mais importante e mais geral nesta circunstância que ali a vontade se revela a si mesma sob forma de corpo vivente que lhe ordena imperiosamente o nutri-lo: o que dá tanta força a esta ordem é o fato de o corpo não ser outra coisa senão o querer-viver objetivado. Sendo o homem a mais perfeita objetivação desta vontade de viver, é, portanto, ao mesmo tempo, o mais necessitado de todos os seres; não é de extremo a extremo senão volição e necessidades concretas, pode-se dizer mesmo, aglomerado de mil necessidades. E, com tudo isto, encontra-se sobre a Terra, abandonado a si mesmo, incerto de tudo, salvo da sua miséria e das suas precisões: isto faz com que de ordinário toda a sua vida seja ocupada pelos cuidados reclamados pela manutenção duma existência submetida a exigências tão pesadas e que, entretanto, renascem todos os dias. A tais exigências, unem-se ainda as da propagação da espécie. Ao mesmo tempo, perigos de todo gênero o circundam por todo lado, e obrigam-no a dilatar uma vigilância de cada instante para evitá-las. Não pode seguir sua estrada, senão com passo circunspecto, explorando os arredores com olhares ansiosos, porque mil acasos e mil inimigos o espreitam. Assim caminhava outrora no estado selvagem; e assim caminha, ainda, na vida civilizada: para ele não há jamais segurança:

Qualibus in tenebris vitae quantisque periclis
Degitur hoc aevi, quodcumque est! [12]
(Lucrécio, De rerum natura, II, 15)

Destarte, para a maioria dos homens, a vida não é senão uma luta pela existência, com a certeza duma derrota final. Mas o que os faz perseverar em tão penoso combate não é tanto o amor da vida, quanto o temor da morte que, sempre inevitável, sempre à vista, pode a cada instante rojar-se sobre eles. A própria vida é um mar semeado de escolhos e de abrolhos que o homem evita com prudência e cuidados extremos, embora não ignore que apenas lhe tenha escapado, cada novo passo o aproxima dum naufrágio bem diversamente formidável, dum naufrágio total, inevitável e irreparável, da morte para a qual navega diretamente; termo final da fatigante travessia, porto mais terrível que todos os escolhos evitados.

É importante notar logo aqui que, por um lado, as dores e os tormentos da vida podem atingir facilmente tal proporção de intensidade, que a morte venha a tornar-se desejável e que se recorra a ela voluntariamente; e que, por outro lado, apenas a necessidade e a dor deixem um momento de respiração, sem dúvida sobrevém logo o tédio, e o homem se vê constrangido a recorrer a algum passatempo. O que ocupa e mantém em atividade todos os viventes é o desejo de viver. Mas uma vez assegurada a vida, já não sabem o que fazer dela: donde o segundo motor que os faz agitar-se, é o desejo de aliviar-se do peso da existência, de torná-lo menos sensível, de matar o tempo, isto é, de fugir ao tédio. Assim é que vemos todos aqueles que se puseram a salvo da indigência e dos cuidados, depois de terem alijado o dorso de qualquer outro peso, tornarem-se um peso para si mesmos, e considerarem como ganhas as horas que conseguiram fazer passar, cada parcelazinha que lograram subtrair a essa mesma existência em cuja conservação, mais longa possível, punham até então todos os cuidados. O tédio não é um mal pequenino, nem desprezível: acaba por dar ao contorno fisionômico o cunho do desespero.

Por sua causa é que sucede que seres que tão pouco se amam como os homens, se procuram, todavia, com ansiedade: o tédio se torna portanto uma fonte de sociabilidade. Assim é que, por sabedoria política, se tomam contra o aborrecimento medidas públicas como contra outras calamidades gerais, porque este flagelo, justamente como o seu extremo oposto, a fome, pode lançar os homens aos maiores excessos: é preciso dar ao vulgo panem et circenses. O severo sistema penitenciário de Filadélfia, que impõe o isolamento e a inatividade, fez do tédio um meio de punição; é tão terrível o suplício que já levou os detidos ao suicídio. Se a miséria é o constante flagelo do povo, o tédio, em compensação, é o do alto mundo. Na vida burguesa o tédio é representado pelo domingo e a miséria pelos outros seis dias da semana.

A vida humana transcorre, portanto, toda inteira entre o querer e o conquistar. O desejo, por sua natureza, é dor: a satisfação bem cedo traz a saciedade. O fim não era mais que miragem: a posse lhe tolhe o prestigio; o desejo ou a necessidade novamente se apresentam sob outra forma, que do contrário vem o nada, o vazio, o tédio, e contra isto é tão penosa a luta como contra a miséria. Quando o desejo e a sua satisfação se seguem a intervalos nem muito próximos nem muito distantes, então o sofrimento que trazem ambos é mínimo e a existência é a mais feliz. Porquanto o que se poderia denominar os mais belos momentos, as alegrias mais puras da vida, precisamente e unicamente porque nos tolhem à vida real e nos fazem espectadores desinteressados, numa palavra, o conhecimento puro, despojado de qualquer volição, o prazer do belo, o prazer verdadeiro que dá a arte, tudo isto não é concedido senão a pouquíssimos, por motivo que para tal se requerem disposições extremamente raras e que os próprios privilegiados só podem usufruir como sonhos fugazes; e além disso tal superioridade de força intelectual torna essas criaturas suscetíveis de sentir a dor com uma intensidade de que não são capazes os seres medíocres; dando-lhes também o isolamento em meio de criaturas que tão pouco se lhes assemelham; pelo que se vê que não falta a compensação. Os prazeres puramente intelectuais são inacessíveis à imensa maioria dos homens; quase incapazes de provar o prazer dado pelo conhecimento puro, ficam reduzidos unicamente ao querer. Para que um objeto consiga monopolizar-lhes a atenção e merecer-lhes o interesse, é preciso, como bem o diz a palavra, que lhes estimule de qualquer modo a vontade, ainda que não seja senão por meio dalguma relação longínqua ou possível com ela; mas é preciso que não falte à vontade a sua parte, visto que a existência lhes consiste muito mais no querer que no conhecer: ação e reação constituem-lhes o único elemento. Nas íntimas coisas e nos fatos mais comezinhos podem encontrar-se manifestações ingênuas de tal estado de espírito: por exemplo, escreverão o próprio nome quando visitarem algum sítio digno de ser visto, para reagir, assim, para influir, destarte, sobre o lugar que lhes não produziu impressão alguma; não se contentarão facilmente com o contemplar um animal raro e desconhecido; hão de querer também instigá-lo, irritá-lo, fazer-lhe brincos e isto unicamente para se darem o sentimento da ação ou da reação; mas esta necessidade de excitar a vontade se revela, de modo efetivamente especial, na invenção do jogo de cartas e no prazer que ali encontram, expressão verdadeira do lado miserável da humanidade.

Mas, por mais que a natureza, por mais que a fortuna tenham podido fazer pelo homem, o que quer que sejamos ou o que quer que possuamos, da dor, essência da vida, não nos libertamos:

Nessa altura o filho de Peleus gemia,
Os olhos levantados para o céu imenso.
(Homero, Ilíada, 21, 272)

E alhures:

Eu era filho de Júpiter, o filho de Kronos,
e, contudo, a dor de sentia era infinita.
(Homero, Odisséia, 11, 620)

Os esforços contínuos para alhear a dor não têm outro resultado senão o de transformá-la. Ela originariamente se manifesta como privação, necessidade, inquietação pela manutenção da vida. E quando se tem conseguido, o que aliás é bem difícil, afastar a dor sob tal forma, eis que se apresenta sob mil outras formas variantes com a idade e as circunstâncias: instinto sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, angústia, ambição, avareza, doença etc., etc. E se por fim não encontrar outras maneiras para introduzir-se, virá sob a triste e sombria capa da saciedade e do tédio, contra os quais hão de provar-se então, todos os meios. Mas se lograrmos, finalmente, derrotá-la também sob tais formas, mui dificilmente se terá feito tal coisa sem lhe abrir acesso sob alguma das formas precedentes e então a dança recomeça: porquanto a vida de todo homem oscila entre a dor e o tédio.

Por triste que seja, essa perspectiva tem um lado para o qual quero atrair a atenção, que pode vir a consolar-nos, ou antes, que pode munir-nos duma estoica indiferença em relação às nossas penas. A rebelião contra as desgraças nos vem, em grande parte, por vermos que são acidentais, isto é, produzidas por um concatenamento de causas que facilmente poderia ter sido diferente. De ordinário, os males absolutamente inevitáveis e gerais, como a velhice, a morte e outras inúmeras misérias de toda hora, não nos afligem em excesso. O que acentua as desgraças é o reconhecer que as circunstâncias que lhes hão dado origem sobrevieram por acaso. Ora, pois que acabamos de convencer-nos de que a dor, como dor, constitui a essência da vida, de que é inevitável, de que o que depende do acaso é unicamente a figura, a forma sob a qual a dor se apresenta, de que o lugar que ocupa no momento atual, uma vez livre, seria invadido por outra dor, ora exclusa, de que por conseguinte o acaso, quanto ao fundo essencial, tem pouco domínio sobre nós — é claro que tais reflexões, se se nos tomassem convicções sempre vivas, poderiam inspirar-nos grande dose de ataraxia estoica e diminuir sobremodo a solicitude ansiosa com que velamos o nosso bem-estar. Mas, de feito, para dominar a tal ponto a dor, de que o sentimento é direto, urge um poder de raciocínio que não se encontrará senão raramente, para não dizer, nunca.

Demais, estas considerações sobre o fato de que a dor é inevitável, de que uma dor envolve sempre outra, de que o fim duma antiga atrai o princípio duma nova, poderiam levar-nos a emitir a hipótese, paradoxal mas não absurda, de que cada indivíduo possui no sofrimento a medida essencial a seu ser, que uma vez fixada pela sua natureza, não saberia ficar vazia, nem exceder-se quaisquer que possam ser as modificações da forma assumida pela dor. Os males ou o bem-estar de cada homem seriam, assim, determinados, não pelas circunstâncias externas, mas precisamente por esta medida, por esta disposição que o estado de saúde poderia em diferentes momentos acrescer ou diminuir ligeiramente, mas que no total permaneceria sempre a mesma; isto seria o que se chama o temperamento do homem, ou mais precisamente, indicaria até que ponto ele é, como diz Platão no livro primeiro da República, (C. g.) seja, de humor fácil ou difícil. Fala em favor de tal hipótese, não apenas o fato mais de uma vez estabelecido, segundo o qual as grandes dores nos tomam insensíveis às pequenas e vice-versa, na falta de grandes dores as mais mesquinhas contrariedades nos atormentam e nos inquietam, como também a experiência que nos ensina que quando nos sobrevém uma desgraça enorme, cujo pensamento nos fazia tremer, uma vez superada a primeira dor, o nosso humor permanece sensivelmente o mesmo, como também, no sentido oposto, ao sobrevir-nos uma boa nova longamente esperada não nos sentimos nem mais contentes nem mais felizes, no total e em extensão, do que primeiro. Antes, no momento em que tais mudanças se produzem, a emoção é forte e foge do comum: manifesta-se, então, por meio de gritos de desespero ou de êxtase; mas tudo isto bem cedo cessa porque não era senão o efeito duma ilusão. Efetivamente, tal desespero ou tal êxtase não foram provocados pela dor ou pela alegria, mas sim pela perspectiva dum novo futuro dentro do qual vivemos antecipadamente. O que lhes permite assumir tão anormais proporções é o fato de tomarem de empréstimo sobre o futuro; segue-se que não podem ter duração. Em apoio de nossa hipótese, para a qual o sentimento da dor ou do bem-estar é em grande parte determinado como o conhecimento, subjetivamente e “a priori”, fazemos notar também que a alegria ou a tristeza humana não são evidentemente produzidas pelas circunstâncias externas, pela riqueza ou pelo estado social, uma vez que entre os pobres encontramos rostos alegres tanto quanto entre os ricos: observamos outrossim que os motivos de suicídio diferem entre si; por isso que não podemos citar desgraça alguma que seja suficientemente forte para atirar a ele qualquer caráter, ao menos com probabilidade, enquanto há bem poucas, mesquinhas até ao ponto de o não haver ocasionado. Se, portanto, o grau de alegria ou de tristeza não é igual a todo momento, em virtude da nossa hipótese, atribui-lo-emos não à mudança das condições externas, mas sim à do estado interno, da disposição psíquica. É por isso que, tão logo se manifeste um contentamento com intensidade positivamente crescente que possa elevar-se até à alegria, esta gradação se produz de ordinário sem nenhum motivo externo. Vemos frequentemente, é verdade, que nossa dor é provocada por alguma circunstância externa bem precisa, que é a que nos perturba e nos entristece: parece-nos, então, que se existissem meios de se afastar essa circunstância, grande alegria viria afagar-nos. Ilusão. A medida do nosso afã ou da nossa alegria, segundo a nossa hipótese, é fixada subjetivamente in totum e para cada instante, e a seu respeito o motivo de tristeza não era mais do que é para o corpo uma vesícula para onde se vertem todos os maus humores, dantes alhures espalhados. Sem esta causa determinada e externa de sofrimento, a dor, própria da nossa natureza e, portanto, inevitável, permaneceria subdividida em muitos pontos e manifestar-se-ia sob forma de mil pequeninas contrariedades ou fantasias a propósito de coisas a que no momento não damos atenção, porque a nossa capacidade para a dor está ocupada inteiramente sobre uma parte mais forte, a qual concentrou num único sítio todas aquelas penas que até então estavam divididas entre muitos pontos. Igualmente, quando o êxito feliz dalgum negócio nos liberta de grande inquietação que nos pungia, esta última é imediatamente substituída por outra, cuja substância já existia em nós, mas não podia entrar-nos na consciência para turbá-la porque a consciência não tinha capacidade suficiente; jazia tal motivo de inquietação inadvertido, qual sombria forma nebulosa sobre o limite extremo do horizonte da nossa consciência. Mas tão logo se lhe deu lugar, avança como inquietação que se delineia, estabelece-se sobre o trono dos afãs reinantes na jornada (C. g.) conquanto seja em massa mais leve que o tormento pouco dantes desaparecido, sabe, contudo, inflar-se até o igualar em tamanho aparente, vindo ocupar inteiramente o sólido, na qualidade de preocupação principal do dia.

O indivíduo capaz do prazer excessivo sentirá também, constantemente, uma dor excessiva; prazer e dor são condições mútuas, e têm, por comum condição, uma grande vivacidade de espírito. Ambos provêm, vimo-lo há pouco, não tanto do simples presente, quanto, sobretudo, duma antecipação sobre o futuro. Mas sendo a dor a essência da vida e resultando de determinada pressão de suas proporções sobre a natureza do indivíduo, não lhe podendo, portanto, fortuitas mudanças modificar o grau, segue-se que dor ou alegria excessiva repousam sempre ou sobre erro ou sobre ilusão e que a inteligência deve poder evitar esta exageração de sentimento, num sentido ou noutro. Qualquer alegria excessiva (exultatio, insolens laetitia) deriva sempre da ilusão que nos faz crer que encontramos, na vida, algo que nunca se encontra, ou seja a satisfação durável dos desejos, ou a calma definitiva das inquietações que nos torturam e que se renovam sem trégua. Qualquer ilusão deste gênero nos será tolhida infalivelmente mais tarde e então lhe pagamos a perda com tanta dor, quanta fora a alegria que nos dera. Sob tal aspecto assemelha-se a uma dessas montanhas abruptas que se não podem descer, senão deixando-se cair, o que, portanto, é preciso evitar: cada repentina dor, exagerada, corresponde a uma queda de tal gênero e à perda dessa ilusão, a qual lhe era condição. Sendo assim, dever-se-iam poder evitar os dois excessos, procurando-se sempre fitar o conjunto e o concatenamento das coisas com o olhar perfeitamente claro e não tratar de revesti-las dessas cores que se desejaria tivessem. A moral estoica tendia, sobretudo, a libertar o espírito dessa ilusão e das respectivas consequências e a inculcar-lhe ao contrário uma serenidade constante. Precisamente deste sentimento é penetrado Horácio na sua tão conhecida Ode:

Aequam memento rebus in arduis
Servare mentem, non secus in bonis.
Ab insolenti temperatam Laetitia [13]
(Carmina, 2, 3)

Todavia, muito frequentemente nos recusamos a reconhecer esta verdade, semelhante a medicamento amargo, que a dor é essencial à vida, que, portanto, não nos invade de fora, mas que cada um de nós lhe tem, dentro do peito, uma nascente inexaurível. Procuramos sempre alguma coisa externa especial, um pretexto, por assim dizer, que justifique a dor que, entretanto, não nos deixa nunca: tal o homem livre que cria um ídolo a fim de ter um patrão. Porquanto, queremos sem cessar, de desejo em desejo e ainda que nenhuma realização, malgrado tudo quanto prometia, possa satisfazer-nos e bem cedo devamos reconhecê-la por erro humilhante, persistimos em não compreender que executamos o trabalho das Danaides, e corremos incessantemente para novos desejos.

Sed, dum abest quod avemus, id exsuperare videtur
Caetera; post aliud, cum contigit illud, avemus;
Et sitis aequa tenet vitai semper hiantes. [14]
(Lucrécio, De rerum natura, 3, 1080-1083)

E assim ao infinito, ou então, o que é mais raro e pressupõe certa força de caráter, até que encontremos um desejo, o qual não nos é dado nem satisfazer, nem abandonar; possuímos, então, de certo modo, aquilo que procurávamos, ou seja, algo que se possa acusar a qualquer momento de ser a fonte de nossos males, em vez de acusar o nosso próprio ser; e isto nos indispõe com a sorte, mas nos reconcilia com a vida, afastando novamente do nosso espírito a crença de que a dor é parte integrante da vida e de que qualquer satisfação real seja impossível. O resultado definitivo desta metamorfose é uma ligeira disposição à melancolia; então o homem leva em si constantemente uma grande e única dor, que lhe faz desprezar todas as alegrias e todas as dores menores: o que já constitui uma atitude muito mais nobre, do que o fenômeno comum duma corrida incessante na perseguição de fantasmas que sempre variam.

EXTREMOS DA VIDA HUMANA

Qualquer satisfação, o que vulgarmente se chama felicidade, é, na realidade, de essência sempre negativa, e de nenhum modo positiva. Não é uma felicidade espontânea e que chega de per si; deve ser sempre o cumprimento dum desejo. Porquanto desejar, isto é, ter necessidade de alguma coisa é condição preliminar de todo gozo. Mas, com a satisfação cessa o desejo e, portanto, o prazer. A satisfação ou a felicidade, não pode, consequentemente, ser outra coisa senão a supressão duma dor, duma necessidade; pois a esta categoria pertencem, não apenas os sofrimentos reais, manifestos, como também qualquer desejo cuja importunidade nos perturba o repouso, além do tédio mortal que da existência nos faz um peso. E depois, como é difícil atingir um fim, chegar-se ao que quer que seja! Cada projeto nos opõe dificuldades e exige esforços sem conta; a cada passo se acumulam os obstáculos. E quando, finalmente, houvermos superado tudo e atingido a meta, que outro resultado teremos obtido afora o nos haver libertado duma dor ou dum desejo, isto é, de nos encontrar precisamente no mesmo ponto em que nos encontrávamos? Dado diretamente não é senão a necessidade, a dor. A satisfação e o gozo não podem ser conhecidos senão indiretamente, por meio da recordação do sofrimento e da recordação passada, os quais cessaram com a apresentação dos primeiros. Vem-se a isto que não sentimos, nem apreçamos suficientemente, os bens e as vantagens que possuímos de fato, parece-nos que devem estar em nós, porque só nos tornam felizes negativamente afastando-nos o sofrimento. Não nos apercebemos do seu valor senão quando os perdemos, porque somente a necessidade, a privação, o sofrimento são positivos e se fazem sentir diretamente. Eis porque a lembrança dos males passados, dissabores, doenças, pobreza, etc., nos é grata: é o único meio de provar o bem presente. Devemos confessar, também, que sob este aspecto, e do ponto de vista do egoísmo, o qual é a forma do querer-viver, o espetáculo ou a narração das desgraças alheias nos dá uma doce satisfação, análoga ao que se diz com franqueza e em belos versos no princípio do livro segundo de Lucrécio:

Suave, mari magno turbantibus aequora ventis
E terra magnum alterius spectare laborem:
Non quia vexari quemquam est jucunda voluptas;
Sed quibus ipse malis careas, quia cernere suave est. [15]
(De rerum natura, 2, 1)

Mais adiante veremos, porém, que a alegria devida à valorização do próprio bem-estar em idênticas circunstâncias, está bem próxima da vertente de que deriva a malvadez positiva e real.

A verdade pela qual a felicidade é de natureza negativa e não positiva, não é uma calma, um contentamento durável e pode, quando muito, libertar-nos dum sofrimento ou duma necessidade, logo seguidos de novos afãs ou de languores, de aspirações vazias e de aborrecimento; esta verdade, repito, é confirmada ainda pela arte e, sobretudo, pela poesia, espelho fiel da essência do mundo e da vida. Com efeito, qualquer composição épica ou dramática não pode ter por sujeitos senão lutas, esforços, batalhas, dirigidos para a conquista da felicidade, e nunca a felicidade mesma, durável e perfeita. Conduz o seu herói ao fim, através de mil dificuldades e mil perigos; apenas atingido o objetivo, apressa-se a fazer descerem as cortinas. Porquanto dali para diante só lhe restaria mostrar que a meta gloriosa em que o herói acreditava encontrar a felicidade, outra coisa não fez mais que iludi-lo e como, tendo-a atingido, não se encontra melhor que dantes. A felicidade positiva e durável, sendo coisa impossível, não pode constituir objeto de arte. O idílio tem por fim pintar tal estado, mas facilmente se percebe que o idílio não pode permanecer como puro idílio. Entre os dedos do poeta tornar-se-á épico, e será então epopeia insignificante, composta de pequenas dores, de pequenas alegrias e de pequenas ambições: e tal é o caso mais frequente; ou então, será poesia descritiva que cantará os encantos da natureza, ou seja, o conhecimento puro e livre da vontade, o que de fato constitui a única verdadeira felicidade, que nenhum afã e privação alguma precedem, e a que jamais o arrependimento, a dor, o vácuo, a saciedade, sucedem necessariamente: apenas, tal felicidade só pode ocupar escassos momentos e nunca uma existência inteira. O que vemos na poesia encontramos na música, desde que reconhecemos que nela a melodia narra em geral a história íntima da vontade consciente de si, as veredas ocultas, as aspirações, as tristezas e as alegrias, o fluxo e refluxo do coração humano. A melodia caminha, sempre se apartando do tom profundamente, seguindo mil remotos e caprichosos sentidos, passando pelas dissonâncias mais dolorosas, até que novamente reencontra o tom fundamental, que exprime a satisfação e a calma da vontade, mas com que, seguidamente, já se não sabe o que fazer: manter, então, mais longamente, a nota fundamental, produziria pesada e ociosa monotonia, a qual corresponderia ao tédio.

Tudo quanto as atuais considerações tinham por finalidade elucidar, isto é, a impossibilidade de se chegar a um durável contentamento, bem como o caráter negativo da felicidade, encontra explicação naquilo que dissemos pelo fim do nosso livro segundo, ou seja, que a vontade, da qual a vida é a objetivação, bem como os outros fenômenos, é uma tendência sem finalidade e sem trégua.

Revelavamos-lhe tal cunho de eternidade em todos os elementos parciais que lhe compõem o fenômeno, desde a forma mais geral, tempo e espaço infinitos, até a manifestação mais completa, vida e aspirações humanas. Podem-se em teoria admitir três extremos da vida humana e considerá-los como elementos da vida real do homem. Em primeiro lugar, a potente volição, as grandes paixões (Radscha-Guna). É quanto se manifesta nos grandes caracteres históricos e constitui o sujeito da epopeia e do drama: pode revelar-se também nas esferas menores, porquanto a proporção dos objetos tem aqui sua medida no grau com que turbam a vontade e não nas suas relações exteriores. Depois, em segundo lugar, o conhecimento puro, a concepção das ideias que têm por condição uma inteligência livre do serviço da vontade: é a vida do homem do gênio (Satwa-Guna). Finalmente, em terceiro lugar, a letargia máxima da vontade, bem como da inteligência que lhe é anexa, a aspiração vazia, o tédio que entorpece a existência (Tama-Guna). A vida individual, bem longe de manifestar-se nalgum desses extremos, não os galga senão raramente; o mais das vezes não descrevemos senão marcha lenta e hesitante que nos aproxima dum ou doutro desses estados; é um débil querer de objetos mesquinhos que se renova de contínuo para fugir assim ao tédio. É realmente incrível quanto, vista de fora, a existência da maior parte dos homens passa insignificante e fútil e quanto, sentida internamente, transcorre triste e inconsiderada. É uma aspiração vaga, surdo afã e caminho incerto de criatura adormecida, através das quatro idades da vida até à morte, tudo acompanhado de uma série de triviais cuidados. Homens de tal feitura parecem relógios carregados, que se movem sem saber por quê. Cada vez que um desses é concebido e dado à luz, o relógio da vida é novamente carregado a fim de que repita frase por frase, batida por batida, com imperceptíveis variações, o mesmo lamento infinitas vezes ecoado. Cada indivíduo, cada figura humana com a sua existência não é mais que um breve sonho que refaz a eterna vontade de viver, o gênio imortal da natureza; nada mais que um jato transitório que desenha sobre sua página infinita do tempo e do espaço, que deixa durar um instante de modo relativo imperceptivelmente breve, e que depois cancela para dar lugar a novas imagens. E todavia, é este o lado sério da vida; cada um de tais jatos momentâneos, cada qual desses caprichos insabidos, deve ser pago de todo o querer-viver, na plenitude da sua veemência, com mil dores profundas e finalmente ao preço amargo dessa morte que foi longamente temida e que chega sem falta. Por isso sucede que a vista dum cadáver nos torna sérios de repente.

A vida de qualquer indivíduo, considerada no seu conjunto e na sua generalidade e unicamente nos fatos mais salientes, é, em realidade, sempre uma tragédia; mas, examinada nos pormenores, tem o caráter duma comédia. Porquanto o andamento e os tormentos de cada dia, as incessantes amolações do momento, os desejos e os temores da semana, os aborrecimentos de toda hora que nos foram mandados pela sorte sem pausa ocupada em escarnecer-nos, tudo isto são deveras cenas de comédia. Mas, as ambições sempre desiludidas, os esforços sempre inúteis, as esperanças esmagadas sem piedade pela fortuna, os erros fatais de toda vida, com a dor que vai aumentando e com a morte por conclusão, eis em verdade a tragédia. Deste modo, e como se à desolação da existência a sorte tivesse querido juntar ainda a ironia, a nossa vida deve compreender todas as dores da tragédia, sem que ao mesmo tempo nos seja possível conservar ao menos a dignidade das personagens trágicas; devemos, ao contrário, nas largas particularidades da vida, ser, forçosamente, vulgares caracteres cômicos.

Ainda que os tormentos grandes e pequenos encham a existência humana e a mantenham continuamente agitada e inquieta, não podem, contudo, ocultar a insuficiência da vida para ocupar todo o espírito, o vácuo e a inanidade do viver, ou para afastar o tédio pronto para invadir qualquer momento de trégua que a inquietação nos conceda. Como consequência, o espírito humano, não contente com os tormentos, com os afãs e com as ocupações que lhe impõe o mundo real, cria para si, além do mais, sob a forma de mil superstições diversas, um mundo imaginário, a cuja mercê se entrega inteiramente e ao qual consagra tempo e forças, apenas o mundo real lhe acorde um momento de repouso que é incapaz de gozar. Sucedia, assim, originariamente com esses povos a que a suavidade do clima e a fertilidade do solo tornavam a vida fácil: primeiramente com os Hindus, depois com os Gregos e os Romanos e posteriormente com os Italianos, os Espanhóis etc. O homem cria, à própria imagem, demônios, deuses e santos, aos quais deve depois oferecer continuamente sacrifícios, orações, ornamentos, votos, peregrinações, ricas imagens etc. O culto se lhes confunde efetivamente com a realidade, antes, obscurece-a: os acontecimentos da vida são então considerados como uma reação desses seres; a correspondência com eles ocupa meia existência, mantém constantemente a esperança e com os atrativos da ilusão se torna frequentemente mais interessante que as relações com pessoas reais. É isto a expressão e o sintoma duma dupla necessidade no homem: por um lado, necessidade de auxílio e de assistência e, por outro, necessidade de ocupação e divagação; e se mui frequentemente ele trabalha pela primeira, gastando inutilmente, ao sobrevirem desventuras ou perigos, em preces e sacrifícios, força e tempo preciosos, que com resultado poderia empregar em desviar o mal em compensação serve ainda melhor à segunda, entretendo-se fantasticamente com o mundo dos espíritos que fabricou: eis o beneficio, não desprezível, de todas as superstições.

CONFIRMA-SE QUE VIVER É SOFRER

Agora que nos convencemos, de certo modo, a priori por meio das considerações mais gerais, com o estudo dos primeiros caracteres elementares da vida humana, de que esta, pelo próprio conjunto da sua disposição, é bem incapaz de encontrar a verdadeira felicidade e de que, por sua essência, não é senão sofrimento sob mil formas diversas, e estado absoluto de infelicidade, podemos, de igual, bem mais vivamente acordar em nós esta mesma convicção a posteriori, se, tomando em exame fatos reais, apresentarmos à mente os quadros ou os exemplos da desgraça sem nome que nos oferecem a experiência e a história, para onde quer que deitemos o olhar e dirijamos nossas pesquisas.

Mas o capítulo iria ao infinito e desnaturaria o caráter de generalidade do ponto de vista que convém sobretudo à filosofia. De mais, tal descrição poderia facilmente ser substituída por uma simples declamação sobre a miséria humana, como já se tem visto muitas vezes, e taxada de parcialidade, porque deduzida de fatos isolados. A demonstração a priori, fria e filosófica, procedente de considerações gerais, do sofrimento inseparável da vida, tal como a temos dado aqui, colocando-lhe a base na própria essência, fica imune de qualquer suspeita ou de qualquer acusação desse gênero. Mas a sua confirmação a posteriori é fácil de ser encontrada, para tudo. Um homem qualquer, curado dos sonhos da juventude, que se dê conta da sua experiência e da alheia, que haja praticado a vida, que conheça a história dos séculos passados e do seu tempo, como também a obra dos grandes poetas, a menos que um prejuízo irrevogavelmente radicado não lhe paralise o raciocínio, chegará infalivelmente à conclusão de que este mundo é o reino do acaso e do erro, de que o governam sem piedade tanto nas grandes como nas pequenas coisas, e que ao lado disto, também a malvadez e a estultice agitam os seus brandões: sob tal regime o bom não abre caminho senão a custo, e o que é nobre e sábio de raro pode mostrar-se, agir e encontrar eco; ao contrário, o absurdo e o erro no domínio do pensamento, a trivialidade e a estultice no domínio da arte e, finalmente, a maldade e a astúcia no domínio da ação, conservam o poder efetivo que não é suspenso senão por breves e eventuais interregnos: a perfeição, de qualquer gênero que seja, não é nunca senão um caso excepcional, único entre milhares de outros; por isto quando se produz uma obra durável, esta, depois de ter sobrevivido à animosidade dos contemporâneos, permanece isolada; e é conservada como um aerólito, oriundo duma ordem de coisas diferente da que reina cá por baixo. Quanto à vida do indivíduo, cada biografia é uma história de dor: porquanto em regra geral, cada existência é uma série contínua de grandes e pequenas desventuras que cada um, é verdade, esconde o melhor possível, porque sabe que os outros raramente demonstram interesse ou piedade e quase sempre satisfação, à vista dos afãs de que no momento estão salvos; mas talvez nunca um homem, no fim da vida, se é que possui toda a sua razão e é ao mesmo tempo sincero, desejará recomeçá-la e, diante duma tal perspectiva, antes preferiria o nada. A substância do famoso monólogo de Hamlet é esta: a nossa condição é tão miserável que o não-ser absoluto lhe é preferível. Se o suicídio efetivamente nos trouxesse o aniquilamento, de modo que a alternativa ser ou não ser realmente existisse em toda a extensão da palavra, então conviria recorrer a ele infalivelmente, como à mais desejável solução (a consummation devoutly to be wish’d). Mas há em nós qualquer coisa que nos diz que assim não é, que mesmo com isso nem tudo acaba, que a morte não é o aniquilamento absoluto. O pai da História exprime a ideia (Heródoto, VII, 46) não ainda, que eu saiba, refutada, de que não há homem no mundo que não tenha mais de uma vez desejado não sobreviver ao Amanhã. Isto admito, o que ainda há de melhor na existência é a brevidade, com tanta frequência deplorada. Se se pusessem sob os olhos do homem as dores e as torturas a que a vida lhe está exposta, ele se sentiria dominado pelo terror: o mais obstinado otimista, se o fizessem percorrer os hospitais, os leprosários, as salas de operação cirúrgica, as prisões, as câmaras de tortura, os currais da escravatura, se o conduzissem aos campos de batalha, e aos lugares de suplício, se o fizessem penetrar na escuridão dessas choças em que a miséria envergonhada se oculta para subtrair-se aos olhares da curiosidade fria, se lhe permitissem, enfim, lançar os olhos à Torre de Ugolino esfaimado, bem depressa acabaria por compreender de que natureza é este mundo, “o melhor dos mundos possíveis”. Onde, pois, Dante colheu o material para o seu Inferno, senão em nosso mundo real? E fez, entretanto, um Inferno em perfeita regra! E quando quis, ao contrário, descrever o Paraíso e as suas bem-aventuranças, encontrou dificuldade insuplantáveis, pela razão de que a nossa terra não fornece os elementos para coisa alguma de semelhante. Não lhe restou, portanto, outro expediente, além do descrever-nos, em lugar das alegrias do Paraíso, os ensinamentos que recebeu dos ancestrais, da sua Beatriz e de vários santos. Isto demonstra bastante que espécie de mundo é o nosso. É verdade que o lado da vida humana, como o de qualquer mercadoria que não presta, resplende sob uma luz falsa: quem sofre se oculta sempre; ao contrário, cada qual põe em evidência aquilo que pode adquirir em fausto e magnificência, e quanto mais lhe falta a satisfação interna, tanto mais deseja passar por feliz na opinião alheia; a estultice dos homens é de tal modo feita que a opinião alheia é um dos escopos principais da sua existência, ainda que a nulidade desse escopo esteja expressa perfeitamente bem em quase todos os idiomas, em que a palavra vaidade, vanitas, significa em origem, vacuidade, nada. Mas também sob esse esplendor cintilante, os tormentos da vida podem facilmente assumir proporções tamanhas, como sucede cotidianamente, que nos façam recorrer com ansiedade a essa mesma morte, que em outras circunstâncias tanto se teme. E mais ainda: quando a sorte quer explicar toda a sua perfídia, pode tolher a quem sofre também este refúgio derradeiro, deixando-o à mercê de inimigos cruéis, destinado, sem salvação possível, a lentas torturas. Em vão o infeliz chama, então, por seus deuses em socorro: fica inexoravelmente abandonado a seu destino. Mas esta impossibilidade de salvação não é mais que o espelho da natureza indomável da sua vontade, de que sua pessoa constitui a objetividade. Tanto quanto uma força externa é impotente para mudar ou suprimir a vontade, na mesma razão nenhuma força estranha pode libertar o homem das dores inerentes à vida, a qual é o fenômeno de tal vontade. O homem está sempre constrito às próprias forças em qualquer caso, sem excetuar o mais importante. Em vão cria deuses para obter-lhes com súplicas ou adulações aquilo que somente sua força de querer pode dar-lhe. Se o Velho Testamento fez do mundo e dos homens uma obra de Deus, o Novo, em compensação, para ensinar-nos que a salvação e a redenção da miséria do mundo não podem vir senão do mundo mesmo, se viu constrangido a encarnar esse Deus. A vontade do homem é e será sempre aquilo de que tudo depende para ele. Maníacos, mártires, santos, qualquer que haja sido seu credo ou o seu nome, livre e voluntariamente se submeteram a todos os suplícios, porque neles o querer-viver tinha cessado; e então a lenta destruição do seu fenômeno se lhes tornava em verdade desejável. Mas não quero antecipar-me sobre o objeto das considerações próximas. De mais, devo declarar que o otimismo, se não é um simples despropósito de gente cujo cérebro vulgar não encerra mais do que palavras, parece-me opinião não apenas absurda como também ímpia, porquanto constitui uma decisão amarga em face às inumeráveis dores da humanidade. Não é preciso crer que a doutrina de Cristo seja favorável ao otimismo, porque efetivamente, em senso contrário, nos Evangelhos o mundo e o mal são termos empregados mais ou menos como sinônimos.

AFIRMAÇÃO DO QUERER-VIVER

Terminamos agora os dois estudos que devíamos inserir aqui, um sobre a liberdade da vontade em si e sobre a necessidade do seu fenômeno, outro sobre a sorte da vontade neste mundo, que é o reflexo da sua natureza e cujo conhecimento deve decidi-la a afirmar-se ou a negar-se. Procederemos agora pelo tratamento mais completo da afirmação ou da negação da vontade, que até aqui nos limitamos a apresentar e a explicar no sentido geral: pelo que estudaremos a conduta ou as ações, porquanto nelas é que a vontade se afirma ou se nega, e cujo significado íntimo procuraremos.

A afirmação da vontade é esse querer eterno que a inteligência não sofreria e que domina em geral a vida humana. Assim como o corpo é a objetividade da vontade, tal como aparece em tal grau e em tal ou tal indivíduo, assim também se pode dizer que a vontade que se desenvolve no tempo é, de certa maneira, a paráfrase do corpo, o comentário que lhe explica o conjunto e as partes, a representação, ou, por outras palavras, paráfrase da coisa em si, de que o corpo é o fenômeno. Em lugar de afirmação da vontade, podemos, conseguintemente, dizer também afirmação do corpo. Tema fundamental de todos os vários atos voluntários, é a satisfação das necessidades inseparáveis da existência do corpo em estado de saúde, que nele encontram a sua expressão e que podem ser reduzidas à conservação do indivíduo e à propagação da espécie. Mas, indiretamente, são sempre as necessidades, que atribuem aos motivos de todo gênero a respectiva influência sobre a vontade, que dão origem aos mais diversos atos voluntários. Cada qual destes atos não é mais que exemplo da vontade geral que nele se manifesta: pouco importa a natureza desse exemplo, a forma revestida pelo motivo e comunicada ao mesmo exemplo; o essencial aqui é querer em geral e querer em tal ou qual grau de energia. A vontade não pode tornar-se visível senão por meio dos motivos, assim como o órgão visual não patenteia sua faculdade de visão, senão em presença da luz. O motivo, tomado em sentido geral, mantém-se diante da vontade como um Proteu de mil formas: promete sempre completa satisfação, calma à sede do querer; mas, apenas apanhado, toma forma nova para excitar novamente a vontade sempre na proporção da viveza desta última e da sua relação com o conhecimento: são precisamente os dois elementos que, por meio destas provas e destes exemplos, manifestam o caráter empírico.

Desde o primeiro despertar da consciência o homem se acha dotado de volição, e em regra geral a inteligência lhe permanece em constante relação com a vontade. Começa por procurar conhecer perfeitamente os objetos do seu querer e, depois, os meios para atingi-los. Sabe, então, o que deve fazer e não aspira comumente a saber outra coisa. Age e se exaure. A consciência de trabalhar sempre conformemente ao escopo do seu querer sustenta-lhe as forças e a atividade; não pensa mais do que na escolha dos meios. Tal é a vida da maior parte dos homens; transcorre em querer, em saber o que quer e em aspirar com sucesso suficientemente bom para que não se reduzam ao desespero e suficientemente mau para que não possam fugir ao tédio e às respectivas consequências, do que resulta uma certa serenidade, ou, ao menos, tranquilidade, que a riqueza ou a miséria não podem perturbar, porquanto, ricos ou pobres, os homens não gozam o que possuem, porque, como vimos, o que se possui não tem mais que uma opinião negativa; gozam unicamente o que esperam conquistar com os próprios esforços. E continuam a mourejar com toda a serenidade, com grave aspecto, como as crianças quando brincam. Pode suceder, também, mas é sempre exceção rara, que a inteligência venha a romper o curso duma existência inalterada, quando, libertando-se do serviço da vontade e compreendendo a natureza do mundo em geral, o conhecimento lança o homem, seja à contemplação na ordem estética, seja à renúncia na ordem moral. A necessidade persegue quase todos os homens ao longo da vida, sem lhes dar tempo de refletirem sobre si próprios. Em compensação, a vontade frequentemente se exalta até ao ponto de sobrepassar consideravelmente a afirmação do corpo; tal estado é então advertido por meio de emoções violentas, de paixões enérgicas, sob cujo império o indivíduo não se contenta com afirmar a própria existência, senão que também nega a dos outros e procura suprimi-la onde quer que lhe cause obstáculo.

A conservação do corpo por meio das próprias forças é um grau tão débil da afirmação da vontade que, se as coisas se mantivessem simplesmente nesse grau, poderíamos admitir que, com a morte do corpo, se extinguisse também a vontade que nele se manifestava. Mas a satisfação do instinto sexual é já um grau mais elevado da afirmação dessa existência que ocupa tão breve tempo; afirma a vida para além da morte do indivíduo e por tempo indeterminado. A natureza, sempre verdadeira e consequente, na ingenuidade do caso nos mostra claramente o significado íntimo do ato gerador. A nossa consciência e a vivacidade do instinto nos ensinam que esse ato exprime a mais positiva afirmação do querer-viver, puro e sem emendas; como resultado do ato surge uma nova existência no tempo, na série das causas, isto é, na natureza: como fenômeno, o ser procriado é diferente do seu procriador, mas em si, ou seja, do ponto de vista da ideia, lhe é idêntico. Tal ato, portanto, reúne num todo cada geração de seres viventes e em tal qualidade os perpetua. Em relação ao procriador, a procriação é apenas a expressão, o sintoma, por cujo meio afirma energicamente o seu querer-viver; em relação ao procriado, não é a razão da vontade que nele aparece, pois que a vontade em si não tem razões nem consequências, mas é, como qualquer coisa, a causa ocasional que faz aparecer a vontade em tal ou qual fenômeno e em tal ou qual lugar. Como coisa em si, a vontade de um e a de outro são idênticas, porque é apenas o fenômeno, e não a coisa em si, que está sujeito ao princípio de individuação. Tal afirmação, que ultrapassa o corpo do indivíduo e chega a criar até um novo organismo, afirma simultaneamente a dor e a morte, partes integrantes do fenômeno da vida, declarando duma só vez falida qualquer redenção que tivesse podido ser produzida pela inteligência na mais alta perfeição. Por esta razão profunda o congresso sexual é tido na conta de vergonhoso. No dogma da religião cristã tal sentimento é expresso pelo mito que nos apresenta todos os participes do pecado de Adão (que evidentemente não é mais que a satisfação do instinto sexual) como passíveis, por essa razão, da dor e da morte. Sob este ponto de vista, a doutrina de Cristo se eleva acima do conhecimento segundo o princípio de razão: compreende a ideia humana de que os inumeráveis elementos, esparsos como indivíduos, são reconstituídos em unidade por meio dos liames poderosos da geração. Por conseguinte, considera todo indivíduo, por um lado como idêntico a Adão, representante da afirmação do querer-viver, e como abandonado por isso à mercê do pecado (o pecado original), da dor e da morte, e, por outro lado, em virtude do conhecimento da ideia, o considera idêntico ao Salvador, representante da negação do querer-viver, como participante, em tal qualidade, do sacrifício do Redentor, como redimido pelos méritos deste e como liberto dos liames do pecado e da morte, ou seja, do mundo (Rom. 5, 12-21).

Na mitologia grega encontramos outra alegoria que se espraia sobre os mesmos horizontes, sobre a satisfação sexual considerada como um querer-viver afirmado para além da vida individual, como uma condenação à vida pronunciada pelo próprio ato, ou como uma renovação do título que dá direito à vida: trata-se da fábula de Prosérpina, que pode retornar à terra até ao momento em que não haja provado os frutos do Averno, mas que se torna prisioneira para sempre em virtude de ter comido uma romã. O verso da alegoria ressalta muito claro na incomparável narração de Goethe, sobretudo nesse passo em que, apenas Prosérpina acaba de provar a romã, o coro invisível das Parcas entoa o hino:

Eis-te nossa!
Em jejum podias regressar
E esta romã mordida faz-te das nossas!
(Triunfo da sensibilidade, 4)

É singular que Clemente de Alexandria (Strom, III, c. 15) se sirva, em tal assunto, da mesma imagem e da mesma expressão: Qui se castrarunt ab omni peccato, propter regnum caelorum, ii sunt beati, a mundo ieiunantess (aqueles que cortaram de si mesmo toda parte que peca, em vista do reino dos céus, esses são bem-aventurados, que se abstêm dos bens deste mundo).

O instinto sexual demonstra, além disso, ser a mais positiva e mais enérgica afirmação do querer-viver, porque constituiu para o homem, no estado de natureza, como para o animal, o último escopo e o supremo resultado da vida. A primeira tendência do indivíduo é a conservação de si; apenas tenha provido a tal, não aspira senão a propagar a espécie; como criatura natural não pode ter, para além, outra tendência. Também a natureza, da qual é essência íntima o querer-viver, atira com todas as suas forças, tanto o homem quanto o animal, à reprodução. Depois do que, quando obteve do indivíduo o resultado que dele esperava, torna-se absolutamente indiferente à sua destruição; porquanto na sua qualidade de querer-viver, interessa-se unicamente pela conservação da espécie, e nunca pelo indivíduo. Justamente porque a essência íntima da natureza, a vontade de viver, se pronuncia com força maior no instinto sexual, os poetas e os filósofos antigos — Hesíodo e Parmênides — diziam com muito acerto que Eros era o princípio primário, o princípio criador donde veio tudo (Aríst. Metaph. 2, 4). Ferecidas disse: “Que Júpiter, quando quis fazer o mundo, transformou-se em amor.” (Proclo, Comentários ao Timeu de Platão, livro 3). Há pouco recebi uma dissertação pormenorizada sobre este argumento, de G. F. Schoemann, “De Cupidine Cosmogonico”, 1852. O amor é também a paráfrase da Maya dos Hindus, da qual todo o mundo do fenômeno é a obra e o véu.

As partes genitais são, mais que quaisquer outras, sujeitas exclusivamente à vontade e nunca à inteligência. A vontade ali se mostra independente do conhecimento, quase como sucede com os órgãos que servem à reprodução da vida vegetativa, por virtude da simples excitação, e em que a vontade age cegamente como na natureza inconsciente. Porquanto a procriação não é mais que a reprodução transmitida a um novo indivíduo, de certa maneira uma reprodução em segundo grau, como a morte não é mais que uma excreção na segunda potência. Donde resulta que as partes sexuais são o verdadeiro foco da vontade, porquanto o polo contrário ao cérebro que representa a inteligência, ou seja, a outra face do mundo, do mundo como representação. São elas o princípio que mantém a vida, que assegura ao tempo uma existência eterna; a este título os Gregos adoravam essas partes no Falo e os Hindus no Lingam, que simbolizam a afirmação da vontade. A inteligência, ao contrário, cria a possibilidade da supressão do querer, da salvação por meio da liberdade, da vitória sobre o mundo e do seu aniquilamento.

Longamente examinamos, no princípio deste livro, a relação em que a vontade de viver que se afirma, se acha com a morte. Vimos que não é por ela afetada, estando a morte já contida na vida de que faz parte, e a qual é plenamente compensada pelo seu oposto, a geração, a qual assegura e garante continuamente a vida ao querer-viver, malgrado a morte do indivíduo, o que os Hindus exprimiram com dar o Lingam por atributo a Çiva, o deus da morte. Expusemos, também, difusamente, como o homem, colocado no ponto de vista a afirmação decidida da vida, face a face contempla a morte sem medo, se conserva a plenitude do seu raciocínio. A isto nada tenho a ajuntar. A maior parte dos homens se mantém neste ponto de vista, alterando a clareza do próprio juízo, e não cessa de afirmar a vida. O espelho que nos mostra a imagem de tal afirmação é o mundo, com indivíduos inumeráveis, no tempo e no espaço sem medida, em dores sem limite, entre o nascimento e a morte sem fim. O que não demove lamentação alguma, pelo fato de a vontade representar à própria custa a grande tragicomédia, cujo espetáculo ao mesmo tempo assiste. O mundo é precisamente feito assim porque a vontade, da qual constitui o fenômeno, é tal e porque ela assim o quer. Quanto às dores, justificam-se porque a vontade se afirma também neste fenômeno, e tal afirmação se justifica a seu turno e se compensa com o fato pelo qual é a vontade que suporta todas as dores. Coisa com a qual já se torna possível entrever a justiça eterna no conjunto. Para diante havemos de reconhecê-la melhor e com mais nitidez também nos pormenores. Mas antes é preciso falar também da justiça temporal ou humana.

ORIGEM DO EGOÍSMO

No livro segundo depreendemos que necessariamente existe em toda a natureza, em todos os graus de objetivação da vontade, uma luta incessante entre os indivíduos das várias espécies, e que com isto se revela um antagonismo interno do querer-viver consigo mesmo. No grau supremo de objetivação, tal fenômeno, como tudo o mais, se manifestará com clareza muito maior e poderá ser interpretado mais completamente. Com esse fim procuremos antes de tudo a origem do egoísmo, que é o ponto de partida de toda luta.

Dissemos que o tempo e o espaço são o princípio de individuação, porque somente neles e por meio deles se torna possível a multiplicidade do idêntico. São as formas essenciais do conhecimento natural, isto é, do conhecimento derivado da vontade. A vontade, pois, ver-se-á sempre a si mesma, na multiplicidade dos indivíduos. Tai multiplicidade, porém, não diz respeito à vontade como coisa em si, mas unicamente aos seus fenômenos. A vontade existe inteira, indivisa em cada um dos seus fenômenos e vê, em torno de si, a imagem do seu próprio ser repetida ao infinito. Quanto a este ser, que é a verdadeira realidade, ela o encontra somente em si mesma. Por isto, cada um quer tudo para si, quer tudo possuir ou ao menos tudo dominar: quereria aniquilar tudo o que lhe opõe resistência. A isto se deve juntar, ademais, com referência aos seres dotados de inteligência, que o indivíduo é o portador do sujeito cognoscente e que este é o portador do mundo; o que significa que, para o indivíduo, a natureza inteira, salvo ele mesmo, ou seja, todos os outros seres só existem na sua representação, portanto, de maneira indireta e como em virtude de qualquer coisa que depende da sua própria essência e existência, pois que, desaparecendo a sua consciência, também o mundo desaparece necessariamente para ele, isto é, a existência e a inexistência do mundo assumem para ele o mesmo significado e não podem ser discernidas. Cada ser cognoscente é, pois, em realidade e sente-se a totalidade do querer-viver ou da essência do mundo e, ao mesmo tempo, a condição integrante do mundo como representação, por conseguinte, um microcosmo igual em valor ao macrocosmo. A própria natureza, sempre e por toda parte sincera, fornece-lhe espontaneamente esse conhecimento, independente de qualquer reflexão, de modo simples e imediatamente certo. Essas duas qualidades, há pouco enunciadas, explicam por que sucede que o indivíduo, que de fato desaparece na imensidão do mundo tanto é imperceptivelmente pequeno, se considera nada menos que o centro do universo e não tem, sobretudo, cuidados senão com a própria existência, e o próprio bem-estar; explicam por que, do ponto de vista natural, está pronto a sacrificar tudo quanto não é ele mesmo, a aniquilar o mundo inteiro, ainda que não seja senão para conservar um instante a mais o seu ego, essa gota no oceano. Tal disposição é o egoísmo, essencial a toda coisa da natureza. É também ele que vem revelar, do modo mais terrível, o conflito interno da vontade consigo mesma. Porquanto o egoísmo recebe a existência e a natureza desse antagonismo entre o micro e o macrocosmo; ou seja, nasce do fato pelo qual a vontade, tendo por forma o princípio de individuação, se vê idêntica numa infinidade de indivíduos, e em cada um deles inteira e perfeita sob dois aspectos (vontade e representação): por conseguinte, cada um vê em si toda a vontade e toda a representação, enquanto os outros não lhe são dados senão como suas representações; pelo que, a sua existência e a sua conservação, para ele, estão acima das de todos os outros seres em conjunto. Cada qual considera a própria morte como se fosse o fim do mundo inteiro, enquanto sente a morte das pessoas que conhece com muita indiferença, ao menos quando não está nisso interessado. Na consciência que atingiu a mais alta perfeição, na consciência do homem, o egoísmo, bem como a inteligência, a dor e a alegria, deve ter adquirido o mais perfeito desenvolvimento e o conflito que provoca entre os indivíduos deve acentuar-se de modo espantoso. Tal é, efetivamente, o espetáculo que em todo lugar se nos depara, tanto no grande, quanto no pequeno: vemo-lo, ora sob um aspecto terrível na vida dos tiranos ou dos celerados e nas guerras que desolam o mundo, ora sob o prisma ridículo, que é o tema da comédia e que se mostra especialmente sob a forma de presunção e de vaidade, fraquezas que Rochefoucauld melhor que todos soube colher e representar in abstracto, encontramo-lo na história de todos os tempos e países, como em nossa experiência pessoal. Mas se pode reconhecê-lo mais distinto quando alguma multidão desenfreada rompeu todos os diques da lei e da ordem; então se mostra em plena luz aquele belium omnium contra omnes de que Hobbes deu o quadro admirável no capítulo primeiro De cive. Então se vê como cada qual não somente rouba aos outros o que cobiça, como também destrói a felicidade ou a existência dos seus semelhantes, ainda que não seja senão para conquistar um suplemento de mesquinhíssimo interesse. Eis a mais nítida expressão do egoísmo cujas manifestações sob este aspecto não são ultrapassadas senão pelas da maldade propriamente dita, da maldade que, por puro prazer, procura o dano e a dor alheia, sem nenhuma vantagem direta, do que dentro em breve falaremos. Roga-se ao leitor confrontar o presente estudo sobre a origem do egoísmo com o que fiz na minha monografia sobre o fundamento da moral, §14.

Uma das principais fontes da dor, essência inseparável da vida, é esse Eris, essa luta entre os indivíduos, essa expressão da interna contradição, inerente ao querer-viver, que se torna visível por meio do princípio de individuação: modo cruel de a colocar diretamente em plena luz são os combates entre feras. Em tal discórdia original reside uma fonte inexaurível de afãs, malgrado todas as medidas que a esse respeito se tomaram e que logo examinaremos de perto.

A JUSTIÇA HUMANA

Já expusemos como a primeira e mais simples afirmação do querer-viver não é senão a afirmação do corpo do indivíduo, isto é, a manifestação da vontade por meio dos atos no tempo, enquanto o corpo, com a sua forma e com as suas disposições adaptadas ao escopo, representa a própria vontade no espaço, e nada mais. Tal afirmação se explica sob a forma de conservação de corpo com o emprego das próprias forças. A satisfação do instinto sexual se lhe une imediatamente, ou antes lhe faz parte, porque os órgãos da geração são partes do corpo. Por conseguinte, qualquer renúncia espontânea, não fundada sobre algum motivo, à satisfação desse instinto, é já uma negação do querer-viver, um aniquilamento efetuado por si mesmo em seguida a um conhecimento que age como quietivo. Vê-se, portanto, que tal negação é já uma contradição entre a vontade e o seu fenômeno. Porquanto embora o corpo objetive nas partes genitais a vontade de propagar-se, o homem renuncia a tal propagação. E precisamente porque esta renúncia nega ou suprime o querer-viver, que constitui uma tão difícil e tão dolorosa vitória sobre si mesmo, de que mais adiante falaremos. Como a vontade apresenta esta afirmação do corpo por meio de si mesmo, em inumerável multidão de seres, viventes um ao lado de outro, o egoísmo, próprio a todos, faz com que ultrapasse facilmente em dado indivíduo o grau duma simples afirmação, chegando até à negação da mesma vontade que se manifesta em outro indivíduo. A vontade do primeiro foge aos limites em que se afirma a vontade do segundo, seja ofendendo ou destruindo o corpo deste, seja constrangendo as forças de tal corpo a servi-la em lugar de servir o corpo em que se manifesta; um homem subtrai assim à vontade objetivada num indivíduo as forças por cujo meio essa vontade se explica, para aumentar e ultrapassar doutro tanto as forças necessárias à própria individualidade; por conseguinte, quando afirma a sua vontade, este homem sai dos limites do seu corpo e nega a vontade do corpo alheio. Tal usurpação, sobre os limites de afirmação da vontade de outrem, foi em todos os tempos reconhecida e a sua noção abstrata tem o nome de injustiça. Porquanto ambas as partes se dão conta do fato instantaneamente, não de modo claro, sob a forma abstrata com que eu o apresentei, mas em virtude dum sentimento íntimo. A irrupção, na esfera da afirmação do corpo, da própria negação por parte dum estranho, é sentida pela vítima da injustiça como dor moral direta, de todo separada e diversa da dor física que, aliás, o ato lhe faz sofrer, e do desprazer que lhe causa o dano. Por outro lado, o autor da injustiça, reconhece ser em si, a mesma vontade que lhe aparecia no outro corpo, apercebe-se da afirmação desta última num dos seus fenômenos com uma veemência tal, que sobrepassando os limites e as forças desse corpo se torna negação de si mesma em outro fenômeno; por conseguinte, sente como tal veemência o coloca em luta consigo mesmo enquanto constitui a vontade em si e como se dilacera dentro de si mesma; também o culpado, repito, compreende tudo isto instantaneamente não “in abstractum”, mas por meio de certo sentido vago: é o que se diz remorso da consciência, ou, de modo mais preciso no presente caso, sentimento de haver praticado uma injustiça.

A injustiça, da qual analisamos a noção na sua mais abstrata generalidade, se exprime em concreto de modo mais amplo, mais especial e mais palpável no canibalismo: eis o seu tipo mais nítido e mais evidente, a imagem execrável do mais impetuoso conflito da vontade consigo própria, na sua objetivação mais elevada: o homem. Exprime-se também com o homicídio, cuja efetivação produz imediatamente e com horrível clareza o remorso, de que há pouco explicamos em termos breves e abstratos o significado, e golpeia de tal modo a calma do espírito que este se volve para sempre incurável; portanto o terror que nos faz estremecer depois de ter cometido um assassinato, como também o pavor que nos faz recuar diante dum homicídio que estamos para praticar, correspondem ao ilimitado apego à vida de que é penetrado qualquer ser vivente na sua qualidade de fenômeno do querer-viver. (Além do que, para diante, analisaremos com mais intimidade este sentimento que acompanha a efetivação duma injustiça ou dum ato de maldade, por outros termos o remorso, ao qual daremos a nitidez duma noção abstrata.) Qualquer mutilação ou lesão do corpo alheio, feita intencionalmente, como também um simples golpe, são coisas que, pela sua essência, pertencem à categoria do homicídio, do qual diferem unicamente no grau. A injustiça se revela ainda na servidão, na escravatura forçada e, finalmente, em qualquer ataque à propriedade alheia; este ataque, no quanto a propriedade constitui o fruto do trabalho, é do mesmo gênero que a injustiça precedente, com a qual tem relação como o fato do simples ferimento se relaciona com o homicídio.

Com efeito, de acordo com a nossa explicação de injustiça, a única propriedade que não se pode tolher ao homem sem injustiça é o fruto do emprego de suas forças. Quando se lhe tolhe este fruto, priva-se a vontade das forças do corpo no qual está objetivada para fazê-la servir à vontade objetivada em outro corpo. Porquanto deste modo o autor da injustiça, apegando-se não ao corpo alheio, mas a algo de inanimado e diferente desse corpo, irrompe na esfera de afirmação da vontade estranha, por isto que as forças e o trabalho do outro corpo se uniram por assim dizer, identificaram-se com a coisa. Donde se segue que todo direito de verdadeira propriedade, isto é, moral, se acha em origem inteira e unicamente fundado no trabalho como foi admitido quase que por toda parte, até Kant; o mais antigo código de legislação que existe, exprime claramente com palavras admiráveis: “Os sábios que conhecem os tempos mais remotos declaram que um campo cultivado é propriedade de quem o arou, melhorou e trabalhou, como o antílope é propriedade do primeiro caçador que o feriu mortalmente”. (Cód. das Leis de Manu, IX, 44.) Somente a senil debilidade de Kant poderia explicar o conjunto da sua teoria do direito, que não é mais que um estranho tecido de erros que nascem uns dos outros, particularmente no que se refere ao direito de propriedade, fundado sobre a primeira ocupação. Como é que, em verdade, a simples declaração da minha vontade poderia excluir os outros do gozo de alguma coisa, e criar imediatamente um direito a meu respeito? Evidentemente, tal declaração tem necessidade de apoiar-se sobre um título de direito, enquanto Kant admite que o constitui. De que modo poderia a conduta dum homem ser em si, isto é, moralmente, injusta porque ele não leva em consideração certas pretensões à posse exclusiva duma coisa, quando tais pretensões não são fundadas senão na sua simples enunciação? Por que razão haveria de nesse caso exprobar-lhe a consciência uma apropriação da coisa, sobre a qual exerceu forças que originariamente são próprias do indivíduo? Efetivamente, quando, com o auxilio dum esforço estranho, por menor que seja, uma coisa foi trabalhada, embelecida, protegida contra a destruição, mesmo que tal esforço consista apenas em recolher ou debulhar um fruto selvagem, aquele que se lhe apropria tolhe a outrem o resultado das forças exercidas, emprega, portanto, o corpo alheio em lugar do próprio, para servir a sua vontade; alarga, assim, a afirmação desta última para além do fenômeno que lhe é próprio e chega até ao ponto de negá-la no fenômeno estranho. Por outras palavras, comete uma injustiça. O simples uso duma coisa sem trabalho algum para cultivá-la ou pô-la a salvo da destruição, não dá a seu turno direito sobre ela, como também não lhe daria posse exclusiva uma declaração da vontade. Uma família que, durante um século, tivesse andado à caça por dado território e não tivesse tido o mínimo cuidado de melhorá-lo, não poderia, sem praticar uma injustiça moral, repelir um adversário que também quisesse caçar. O pretendido direito de primeira ocupação em virtude do qual, por ter simplesmente gozado duma coisa se lhe reclama uma recompensa, ou seja, a faculdade exclusiva de gozá-la também para o futuro, não encontra fundamento moral. O novo adventício poderia com muito maior direito opor a quem não se apoia senão em tal título: precisamente porque tu gozaste por tanto tempo, é justo que outrem a seu turno goze. Quanto às coisas que não admitem nenhum trabalho, nem para beneficiá-las, nem para garanti-las contra a destruição, essas não admitem posse exclusiva moralmente fundada, salvo no caso duma cessão voluntária feita a alguém por parte de todos, por exemplo, em recompensa de outros serviços; mas isto supõe uma sociedade já regulada por uma convenção, ou seja, um Estado. O direito de propriedade moralmente fundado, tal qual o havemos deduzido, por sua natureza dá a quem o possui um poder tão ilimitado quanto o que se tem sobre o próprio corpo; segue-se que por troca ou doação, pode-se transmitir tal propriedade a outrem que, então, passará a possuir a coisa a título tão justo como o era o do cessor.

Enquanto ao que concerne à perpetração duma injustiça, ela pode afetar-se ou com a violência ou com a astúcia, as quais se equivalem pela sua essência moral. Em primeiro lugar, para um homicídio, é indiferente que haja sido cometido com o punhal ou com o veneno; e analogicamente isso é verdade também para lesão de qualquer natureza. Todos os outros casos de injustiça podem ser sempre reduzidos a este fato que, com a injustiça que pratico, constranjo outro indivíduo a servir à minha vontade em lugar da sua, a agir ao sabor do meu capricho e não do seu. Por via da violência, consigo-o em virtude da causalidade física; por via da astúcia, em virtude da motivação, ou seja, da causalidade que age sobre o conhecimento; o que significa que proponho à vontade dum indivíduo, motivos simulados, por cuja virtude, tal indivíduo, acreditando seguir a sua vontade, segue a minha. Como o ambiente em que se encontram os motivos é o conhecimento, não posso vencer senão falseando o conhecimento, ato que constitui a mentira. Esta última tem sempre por finalidade agir sobre uma vontade estranha, influir sobre o conhecimento alheio — não sobre o conhecimento em si e como tal, mas como meio, ou seja, no quanto o conhecimento determina a vontade. Porquanto a minha própria mentira, partindo da minha vontade, deve ter um motivo, o qual não pode ser senão a vontade estranha e não o conhecimento estranho em si mesmo e por si mesmo, porque em tal qualidade esse conhecimento não pode nunca influir sobre a minha própria vontade, não pode nunca movê-la, nem tornar-se um motivo de seus objetivos. Igual motivo não pode ser senão a volição e a ação de outrem, por meio das quais unicamente, portanto de modo indireto, o conhecimento estranho pode tornar-se motivo. Isto se aplica não apenas à mentira evidentemente interessada, mas também à que é provocada pela pura maldade, à que goza com as consequências dolorosas produzidas em outrem pelo erro a que ela mesma deu origem. Também a simples jactância tende a influenciar a vontade e a conduta alheia com a tentativa de engrandecer a consideração ou de melhorar a opinião que se pretende gozar da parte deles. — A simples recusa de dizer a verdade, ou seja, em geral de enunciar um fato, não é em si uma injustiça; mas o é fazer acreditar no falso. Quem se recusa a indicar a boa estrada a um viajante transviado não é injusto, mas se torna injusto se lhe dá uma falsa direção. De quanto precede resulta que toda mentira, precisamente como todo ato de violência, é tal título uma injustiça, porque, como o ato de violência, tem por escopo estender o domínio da própria vontade sobre a vontade alheia, por conseguinte, afirmar a própria vontade negando a alheia, o que faz também a violência. Mas a mentira mais perfeita é a violação dum acordo assumido, porque neste caso todas as condições que havemos enunciado se encontram reunidas de modo evidente e completo. Com efeito, quando concluo uma convenção, aquilo a que se empenha o outro contratante, é por minha própria confissão, o motivo direto da obrigação que estou por assumir a meu turno. As promessas recíprocas são prudentemente discutidas, antes de serem recambiadas em termos formais. As declarações recíprocas estão, por hipótese, próximas da sua verdade, em poder de cada um dos declarantes. Se o outro contratante viola a convenção, ele é que me há enganado. Sugerindo ao meu conhecimento a aparência dos motivos, dirigiu-me a vontade segundo suas intenções e estendeu o domínio da sua vontade até sobre minha pessoa. Deste modo cometeu completa injustiça. Eis a base moral da legitimidade e validade das convenções.

A injustiça cometida por meio da violência não é para o seu autor, tão grande opróbrio como a cometida por meio da astúcia, porque a primeira faz demonstração duma força física que em qualquer circunstância se impõe aos homens, enquanto a segunda, com o emprego de caminhos escusos, patenteia fraqueza e envelhece o homem física e moralmente duma só vez; e porque a mentira e a astúcia nada conseguem se aquele mesmo que as utiliza não manifesta horror e desprezo por semelhantes coisas, com o escopo de cativar a confiança alheia e porque o triunfo lhe resulta então de ter-lhe sido atribuída uma lealdade que não possui. A aversão profunda produzida pela astúcia, a má fé, a traição, provém disto que a boa fé e a probidade são o liame exterior que reúne num todo a vontade dispersa na imensa multidão dos indivíduos, e limita assim as consequências do egoísmo proveniente de tal dispersão. A má fé e a traição rompem com este liame, abrindo desmedido campo às consequências do egoísmo.

O conjunto de quanto havemos exposto demonstrou como o conceito de injustiça admite essa qualidade de conduta pela qual o indivíduo alarga a afirmação da vontade que se manifesta no seu corpo até a negação da que aparece no corpo alheio. Com exemplos muito gerais fizemos ver onde começa o domínio da injustiça e estabelecemos, com pequeno número de noções principais, quais lhe são os diferentes graus, desde os mais elevados até aos ínfimos. De tudo isto resulta que a noção de injustiça é primitiva e positiva, enquanto a sua oposta, a de justiça é derivada e negativa. Porquanto é preciso referir-se ao conceito e não às palavras. Com efeito, nunca se teria ouvido falar de justiça, se a injustiça não subsistisse. A noção de justiça não contém senão a negação da injustiça; a ela se refere toda ação que não ultrapassa os limites que antes estabelecemos, isto é, que não nega a vontade alheia com o escopo de afirmar maiormente a própria. Tal limite divide, sob a relação da qualidade pura e simplesmente moral, todo o domínio das ações possíveis, justas ou injustas. Desde o momento em que uma ação não invade, pelo modo indicado, a esfera de afirmação duma vontade estranha negando-a, não constitui injustiça. Assim, recusar, por exemplo, o socorro a alguém que se encontre em perigo urgente, ou contemplar com impassibilidade a morte dum homem pela inanição quando se tem o supérfluo para si mesmo, ainda que sejam atos duma crueldade infernal, não são injustiças. Apenas pode-se afirmar que aquele que é capaz de estender até esse ponto a desumanidade e a dureza de coração, está pronto também a praticar qualquer espécie de injustiça, desde que seus projetos o exijam e que nenhuma coação lho impeça.

Mas o conceito de justo, com o de injusto, encontrou a sua principal aplicação, e indubitavelmente também a sua primeira origem, nesses casos em que uma tentativa de injustiça é repelida pela força. Tal resistência não pode a seu turno ser injusta; portanto é justa, ainda que a violência empregada, considerada em si e isoladamente, constitua uma injustiça e não se justifique tornando-se direito no caso dado, senão em virtude do seu motivo. Quando um homem, na afirmação da sua vontade, chega a invadir a esfera de afirmação da vontade essencial à minha pessoa, e portanto a nega, a minha defesa contra a usurpação não é senão uma negação dessa negação; em tal sentido não faço de minha parte mais do que afirmar a vontade que por sua essência e em origem se manifesta no meu corpo e se exprime implicitamente no seu fenômeno; por consequência não pratico uma injustiça e, portanto, faço justiça. Isto quer dizer que então tenho o direito de contraditar a negação estranha com tanta força quanta for necessária para neutralizá-la, coisa que, facilmente se compreende, pode chegar até à eliminação do indivíduo: a ação danosa que me ameaça como violência externa, pode ser repelida com reação algo superior sem que eu pratique uma injustiça, portanto, com justiça; porquanto tudo aquilo que vem de meu lado permanece na esfera de afirmação da vontade essencial à minha pessoa, como pessoa, e se exprime por meio desta (tal a esfera que forma o campo da luta); eu não invado a esfera estranha; meu ato não é senão a negação duma negação, por consequência, uma afirmação; esta mesma não é negação; posso, portanto, constranger com justiça uma vontade estranha a desistir da negação quando nega a minha vontade, tal qual se revela no meu corpo e no emprego das minhas forças pela conservação do corpo, sem negar com isto uma vontade estranha que se mantenha nos mesmos limites. Em outras palavras, tenho até esse ponto um direito de coação.

Em todos os casos em que me pertence o direito de coação, isto é, sempre que esteja plenamente autorizado a usar de violência para com os outros, posso também, segundo as circunstâncias, opor a astúcia à violência sem cometer uma injustiça. Tenho, portanto, o direito de mentira que está em perfeita proporção com o direito de coação. Jurar por exemplo a um salteador que nos ataca, que nada mais possuímos, é agir mui justamente; assim é justo que no caso em que um ladrão nos entre em casa na calada noturna, o lancemos com uma mentira à cantina e ali o fechemos. Um homem capturado por salteadores digamos, ou por corsários, tem o direito de matá-los para libertar-se, seja abertamente ou seja à traição. Por isto não se fica ligado por uma obrigação extorquida com a violência física direta, porque a vítima de tal violência tem o direito de salvar-se dos seus opressores assassinando-os e, ainda com melhor razão, enganando-os. Quando não se pode reaver com a força o bem que nos roubaram, não se pratica injustiça, readquirindo-o com a astúcia. Também quando o jogador joga o dinheiro que me roubou, tenho o direito de jogar contra ele com dados falsos, porque tudo quanto lhe ganho já me pertencia. Quem pretendesse contestar tudo isto, deveria contestar também as astúcias de guerra que não são mais do que mentiras em ação e confirmação da sentença de Cristina da Suécia: “Não se deve dar crédito à palavra dos homens; muito menos se pode confiar em seus atos”. Como se vê, os confins do justo tocam imediatamente os do injusto. Ademais, creio supérfluo demonstrar como tudo isto concorda perfeitamente com o que atrás disse sobre a ilegitimidade da mentira e da violência, para servir também à elucidação das estranhas teorias sobre a mentira piedosa.

De acordo com o que precede, o justo e o injusto são, portanto, determinações puramente morais, ou seja, não têm valor senão no tocante à conduta humana como tal e em relação com o significado íntimo dessa conduta em si mesma. Tal significado se revela diretamente ao homem no seu foro íntimo no fato pelo qual a injustiça é acompanhada, para quem a comete, da dor íntima que se tem, ocasionada pela força excessiva da afirmação da própria vontade, alargada até à negação do fenômeno da vontade alheia, e assim também do sentimento que nos diz que, diferentes do fenômeno que se há lesado, somos, contudo, idênticos a ele. A explicação completa deste significado íntimo de todo remorso não poderá, todavia, ser dada senão mais adiante. Por outro lado, a vítima duma injustiça sente dolorosamente a negação do seu querer, tal qual é expresso por meio do corpo ou das necessidades físicas cuja satisfação a natureza confiou às forças do indivíduo; sente ao mesmo tempo que poderia repelir por qualquer meio tal negação, se as forças para tanto não lhe falecessem. Este significado puramente moral é o único que o justo e o injusto podem ter para o homem considerado como ser humano e não como cidadão; seria completo, também, no estado de natureza, na ausência de qualquer lei positiva; forma a base e o conteúdo daquilo que, precisamente por essa razão, foi denominado direito natural e que com maior precisão deveria chamar-se direito moral, porquanto a sua autoridade não se aplica ao que se padece, à injustiça sofrida, à realidade externa, mas unicamente ao que se faz, à injustiça cometida; concerne à ação e ao conhecimento interno que este dá ao homem da sua vontade individual e que se chama consciência; no estado de natureza tal conhecimento não pode estender-se a todos os casos, aos outros indivíduos, nem impedir que a violência substitua o direito. No estado de natureza depende unicamente de cada indivíduo em qualquer ocasião, o não cometer injustiça, mas não depende o deixar de sofrê-la, porque isto provirá duma contingência externa, da sua força física. Vemos, portanto, que os conceitos de justo e de injusto têm valor também no estado selvagem e não são por modo nenhum convencionais; apenas servem somente como noções morais, auxiliando a cada um no conhecimento da própria vontade. Na escala dos graus tão diversos da força com que a vontade se afirma nas criaturas humanas estes assinalam um ponto fixo, como o ponto de congelação na escala termométrica; este sinal é o grau para além do qual a afirmação da vontade própria se torna negação da vontade alheia. Por outras palavras, é o ponto para além do qual a vontade indica por meio da injustiça o grau da sua energia bem como o nível até o qual a inteligência está imersa no princípio de individuação (que é o modo de conhecimento inteiramente consagrado ao serviço da vontade). Mas aquele que quiser menosprezar ou negar o lado puramente sob o ponto de vista da ação externa e dos seus resultados, desse poderá, sem dúvida, sustentar como o fez Hobbes, que o justo e o injusto são determinações convencionais, estabelecidas arbitrariamente e, por conseguinte, inexistentes fora da lei positiva e jamais poderemos demonstrar-lhe com a experiência externa aquilo que a esta não pertence. Esse mesmo Hobbes, no tratado “De Principiis Geometrarum”, faz ressaltar de modo assaz bizarro o empirismo absoluto da sua tendência mental, negando as matemáticas puras propriamente ditas e sustentando com obstinação que o ponto tem uma extensão e a linha uma largura. Ora, como não estamos em condições de pôr-lhe sob os olhos um ponto sem extensão e uma linha sem largura, não podemos demonstrar-lhe a aprioridade das matemáticas, como também não podemos fazê-lo admitir a do direito, desde o momento em que ele rejeita qualquer conhecimento que não proceda do empirismo.

A doutrina do direito puro é, portanto, um capítulo da Moral, e concerne àquilo que se faz, não àquilo que se padece. Porque somente a ação é manifestação da vontade e é esta que a Moral toma em consideração. Sofrer a injustiça é um verdadeiro acidente: a moral só pode ocupar-se dele indiretamente e apenas para demonstrar que tudo o que se faz com o fim de não sofrer a injustiça, não constitui ação injusta. O desenvolvimento deste capítulo da moral teria por objeto a determinação exata do limite até o qual o indivíduo pode chegar na afirmação da sua vontade objetivada no seu corpo, sem tornar-se negação da mesma vontade que aparece no corpo alheio; depois, precisaria também os atos que ultrapassam dito limite, que são, por conseguinte, injustos e que podem, a seu turno, ser repelidos sem injustiça. Assim, a ação propriamente dita continua sempre como objeto que teria em vista.

No mais, como resultado empírico encontramos agora o fato da injustiça padecida e neste passo, com mais nitidez que alhures, já o dissemos, se revela o fenômeno do conflito do querer-viver consigo mesmo, oriundo do egoísmo e da multiplicidade dos indivíduos; estes fatores têm por condição comum o princípio de individuação, porque este último é a forma do mundo como representação para o conhecimento do indivíduo. Ademais, vimos há pouco que igual conflito entre os indivíduos é a fonte inexaurível de grande parte dessa dor que forma a essência da vida humana.

A razão, faculdade comum a todos os indivíduos, aos quais permite, diferenciando-os dos animais, conhecer, não apenas as coisas particulares, como também compreender-lhes abstratamente o conjunto do seu concatenamento, fez-lhes conhecer esta fonte de dor e os induziu a refletir sobre a maneira de atenuá-la e possivelmente de suprimi-la, fazendo um sacrifício comum que seria compensado pela vantagem comum que lhe derivaria. De feito, qualquer que seja o prazer que o egoísmo individual encontre na prática da injustiça, esta tem o necessário correlativo na grande pena que outrem prova ao sofrê-la. E como a razão, tendo o poder de abraçar o conjunto por meio do pensamento, abandonou o ponto de vista parcial do ser a que pertence e por um instante despojou-se do seu apego aos interesses de tal ser, viu o prazer de agir injustamente que um indivíduo prova, ultrapassado cada vez por uma dor relativamente maior para quem sofre a injustiça; e como aqui tudo está abandonado ao acaso, reconheceu também que cada qual podia bem temer que viria gozar do prazer de praticar a injustiça com menos frequência do que a dor de sofrê-la. A razão compreendeu assim que, ou fosse para diminuir a soma dos afãs entre nós dispersos, ou para dividi-la com a maior igualdade possível, o melhor e único meio era evitar a todos a dor de sofrer a injustiça, fazendo igualmente todos renunciarem ao prazer de cometê-la. Este meio que o egoísmo, abandonando à razão o seu ponto de vista exclusivo e procedendo com método, encontrou sem fadiga e aperfeiçoou progressivamente é o pacto social ou a lei. Sua origem, tal como a exponho aqui, foi já exposta por Platão na sua República. A lei é efetivamente a única possível e a única que ressalta da própria natureza da questão. Nem o Estado poderia igualmente em qualquer país ter tido outra origem, porque é precisamente esta origem, este escopo que fez do Estado um Estado; e nisto é de fato indiferente que a condição que o precedeu em determinado povo haja sido ou a duma horda de selvagens que viviam independentes uns dos outros (anarquia), ou a dum bando de escravos que o mais forte governa como lhe apraz (despotismo). Em ambos os casos não existe ainda o Estado; este nasce do acordo comum e é mais ou menos perfeito ou imperfeito segundo é mais ou menos governado pela anarquia ou pelo despotismo. As repúblicas tendem para a anarquia, as monarquias para o despotismo; no regime constitucional inventado para servir de centro entre ambos, governam os dois partidos. Para se poder criar um Estado perfeito seria preciso começar com o criar seres forjados de modo a estarem sempre dispostos a sacrificar o próprio interesse ao dos outros.

Até este ponto é sempre interessante que haja uma família única, cuja prosperidade seja inseparável da do país, porquanto ao menos assim nos assuntos graves a prosperidade não poderá jamais favorecer tal família sem ser ao mesmo tempo útil aos interesses de todos. Eis o que constitui a força ou a vantagem da monarquia hereditária.

Vimos que a moral se ocupa do justo e do injusto exclusivamente do ponto de vista ativo determinando limites precisos de conduta a quem estivesse disposto a não praticar injustiça; entretanto, a ciência social, a teoria da legislação tem em mira unicamente a injustiça sofrida e não se ocuparia jamais da injustiça cometida se não fosse com referência ao seu correlativo necessário e inseparável, a injustiça sofrida; é este o inimigo contra o qual trabalha e sobre quem lhe permanece fixa a atenção. Se, por impossível, se pudesse idear um agir injusto que não fosse acompanhado por outro lado dum sofrer injusto, o Estado, logicamente, não poderia impedi-lo. Além do que, como em moral o querer, a intenção é a única coisa que se leva em consideração e a única que tem uma realidade, o firme propósito de praticar uma injustiça, impedida e tornada ineficaz apenas pela força externa, tem o mesmo valor, moralmente, que a injustiça efetuada e o tribunal moral condena como injusto aquele que a quer. Ao contrário, o Estado não se preocupa com a vontade nem com a intenção por si mesmas, mas unicamente com o ato (tentado ou consumado, não importa), por causa do seu correlativo, a injustiça sofrida por outrem: o ato, o fato, eis o que há de real a seu ver; enquanto não procura a intenção senão naquilo em que possa esclarecer-lhe o sentido do ato. O Estado não proíbe a ninguém o pensar constantemente em matar com o ferro ou com o veneno, desde o momento em que sabe positivamente que o temor do cutelo ou da forca impedirá de contínuo os efeitos de tal vontade. Outrossim, não tem o plano insensato de destruir as tendências injustas, as más intenções, mas apenas põe sempre diante de cada motivo, que possa induzir à prática da injustiça, outro motivo sob a forma de pena inevitável, cuja força suprime a do primeiro e lhe determina a cessação; o código penal é, portanto, o repertório mais completo possível dos contramotivos que se opõem a todas as ações criminosas presumidas possíveis; ali são os crimes e os contramotivos presumidos in abstractum, para que encontrem ao suceder o caso a sua aplicação concreta. Com tal fim, a ciência política ou a legislação tomam de empréstimo à moral o capítulo que ensina a justiça e que, ao lado do significado íntimo do justo e do injusto, fixa o limite preciso que os separa, mas unicamente para extrair-lhe a utilidade ao inverso: esses limites que, segundo a moral, não devem nunca ser ultrapassados por quem não entende cometer a injustiça, são considerados pela legislação do lado oposto, ou seja, como limites que não se deve permitir sejam transgredidos, para que não haja sofrimento de injustiça, limites, portanto, em que se tem o direito de compelir a reentrar aquele que os viola: por conseguinte, a legislação reforça com as leis a parte exposta à agressão. Pode-se dizer que o legislador é um moralista às avessas; e por isto que a legislação, no seu verdadeiro significado, ou seja, como doutrina dos direitos que é permitido defender, é o reverso desse capítulo da Moral, no qual se ensina quais são os direitos que não é permitido violar. O conceito do injusto e da sua negação, o justo, de moral que é a na sua origem, se torna jurídico, pelo deslocamento do seu ponto de partida, do lado ativo para o lado passivo, isto é, por inversão. Tal inversão, unida à teoria de Kant sobre o direito, segundo a qual é mui falsamente deduzida a instituição do Estado, como dever moral, de imperativo categórico, frequentemente nestes últimos tempos tem dado origem ao estranho erro pelo qual o Estado é uma instituição destinada a favorecer a moral, que não deve a sua origem senão a esta tendência e que, portanto, é dirigido contra o egoísmo. Como se a intenção interna, que é a única a que convém o atributo de moral ou imoral, como se a vontade, eternamente livre, pudesse ser modificada de fora e por uma influência qualquer! Ainda mais absurda é a tese pela qual o Estado é a condição da liberdade no seu significado moral, por conseguinte, da moralidade; porque a liberdade se encontra para além do fenômeno, e com tanto mais razão por sobre as instituições humanas. O Estado, já o dissemos, é tão pouco dirigido contra o egoísmo em geral e como tal, que, ao contrário, deve a sua origem ao egoísmo que aprendeu a conhecer-se a si mesmo, que procede metodicamente, que há passado do seu ponto de vista unilateral a um ponto de vista geral e que se há volvido comum a todos, por haver assumido, concentrados em si, os egoísmos individuais. É apenas para servir este egoísmo que o Estado é chamado, instituído que foi precisamente pela razão da impossibilidade duma moralidade pura, ou seja, duma conduta justa, baseada sobre princípios morais, porque, se uma conduta semelhante fosse possível, o próprio Estado se tornaria supérfluo. Portanto, não é de fato contra o egoísmo, mas sim contra as consequências desastrosas e recíprocas que resultam da multiplicidade dos egoísmos individuais e perturbam o bem-estar geral, que o Estado foi instituído com o fim de assegurar dito bem-estar. Por isto disse Aristóteles: O objetivo da cidade é que os cidadãos vivam bem; ora, viver bem é viver uma vida harmoniosa e bela. (Política, 3, 9) Hobbes também expôs de modo seguro e excelente esta origem e este fim do Estado, tais como são expressos de longa data no princípio de qualquer sistema político: Salus publica prima lex esto (que a primeira das leis seja o bem-estar público).

Se o Estado atinge plenamente o objetivo, o resultado obtido será o mesmo que derivaria do domínio geral das intenções absolutamente justas. Mas a essência interna, a origem dos dois fenômenos será diversa. Efetivamente, o segundo resultaria de que ninguém quereria cometer injustiça e o primeiro de que ninguém quereria sofrê-la, isto porque com tal escopo teriam sido tomadas medidas convenientes. Isto nos mostra como o mesmo fim pode ser atingido, ainda que se parta de duas direções opostas; um carnívoro com a coleira é tão inofensivo quanto um herbívoro. Mas o Estado não saberia ir além. O Estado não poderá jamais produzir um estado de coisas semelhante ao que derivaria da benevolência e do amor recíproco em geral. Porquanto como vimos há pouco que não proibiria um agir injusto a que não correspondesse um sofrer injusto e que não o proíbe senão porque é condição irrealizável, assim vice-versa, em virtude da sua tendência dirigida para o bem-estar de todos, o Estado se cercaria de frequentes precauções para que cada um gozasse toda sorte de efeitos de benevolência e de humanidade, se tudo isto não tivesse um correlativo inevitável na prática da benevolência e da caridade; e no caso, cada cidadão solicitaria ser encarregado da parte passiva, assaz preferível à ativa, a qual por algum motivo não deveria ser atribuída a um de preferência a outro indivíduo. Por conseguinte, não se pode impor pela força senão o lado negativo que constitui efetivamente o direito, e não o positivo que é quanto se compreende sob a denominação de deveres de humanidade, ou deveres imperfeitos.

A legislação, como já o dissemos, toma de empréstimo à moral a teoria do direito puro, ou natural, e dos limites do justo e do injusto, para aplicá-la ao inverso do seu modo de ver, que não tem nada de comum com a moral e para criar de conformidade com isto um corpo de leis positivas com meios de sanções idôneas. A legislação positiva é, portanto, a doutrina moral do direito aplicada ao inverso. Cada aplicação pode levar em conta, em cada nação, as relações e as circunstâncias especiais. Mas unicamente sob a condição de inspirar-se sempre nas suas partes essenciais, nos princípios do direito puro e de atingir-lhe o fundamento de todas as suas disposições e a legislação assim criada será, propriamente falando, um código de direito positivo e o Estado um pacto legítimo, um Estado no verdadeiro sentido da palavra, fundação moralmente admissível e não uma instituição imoral. Em falta do que, a legislação positiva não funda senão a injustiça positiva: — e ela mesma é então uma iniquidade estabelecida pela violência e publicamente reconhecida. De tal natureza é o despotismo e o regime da maioria dos Estados Maometanos, bem como certas instituições de muitos governos constitucionais, como por exemplo, a servidão, o trabalho obrigatório etc. A teoria pura do direito, ou o direito natural, ou mais propriamente falando, o direito moral, serve de base, sempre inversamente, a qualquer lei do direito positivo, do mesmo modo por que as matemáticas puras são o apoio de qualquer ramo das matemáticas aplicadas. Os pontos essenciais da teoria do direito puro, tais como a filosofia deve transmitir à legislação, são os seguintes: — 1.º) Explicar o significado íntimo e verdadeiro bem como a origem dos conceitos do justo e do injusto com a sua aplicação e seu lugar na moral; 2.º) Indicar a fonte do direito de propriedade; 3.º) Mostrar a origem do valor moral das convenções, porque sobre ela se funda a autoridade moral do pacto social; 4.º) Explicar o nascimento e a finalidade do Estado, a relação de tal finalidade com a moral e segundo esta relação a aplicação mais conveniente, porém invertida, da teoria moral do direito à legislação; 5.°) Fazer-lhe derivar o direito penal. O conteúdo ulterior da doutrina do direito não é mais que a aplicação dos princípios expostos, e determinação mais precisa dos limites do justo e do injusto para todas as circunstâncias possíveis da vida, que serão com tal fim reunidas e classificadas sob os diversos pontos de vista em rubricas separadas. No que concerne a estes ensinamentos especiais, os tratados de direito puro estão todos mais ou menos de acordo. Não é senão sobre os princípios que diferem de opinião, porque os princípios são sempre conexões de algum sistema filosófico. No espírito do nosso sistema, tratamos dos quatro primeiros pontos principais de modo conciso e geral e todavia com clareza e precisão; falta-nos agora falar pelo mesmo modo do direito penal.

Kant pretende, erroneamente, que fora do Estado não existe direito absoluto de propriedade. Segundo as deduções que acima apresentamos, também no estado de natureza existe um direito de propriedade perfeitamente natural, isto é, moral, que não se pode violar sem injustiça, mas que sem injustiça se pode defender a todo transe. E, ao contrário, é certo que fora do Estado não há direito penal. Qualquer direito de punir é estabelecido unicamente pela lei positiva, a qual fixou antecipadamente para cada delito uma pena, cuja ameaça serve de contramotivo e é destinada a prevalecer sobre todos os motivos que levariam à delinquência.

Estabelece-se que tal lei positiva haja sido reconhecida por todos os cidadãos dum Estado. É, portanto, baseada sobre uma convenção comum, que todos os membros da sociedade têm o dever de obedecer em qualquer circunstância; por consequência são eles adstritos, por um lado a aplicar a penalidade, por outro a submeter-se-lhe; por isto tem o Estado o direito de constranger à submissão. Donde se segue que o fim imediato da punição em qualquer caso é a execução da lei na sua qualidade de convenção. Mas o objetivo único da lei é impedir por meio da intimidação que se atente contra o direito alheio; pois que os cidadãos se reuniram num Estado, renunciaram à prática da injustiça e incumbiram-se das despesas de governo, a fim de que cada um seja garantido contra a eventualidade de ter que sofrer a injustiça. Por onde se vê que a lei e a sua execução, ou seja, a punição, têm essencialmente em vista o futuro e não o passado. Eis o que distingue a punição da vingança, a qual é motivada pelo fato consumado, isto é, pelo passado em qualidade de passado. Qualquer represália que se inflija em consequência duma injustiça, causando dor a quem foi injusto, sem outro fim para o futuro, é vingança e não pode ter outro intuito que não seja o dar consolação pelo que se sofreu, com o aspecto da dor imposta por sua vez ao autor da injustiça. É isto maldade e crueldade e não encontraria justificativa na moral. Uma injustiça de que um homem se torna culpado a meu respeito não me autoriza a fazê-lo sofrer outra. Pagar com o mal, sem finalidade ulterior, não é moral, nem moralmente justificável, nem por meio de qualquer motivo razoável: o direito penal não tem sentido. Por isto a teoria de Kant, que pretende ser a pena estabelecida unicamente em vista da punição, é irracional e destituída de fundamento. Coisa que entretanto não impede seja ela reproduzida ainda nos escritos de muitos legistas, toda envolta de frases ressonantes que, em última análise, são vazias de sentido; dizem, por exemplo, que com a pena o delito será expiado, ou neutralizado, ou anulado etc. Mas ninguém tem o direito de arrogar-se o oficio de juiz, de vingador puramente moral, e de punir o erro alheio com a inflição da dor. Numa palavra, de impor a expiação. Seria isto uma pretensão bem audaciosa; atesta-o a Bíblia com as palavras: Porquanto a Mim somente é reservada a vingança e Eu só darei a retribuição, diz o Senhor. Certo, o homem tem o direito de velar pela segurança da sociedade, o que não é possível senão com a ameaça de penas para todas as ações qualificadas de criminosos, com o fim de preveni-las por meio de contramotivos, que consistem na penalidade cuja ameaça se apresenta; tal ameaça não pode ser eficaz senão com a condição de que seja cumprida toda vez que suceda o caso a ser punido. A pena, ou mais exatamente, a lei penal, tem um fim puramente preventivo, que é o de prevenir o delito apontando-lhe o castigo. Esta verdade é tão universalmente reconhecida, tão evidente em si mesma, que a encontramos enunciada na Inglaterra, na antiquíssima fórmula de acusação (indictment) da qual o advogado da Coroa se serve ainda no dia de hoje nas causas criminais e que termina com as palavras: “Se isto se provar, vós, chamado fulano, devereis ser punido com as penas da lei, a fim de desviar os outros do mesmo crime, em todos os tempos que hão de vir”. E quando um soberano quisesse agraciar o delinquente condenado justamente, o ministro deveria observar-lhe que nesse caso o delito se repetiria com frequência. Ter em vista o futuro, eis o que distingue a punição da vingança; a punição não pode atingir o seu fito se não for aplicada em execução da lei, por isto que deste modo se revelando inevitável em aplicar igualmente a pena a todos os casos futuros, manterá à lei o poder de intimidar, que é o fim procurado. Sinto que sem falta algum discípulo de Kant me objetará que tal interpretação faz do delinquente punido um simples “meio”. Os kantistas repetem continuamente que “não se deve nunca tratar o homem como meio, mas como fim”: — certamente são palavras que soam muito e a máxima é feita para agradar aos que amam ter uma fórmula para evitar o trabalho de refletir mais demoradamente; porém, examinada à clara luz do sol, essa não é mais que uma proposição eminentemente vaga, indeterminada, que atinge seu alvo apenas de modo indireto e que na aplicação tem necessidade de ser cada vez explicada, precisada, modificada, porque, tomada na sua generalidade, pouco ou nada significa, revela-se insuficiente e problemática. Desde o momento em que o assassino é legalmente condenado à sentença capital, deve certamente ser empregado como “meio” e isto, com toda a justiça. Efetivamente, a segurança pública, finalidade essencial do Estado, foi perturbada pelo delinquente, ou antes, seria destruída se a lei não existisse; o réu, portanto, sua vida e sua pessoa devem servir à execução da lei e, como consequência, ao restabelecimento da segurança pública; é apenas justo servir-se dele como que dum meio para dar execução ao pacto social que aceitou na sua qualidade de cidadão; com esta convenção e, em virtude de haver-lhe assegurado o gozo da vida, da liberdade e da propriedade, empenhou esses mesmos bens como garantia duma igual segurança para os outros e este penhor tornou-o ele mesmo exigível.

Esta teoria das penalidades, tão diretamente clara para qualquer cérebro de raciocínio são, muito longe esta de ser uma ideia nova, ao menos nos seus pontos principais; apenas erros sempre novos a tinham quase completamente posto de parte, razão por que pretendi dar-lhe aqui uma exposição mais clara. Quanto contém de essencial já está compreendido no que diz a seu respeito Pufendorf na obra “De Officio Hominis et Civis”, L. 2., O. 13. Os mesmos pontos de vista são aceitos por Hobbes no “Leviathan”, O. 15 e 28. Sabe-se que em nossos dias a sustentou Feuerbach. Está também expressa nas sentenças dos filósofos antigos. Platão apresenta-a claramente no Protágora (pág. 114 da edição de Bipont), no Górgia (pág. 168), e no undécimo livro das Leis (pág. 165). Sêneca expõe perfeitamente as ideias de Platão e a teoria das penas em geral com as palavras: Nemo prudens punit, quia peccatum est; sed ne peccetur (o sábio não pune porque se pecou, mas para que não se peque). (De Ira, 1. 16.)

O Estado é, portanto, o expediente pelo qual o egoísmo racional procura fugir às suas funestas consequências, cujo dano reverte contra ele mesmo, e o meio para cada qual trabalhar pelo bem público para que aí encontre também o seu. Se fosse possível ao Estado a plena realização de sua finalidade, tal como sabe cada vez mais submeter o restante da natureza por meio das forças humanas que concentra em si, assim também com a supressão de toda espécie de mal, poderia ser estabelecida mesmo neste mundo, qualquer coisa de parecido com um país de mil maravilhas. Mas antes de mais nada, o Estado permanece muito aquém do seu objetivo; e depois ficaria sempre um número infinito de males absolutamente inerentes à vida; e onde estes males fossem porventura suprimidos, o tédio sem demora lhes tomaria o lugar, na razão e na medida do seu desaparecimento e o sofrimento continuaria como dantes a ser o elemento da existência; além do que, a discórdia entre os indivíduos não pode desaparecer totalmente e, se as grandes batalhas forem impossíveis, passarão a molestar-se com pequeninos ataques; quando finalmente, por feliz eventualidade o Eris fosse proscrito do interno, a discórdia trabalharia no externo: banida como guerra intestina pela instituição dum governo regular, reentra por de fora como guerra interpovos, reclamando então por grosso e duma só vez, dir-se-ia como que um débito que tivesse deixado acumular-se, os sanguinários sacrifícios que as leis sábias lhe houvessem tolhido em pormenor. E por fim, mesmo na suposição de que uma prudência, nascida de milhares de anos de experiência, chegasse a vencer para sempre todos esses flagelos, o derradeiro resultado seria um excesso de população em nosso planeta. Apenas com isto uma compreensão audaz poderia imaginar atualmente os desastres espantosos que dali derivariam.

A JUSTIÇA ETERNA

Acabamos de estudar a justiça temporal que reside no Estado, e cuja missão é remunerar e punir. Vimos que essa justiça só é justiça enquanto tem em mira o futuro, sem o que, qualquer punição de delito seria injustificável e não lhe seria mais que o complemento, vazio de razão e de significado, um segundo mal adicionado ao que já fora perpetrado. Mui diversamente sucede com a justiça eterna, a que já acenamos: esta não criou o Estado mas o Mundo; não deriva de instituições humanas, nem é sujeita ao acaso e à ilusão; não é incerta, vacilante e suscetível de erro; é infalível, certa e segura. O conceito de remuneração compreende já em si o tempo. Por isso a justiça eterna não pode ser remuneradora; não tem, como a justiça humana, a faculdade de dar trégua, nem prorrogação, nem tampouco como a justiça humana tem necessidade de tempo para existir a fim de compensar, unicamente com o auxílio do tempo, as más ações com as suas más consequências. Aqui, a pena deve estar intimamente ligada ao erro, que ambas constituam uma só coisa.

Pensam que as ações injustas sobem à morada dos deuses
Levadas por asas, e que lá, junto de Júpiter sobre tabuinhas
Alguém as inscreve, depois do que Júpiter, ao vê-las
Faz justiça aos mortais? Mas o próprio céu inteiro,
Se Júpiter escrevesse as faltas dos vivos,
Não chegaria, e o próprio Deus não chegaria nem a ler
Nem a repartir as punições. Não, a Justiça
Está em qualquer lugar aqui perto: abram apenas os olhos.
(Eurípides, apud Estobeu, Eclogae physicae et ethicae, I, cap. IV)

(Credes porventura que as iniquidades voem sobre as asas até aos Deuses? — E que venham depois escritas nas páginas do livro de Iove e que Iove em as vendo, puna os mortais? — Nem todo o céu bastaria para que Iove escrevesse os pecados dos homens e mandasse a cada um o castigo; e contudo, a Justiça lhe está compreendida, se quereis vê-la.)

Que igual justiça eterna existe realmente na essência do mundo, eis o que logo se tornará evidente para o leitor, se é que me seguiu até aqui e abrangeu o pensamento que vou desenvolvendo.

O mundo, com toda a multiplicidade das suas partes e das suas formas, é o fenômeno, a objetividade dum só querer-viver. A própria existência e o mundo dessa mesma existência, tanto no conjunto como na parcela, provêm unicamente da Vontade. Em qualquer objeto a vontade se revela precisamente como se tem determinado a si própria, por si própria e fora do tempo. O mundo não é mais que um espelho. E qualquer coisa finita, como tudo quanto encerra de dores e afãs, pertence à expressão daquilo que quer a vontade: é assim porque assim o quer a vontade. É, portanto, rigorosa justiça que qualquer ser leve em si mesmo a existência em geral, a da sua espécie e da sua própria individualidade absolutamente tais como são, nas condições dadas e no mundo tal como é constituído, regido pelo acaso, pelo erro, caduco, efêmero, criado para a dor. Em tudo quanto lhe sucede, ou antes, em tudo quanto pode suceder-lhe, outra coisa não se lhe faz nunca, senão justiça. Porquanto assim é a sua vontade e é tal qual é o seu mundo. A responsabilidade da existência e a condição do mundo pertencem apenas ao mundo e não a outrem, porque, quem teria porventura querido chamá-las sobre si? — Quer-se saber o que valem os homens do ponto de vista moral, individualmente e em geral? — Nada se tem a fazer senão considerar-lhes o destino individualmente e em geral: penúria, miséria, calamidade, sofrimento e morte. Reina sobre o mundo uma justiça eterna; e, se tomados em massa os mortais não fossem tão abjetos, a sorte em geral não lhes seria tão triste. Neste sentido podemos dizer: “O próprio mundo é a sentença do mundo”. Se se pusessem numa balança, dum lado todas as misérias do mundo e do outro todas as suas culpas, com certeza o equilíbrio seria perfeito.

É certo, todavia, que pela inteligência derivada da vontade para ser-lhe serva, pela inteligência tal qual é dada ao indivíduo, o mundo não se mostra como se revela depois ao observador, ou seja, como objetividade duma mesma e única vontade de viver, idêntica com ele. O olhar grosseiro do indivíduo é turbado por aquilo que os Hindus denominam o véu de Maya: em lugar da coisa em si não vê mais que o fenômeno no tempo e no espaço, no princípio de individuação e nas outras formas do princípio de razão. Com tal modo de conhecimento, tão limitado, não apreende a essência das coisas que é uma só; vê somente os fenômenos que aparecem isolados, divisos, inumeráveis, diversos e não menos contrários. Parece-lhe, então, que prazer e dor são coisas de todo diferentes; tal ou tal pessoa se lhe apresenta como carrasco ou assassino e tal ou qual outra como mártir e vítima; a perversidade é para ele uma coisa e a dor é outra. Vê que uns vivem alegremente na abundância e nos prazeres, enquanto outros morrem de morte cruel, de fome e de frio. Então pergunta: onde está, portanto, a Justiça? E, sob o impulso violento dessa vontade da qual teve a origem e a essência, lança-se aos prazeres e às voluptuosidades da vida, prende-se-lhes com todas as forças, e não sabe que com este ato da sua vontade, colheu e relacionou consigo mesmo todas essas dores da vida e todas essas torturas, cujo aspecto o fazia pouco dantes estremecer de horror. Vê as dores do mundo e lhe vê também a maldade. Mas longe de compreender que se trata apenas de aspectos diferentes do fenômeno do mesmo querer-viver, parece-lhe que são diversos entre si, ou antes, uns opostos aos outros, e procura com solicitude, embebido como está pelo princípio de individuação e cego pelo véu de Maya, subtrair-se às dores, ao sofrimento do seu próprio “eu” com a maldade, isto é, com fazer os outros sofrerem. Porquanto, como numa barca, quando o mar furioso se encapela, erguendo na imensidão dos horizontes o contorno da vaga monstruosa e o marinheiro entretanto permanece tranquilamente sentado, cheio de confiança no seu lenho frágil, assim também, em meio dum mundo repleto de ansiedades o homem isolado continua calmo, porque se apoia e confia no princípio de individuação e na maneira pela qual o indivíduo compreende as coisas do fenômeno. O mundo imenso, todo cheio de dores, num passado infinito como num infinito futuro, é para ele qualquer coisa de ignoto, uma fábula. A sua imperceptível pessoa, o seu presente, que não é senão um ponto, o seu bem-estar momentâneo, eis para ele a realidade. Não há esforço que não faça para conservá-la, até que lhe não abra os olhos um conhecimento mais justo de todas estas coisas. Até então, nos mais recônditos recantos da sua consciência, agita-se simplesmente um obscuro pressentimento de que tudo isto, em derradeiro exame, não lhe é de todo desconhecido, e que antes poderia ter com ele tal relação que o princípio de individuação não estaria em condições de defender. Desse pressentimento provém o frêmito irresistível, comum a todos os homens (e talvez também aos animais mais inteligentes), frêmito que os tome de improviso toda vez que, por um acaso qualquer, se desconcertem sobre o princípio de individuação, quando o princípio de razão, sob qualquer uma de suas formas parece sofrer derrogação. Por exemplo, quando nos parece que se produz mudança sem causa, ou que alguma pessoa morta retorna sobre a Terra, ou que por outro modo qualquer o passado e o futuro se apresentam diante de nós, ou que vejamos próximos objetos assaz longínquos. O imenso terror que em tais casos nos invade resulta do fato de estarmos turbados e confusos acerca da nossa maneira de interpretar os fenômenos, maneira que é suscetível de nos fazer considerar nossa pessoa como separada do resto do mundo. Tal separação, ao contrário, existe apenas no fenômeno, nunca na coisa em si: sobre isto se fundamenta a justiça eterna. Em verdade é terreno minado aquele sobre o qual está colocada a felicidade temporal e sobre que, neste mundo, a sabedoria errante perambula. Esta protege o indivíduo da desgraça, aquela lhe procura o prazer; mas o indivíduo não é mais que um fenômeno e se difere dos demais, e se está isento das dores sofridas por outros, não o está senão como fenômeno, em virtude do princípio de individuação. Segundo a essência verdadeira das coisas, todo homem deve considerar as dores todas do mundo como se fossem suas, e tomar por reais, também, as que são apenas possíveis e isto até ao momento em que constitui a ser um querer-viver decidido, ou seja, por todo o tempo em que afirmar a vida com todas as suas forças. Para quem possui inteligência que penetra para além do princípio de individuação, a felicidade temporal, dádiva do acaso, ou resultado arrancado pela prudência às guerras do destino, em meio do sofrimento universal, não é mais que o sonho do mendigo que se vê rei, mas que acordará para reconhecer que se tratava duma ilusão que o havia feito crer estar subtraído as misérias da existência.

A justiça eterna se subtrai ao olhar quando a inteligência é escrava do princípio de razão e enquanto está embebida pelo princípio de individuação: nestas condições o homem debalde a procura; e pode apenas substitui-la por ficções. Vê o malvado, depois de infâmias e crueldades de toda espécie, viver no prazer e morrer sem nunca ter sido inquietado. Vê o oprimido arrastar até o fim uma vida de afãs sem que nunca apareça um vingador ou um remunerador. Percebe e compreende a justiça eterna somente quem sabe elevar-se acima do conhecimento que procede segundo o princípio de razão e que se limita aos pormenores, quem sabe conceber as ideias e ver para além do princípio de individuação, e quem reconhece que as formas do fenômeno não pertencem à coisa em si. Somente este, com a elevação da própria inteligência, poderá compreender a verdadeira essência da virtude, tal como lhe será dentro em breve revelada pela sequência das presentes considerações, ainda que para praticá-la não se lhe requeira o conhecimento abstrato. Por conseguinte, quem subiu a tal excelsitude de ideias compreende que, sendo a vontade o princípio de todo fenômeno, os tormentos infligidos a outrem, assim como os que ele mesmo sofre, o mal como a dor, sempre golpeiam o mesmo ser: somente os fenômenos nos quais aparecem o mal e a dor, se mostram sob a forma de indivíduos distintos, separados por tempo e espaço distantes. Entende que a distinção entre aquele que inflige a dor e aquele que a sofre é apenas fenômeno e não abrange a coisa em si, a vontade que em ambos existe; esta, induzida ao engano pela inteligência destinada a servi-la, desconhece a si mesma e, procurando num dos seus fenômenos aumento de bem-estar, produz em outrem um excesso de dor. Arrastada pela sua violência, dilacera com os dentes a própria carne, ignorando que assim se fere a si mesma, manifestando desta maneira, por meio da individuação, o íntimo conflito que oculta no seio. Perseguidor e perseguido são idênticos. Este se engana não acreditando ter a sua parte no sofrimento; aquele se engana não acreditando participar da culpabilidade. Se a visão chegasse a se lhes descerrar, o malvado reconheceria que, na vastidão do mundo, ele mesmo vive no íntimo de cada criatura que sofre e que, quando dotada de razão, embalde se interroga por que razão foi chamada a viver, para curtir penas que sabe não ter merecido. O infeliz, por seu turno, compreenderia que todo o mal, que se comete ou que foi cometido sobre a terra, deriva dessa mesma vontade que lhe constitui a essência e da qual não é ele mais que fenômeno; compreenderia que, por virtude de tal fenômeno e da respectiva afirmação, ele assumiu todos os riscos que lhe são dependentes e deve suportá-los com toda a justiça por todo o tempo em que continua a ser essa vontade. Tal visão inspirou o gênio adivinhador de Calderón quando, no drama “A Vida é um Sonho”, diz:

Pues el delito mayor
Del hombre es haber nacido
.

E como realmente não seria um delito, do momento em que uma lei eterna o condena à morte? Com estes versos Calderón não fez mais do que exprimir o dogma cristão do pecado original.

O conhecimento vivo da justiça eterna, esse braço de balança que une indissoluvelmente o maium culpae ao maium poenae requer que o homem se eleve inteiramente acima da individualidade e do princípio mesmo da sua possibilidade: do que resulta que esse conhecimento ficará sempre inacessível à maior parte dos homens, bem como a sua mais estreita aliada, a consciência clara e precisa da essência da virtude, de que dentro em pouco nos ocuparemos. Por isto, nos Vedas, cujo estudo só era permitido às três castas regeneradas, constituintes da doutrina esotérica da sua filosofia, os sábios antigos da Índia a explicaram tão diretamente quanto o conceito de per si e a língua lhes permitia, sempre de acordo com a sua maneira de expor não menos imaginosa do que rapsódica. Mas na religião popular ou doutrina esotérica, apresentaram-na unicamente por meio de mitos. Tal exposição encontramo-la nos Vedas, fruto da mais alta inteligência e da suprema sabedoria humana: — os Upanishad, que chegaram a nós como a mais preciosa das dádivas que nos tem dado o presente século, revelam-nos a substância dessa consciência expressa em diversos modos, dos quais é digno da mais séria consideração o seguinte: fazem-se passar sob os olhares do discípulo, todos os seres do mundo animado e inanimado, e sobre cada um deles se pronuncia a palavra Tatoumes, ou mais corretamente tat twam asi, expressão que passou para a fórmula chamada Mahavakya e que significa: Isto és tu. [16] Para o povo, nos estreitos limites em que a inteligência lhe permitia compreender esta verdade, foi ela traduzida ao princípio de razão que por sua natureza não pode admiti-la pura e em si, achando-se até em contradição com ela. Todavia, sob forma de mito foi-lhe dado um equivalente suficiente para servir de regra de conduta, pois que esta interpretação metafórica e conforme ao conhecimento segundo o princípio de razão lhe permite compreender o valor moral da conduta, embora seja coisa estranha a tal espécie de conhecimento. Ora, é este o objetivo de toda doutrina religiosa, enquanto não são mais que mitos que representam verdades a que a grosseira inteligência do homem não pode chegar. Neste sentido o mito hindu pode ser dito, na linguagem de Kant, um postulado da razão prática. E sob tal ponto de vista tem a imensa vantagem de conter apenas os elementos postos sob os olhos pela realidade e de poder, portanto apoiar cada abstração com dados intuitivos. Entendo aludir ao mito da transmigração das almas, o qual ensina que:

Todos os sofrimentos, que quando vivos houvermos infligido a outra criatura, deverão ser expiados sofrendo-se identicamente as mesmas dores nesta terra, de tal modo que, se alguém não tiver feito mais que matar um animal, deverá depois dum tempo infinito renascer sob a figura do mesmo animal e padecer a mesma sorte.

A metempsicose ensina, também, que:

A conduta do mau condena a retornar a terra sob a forma da criatura sofredora e desprezada, renascendo mulher, animal, pária, chandala, leproso, crocodilo etc.

Apresenta todos os tormentos com que ameaça sob imagens intuitivas, tomadas no mundo real sob figura de criaturas que sofrem e que ignoram também por que mereceram semelhante destino; e assim não tem necessidade de chamar em seu auxílio nenhum outro inferno. Em compensação, como recompensa à virtude promete novo nascimento sob forma mais nobre e melhor, como brâmane, sábio ou santo. Mas a recompensa suprema, prometida aos atos mais nobres e à resignação mais perfeita, reservada também à esposa que em sete existências sucessivas morreu voluntariamente na fogueira pelo marido, e ao homem puro cujos lábios nunca pronunciaram mentira, esta recompensa não pode ser expressa pelo mito em linguagem humana senão de modo negativo, com a promessa tão frequentemente repetida de não mais dever nascer: non adsumes iterum existentiam aparentem (não voltarás a assumir a existência fenomenal) ou como enunciam os Budistas que não admitem os Vedas nem as castas: Tu chegarás ao Nirvana, ou seja dito, a um estado em que não existem quatro coisas: o nascimento, a velhice, a doença e a morte.

Jamais mito algum se aproximou e se aproximará duma verdade filosófica acessível a tão poucos, como esta velha doutrina do mais nobre e mais antigo dos povos, no qual, ainda que desnaturada em muitos pontos, reina como artigo de fé popular e ainda hoje exerce, como exercia há quatro mil anos, a mais decisiva influência sobre a vida. Por isso essa interpretação mítica non plus ultra foi adotada com admiração por Pitágoras e Platão que a tinham recebido da Índia ou do Egito, que a respeitavam, que a aplicavam e à qual davam crédito, ainda que não saibamos até que ponto. Nós, entretanto, mandamos aos brâmanes missionários ingleses e tecelões da congregação moraviana, a fim de que lhes endireitem caridosamente as crenças e a fim de que lhes ensinem, a eles brâmanes, como foram criados do nada e como por essa razão devem estar penetrados de alegria e reconhecimento. Mas nunca as nossas religiões deitarão raízes na Índia. A sabedoria antiga e primitiva do gênero humano não será destruída pelos acontecimentos que tiveram lugar na Galileia. Bem ao contrário, a sabedoria da Índia sim é que influi sobre a Europa e que transformará radicalmente nossa ciência e nossas ideias.

CONSCIÊNCIA DA JUSTIÇA ETERNA

Das investigações expostas não alegórica, mas filosoficamente sobre a Justiça Eterna, passaremos agora a considerações que se lhes prendem diretamente sobre a importância moral da conduta e assim também da consciência, que é o conhecimento simplesmente sentido. Mas quero antes chamar a atenção para duas particularidades da natureza humana que contribuirão para explicar como o homem, ao menos por um sentimento vago, conhece a substância da justiça eterna e a sua base, isto é, a unidade e a identidade da vontade em todos os seus fenômenos.

Com efeito, fora daquilo que demonstramos ser o objetivo do Estado em punir, sobre o qual encontra base o direito penal quando houver sido cometida uma ação injusta, produz-se não somente na vítima da má ação, frequentemente animada pelo desejo de vingança, como também no mais desinteressado espectador, um sentimento de satisfação em ver o que praticou o mal suportá-lo a seu turno na mesma medida. A meu ver, com isto não se exprime outra coisa senão a consciência da justiça eterna, porém mal compreendida e imediatamente falseada, porque o espírito, ainda turvo sob o império do princípio de individuação, comete uma anfibologia de conceitos, pedindo ao fenômeno aquilo que só pertence à coisa em si; longe de compreender que, no fundo, ofensor e ofendido são idênticos e que se trata sempre do mesmo ser, o qual desconhecendo-se no seu próprio fenômeno, suporta ao mesmo tempo a dor e a culpa, quer também ver a dor no indivíduo em que já a culpa se encontra. Quando um homem, de maldade fora do comum, acumula faculdades que muitos de seus semelhantes não possuem, conquanto sejam malvados também, a força da sua inteligência lhe dá sobre eles uma superioridade imensa, permitindo-lhe atrair calamidades inauditas sobre milhões de seres — e tal seria, por exemplo, um conquistador — há neste caso, bem poucos que não quereriam ver esse tal expiar algum dia com uma soma igual de dores, os males que tem causado. Isto sucede porque não compreendem como, em si, o autor de tanto mal e suas vitimas se identificam; porque não veem que a vontade que as anima, a qual lhes é o próprio princípio de existência, também existe no seu carrasco, no qual manifesta a própria essência com extremo grau de clareza; porque não veem que o opressor sofre tanto quanto os oprimidos e numa medida que precisamente está em relação com a lucidez maior da sua consciência e a veemência mais forte da sua vontade. Mas uma consciência mais profunda, liberta dos vínculos do princípio de individuação, uma inteligência mais elevada, fonte de toda virtude ou de toda grandeza de alma, já não nutre tais exigências de justiça vingadora. Disto encontramos a prova na moral cristã que proíbe absolutamente que se resgate o mal com o mal e que faz reinar a justiça eterna num domínio que não é o do fenômeno, mas sim o da coisa em si. (A mim a vingança, Eu darei a retribuição, diz o Senhor. Rom. XII, 19.)

Há outro traço característico da natureza humana, muito mais surpreendente, mas também muito mais raro, que indica o mesmo desejo de fazer descer a justiça eterna ao terreno da prática, ou seja, do princípio de individuação, que ao mesmo tempo patenteia a confusão da consciência e demonstra como o querer-viver — já o disse linhas acima — representa por sua conta uma grande tragicomédia e como uma mesma e única vontade transpira em todos os seus fenômenos: eis do que se trata. Vemos por vezes um homem recriminar tão profundamente alguma grande iniquidade de que foi vítima ou mesmo mero espectador, que é capaz de fazer refletidamente o sacrifício seguro da própria vida para atingir com a sua vingança o autor do mal. Vemo-lo, por exemplo, perseguir por longos anos algum poderoso opressor, assassiná-lo e subir depois ao patíbulo para sofrer a morte que previa e que nem mesmo procurou evitar, porque a seus olhos a vida só tinha valor como meio de chegar à vingança. Tais exemplos se encontram especialmente entre os espanhóis.

Procurando atentamente o significado deste sentimento de vingança, descobri-lo-emos bem diferente do sentimento comum que procura suavizar o mal sofrido com o espetáculo do mal infligido. Devemos, aliás, reconhecer que o que o inspira merece menos o título de vingança que o de punição pois que tem em vista influir sobre o futuro por meio do exemplo, e tudo isto sem o mínimo fim egoísta no que diz respeito ao vingador, visto que sua perda é certa, e no que diz respeito à sociedade, a cuja segurança proveem as leis. No caso a pena é aplicada por um indivíduo isolado e não pelo Estado, nem tampouco em execução de lei; esta atinge antes uma ação que o Estado não queria ou não podia punir e da qual desaprova o castigo. Eu creio que uma indignação, suscetível de compelir um homem tão além dos limites de todo amor a si mesmo, surge do mais profundo sentimento consciente que esse homem possui de ser ele mesmo, esse querer-viver todo inteiro que se revela em todos os seres e em todos os tempos e que não pode permanecer indiferente ao presente nem ao mais longínquo futuro, pois que esses lhes pertencem em igual medida: e afirmando tal querer, ele pede nada menos que isto, que no drama que representa não compareça mais um sujeito tão monstruosamente execrável, e procura intimidar os futuros celerados com o exemplo duma vingança contra a qual não há defesa possível, desde o momento em que o temor da morte não faz recuar o vingador. O querer-viver, conquanto se afirme ainda, aqui já não está anexo ao fenômeno isolado, ao indivíduo; compreende a ideia da humanidade de que desejaria purificar o fenômeno de deformidades tão monstruosas e repulsivas. Para uma criatura humana é um traço de caráter raro, significativo, que se eleva até o sublime, o sacrificar-se o próprio indivíduo, aspirando a tornar-se o executor dessa justiça eterna, da qual desconhece, todavia, a verdadeira natureza.

BONDADE E MALDADE

As precedentes considerações sobre a conduta do homem nos prepararam para este último estudo e nos facilitaram consideravelmente a tarefa de pôr em claro, sob forma abstrata e em espírito filosófico, a importância verdadeiramente moral da conduta, o que, em língua vulgar, é indicado pelos termos bom e mau, termos com que o homem se contenta para compreendê-la inteiramente, além do que demonstraremos que tudo isto faz parte do nosso pensamento fundamental.

Mas antes, as noções de bom e de mau que nos seus escritos os filósofos hodiernos (coisa estranha!) consideram como simples e, por conseguinte, como insuscetíveis de análise enquanto eu quero sejam reconduzidas ao seu significado próprio, para não deixar o leitor no erro de acreditar que compreendem mais do que é em realidade o caso e que exprimam já de per si tudo quanto é necessário expor agora. Posso bem fazê-lo de minha parte, porquanto não tenho a intenção de entrincheirar-me nestes parágrafos da moral atrás da palavra bom, tanto quanto não o fiz na Estética com as palavras belo ou verdadeiro, para dar a entender depois, assumindo um ar muito grave e após haver-lhes aduzido o afixo dade o qual parece ter hoje uma importância especial e servir de escapatória em muitas circunstâncias, para dar a entender, repito, que pronunciando estas três palavras fiz alguma coisa mais do que acenar a três conceitos vastos e abstratos, por conseguinte muito pobres de conteúdo e que têm origem e significados diversíssimos. Com efeito, estas três palavras, que em origem indicavam algo de tão perfeito, só podem agora inspirar repugnância, porque qualquer leitor que haja tomado conhecimento dos escritos modernos, deve ter visto mil vezes o autor mais incapaz de pensar, imaginar que lhe basta pronunciá-las, todo boquiaberto e com a expressão dum bode inspirado, para ter anunciado uma profunda verdade.

A noção de verdadeiro foi explicada na minha dissertação sobre o princípio de razão, cap. 5.° §29 e seg. Todo o nosso livro terceiro serviu para dar pela primeira vez o verdadeiro significado da noção belo. Agora nos ocuparemos em restituir à noção bom o seu verdadeiro sentido, o que pode ser feito em poucas palavras. Tal conceito é essencialmente relativo e indica a conveniência dum objeto a alguma tendência determinada pela vontade. Assim, pois, o pensamento aceita por bom tudo aquilo que satisfaz a vontade em qualquer das suas manifestações, todos os objetos que a servem na consecução do seu escopo, ainda que, por outro lado, sejam diferentes em tudo o mais. Por isto dizemos: bom repasto, bom caminho, bom tempo, boas armas, bom augúrio etc.; em breve, chamamos bom tudo aquilo que é precisamente como desejamos que seja naquele momento, assim que tal coisa pode ser boa para alguns, sendo o oposto para outros. A noção bom se divide em duas subespécies. Uma que se refere à satisfação imediata da vontade atual e outra que lhe compreende a satisfação mediata, colocada no futuro; dito em outras palavras, a primeira concerne ao deleitável, a segunda ao útil. A noção oposta, até que se trata de seres não cognoscentes, é expressa pelo termo mau, mais raramente e mais abstratamente com a palavra mal. Indicam, portanto, tudo aquilo que não combina com a tendência atual da vontade. Como foram qualificadas todas as coisas que podem ter alguma relação com a vontade, assim foi aplicada aos seres humanos achados favoráveis, piedosos, simpáticos, a qualificação de bons, conservando o mesmo significado e o mesmo sentido relativo que se encontra neste modo de dizer: “Fulano é bom para mim, mas não para ti”. Porém, aqueles cujo caráter é tal que, longe de querer contrariar os desejos alheios, estão sempre dispostos a favorecê-los, aqueles que constantemente se mostram piedosos, afáveis, benéficos, esses, dada essa relação que a conduta lhes tem com a vontade alheia em geral, foram denominados em sentido absoluto, homens bons. O conceito contrário é expresso em alemão, e há cerca de cem anos também em francês, com uma palavra diversa, quando se trata de seres inteligentes (animais e homens) e tal não é o caso para outras criaturas: são chamados böse ou méchants; esta distinção não existe na maior parte das outras línguas; assim, a grega designa por “(C. g.)” a latina por malus, a italiana por cativo, a inglesa por bad, tanto aos homens quanto às coisas inanimadas, que contrariam as aspirações da vontade individual determinada. Assim, pois, vertidas em origem para a parte passiva do bom, as investigações só mais tarde puderam conduzir-se para a parte ativa, a fim de estudar a conduta do homem qualificado bom, não mais em relação aos outros, mas em relação a si mesmo e sobretudo para dar-se conta, por um lado, do respeito objetivo que inspira aos outros e da satisfação em si mesma especial que atribui evidentemente ao indivíduo, do momento em que a adquire com sacrifícios de toda sorte; e por outro lado, da dor interna que acompanha o mau propósito, qualquer que seja a vantagem externa que haja dado a quem o nutria. Aí tiveram origem os sistemas de moral, tanto os que se apoiam na filosofia, quanto os que se fundam nas religiões. Todos eles procuram reunir por algum modo a felicidade à virtude. Os primeiros esforçam-se para chegar a esse ponto, ou por meio do princípio de contradição, ou pelo da razão, isto é, identificando a felicidade com a virtude, ou fazem a primeira derivar da última; mas não nos dão mais do que sofismas. Os segundos creem atingir o objetivo, admitindo outros mundos além dos que a experiência nos pode fazer conhecer. [17] O nosso estudo, entretanto, nos fará saber que a essência da virtude é uma aspiração que possui efetivamente uma tendência contrária à da felicidade que quer o bem-estar e a vida.

De quanto havemos exposto resulta que, em virtude da sua noção, o bom é (C. g.), ou seja, essencialmente relativo, porque a sua natureza consiste na sua relação com uma vontade especial. O bom absoluto é, portanto, uma contradição; o bem supremo, summum bonum, significa a mesma coisa, isto é, uma satisfação final da vontade, depois da qual não mais surgiriam novos desejos, motivo derradeiro cujo cumprimento apagaria de maneira indestrutível o querer. Ora, segundo as considerações contidas até aqui, neste quarto livro, semelhante coisa é inadmissível. A vontade não pode encontrar uma satisfação que lhe permita não mais recomeçar a querer, tanto quanto não poderia o tempo acabar ou começar. Não existe para a vontade uma realização durável e para sempre satisfatória da sua aspiração. A vontade é o tonel das Danaides. Para ela não há bem supremo, absoluto, mas apenas um bem que é sempre provisório. Se, porém, nos empenhássemos com o fim de dar um emprego honorário, de certa maneira a título emérito, a uma antiga locução que não se quisesse pôr completamente fora de uso, poder-se-ia, figuradamente e metaforicamente, denominar bem absoluto, “summum bonum”, ao querer quando se suprime e se nega a si mesmo, à verdadeira ausência de volição, única a apagar e sufocar para sempre a vontade, única a dar tão grande satisfação que já não pode ser perturbada por coisa alguma, única a redimir o mundo e disto trataremos dentro em pouco no fim deste estudo. Pode-se considerá-la como o único remédio que cura radicalmente, enquanto todos os outros não são mais que paliativos e anódinos. Neste sentido, a palavra grega “(C. g.)” bem como a latina finis bonorum se aplicam ainda melhor à coisa. Eis quanto tinha a dizer sobre as expressões bom e mau. Agora, entremos na questão.

Quando um homem, apenas se lhe ofereça a ocasião e nenhuma força extrema lho impeça, está sempre disposto a agir injustamente, nós o chamamos mau. Isto significa, segundo a nossa definição de injustiça, que esse homem não se limita a afirmar o seu querer-viver como se manifesta no seu corpo, mas estende essa afirmação até negá-la nos outros indivíduos. Demonstra-o procurando empregar as forças desses indivíduos ao serviço da sua vontade e destruir-lhes a existência quando se tornam obstáculo às suas aspirações. Tudo isto resulta, em última análise, daquele extremo egoísmo cuja natureza havemos definido anteriormente. Desde o começo ressaltam aqui duas coisas: em primeiro lugar, que a vivacidade do querer-viver é excessiva em tal indivíduo e vai além da afirmação do seu próprio corpo; em segundo lugar, que a sua consciência, submetida ao princípio de razão e embebida do princípio de individuação, se atém obstinadamente apegada à distinção que este último estabelece entre a sua pessoa e todas as outras; por consequência, esse alguém não procurará senão o próprio bem e permanecerá completamente indiferente ao dos outros; ou antes, o próprio ser deles será estranho a seus olhos e separado deles por um largo abismo; porque, a bem dizer, os considerará como simples fantasmas que nada têm de real. Estes dois elementos formam a base fundamental dum caráter mau.

Tal veemência excessiva do querer é já de per si e diretamente, uma fonte constante de dor. Primeiramente porque qualquer querer, como tal, nasce da necessidade, portanto, da dor. (Assim vimos também, no livro terceiro, que a calma provisória de algum querer, produzida quando, sujeito puro e involuntário do conhecimento “correlativo da ideia”, o homem se abandona à contemplação do belo, e já por isso um elemento principal do prazer estético.) Depois, porque a concatenação causal das coisas faz com que, na maior parte das vezes, os desejos fiquem insatisfeitos, e com que a vontade seja mais frequentemente contrariada do que satisfeita, sucedendo que um querer veemente e múltiplo acarreta constantemente um sofrimento múltiplo e veemente. Porquanto todo sofrimento é unicamente um querer insatisfeito e contrário. A própria dor física resultante duma lesão ou duma destruição material, só é possível como dor porque o corpo é a vontade objetivada. Este fato, de um sofrimento violento e multiforme ser inseparável dum querer igualmente violento e multiforme, é o que imprime à fisionomia dos homens de fato maus, o cunho duma forte dor interna. Mesmo quando tivessem todas as aparências da felicidade, a infelicidade ressaltar-lhes-ia no semblante apenas cessassem de fingir. Com o hábito, este sentimento de tortura interna, diretamente próprio do mau, provoca também o prazer gratuito e independente do egoísmo, produzido pelo penar alheio; tal prazer é o que constitui a malvadez propriamente dita, a qual pode chegar até à crueldade. Então, a dor alheia não é mais o meio de chegar aos objetivos da própria vontade, mas é finalidade por si mesma. Eis a explicação pormenorizada do fenômeno. Sendo o homem a manifestação duma vontade esclarecida por uma inteligência superior, compara constantemente a proporção entre a satisfação real e sentida pela sua vontade e a satisfação possível que lhe faz entrever a inteligência. Daí nasce a inveja: cada privação é agravada desmedidamente pela felicidade alheia e aliviada pela certeza de que outrem sofre a mesma privação. Os males comuns a todos, inerentes à vida humana, pouco nos afligem. O mesmo sucede com os que derivam do clima e pertencem a toda uma região. A recordação de sofrimentos maiores que o nosso acalma a nossa dor. O espetáculo do penar alheio aquieta o nosso. Quando, pois, num homem os impulsos da vontade são de violência excessiva; quando, devorado pela avidez, ele quereria abraçar tudo duma vez para extinguir a sede do seu egoísmo, e quando ao mesmo tempo deve convencer-se, em verdade, de que qualquer satisfação é apenas ilusória, que seus desejos não mantêm, em se realizando, aquilo que com a esperança prometiam, ou seja, a quietação da sua ávida vontade, que um desejo apagado não faz mais do que revestir uma forma nova sob a qual recomeça a atormentá-lo, que, finalmente, mesmo que todos os seus desejos fossem exauridos, os impulsos do seu querer, admitida mesmo a ausência de qualquer motivo reconhecido, persistiriam para sempre, manifestando-se como um sentimento horrível de vazio e de nada, acompanhado duma angústia indescritível; tudo isto, se não é sentido senão em pequena medida e não produz mais do que um pequeno grau de humor negro na gente dotada de vontade ordinária, no homem cujas manifestações da vontade vão até à maldade extrema, provocará necessariamente uma tortura interna excessiva, uma agitação contínua, uma dor incurável. Procurará ele então, por vias indiretas, essa calma que não pode encontrar diretamente e tentará aliviar o sofrimento com o espetáculo dos sofrimentos alheios, descobrindo neles um espetáculo cuja vista o deleita; eis de que modo se produz o fenômeno da crueldade propriamente dita, esta sede de sangue que a história nos mostra tão de frequente em Neros e Domicianos, em tiranos da África, em Robespierre, etc.

Imediatamente depois da maldade, vem o sentimento de vingança que paga o mal com o mal, não em vista do futuro, que é o que caracteriza a punição, mas unicamente por causa do passado, por causa dum fato consumado, na sua qualidade de fato consumado; por consequência com desinteresse, não como meio mas como fim e com o fim de gozar com o sofrimento infligido ao ofensor. O que distingue a vingança da maldade pura e a justifica um pouco, é uma aparência de direito no sentido em que o mesmo ato que nesse momento constitui a vingança, se se efetuasse legalmente, segundo alguma regra estabelecida e anteriormente conhecida, e numa sociedade que a tivesse sancionado, seria penalidade e, portanto, direito.

Ao lado das dores há pouco descritas que, inseparáveis da maldade, como ela derivam da mesma raiz, duma veemência excessiva da vontade, há ainda outra, diferente e efetivamente especial que a acompanha e que se faz sentir depois de qualquer ação malvada, seja que esta se constitua duma simples injustiça cometida por egoísmo, seja que represente um ato de pura maldade, o que se chama remorso ou arrependimento, segundo é mais ou menos persistente. Se tivermos presente no espírito o conteúdo deste quarto livro, sobretudo no seu princípio em que desenvolvi a verdade segundo a qual a vida está para sempre assegurada ao querer-viver, do qual não é senão a cópia ou a imagem; se recordarmos além disso quanto expus acerca da justiça eterna, veremos que o sentimento do arrependimento não pode ter sentido conforme tais considerações; em outras palavras, que a essência não lhe pode ser expressa sob forma abstrata senão como estou para fazê-lo, observando-se antes de tudo que ali se distinguem dois elementos que acabam nada menos do que por confundir-se e que o pensamento deve sempre representar como perfeitamente reunidos.

Por mais espesso que seja o véu com que Maya obscurece o espírito do mau, é, por maior que seja o apego com que o mau persevere no princípio de individuação, o qual lhe faz considerar a sua pessoa como absolutamente diferente de todas as outras e como separada delas por meio dum largo abismo, perspectiva a que se atém com todas as suas forças, porque lhe convém ao egoísmo e lhe serve de ponto de apoio e porque a inteligência é, na maior parte das vezes, monopolizada pelos interesses da vontade, bem no fundo da consciência agita-se, não obstante, um pressentimento que lhe diz que tal ordem de coisas é, também, sempre e unicamente fenomenal; que em si, é de todo diferente; que malgrado a distância com que o tempo e o espaço o separam dos outros indivíduos e das dores que os acometem e os acometem por sua própria culpa, e porquanto eles possam parecer-lhe estranhos, todavia, considerando-os na sua íntima essência, fora da representação e das formas, é o mesmo querer-viver que em todos se manifesta; mas que ele, homem malvado, se desconhece em si mesmo, volta suas armas contra si próprio, e procurando atingir maior soma de bem-estar, provoca nos outros fenômenos a dor mais extrema; a voz interna lhe diz também que ele, com a sua perversidade, é também essa mesma vontade toda inteira; que é portanto, não somente o opressor mas também o oprimido; que um sonho enganador, sob a forma do tempo e do espaço, o separa e o alheia dos sofrimentos inumeráveis das suas vítimas, que, todavia, o sonho se desvanece e que em realidade ele deve conquistar o prazer por meio da dor; e que, todos os tormentos, incluídos aqueles de que o espírito lhe mostra apenas a possibilidade, o golpeiam realmente na sua qualidade de fenômeno do querer-viver, visto que só pela inteligência individual e por virtude do princípio de individuação, possibilidade e realidade, proximidade e distância de tempo e de espaço são distintas, não o sendo, entretanto, em si. Tal verdade, exposta miticamente, isto é, apropriada ao princípio de razão e traduzida em forma fenomenal, é enunciada na transmigração das almas; mas a sua expressão pura e livre de qualquer mistificação se encontra nessa angústia que se sente surdamente, mas de modo tal que induz ao desespero e a qual se chama remorso. Este se origina, também, duma segunda fonte vizinha da primeira, do conhecimento direto da força com que no homem mau o querer-viver se afirma e, ultrapassando de muito o seu fenômeno individual, vai até a negação total desse mesmo querer que se manifesta nos outros indivíduos. O horror interno que causa ao malfeitor a sua ação e que ele procura dissimular, em si mesmo, contém, pois, ao lado do sentimento vago do nada e da simples aparência do princípio de individuação e da distinção que estabelece entre a sua pessoa e os outros, a noção da violência da sua própria vontade, da força com que se lançou à vida e com que se apega à existência, da qual tem sob a vista o lado terrível nas torturas daqueles a quem ele mesmo magoou e à qual, entretanto, de tal modo se prendeu e tão estreitamente, que chega ao ponto de praticar os mais espantosos delitos, precisamente como meio de melhor afirmar a sua própria vontade. Ele reconhece que é um fenômeno concentrado do querer-viver, sente até que ponto se tornou escravo da vida e, portanto, das penas inumeráveis que lhe formam a essência porquanto esta tem diante de si um tempo e um espaço infinitos para culminar a distância entre a possibilidade e a realização e para transformar em sofrimentos efetivamente sentidos, os sofrimentos simplesmente conhecidos. Mas os milhões de anos durante os quais terá de renascer constantemente, não existem senão no pensamento, assim como todo o passado e todo o futuro não existem senão na abstração. Não há tempo cumprido, nem forma fenomenal para a vontade além do presente e, para o indivíduo, o tempo é sempre novo e este se encontra continuamente como apenas nascido. Porquanto a vida é inseparável do querer-viver e a sua forma é sempre o tempo presente. A morte, deixem-me repetir a comparação, a morte é como o crepúsculo do Sol que a noite parece engolir, mas que, em realidade, fonte de todo esplendor, brilha ininterruptamente e leva sem trégua dias novos a mundos novos, sempre morrendo e sempre nascendo. Só para o indivíduo há princípio e fim por meio do tempo, que é a forma do seu fenômeno para a representação. Fora do tempo não há mais que a vontade, a coisa em si de Kant, e a sua adequada objetividade, a Ideia platônica. Por isso o suicídio não é salvação. Tudo aquilo que, no mais profundo do seu ser, cada um quer, é preciso que seja. E tudo aquilo que cada um é, o quer igualmente. Assim, pois, ao lado do simples sentimento que nos mostra a ilusão e a nulidade das formas que separam os indivíduos na representação, é ainda o conhecimento adquirido pela vontade acerca de si mesma e o seu grau, que fornece um estimulo à consciência. O curso da vida desenha sobre a tela a imagem do caráter empírico, do qual o caráter inteligível é o original, e o mau espanta-se com o reconhecer-se; pouco importa que o seu sulco seja demarcado até ao ponto de o mundo participar do seu espanto, ou que seja sutil até ao ponto de não poder ser visto senão por ele mesmo, dizendo-lhe respeito imediato tudo isto. O passado resultaria indiferente, como simples fenômeno, e não poderia inquietar a consciência se o caráter não sentisse que é independente do tempo e que este não pode modificá-lo até que a vontade não se negue a si mesma. Por isto as coisas passadas continuam a pesar na consciência. A prece não nos deixes cair em tentação significa: não nos deixes ver quem somos. Na violência com que afirma a vida e se lhe apresenta nos sofrimentos que aflige aos outros, o mau mede a distância em que se encontra da supressão ou da negação do querer-viver, único refúgio possível contra o mundo e as suas dores. Ele vê quanto pertence ao mundo e com quanta força se lhe apega; as dores alheias, por ele reconhecidas, não lograram comovê-lo; e agora, está abandonado à vida e às dores sentidas. A questão de saber se com isto a veemência da sua vontade será vencida ou despedaçada, permanece indecisa.

Esta análise do significado e da essência do mau, que simplesmente advertidos, não conhecidos claramente e abstratamente, constituem o remorso, tornar-se-á mais precisa e mais perfeita com a análise do bom, feita no mesmo espírito, isto é, como atributo da vontade humana, e depois, como as considerações sobre a resignação absoluta e a santidade que derivam do bom e atingem a perfeição suprema. Porque os contrastes mutuamente se esclarecem e o dia, revelando a sua própria existência, também revela a da noite, como diz Spinoza excelentemente.

VIRTUDE

Uma moral sem fundamento, isto é, uma simples discussão sobre a moral, não pode agir porque não motiva. Mas uma moral que motiva não pode ser efeito senão agindo sobre o egoísmo. Ora, tudo o que provém do sentimento egoísta é destituído de valor moral. Donde se segue que a moral e, geralmente, o conhecimento abstrato não pode produzir a verdadeira virtude. Esta não pode nascer senão do conhecimento intuitivo que nos faz reconhecer nos outros a nossa mesma essência.

Porquanto a virtude procede, em verdade, do conhecimento, mas não do conhecimento abstrato, do que se pode comunicar com palavras. Pois do contrário, poderia ser ensinada; e enquanto enunciássemos abstratamente a noção que lhe serve de base, ao mesmo tempo corrigiríamos moralmente qualquer homem que a tivesse compreendido. Não é assim, contudo. Conferências e sermões sobre a moral não poderão nunca produzir um virtuoso, como também todos os tratados de estética, desde o de Aristóteles, não conseguiram jamais criar um poeta. Porquanto a noção abstrata é tão infrutífera para a essência da virtude quanto o é para a Arte; pode unicamente prestar serviços subordinados como instrumento que auxilia a realizar e conservar na memória aquilo que foi reconhecido e decidido por outros meios. Veile non discitur — Não se aprende a querer. Efetivamente, os dogmas abstratos não têm influência sobre a virtude ou a bondade de ânimo. As falsas teorias não lhe constituem empecilho, como também, as verdadeiras não lhe dão auxílio. E na verdade seria uma desventura que o ponto essencial da vida humana, o seu valor moral e imortal, dependesse duma coisa cuja aquisição é tão fortuita, dum dogma, duma religião ou dalgum filosofismo. Os dogmas no domínio da moral não têm outro emprego além do que fornecer ao homem que atingiu a virtude, por meio de algum conceito de todo diferente, o que exporemos em breve, ou seja, um esquema, um formulário com o qual se dá conta à própria razão dos atos não egoístas; mas esta prestação de contas, com a qual se quer que a razão se contente, é quase sempre fictícia, porque essa razão, ou seja, o próprio virtuoso, não compreende a natureza íntima de semelhante conduta.

É certo que os dogmas podem exercer a maior influência sobre a conduta, sobre os atos externos e não menos do que o hábito e o exemplo (cuja influência depende do fato de o homem vulgar não confiar no próprio discernimento, cuja debilidade sente, mas sim na própria experiência e na dos outros). Mas nada mudam na disposição interna. [18] O conhecimento abstrato não fornece mais do que motivos. Ora, os motivos, como o havemos demonstrado, podem modificar unicamente a direção da vontade e não a vontade em si mesma. O conhecimento comunicável, o ensinamento, não pode agir sobre a vontade senão como motivo. Qualquer que seja, pois, o sentido para que o guiem os dogmas, aquilo que o homem quer realmente, em geral permanece idêntico. Apenas o seu modo de ver, acerca dos meios de atingir o fim, foi modificado, e motivos imaginários o guiarão como motivos reais. Assim, por exemplo, do ponto de vista do valor moral do indivíduo, o resultado é absolutamente o mesmo se ele distribui esmolas consideráveis aos pobres, na firme convicção de que assim será recompensado pelo décuplo na vida futura, ou se emprega a mesma soma em melhorar um fundo que ao cabo de alguns anos lhe dará uma renda maior e mais segura; igualmente aquele que por ortodoxia abandona à fogueira um herege é tão assassino quanto o celerado que o trai por dinheiro; idêntico é o caso, tendo-se conta das intenções, para aquele que degola os turcos na Terra Prometida, quando o faz com a esperança de conseguir assim um lugar no paraíso. Porquanto todos eles não têm cuidado senão de si mesmos, dos seus objetivos, egoístas, precisamente como o supracitado celerado, do qual não diferem senão naquilo que têm de absurdo os meios que empregam. Como dizíamos, por de fora a vontade é acessível unicamente por meio dos motivos. Estes lhe modificam unicamente a maneira com que se manifesta, mas não lhe modificam a substância. Velie non discitur — Não se aprende a querer.

No homem que na prática das boas obras se apoia sobre os dogmas, é preciso distinguir se esses dogmas são verdadeiramente o motivo dos seus atos ou se, como há pouco dizia, são apenas um modo fictício de dar contas bastantes à razão, de ações que derivam duma origem de todo diversa e que ele pratica porque é bom mas que não sabe, todavia, explicar convenientemente, porque não é filósofo, enquanto desejaria, entretanto, formar opinião a propósito. Todavia, a diferença é difícil de ser encontrada, porque o seu princípio existe no foro íntimo do homem. Por isto não podemos, quase nunca, julgar com certeza sobre a moralidade dos atos alheios e raramente dos nossos. Os dogmas, os exemplos e os costumes podem modificar consideravelmente tanto os fatos e as obras dos povos, quanto os dos indivíduos. Mas por si, as obras (opera operata) não são mais do que imagens vazias; o que lhes dá valor moral é a disposição psíquica que as produziu. Esse valor, com efeito, pode ser igual em fenômenos externos bastante diversos. Com o mesmo gravame de perversidade este morrerá na forca e aquele, entretanto, poderá terminar tranquilamente a vida junto dos seus. A mesma maldade pode manifestar-se num povo com ríspidos traços por meio do assassínio e da antropofagia, e noutro com a fina e ligeira miniatura das intrigas cortesãs, das perseguições e refinamentos de toda ordem. Mas o fundo é o mesmo para ambos.

Suponhamos que um Estado, ou mesmo um dogma que fosse objeto de fé absoluta e que ensinasse existirem penas e recompensas além-túmulo, conseguisse impedir qualquer delito. Politicamente o beneficio seria imenso, moralmente nulo: quando muito se evitaria à vida o ser a cópia fiel da vontade.

A verdadeira bondade de ânimo, a virtude desinteressada, a nobilidade pura, não nascem, portanto, do conhecimento abstrato; é-lhes a origem um conhecimento imediato e intuitivo que não se pode adquirir ou suprimir com palavras; que precisamente por não ser abstrato não pode ser ensinado, mas deve sempre revelar-se de per si; e que para exprimir-se de modo adequado recorre não a discursos, mas aos fatos, à conduta, a toda a maneira de viver. Nós, que aqui nos ocupamos com encontrar a teoria da virtude, e que devemos, portanto, enunciar em fórmula abstrata o fundo desse conhecimento que lhe serve de base, não poderemos jamais apresentar, assim expresso, o conhecimento mesmo, mas apenas o seu conceito; é pois a sua noção abstrata que daremos, partindo sempre da conduta, que é a única em que se torna visível e à qual nos referimos sempre como a sua única expressão adequada. E temos por tarefa comentar e interpretar tal expressão, ou seja, devemos enunciar com fórmula abstrata o fenômeno que se manifesta por meio da conduta.

Antes de passar à bondade propriamente dita, em oposição à maldade, urge falar ainda dum grau intermediário, isto é, da simples negação da maldade, a justiça. Já explicamos suficientemente as noções de justo e de injusto. Bastará, portanto, dizer em poucas palavras, que quem reconhece e respeita esse limite puramente moral que divide o justo do injusto, mesmo quando não é assegurado por alguma lei ou algum poder externo, quem, pois, segundo a nossa explicação, em afirmando a própria vontade, não chega nunca a negar a dos outros — este é justo. Tal homem, para aumentar o próprio bem-estar, nunca fará sofrer o seu semelhante, jamais cometerá um delito e respeitará sempre os direitos e propriedades alheias. Vemos com isto que para o homem justo o princípio de individuação não é mais, como para o malvado, uma barreira de separação absoluta; que aquele não afirma como este unicamente o próprio fenômeno da vontade, negando todos os outros; que as criaturas humanas não são para ele simples fantasmas de essência diferente da sua: toda a sua conduta mostra, ao contrário, que ele reconhece o seu ser, isto é, o querer-viver como coisa em si, no indivíduo estranho que não lhe é dado senão na representação; que se encontra a si mesmo em tal fenômeno ate certo grau, ou seja, até o ponto de não praticar injustiça e de não lesar a ninguém. Sua perspectiva atravessa, então, na mesma medida, o princípio de Individuação, o véu de Maya, no sentido em que ele considera o ser alheio como igual ao seu e não o ofende.

Observando-se bem, encontraremos já na justiça, a este ponto, a resolução tomada de não afirmar a vontade própria ao ponto de negar a vontade alheia, constrangendo esta a servir aquela. Estar-se-á, portanto, sempre disposto a conceder o equivalente do que se reclama. No seu grau supremo, este sentimento de justiça está sempre associado à bondade propriamente dita, cujo caráter não é mais unicamente negativo; e tanto pode ir longe que se comece a duvidar do direito que se possa ter sobre uma propriedade recebida por sucessão; que se não queira mais recorrer senão às próprias forças, espirituais ou físicas, para prover às necessidades do corpo; que se tenham escrúpulos em fazer-se servir pelos outros; que se reprove a si mesmo qualquer luxo; e que finalmente se faça voto de pobreza voluntária. Assim é que vemos Pascal volvido ao ascetismo, não querer mais ser servido por ninguém, conquanto tivesse criados em grande número; preparar o leito a si próprio, apesar do seu constante estado de doença; ir tomar de suas mãos a refeição na cozinha etc. (Vie de Pascal par sa Soeur.) Na mesma ordem de ideias se conta que muitos Hindus e até mesmo rajás não empregam as imensas fortunas que possuem senão na manutenção da família, da corte e dos servidores e praticam rigorosamente a máxima de nada comer que não hajam semeado e colhido com as próprias mãos. Eu acho, porém, que aqui se parte dum mal-entendido; porquanto um homem, pelo próprio fato de ser rico e poderoso, pode contribuir para o conjunto da sociedade humana em serviços tão consideráveis que equivalham às riquezas herdadas, cujo gozo a sociedade lhe garante. Propriamente falando, a justiça excessiva dos Hindus é mais do que justiça; constitui já a verdadeira renúncia, a negação do querer-viver, o ascetismo, do qual viremos a tratar ainda. Em compensação o puro parasitismo, a existência à custa alheia, por meio da riqueza herdada sem nada produzir por si mesmo, pode já passar por moralmente injusta, ainda que em direito positivo não se lhe encontre o que dizer.

Vimos que o sentimento espontâneo da justiça deriva do fato pelo qual a inteligência vai até a certo ponto além do princípio de individuação, enquanto o homem injusto permanece nele inteiramente imerso. Este discernimento pode alcançar não somente o grau necessário à justiça, como também à maior elevação, a essa elevação que predispõe à benevolência, à beneficência positiva, à caridade. O que pode produzir-se qualquer que seja a força, a energia da vontade no indivíduo. A inteligência poderá sempre fazer-lhe equilíbrio, ensinar-lhe a resistir à tentação de agir injustamente, bem como produzir todos os graus da bondade até à resignação. Não se deve, pois, acreditar que o homem bom seja o fenômeno duma vontade mais fraca que a do mau; pois há nele a inteligência que refreia o cego impulso do querer. Dá-se com frequência o caso de indivíduos que parecem bons unicamente por causa da fraqueza de vontade que se manifesta neles. Mas o que valem bem cedo se revela porque são incapazes de qualquer esforço sobre si mesmos, quando se trata de praticar um ato de justiça ou alguma boa obra.

Como rara exceção poderá apresentar-se um homem que possua, digamos, considerável renda, da qual empregue pequena parte para suas necessidades e dê tudo o mais aos pobres, privando-se de muitos prazeres e divertimentos; mas se procurarmos compreender claramente tal modo de agir, encontraremos, abstração feita de qualquer dogma com que talvez este homem procure explicá-lo racionalmente a si mesmo, que a expressão geral mais simples e o caráter essencial da sua conduta está em que ele estabelece menos do que se faz comumente uma diferença entre si e os outros. Enquanto para a grande maioria dos homens esta diferença é tal que para o mau a dor alheia é um argumento direto de alegria, e para o injusto um grato meio de prover ao próprio bem-estar; enquanto em geral, a maior parte dos homens vê e conhece de perto criaturas inumeráveis que sofrem, sem se resolver, entretanto, a ir-lhes em auxílio, porque com isto se submeteriam a alguma privação; enquanto assim, para gente de tal jaez, a diferença entre o seu ser e o dos outros é enorme, ela é quase nula para esse nobre coração de que apresentamos a imagem com o pensamento. O princípio de individuação, a forma fenomênica, já não o tem mais tão fortemente sujeito; os alheios sofrimentos o pungem quase como os seus. E segue-se que procura estabelecer o equilíbrio entre si e os outros, renunciando a prazeres e impondo-se privações para aliviar-lhes o mal. Este reconhece que a diferença de si para os outros, diferença que para o malvado parece um largo abismo, não é devida mais do que a um fenômeno passageiro e ilusório. Compreende logo e fora de qualquer raciocínio que o ser em si do seu fenômeno, isto é, esse querer-viver que constitui a essência e o princípio vivificador de tudo, é o mesmo para todos e que tal identidade se estende também aos animais e ao universo inteiro. Por isso, não será visto jamais a atormentar um animal. [19]

A ele, tão impossível lhe seria permitir que deperecesse um pobre, enquanto ele vivesse no luxo e na abundância, quanto o seria a outro qualquer privar-se por todo um dia do nutrir-se, com o único fito, de no dia seguinte, haver mais do que pudesse consumir. Porquanto se volveu transparente o véu de Maya ao olhar do homem caridoso e se desfez a ilusão do princípio de individuação. Este reconhece o seu “ego”, o seu ser, o seu querer em cada criatura e, portanto, em tudo o que sofre. Este compreende, então, quanto é absurdo esse querer-viver que se desconhece a si mesmo: que saboreia numa criatura voluptuosidades efêmeras e ilusórias, para sofrer em outra, dores e misérias; que é carnífice de si mesmo e qual novo Thestes não vê que se nutre da própria carne; que por um lado geme sob dissabores não merecidos e, por outro, sem temer a Nêmeses, pratica todos os delitos. E isto sempre e unicamente porque não se reconhece no fenômeno alheio, porque não vê a justiça eterna, e porque, escravo do princípio de individuação, fica para sempre subjugado a esse modo de conhecimento que é feito pelo princípio de razão. Praticar a caridade e as boas obras é libertar-se das ilusões e das miragens de Maya. E amar a humanidade é o sintoma inseparável de tal conhecimento.

O remorso, de que anteriormente explicamos a origem e o significado, tem, por oposto, a boa consciência, a satisfação oriunda das ações desinteressadas. Tal contentamento nasce do momento em que uma boa obra, como resulta do conhecimento que nos demonstrou a identidade do nosso ser com os fenômenos estranhos, é, ao mesmo tempo uma confirmação de tal conhecimento o qual nos atesta que o nosso verdadeiro ego não está somente em nossa pessoa, a qual é um fenômeno isolado, mas sim em tudo quanto existe. Esta certeza alarga o coração, enquanto o egoísmo o restringe. O egoísmo concentra o nosso interesse sobre o fenômeno isolado da nossa pessoa e então o intelecto nos mostra sem trégua os perigos inumeráveis que a ameaçam e produz, em nós, uma disposição inquieta e cheia de cuidados; enquanto a convicção de que o mesmo ser anima tudo o que vive, tanto quanto a nossa pessoa, dilata-nos a simpatia, levando-a para tudo em que palpita a vida e alegrando-nos o coração. Diminuindo o interesse pelo nosso ego, essa convicção prende-se pela raiz e tempera a nossa ansiedade. Disto deriva a serenidade calma e confiante que dão a fisionomia o caráter virtuoso e a boa consciência e tal expressão ressalta melhor depois duma boa ação, porque esta vem consolidar a base da nossa disposição psíquica. O egoísta sente-se cercado por estranhos e inimigos e toda a esperança se lhe funda no próprio bem-estar. O bondoso vive num mundo povoado por amigos. O bem-estar destes últimos é também o seu. Portanto, embora o conhecimento dos destinos humanos, em geral, não seja de molde a alegrá-lo, a firme convicção de encontrar o próprio ser em todas as criaturas viventes dá ao seu humor certa uniformidade e até alegria. Porquanto o interesse estendido sobre inumeráveis indivíduos não pode inquietar como quando se concentra sobre um só fenômeno. As vicissitudes que se derramam sobre a totalidade dos seres se compensam, enquanto as que dizem respeito a um só homem produzem necessariamente felicidade ou desventura.

Muitos outros, até o dia de hoje, estabeleceram princípios de moral, que apresentaram como preceitos de virtude ou como leis a que é preciso obedecer necessariamente. Eu, como já disse, não posso fazer outro tanto, porque não tenho lei, nem dever a impor a uma vontade eternamente livre. Mas em compensação, no encadeamento das minhas considerações enunciei uma verdade puramente teórica, da qual o conjunto desta obra é o desenvolvimento necessário, e que pode, em certa medida, ser tomada como para exercer missão análoga à dos princípios de moral aos quais fazia alusão pouco acima. Esta verdade é que a vontade constitui o em si de todo fenômeno, mas que ela mesma, enquanto é vontade pura, permanece liberta das formas do fenômeno e por consequência da multiplicidade. Se a aplico à conduta, não encontro, para exprimir esta verdade, fórmula mais elevada que a dos Vedas, que eu já citei: Tat twam asi! Isto és tu! Quem estiver em condições de, com toda a clareza de conhecimento e com toda a firmeza de convicção, pronunciá-la sobre qualquer criatura com que se ache em contato, esse pode estar certo de que possui com isso a fonte de toda a virtude e de toda a bem-aventurança e de que está na estrada que leva direito à salvação.

Antes de continuar e de fazer ver, qual conclusão de quanto havemos exposto, como o amor, cuja origem e essência encontramos na inteligência que penetra para além do princípio de individuação, conduz à redenção, ao abandono completo do querer-viver, ou seja, de qualquer querer em geral, e como outro caminho, menos doce, porém, mais batido, conduz o homem ao mesmo resultado, devo ainda estabelecer e explicar uma proposição paradoxal, não porque paradoxal, mas sim porque verdadeira, e porque completará o pensamento que tenho de expor. Tal máxima é a seguinte: “Todo amor, cantas, é piedade”.

AMOR PURO E PIEDADE

Vimos como a inteligência, quando haja penetrado a grau mínimo o princípio de individuação, produz a justiça e, a um grau mais elevado, a verdadeira bondade, que se manifesta por meio do amor puro, ou seja, desinteressado, para com os outros. O homem perfeitamente bom coloca o indivíduo estranho e a respectiva sorte ao mesmo nível que para si mesmo. Mais adiante a bondade não saberia ir, porque não haveria razões para preferir os outros a si próprio. Mas quando estão ameaçadas a vida ou a sorte duma sociedade humana, poderá dar-se que o perigo predomine num indivíduo acima de qualquer consideração de interesse pessoal. Em semelhantes casos o caráter que haja alcançado a bondade suprema e a generosidade perfeita sacrificará inteiramente a sua felicidade e a sua vida pelo bem-estar dos demais. Assim morreram Codros, Leônidas, Régulo, Décio, Mus, Arnaldo de Winkelried; assim se sacrifica quem quer que vá voluntária e cientemente para a morte certa pela salvação dos seus ou da pátria. E assim também todos quantos aceitam torturas e morte para consagrar com o próprio sangue o que deve formar a felicidade e tornar-se patrimônio da humanidade inteira, ou seja, para fazer triunfar alguma grande e importante verdade ou para erradicar algum erro grave. Por isto morreu Sócrates, por isto Giordano Bruno; por isto muitos heróis da verdade encontraram, pela mão dos padres, a morte na fogueira.

Agora devo recordar, a propósito do paradoxo acima exposto, que havemos visto a dor constituir a parte essencial e inseparável do conjunto da vida; os desejos nascerem, sem exceção, da necessidade, da falta, do arrependimento; e toda satisfação ser, portanto, supressão de dor, não felicidade positiva e adquirida; os prazeres mentirem a esperança quando lhe afirmam ser um bem positivo, enquanto em realidade têm natureza negativa, derivando da simples cessação dum mal. Donde resulta que tudo aquilo que faz pelos outros a bondade, o amor ou a generosidade, é sempre feito com o único fito de acalmar os alheios afãs e que, portanto, o que incita às boas ações e às obras de caridade é sempre o conhecimento da dor alheia, conhecimento imediatamente atingido, dor apreçada à altura da nossa. Mas de tudo isto ressalta que o amor puro (caritas é em essência piedade), resultado consequente da dor a aliviar, incluído também qualquer desejo insatisfeito, seja grande ou pequeno. Eu, pois, não hesito em pôr-me em oposição direta com Kant, que não quer reconhecer por bondade e virtude verdadeiras senão as que derivam da reflexão abstrata e, particularmente, da noção do dever e do imperativo categórico e que declara ser o sentimento da piedade fraqueza e não virtude: — digo, em contradição formal com Kant, que uma noção pura é tão estéril para a verdadeira virtude, como para a Arte. Qualquer amor puro e verdadeiro é piedade, e qualquer amor que não é piedade é egoísmo. O egoísmo (o amor de si) é (C. g.); a piedade, (C. g.). Muito frequentemente se fazem com isto confusões. Também a amizade sincera é composta de egoísmo e de piedade; o primeiro está no prazer que encontramos na presença dum amigo cuja individualidade corresponde à nossa, e isto constitui quase sempre o elemento predominante; a segunda se revela na parte que tomamos sinceramente por seu bem-estar ou por seus cuidados e nos sacrifícios desinteressados que lhe fazemos; Spinoza já disse: Benevolentia nihil aliud est quam cupiditas ex commiseratione orta (outra coisa não é benevolência do que a parcialidade oriunda da comiseração) (Ética, III, pr. 27, cor. 3, escólio). É preciso notar, em apoio do nosso paradoxo, que o tom e as expressões da linguagem bem como os carinhos do amor puro são idênticos às expressões da piedade, e que, seja dito de passagem, em italiano, piedade e amor puro significam a mesma coisa: pietà.

E vem justamente aqui a propósito estudar uma das mais surpreendentes propriedades da natureza humana, o pranto! O pranto e o riso pertencem a essas manifestações que distinguem o homem do animal. As lágrimas não são de todo a expressão direta da dor, porque as dores que fazem chorar são raras. Antes, segundo o meu modo de ver, não se chora nunca por uma dor sentida imediatamente, mas sempre e unicamente quando a recordação da dor nos retorna à mente. Passa-se efetivamente da dor provada, mesmo quando é física, para a sua simples representação e então se encontra o próprio estado tão digno de piedade que, se o paciente fosse outra pessoa, sem dúvida, penetrados de amor e compaixão, imediatamente se lhe levaria socorro; sente-se que se sofre mais do que suportávamos ver a outrem sofrendo, e nessa disposição tão estranhamente complicada, na qual a dor provada entra diretamente, após um giro duplo na percepção, imaginada e sentida como estranha, por meio da piedade, e depois improvisada e diretamente advertida como própria — em tal estranha convulsão, repito, a natureza encontra um conforto. Chorar, pois, é ter piedade de si mesmo, é a piedade revolvida ao ponto de partida. Para poder chorar é preciso ser capaz de amor e de piedade e ser dotado de imaginação. Por isto o homem sem coração e sem fantasia dificilmente chora; sabe-se antes que as lágrimas são prova de certo grau de bondade, e desarmam a cólera porque bem se sente que quem ainda é capaz de chorar, é também capaz de amor, ou seja, de piedade para com os outros, precisamente por esta razão que a piedade, como o demonstrei há pouco, se resolve por último nas lágrimas. Petrarca está perfeitamente de acordo comigo nesta explicação quando, exprimindo com ingênua verdade, aquilo que sentiu, fala sobre a origem das suas lágrimas:

I’ vo pensando: e nel pensar m’assale
Una pietà si forte di me stesso,
Che mi conduce spesso,
Ad alto lagrimar ch’i’ non soleva. [20]
(Canção 21)

O que também confirma o que digo é que as crianças, após se terem magoado, deitam a chorar, o mais das vezes somente se as lamentamos; por conseguinte, não é a dor, mas a sua representação que as faz chorar. Quando não é a nossa dor, mas a alheia que nos leva ao pranto, é porque com a imaginação nos colocamos no lugar de quem sofre, ou então porque lhe vemos na sorte o destino de toda a humanidade e, portanto, também o nosso. Nós, portanto, voltamos sempre depois dum longo giro a chorar sobre nós mesmos, sentimos piedade de nós. Este parece ser também o motivo principal que move de modo constante e, portanto, natural, a chorar a morte dos semelhantes. Não é a sua perda que se chora. Coraríamos de verter lágrimas tão egoístas, enquanto às vezes se tem vergonha de não chorar. Antes de tudo é a sorte do defunto que se deplora. Todavia, igualmente se chora quando a morte lhe foi uma libertação desejada por longos, graves e incuráveis sofrimentos. Assim, pois, do que nos compadecemos é do destino da humanidade inteira, por cuja condição efêmera, qualquer existência, por mais ambiciosa e por melhor que seja às vezes empregada, está condenada a extinguir-se e reduzir-se a nada. Ora, nesse destino da humanidade se reconhece antes de tudo o destino próprio e isto tanto mais quanto maior nos for a relação de parentesco ou de amizade com o que morreu, portanto, no mais alto grau quando se trata do pai. Este será sempre copiosamente chorado, mesmo quando lhe houvessem a idade e as doenças tornado a vida um tormento e quando mesmo se tivesse tornado grave peso para o filho incapaz de socorrê-lo.

NEGAÇÃO DO QUERER-VIVER

Depois desta digressão sobre a identidade do amor puro com a piedade e sobre o fenômeno das lágrimas, sintoma duma piedade que se reflete sobre a própria pessoa, retomo o fio das minhas explicações sobre o significado moral da conduta, para estabelecer que a fonte única, donde derivam bondade, amor, virtude e nobreza de ânimo, é, em última análise, originária daquilo que se chama a negação do querer-viver.

Tal como havemos começado por ver o ódio e a maldade nascerem do egoísmo e este encontrar fundamento na sujeição da vontade ao princípio de individuação, assim também havemos encontrado por origem e por essência da justiça, e depois, elevando-nos, do amor da generosidade a graus supremos, a penetração do mesmo princípio, a qual é a única que, suprimindo a diferença entre a nossa pessoa e os outros, torna possível e explica a perfeita bondade de coração até ao amor desinteressado, até ao mais magnânimo sacrifício.

Se tal penetração do princípio de individuação, se tal conhecimento imediato da identidade da vontade em todos os seus fenômenos, existir em alto grau de clareza, manifestará logo uma influência ainda mais profunda sobre a vontade. Quando, com efeito, o véu de Maya se há dissipado, quando o princípio de individuação foi penetrado o suficiente para que o homem não mais estabeleça essa distinção egoísta entre si e o resto do mundo, quando o homem toma parte nas dores alheias como nas próprias, e chegou assim a ser não apenas benéfico em sumo grau, mas também disposto ao sacrifício de si mesmo se puder salvar assim a outros indivíduos, então sucederá que esse homem, o qual se reconhece em todos os outros seres e neles reencontra a sua verdadeira e íntima essência, deverá também considerar como próprios os tormentos infinitos de quanto possui vida, apropriando-se, assim, da dor universal. Miséria alguma lhe será desde então indiferente. Todos os tormentos que vê e que só de raro pode aliviar, aqueles de que não tem conhecimento senão indireto, aqueles de que compreende somente a simples possibilidade, todos os comovem, agitam-no como se fossem seus. A visão já não lhe está constrita unicamente sobre a sua felicidade e desventuras pessoais, como sucede com aqueles que o egoísmo domina para sempre. Tudo o toca com igual direito, desde o momento em que haja penetrado o princípio de individuação. Compreende, então, o mundo e a natureza inteira. Vê tudo quanto existe condenado a contínuo aniquilamento, a vás esperanças, ao autoconflito e à dor sem trégua. Em qualquer parte para onde volva os olhares vê o homem sofrer, vê o animal sofrer, vê um mundo que se desvanece. E tudo isto o toca tão profundamente quanto as desventuras pessoais tocam o egoísta. Como poderia, pois, um homem, depois de ter assim conhecido claramente de que natureza é o mundo, persistir em afirmar semelhante existência por meio de manifestações incessantes da vontade, em apegar-se à vida, prendendo-se-lhe com violência cada vez maior? — Se a inteligência do homem sujeito ao princípio de individuação e ainda escravo do egoísmo não compreende senão as coisas particulares e as suas relações com o indivíduo a que se referem, para extrair-lhes de contínuo novos motivos para uso da vontade, o outro conhecimento, o que sobraça o conjunto e a natureza em si das coisas, há de, ao invés, tornar-se um anódino de qualquer volição. Desde esse ponto a vontade se desvencilha da existência, cujos prazeres lhe causam horror porque vê neles a afirmação da vida. O homem chega, então, a um estado de renúncia voluntária, de resignação, de quietude perfeita, de abandono absoluto de qualquer querer. A nós, maioria dos mortais, a quem o véu de Maya, não obstante, torna cegos, às vezes, alguma desgraça pessoal sentida profundamente, ou alguma dor alheia vista em toda a sua plenitude, desvendam-nos todo o nada e toda a amargura da existência e nos dispõem a arrancar-nos do seio, por meio da renúncia definitiva, o estímulo da cupidez, a fechar qualquer acesso à dor, a purificar-nos e a santificar-nos.

E, todavia, bem cedo recaiamos no encanto falaz do mundo fenomenal e os motivos que lhe atingimos não tardam a pôr novamente em movimento a nossa vontade. Somos impotentes para tolhê-la. As ilusórias promessas da esperança, as seduções do presente, a doçura das alegrias, a felicidade que o acaso ou a ilusão nos partilham por um momento, em meio de tantos cuidados devidos a um mundo de miséria, tudo isto nos arrasta para trás e consolida ainda uma vez os nossos liames. Por isto dizia Jesus: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.

A vida pode ser comparada a um caminho circular, coberto, salvo poucos espaços livres, de chamas ardentes, caminho que o homem deve percorrer sem trégua. O solo frio que, num dado momento, sente sob os pés ou que vê próximo, a tal ponto o garante, que se nutre ainda de ilusões e continua o caminho. Mas aquele que, por haver penetrado o princípio de individuação, vê a natureza verdadeira e o conjunto das coisas, já se não torna acessível a tais consolações. Ele se vê ao mesmo tempo em todos os pontos do caminho e prefere abandoná-lo. A vontade se lhe transforma. Em lugar de afirmar, nega a própria essência da qual o corpo não é senão o reflexo. O fenômeno com que se anuncia essa transformação é a passagem da virtude ao ascetismo. O homem já se não contenta com amar os outros como a si mesmo e com fazer por eles quanto faria por si. Agora, tem horror a esse ser de que a sua pessoa é a expressão visível, detesta o querer-viver, essência e elemento dum mundo do qual reconheceu toda a desolação. Nega essa natureza que se manifesta e se exprime visivelmente por meio do corpo, e todos os seus atos desmentem o seu fenômeno corpóreo e se põem em conflito com ele. Ainda que essencialmente fenômeno da vontade, cessa de querer o que quer que seja, foge a qualquer apego da vontade a não importa o que, e procura fortificar continuamente no seu coração a mais perfeita indiferença por tudo. No seu corpo, são e robusto, o instinto sexual se pronuncia por meio das partes genitais; mas ele nega o seu querer e faz mentir a seu corpo. Não quer, por preço algum, satisfações sexuais.

Uma castidade voluntária e absoluta é o primeiro passo para uma vida ascética, ou negação do querer-viver. A continência nega essa afirmação da vontade que se sobrepõe à vida individual, e anuncia que com a vida do corpo cessará também a vontade, da qual o corpo é a imagem externa. A natureza, sempre verídica e ingênua atesta que, se este princípio se tornasse universal, a raça humana desapareceria e, segundo quanto disse no livro segundo acerca do concatenamento dos fenômenos da vontade, creio poder admitir que com a manifestação mais esplendente desapareceria também o reflexo mais pálido desta última, tal como à luz do Sol também desaparecem as meias-tintas. Ora, esvaecendo-se de fato o conhecimento, todo o resto do mundo se desvaneceria de per si, porque sem sujeito não se dá objeto. A isto posso aplicar uma passagem dos Vedas que diz: — Como neste mundo as crianças esfaimadas se comprimem em torno da mãe, assim, todas as criaturas esperam o sacrifício santo. (“Asiatic Researches”, vol. 8, Colebrooke, On the Vedas, no estrato do Saman-Veda, idem no Miscellaneous Essays.) Sacrifício significa resignação em geral; o resto da natureza espera a salvação do homem que é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. É curioso e merece recordação a propósito que o mesmo pensamento haja sido expresso por um místico admirável e de extraordinária profundeza, Ângelo Silésio, num versículo intitulado: “O Homem Leva Tudo a Deus”; eis as suas palavras:

Oh homem, tudo respira o amor por ti; tudo te deseja com ardor
Tudo se arremessa para ti, para chegar a Deus.

Mas um místico mais admirável ainda, Mestre Eckhart, cujos escritos maravilhosos nos chegaram finalmente ao conhecimento pela edição que lhes deu Franz Pfeiffer, 1857, na pág. 459, exprime-se com o mesmo espírito:

Isto confirmo com as palavras de Jesus Cristo que há dito: e Eu quando for levantado da terra, todas as coisas atrairei a mim mesmo (5. João XII, 32). Por isto o homem bom deve levar todas as coisas a Deus, à sua primeira origem. Os doutores nos afirmam que as criaturas são feitas à intenção do homem: observai-o para todas, que delas cada qual utiliza a outra: o ruminante a erva, o peixe a água, o pássaro o ar, as feras a floresta. Assim, todos os seres reverterão ao homem bom: uma criatura em outra é levada pelo homem bom a Deus.

Ele quer dizer com isto que, como o homem em si e consigo redime também os animais, utiliza-os nesta vida. Parecer-me-ia que se deve interpretar no mesmo sentido a obscura passagem da Bíblia, na Epístola aos Romanos, VIII, 21-24.

Nem no Budismo faltam passagens que exprimam o mesmo pensamento. Por exemplo, quando Buda, ainda como Bodisatwa, faz pela última vez deitar a sela ao cavalo para fugir da casa paterna e ir em busca do deserto, diz ao animal: de longo tempo tu me ajudas na vida e na morte; mas doravante cessarás agora de levar-me e de trazer-me; leva-me daqui ainda uma vez, ó Kantakana, e quando tiver conquistado a lei (quando for Buda) não me esquecerei de ti (Foe Koeki, trad. de Abel Rémusat, pág. 233).

A vida ascética se manifesta também com a pobreza voluntária e intencional; não essa pobreza sobrevinda por acidente, porque se haja empregado o que se possuía em dar lenitivo às misérias alheias, mas a pobreza como finalidade em si mesma, destinada a servir de mortificação constante à vontade, a fim de que o cumprimento dos desejos, as doçuras da vida, não venham, de novo excitar esse querer que o conhecimento de si faz aborrecer. O homem chegado a este ponto prova ainda, como corpo animado, como fenômeno concreto da vontade, toda espécie de disposição ao querer; sufoca-o, contudo, com a intenção, esforçando-se por nada fazer do que desejaria e por fazer ao contrário tudo quanto não lhe agradaria, mesmo quando não tivesse outro fito senão o de mortificar precisamente a vontade. Como ele mesmo nega o querer manifesto em sua pessoa, não se oporá a quem quer que lhe faça o mesmo, isto é, não o ofenderá. Qualquer dor que o punja, produzida pelo acaso ou pela maldade alheia, qualquer vitupério, qualquer injúria, qualquer dano será bem aceito. Acolhê-los-á com alegria, como ocasião para certificar-se a sério de que já não afirma a vontade e de que afronta corajosamente qualquer inimigo do seu fenômeno da vontade, ou seja, da sua pessoa. Suporta humilhações e cuidados com paciência e doçura inexauríveis; sem ostentação paga o mal com o bem; e não deixa nunca mais acordar em si o fogo da cólera nem o das aspirações. Tanto mortifica a vontade quanto lhe mortifica também a expressão visível, a objetividade, o seu corpo. Nutre-o parcimoniosamente a fim de que não venha, florescendo e prosperando copiosamente, dar vida nova e novas forças à vontade da qual não é mais que a simples expressão e o reflexo. Jejua, macera e flagela a carne para dilacerar e bater cada vez mais com privações e dores essa vontade que reconhece e que detesta como origem dos sofrimentos que afligem a existência sua e a do universo. Quando a morte vem finalmente anular o fenômeno dessa vontade, cuja existência, pela negação livre de si mesma, há muito era cessada, salvo naquele pequenino resto que se mostrava ainda animando o organismo, ela (a morte) é saudada com alegria e aceita de bom grado como libertação ardentemente desejada. Com a morte não termina para ele apenas o fenômeno como para os outros, termina também a essência mesma, a qual já não vivia senão debilmente no fenômeno e com o fenômeno e da qual este último e frágil liame vem a seu turno romper-se. Para quem acaba assim, assim também acaba o mundo.

Nem se deve crer que quanto hei de aqui exposto com fracas palavras a expressões gerais, seja uma fábula filosófica imaginada por mim e posta em circulação somente no dia de hoje. Não, em verdade! É a existência invejável duma multidão de santos e belas almas entre os cristãos, duma multidão que é maior ainda entre os Hindus e os Budistas, mas que se encontra, também, em outras comunidades religiosas. Por mais diversos que possam ser os dogmas que tenham impressos na razão, é sempre o conhecimento interno imediato, intuitivo, que é o único de que podem derivar a virtude e a santidade, que se exprime em todo o curso de sua vida. Porquanto, também aqui se revela a diferença enorme que existe entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstrato. Muito pouca atenção se lhe prestou até aqui e, todavia, a alta importância a todo o momento lhe ressalta, em todo o decurso das presentes considerações. Entre a intuição e a razão existe um imenso abismo que somente a filosofia pode ajudar-nos a transpor, quando se trata de estudar a natureza do mundo. Porque cada homem, a bem dizer, possui intuitivamente, ou seja, in concreto, todas as verdades filosóficas. Mas recolhê-las no saber abstrato, na reflexão, é coisa pertinente ao filósofo, o qual não tem o direito nem o poder de ir mais adiante.

Portanto, a presente obra é, talvez, a primeira em que se encontra enunciada, sob forma abstrata e pura de qualquer símbolo, a essência da santidade, da renúncia, da mortificação voluntária e da vida ascética por meio da negação do querer-viver que se manifesta quando o conhecimento da sua verdadeira natureza se torna, para o homem, um sedativo da vontade. Mas esta essência foi compreendida intuitivamente e expressa com atos por todos os santos e todos os ascetas, os quais, embora tendo no fundo o mesmo conhecimento, usavam de linguagem diversa um do outro, segundo os dogmas que um dia a razão lhes havia admitido e que fazem com que um santo da Índia, um santo cristão, um santo Lamaísta deem da própria conduta explicações que em nada se parecem, o que, entretanto, é de todo indiferente para a coisa. Pode dar-se que um santo esteja embebido de superstições absurdas, como também pode dar-se que seja um filósofo. Mas isto não acarreta diferença alguma. É a conduta que o torna santo, porque do ponto de vista moral ela resulta não dum conhecimento abstrato, mas sim do conhecimento intuitivo e direto que tem do mundo e da sua natureza; caso se utilize dum dogma para interpretar a própria conduta, é unicamente com o fim de satisfazer à razão. É, pois, tão pouco necessário a um santo o ser filósofo como a um filósofo o ser santo; precisamente como um homem muito belo não deve por força ser escultor, nem um grande escultor um belíssimo homem. E para dizê-lo de modo geral é assaz estranho exigir que um moralista ensine unicamente as virtudes que possui em si. Reproduzir por meio de noções abstratas, gerais e distintas, a essência do mundo, e depor a imagem assim refletida em conceitos de razão, estáveis e sempre disponíveis, eis o que diz respeito à filosofia, que não deve de outra coisa ocupar-se. Recordo a propósito a passagem de Baco de Verulâmio, já citado no livro. [21]

Todavia, é mais do que abstrata e geral, e, portanto, fria, a pintura que dei da negação do querer-viver, ou seja, da existência duma bela alma, da resignação e da penitência voluntária dum santo. Porquanto, desde o momento em que o conhecimento que conduz à negação da vontade é intuitivo e não abstrato, desde aí, já não pode exprimir-se inteiramente por meio de noções abstratas, mas unicamente por meio dos atos e da conduta. Para compreender-se, pois, de modo completo, o que aqui entendemos exprimir filosoficamente pela negação do querer-viver, torna-se necessário aprender a conhecê-lo em exemplos tomados à experiência e à realidade. De certa maneira, não se encontrarão na vida cotidiana, nam omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt, diz Spinoza maravilhosamente bem. Por isso, quando nunca se teve, por feliz acaso, a ocasião de ser testemunha deste fato, é preciso contentar-se com a biografia dos homens de tal qualidade. A literatura hindu, a julgar-se pelo pouco que lhe conhecemos pelas traduções, e rica de painéis sobre a vida de santos e penitentes, chamados Samaneus, Saniacos, etc. A obra intitulada Mythologie des Indous par Mme, de Polier, se não é de todo recomendável em vários pontos, contém, entretanto, muitos exemplos excelentes deste gênero (especialmente no cap. 13 do vol. 2.0). E nem entre os cristãos falecem testemunhos neste sentido. Basta ler as biografias, o mais das vezes mal escritas, dessas personagens que ora se qualificam por almas santas, ora por pietistas, quietistas, pios visionários etc. Tais narrativas foram postas em conjunto em diversas épocas; são tais A Vida das Almas Santas, por Tersteegen, a História dos Regenerados, de Reiz, e em nossos dias a antologia de Kanne, a qual, entre muitas coisas más, contém algumas boas, entre estas a Vida da Beata Sturmin. Devemos aqui citar a vida de S. Francisco de Assis, verdadeira personificação do ascetismo, ideal do frade mendicante. A sua história, escrita por um contemporâneo mais jovem que ele, São Boaventura, célebre também como escolástico, foi recentemente reimpressa sob o título: Vita S. Francisci a S. Bonaventura Concinnata (Soest, 1847), além do que, havia aparecido em França pouco antes uma biografia elaborada com todo o cuidado, rica de pormenores, buscados em todas as fontes: Histoire de S. François d’Assise par Chavin de Mallan (1845). Como confronto oriental a esses escritos monásticos, temos o importantíssimo trabalho de Spence Hardy: Eeastern Monachism, an Account of the Order of Mendicants Founded by Gotama Budha (1850), onde se percebe a mesma coisa sob diferente aspecto. E vê-se, também, quanto é indiferente para o fato, que este proceda do deísmo ou do ateísmo. Mas recomendo de modo todo particular, como exemplo especial e pormenorizado, e como explicação efetiva dos conceitos que apresentei, a autobiografia de Madame de Guion: aprender a conhecer esta grande e bela alma, cuja memória sempre me inspirou o máximo respeito, fazer justiça à elevação dos seus sentimentos, embora contemplando com a indulgência os prejuízos da sua razão, deve ser prazer dos mais requintados para as naturezas nobres; enquanto para os ânimos vulgares, isto é, para a grande maioria dos homens, esse livro terá sempre péssima fama, por motivo de que em toda parte e em todo tempo cada um só pode estimar os sentimentos que têm analogia com os seus, e para os quais o coração o conduz, por pouco que seja, o que é tão verdadeiro para o lado moral, como para o intelectual. Pode-se, também, considerar como exemplo pertencente, até certo ponto, à nossa tese, tão conhecida biografia de Spinoza, em língua francesa; mas para compreendê-la é preciso procurar-lhe a chave na estupenda introdução do seu medíocre tratado De Emendatione Inteliectus: posso recomendar estas páginas, como aquilo que, quanto eu saiba, foi escrito de mais enérgico e mais eficaz para acalmar o tumulto das paixões. Finalmente, o grande Goethe, embora seja de todo grego, não achou indigno de si o mostrar-nos o lado belo da humanidade, interpretado poeticamente nas Confissões D’uma Bela Alma, em que nos apresenta a estampa ideal da vida da Senhorinha Klettenberg, da qual mais tarde nos deu a verdadeira história, na sua própria biografia; Goethe narrou também a vida de São Filipe Néri, e isto a dois intervalos diferentes. A história não falará jamais, e em verdade não o pode fazer, de tais homens, cuja vida é a mais fiel interpretação e a única satisfatória para este ponto tão importante das nossas investigações. Porque a substância da história não é somente diferente da nossa, mas também diretamente oposta; para ela não se trata da negação e do abandono do querer-viver, mas, bem ao contrário, da afirmação deste e da sua manifestação numa infinidade de indivíduos, em que o conflito consigo mesmos, na objetivação suprema da vontade, ressalta com perfeita, clareza e prova a inanidade e a nulidade de qualquer aspiração inferior, seja que as cenas da história nos apresentem o homem isolado, chegado ao posto mais elevado com o poder da sabedoria, ou seja que nos mostrem a força das multidões que agem com a própria massa, ou seja, finalmente, que nos patenteiem o poder do acaso que personifica o destino. Mas para nós o objetivo não é seguir o fio dos fenômenos no tempo; devemos procurar como filósofos o valor moral da conduta e aplicá-lo, como única escala adaptada, à medida daquilo que acreditamos constituir a coisa mais importante e mais expressiva da vida. E proclamaremos corajosamente, sem nos deixar intimidar pela eterna maioria da gente oca e trivial, que o mais sublime, mais importante e mais significativo fenômeno que a nossa terra possa produzir não é o vencedor do mundo, mas o vencedor de si mesmo, a humilde e silenciosa existência dum ser humano chegado ao grau de conhecimento em que rejeita aquilo que enche o coração dos outros homens, repudia esse querer-viver que lhes é o único motor das ações e das esperanças, nega essa vontade que não se mostra livre senão nele mesmo e nesta ocasião, e que faz então da sua conduta o extremo oposto da conduta habitual aos outros. É, pois, neste sentido que as biografias dos homens que se deram à santidade e à abnegação, embora sejam em regra mal escritas e apresentadas frequentemente numa confusão de superstições e absurdos, oferecem aos olhos do filósofo, pela importância da matéria, ensinamentos que sem confronto são mais elevados que todos os escritos de Plutarco e de Tito Lívio.

Para aprofundar e elucidar ainda mais o que, no método abstrato e geral da nossa exposição, denominamos negação do querer-viver, é preciso estudar os preceitos morais dados, precisamente segundo as nossas ideias, por homens de todo penetrados pelo mesmo sentimento. Conheceremos, assim, ao mesmo tempo, quanto estas ideias são antigas, embora possa ser nova a sua expressão puramente filosófica. De todas essas doutrinas, a que nos está mais vizinha é o cristianismo, cuja moral é inteiramente estabelecida na mesma ordem de sentimentos. Não conduz somente à caridade suprema, mas também à abnegação, a qual já se encontra em embrião apenas, é verdade, mas bem distinta nos escritos dos apóstolos, embora não haja sido desenvolvida completamente e explicitamente enunciada senão mais tarde. O que recomendam os apóstolos é amar ao próximo como a si mesmo, é pagar o ódio com o amor e o benefício; é a caridade, a paciência, a doçura, a dócil resignação às ofensas, a temperança para domar a concupiscência, a resistência aos apetites da carne, e provavelmente a castidade absoluta. Ali já encontramos um caminho para o ascetismo, ou negação do querer propriamente dito, entendendo eu por tal expressão precisamente aquilo que o Evangelho chama renunciar a si mesmo e levar a própria cruz (Mateus XVI, 24-25, Marcos VIII, 34-35, Lucas IX, 23-24, XIV, 26, 27, 33). Tal caminho se acentuou sempre mais e deu origem aos penitentes, aos anacoretas e ao estado monacal, que, puro e santo primeiro, e portanto fora de proporção com a natureza da maior parte dos homens, não podia conduzir senão à hipocrisia e à abominação, porque abusus optimi, pessimus (torna-se péssimo o abuso do ótimo). Desenvolvendo-se o cristianismo, vemos este embrião ascético germinar e atingir o florescimento nos escritos dos santos e dos místicos cristãos. Estes, além do mais puro amor, pregam a resignação absoluta, a pobreza voluntária, a verdadeira calma, a completa indiferença pelas coisas da terra, o dever de morrer para a vontade e de renascer em Deus, o olvido total da própria pessoa para a absorção na contemplação do Senhor. Deu-lhe Fénelon, a exposição completa na Explication des Maximes des Saints sur la Vie Intérieure. Mas, em lugar nenhum o espírito do cristianismo nesta direção foi exposto com tanta perfeição e tanta energia, como nos escritos dos místicos alemães, por exemplo nos de Meister Eckhart e na obra justamente célebre Die Deutsche Theologie, de que disse Lutero, na prefação que lhe agregou, que livro algum, salvo a Bíblia e Santo Agostinho, lhe havia melhor ensinado a conhecer a Deus, Cristo e Homem: — a edição de Pfeiffer Stockard, 1851, deu-nos pela primeira vez o texto verdadeiro, não falsificado. Os preceitos e as doutrinas que ali se encontram são a exposição mais completa, oriunda da mais profunda fé, de tudo quanto apresentado como negação do querer-viver. É essa questão que se deve estudar bem de perto, antes de pretender truncá-la com prosopopeias judaico-protestantes. Temos, também, escrita no mesmo excelente espírito, mas de valor menor que o da última citada, a obra de Tauler Imitação da Vida Pobre de Cristo, bem como a sua Meduila Animae. A mim, parece-me que as lições desses sinceros místicos cristãos estão para as do Novo Testamento, na mesma relação do espírito do vinho com o vinho. Ou direi, também, que tudo o que o Novo Testamento nos mostra como envolto por um véu e uma nuvem, nos é apresentado, descoberto em plena luz e nitidez pela obra dos místicos. Ou ainda, o Novo Testamento poderia ser considerado como primeira iniciação, como segundo os místicos — (C. g.). [22]

Mas onde se encontra aquilo que eu chamo negação da vontade, maiormente desenvolvido e expresso sob formas mais várias e com cores mais vivas do que o poderia ter feito a Igreja cristã e o mundo ocidental, é nas obras antigas da língua sânscrita. Que na Índia se haja podido dar a tais panoramas morais da vida um desenvolvimento e uma expressão mais decidida, é coisa que deve ser sobretudo atribuída ao fato de ali não serem contrariados por elemento heterogêneo, como o era o cristianismo da religião hebraica, a que o sublime fundador da religião cristã, em parte cientemente e em parte, talvez, sem o perceber, teve de adaptar-se e dobrar-se; donde a consequência pela qual o cristianismo se compõe de dois elementos de natureza diferente, dos quais eu quereria chamar, de preferência, ou antes exclusivamente cristão, somente ao puro elemento moral, distinguindo-o do dogmatismo judaico que lhe está unido. Se como se há frequentemente temido e sobretudo nos tempos modernos, esta religião sublime e salutar, viesse um dia a decair totalmente, não se teria de lhe procurar a razão senão no fato de não ser composta dum só elemento, mas sim de dois, heterogêneos, em origem, e depois fundidos em conjunto no progresso do tempo: no caso da ruína prevista, deveria derivar, por virtude da sua igual afinidade e da reação do espírito dos tempos sempre mais iluminada, uma decomposição, de que a parte puramente moral sairia intacta, porque indestrutível. Para voltar à moral dos Hindus, qual já a encontramos hoje em dia, a despeito do nosso imperfeito conhecimento da sua literatura, expressa energicamente e de maneiras diversas nos Vedas, nos Puranas, nos seus poemas, nas lendas sacras, nos mitos, nas sentenças e nos preceitos de conduta, direi que a vemos prescrever: amor do próximo, com abandono total do amor a si mesmo; amor universal que abrange não somente a humanidade, como também tudo que tem vida; caridade dilatada até ao ponto de dar o pão de cada dia, ganho penosamente; paciência infinita em suportar qualquer afronta; recambiar o mal com o bem e o amor, qualquer que seja o mal praticado; resignação voluntária e contente a todas as humilhações; abstenção absoluta do alimento animal; castidade absoluta e renúncia a qualquer prazer para aquele que aspira à santidade perfeita; abandono das riquezas, da família, da casa, de qualquer morada, para passar a vida no mais profundo isolamento e imergir-se na contemplação silenciosa, fazendo penitência voluntária e infligindo-se lentos e terríveis suplícios com o fim duma mortificação completa da vontade, dilatada até ao ponto de morrer de fome, procurar a morte na boca dos crocodilos, ou precipitar-se do alto da rocha sagrada do Himalaia, ou fazer-se enterrar vivo, ou finalmente lançar-se sob as rodas do imenso carro em que são conduzidas em procissão as estátuas dos deuses em meio de cantos, gritos festivos e danças baiaderas. Tais prescrições, cuja origem remonta muito para além de quatro mil anos, são também em nossos dias observadas por esse povo tão decaído sob tantos outros aspectos: alguns o cumprem mesmo até ao extremo rigor. [23] O que se manteve em prática por tão longo tempo e num país que conta tantos milhões de habitantes, malgrado os sacrifícios duríssimos que exige, não poderia ser fantasia inventada arbitrariamente, mas deve ter a sua razão na essência da humanidade. Além do que, nunca nos maravilhamos demais com a identidade que se encontra no confronto da vida dum penitente cristão com a dum Hindu. Com dogmas, costumes e condições externas tão radicalmente diferentes, a aspiração da alma e a vida interna são em ambos as mesmas. As regras de conduta são também idênticas: assim, por exemplo, Tauler nos fala da pobreza absoluta que é preciso impor-se e que consiste em despojar-se e abster-se de tudo quanto possa dar consolação ou alegria mundana, evidentemente porque tudo isso fornece novo alimento à vontade, que se deve sufocar para sempre. Como paralelo hindu, vemos que os preceitos de Foe ordenam ao Saníaco não possuir bens de nenhuma espécie, não habitar sob teto e finalmente não dormir com muita frequencia sob a mesma árvore, a fim de que se lhe não apegue e não venha a preferi-la às outras. As instruções dos místicos cristãos e as da filosofia Vedanta concordam também em declarar supérfluos qualquer prática externa e qualquer exercício religioso para aquele que chegou à perfeição. Um acordo tão completo, malgrado a imensa diferença dos povos e das épocas, prova com fatos palpáveis que quanto havemos observado, não é, como o afirma de boa vontade o vulgar otimismo, manifestação de demência ou aberração do sentimento, mas sim expressão dum lado essencial da natureza humana, o qual, precisamente por causa da sua sublimidade, não se explica senão muito raramente.

Tenho agora demonstrado as fontes imediatas, tomadas à própria vida nas quais se podem atingir, para estudá-los, os fenômenos em que se manifesta a negação do querer-viver. Ainda que este seja de certa maneira o ponto mais importante de todas as nossas considerações presentes, não o hei, todavia, exposto, senão por modo de todo geral. Pareceu-me preferível enviar o leitor aos que falam por experiência própria a engrossar inutilmente este volume, tornando-o o eco enfraquecido das suas palavras.

Pouco me falta acrescentar e o farei somente para caracterizar, com algumas pinceladas gerais, o estado psíquico há pouco estudado. Do mesmo modo como vimos, páginas atrás, o mau, pela violência da sua vontade, sofrer uma tortura interna que o atassalha sem trégua, e finalmente, quando tem exaurido todos os objetos do seu querer, procurar extinguir a sede que o abrasa no espetáculo dos alheios sofrimentos, assim também podemos ver o homem que atingiu a negação do querer-viver, por quanto pobre e triste, por quanto cheia de privações lhe seja a sorte, julgada pela aparência, gozar da mais pura beatitude interna, numa calma verdadeiramente celestial. Não há nele nem a satisfação agitada que traz a atividade vital, nem os transportes de alegria de que a cessação duma dor é sempre a condição preliminar, ou de que uma dor futura é sempre o resultado necessário, coisas que constituem a existência do homem ávido de viver; não! Há uma calma inalterável, uma paz profunda e uma serenidade íntima. Há um estado que não podemos contemplar sem inveja quando se apresenta à nossa vista ou à nossa imaginação, porquanto sentimos logo que tal condição está por tudo acima do mundo e que nela se contém a verdade. Então, tudo o que há de melhor em nós, eleva a voz para gritar o grande sapere aude, ousa saber. Então, sim, é que nos apercebemos bem de que qualquer realização de nossos apetites, arrancada à existência, é sempre e unicamente uma esmola concedida ao mendigo de quem prolonga a vida por um dia para que no dia seguinte morra novamente de fome; enquanto a resignação se assemelha a um patrimônio herdado que põe para sempre, a quem o possui, ao seguro de toda inquietação.

Podemos recordar ter sido dito no livro terceiro que o prazer estético do belo consiste em grande parte no fato pelo qual, imersos na contemplação pura, libertos, durante esse intervalo, da vontade, ou seja, de qualquer desejo e de qualquer inquietação, de certa maneira nos encontramos despojados da nossa personalidade, já não somos indivíduos nos quais a inteligência está empenhada inteiramente ao serviço da vontade, já não somos o sujeito correlativo ao objeto especial, sujeito que encontra em tudo motivos de volição, mas somos, entretanto, o sujeito involuntário e imortal do conhecimento puro, o correlativo da Ideia. Sabemos, também, que os momentos mais felizes da vida são precisamente aqueles em que, subtraídos à feroz tirania dos apetites, nos elevamos, por assim dizer, acima da grosseira atmosfera terrestre. Por meio da felicidade que então provamos, torna-se-nos possível julgar da beatitude do homem cuja vontade não está, como no êxtase da estética, acalmada apenas por breve instante, mas para sempre, quando está de fato consumado, salvo na derradeira centelha que serve para manter a vida corpórea e que desaparecerá com ela. Assim que deste homem, depois de longas e amargas lutas com a própria natureza, não resta senão uma inteligência pura, um espelho sempre diáfano do mundo. Nada mais pode turbá-lo, nada mais o pode comover, porquanto rompeu com os mil liames com que o querer nos tem apegados ao mundo e que sob a forma da cupidez, da trepidação, da inveja, da cólera nos confrangem dolorosamente em todos os sentidos. Agora, contempla calmo e sorridente, essas ilusões mundanas que pouco antes tinham a faculdade de sacudi-lo e alterá-lo e que hoje lhe passam por de sobre os olhos, impotentes para turbá-lo, como os dados dum xadrez quando a partida está finda, dir-se-ia qual em carnaval a fantasia da mascarada, despida na manhã seguinte, e entretanto quem a vestia nos tinha provocado e inquietado toda a noite. A vida e suas figuras esvoaçavam-lhe ao derredor quais sombras fugazes, como aos olhos de quem apenas desperto vagueia o sonho ligeiro da manhã, através do qual a realidade desponta procurando substitui-lo; e como tal sonho a vida se desvanece sem transição violenta. Tais considerações nos ajudam a compreender o que quer dizer a dama de Guion, quando, pelo fim das suas memórias, repete tão de frequente: tudo me é indiferente: não posso querer coisa alguma: muitas vezes não sei se existo ou não. Seja-me também permitido, para exprimir como depois do aniquilamento da vontade, a morte do corpo (o qual não é mais do que a aparição visível da vontade e, portanto, perde toda significação quando esta foi suprimida) nada mais pode ter de amargo e deve resultar bem aceita — seja-me permitido, repito, citar as palavras precisas desta santa penitente conquanto em verdade não estejam dispostas com elegância: “Midi de gloire; jour ou il n’y a plus de nuit; vie qui me craint plus la mort, dans la mort même: parce que la mort a vaincu la mort, et que celui qui a souffert la premiêre mort, ne goútera plus la seconde mort”. Vie de Mad. de Guion, vol. II, pág. 13.)

Não se deve, contudo, crer que do momento em que o conhecimento torpado sedativo, haja produzido a negação do querer-viver, já não esteja exposto a vacilar e que se possa contar com ele como bem definitivamente adquirido. Deve, ao contrário, ser reconquistado sem trégua com novas lutas. Pois enquanto for vivo o corpo, sendo este a própria vontade tornada objeto ou fenômeno no mundo como representação, todo o querer-viver existe virtualmente e aspira de contínuo a reentrar na realidade e desencadear-se mais ardente que nunca. Por isto na vida dos santos de que há pouco falávamos, a paz e a felicidade são o último desenvolvimento, a flor nascida da vitória de todos os momentos sobre a vontade; o terreno que a produz é a luta incessante contra o querer-viver, porque neste mundo não há repouso durável para criatura alguma. A história da vida dos santos no-la faz ver ocupada em combates contínuos da alma, cheia de tentações e de momentos em que a graça a abandona, quando perdem aquele modo de conhecimento que, paralisando todos os motivos, se volve sedativo geral de qualquer querer, proporciona a paz mais profunda e abre acesso à liberdade. Eis porque vemos aqueles mesmos que chegaram à negação da vontade, não se manterem neste ponto senão com esforços incessantes, com mil penosas privações, com vida de duras penitências, procurando tudo quanto lhes é desagradável, com o único fim de reprimir a vontade sempre pronta a inflamar-se. Donde, finalmente, pelo fato de conhecerem o preço da redenção, vem a cura desvelada que põem em conservar a salvação conquistada; donde os escrúpulos da sua consciência pela menor alegria que provém, ou pelo ínfimo movimento da vaidade, porque esta, que é na verdade o mais indestrutível, o mais vivaz e o mais insensato de todos os instintos humanos, é também o último a morrer. O que eu entendo num significado mais restrito por ascetismo, palavra que até aqui tenho usado com frequência, é precisamente o aniquilamento intencional da vontade, obtido com a renúncia de tudo quanto agrada, ou com a procura de tudo aquilo que não agrada, com a prática voluntária duma vida de penitência e de mortificação, com o fim de suprimir, sem trégua, o querer.

Se a vida ascética é, para o homem que atingiu a negação da sua vontade, o meio de manter-se em tal estado, existe também um segundo caminho, (C. g.) (3), que conduz ao mesmo resultado e é o sofrer em geral como foi decretado pela sorte; certo, a maior parte dos homens não chega à salvação senão por este caminho: são as dores sofridas, mais do que as que se viram os outros sofrerem, que conduzem à resignação absoluta, especialmente ao aproximar-se da morte. Porquanto são bem poucas as pessoas a quem, para negar a vontade, basta a inteligência, esse conhecimento, que depois de haver penetrado o princípio de individuação, começa por lhes dar a bondade perfeita e o amor da humanidade, e acaba por fazê-las sentir como próprias as dores do mundo inteiro. Também para o homem vizinho a tal grau de perfeição o bem-estar momentâneo, as carícias do presente, as seduções da esperança e a ocasião, sempre pronta a satisfazer a vontade, isto é, os apetites são outros tantos obstáculos contínuos à negação do querer e outras tantas tentações renascentes de afirmá-lo: o que forneceu a ideia de personificar, para tal ponto de vista, todas as tentações sob a figura de demônios. Urge, pois, no mais das vezes, que grandes dores hajam vindo romper a vontade para que possa produzir-se a sua negação. Quando um homem percorreu todos os graus duma crescente angústia, quando depois de ter lutado com todas as suas forças, está para abandonar-se ao desespero, vemo-lo porventura reentrar de improviso em si, reconhecer-se e reconhecer também o mundo, trocar o seu modo de ser, elevar-se sobre si mesmo e sobre a dor, e como que purificado e santificado por isto, com uma calma, uma beatitude, uma elevação de espírito imperturbáveis, renunciar livremente a tudo quanto desejava até então com tanto ardor, e esperar a morte com alegria. Tal como a fusão dum mental se anuncia com luz fulgente, assim também a chama da dor lhe produz o fulgir duma vontade que se desvanece, digo, da libertação. Nem faltam exemplos de homens malvados que, purificados por alguma dor profunda, foram vistos trocar e modificar inteiramente a própria conduta. Então os delitos do passado já não lhes inquietam a consciência, porque estão prontos a expiá-los com a morte, e bem aceito se lhes volve o aniquilamento duma vontade que se lhes tornou coisa estranha e objeto de horror. O grande Goethe, na sua imortal obra-prima Fausto, nos dá com a história das desditas de Margarida, uma pintura de que não encontramos rival em poesia, e que representa a mais clara e mais visível interpretação duma negação da vontade produzida pela dor e pela perda de todas as esperanças de salvação. Não conheço exemplo mais bem ideado para mostrar-nos esse segundo caminho que conduz à negação da vontade, não como o primeiro, por meio da dor universal reconhecida e apropriada voluntariamente, mas por meio da dor provada em si mesma. Não nos falecem tragédias em que os heróis passam da mais impetuosa vontade à resignação absoluta, caso em que o desde tal conversão nos foi apresentada, que eu saiba, como fecho consiste na cessação do querer-viver e do seu fenômeno ao mesmo tempo; mas em lugar algum a essência no Fausto sob forma tão clara e tão livre de qualquer elemento acessório.

Não é raro se encontrarem na vida real conversões de tal natureza em infelizes, destinados a atravessar o cúmulo da dor, pois o que os espera sem remissão e na plenitude da sua faculdade é a morte no patíbulo, morte violenta, ignominiosa, quase sempre acompanhada por horríveis torturas. E não se deve crer que entre o caráter deles e o da maior parte dos homens a diferença seja tão grande, como parece indicar a sua sorte miserável, pois que a causa em grande parte deve atribuir-se às circunstâncias, o que não impede que sejam culpados e maus. São eles mesmos que vemos, frequentemente, quando toda esperança lhes foi perdida, converterem-se, como já demonstrei. Então se tornam bons e puros; têm horror sinceramente à prática da menor má ação ou mesmo de ação pouco caridosa; perdoam a seus inimigos e mesmo àqueles que os houvessem feito condenar quando eram inocentes. E não se trata de simples palavras ou de hipocrisia inspirada pelo temor duma condenação, porque eles estão isentos de fato de qualquer animosidade. Amam suas dores e a morte, havendo-se produzido neles a negação do querer-viver; rejeitam qualquer probabilidade de fuga que se lhes apresente e morrem com alegria, calmos e serenos. O excesso da angústia revelou-lhes o derradeiro mistério da vida. Veem que ódio e sofrimento, atormentadores e atormentados em si são idênticos, embora pareçam diversos até que o conhecimento se regule sobre o princípio de razão; compreendem que se trata sempre de fenômenos dum só e mesmo querer-viver que objetiva o seu autoconflito mercê do auxilio do princípio de individuação; aprenderam a conhecer as duas faces do mundo, maldade e dor, em toda a sua extensão; e havendo-as compreendido iguais, repelem uma e outra ao mesmo tempo e renunciam à vontade de viver. Sob qual forma, pois, ou mítica ou dogmática, prestam contas à própria razão de tal conhecimento intuitivo e imediato, é uma questão, como já o disse, absolutamente diversa.

Matias Claudius deve ter sido, com certeza, testemunho duma conversão de tal gênero por haver escrito no Mensageiro de Wandsbeck o bizarro artigo intitulado História da Conversão de X, que termina assim:

O modo de pensar dum homem pode passar dum ponto da periferia à extremidade oposta e retornar depois ao ponto de partida se as circunstâncias lhe assinalarem semelhante curva. Mudanças assim não são precisamente o que há de mais elevado e mais interessante no gênero humano. Mas a conversão que acabo de narrar, esta metamorfose transcendental, radical, maravilhosa, na qual todo o círculo está irrevogavelmente suprimido, e todas as leis da psicologia desvendadas, e em que o indivíduo se despoja ou, ao menos, revolve, não somente as vestes como também a pele em que até o tegme cai dos olhos, é coisa de tal modo maravilhosa que qualquer um que sinta vida, abandonará pai e mãe para correr a vê-la com seus próprios olhos e ouvi-la com seus próprios ouvidos.

Ademais, a vizinhança da morte e a perda de toda esperança não são indispensáveis para que se produza esta purificação por meio da dor. Uma grande desventura, uma angústia imensa, podem, também, fora das condições acenadas, induzir energicamente ao reconhecimento do conflito interno do querer-viver e à nulidade de qualquer esperança. Frequentemente se viram reis, heróis, aventureiros, em meio de vida agitada pelo tumulto das paixões, converter-se de improviso, entregar-se à resignação e à penitência e tornar-se monges ou eremitas. Temos em quantidade exemplos de conversões dessa natureza; tal é a história de Raimundo Lullius, solicitando havia muito tempo os favores duma mulher, obteve finalmente uma entrevista; quando acreditava chegar ao ápice dos seus desejos, despojando-se a dama das vestes, mostrou-lhe o seio devorado por imundo cancro. Desde esse momento, como se tivesse mergulhado os olhos no inferno, converteu-se, abandonando a corte do rei de Maiorca e fugiu para o deserto a fazer penitência. Narrei sumariamente no cap. 48 do segundo volume a conversão do abade de Rancé, cuja história se parece com a precedente. Nestes dois exemplos encontramos que o motivo da transformação foi a passagem imprevista das alegrias da vontade para os terrores da vida. E isto basta para explicar o fato surpreendente pelo qual justamente da nação mais mundana, mais alegre, mais sensual e mais frívola entre todas, isto é, da nação francesa, venha a instituição da mais rigorosa ordem monástica, a dos Trapistas; depois da sua dissolução, Rancé restabeleceu-a e a ordem se conservou em toda a sua pureza e em toda a sua terrível severidade até os nossos dias, malgrado as revoluções, malgrado as reformas introduzidas na Igreja e a despeito da incredulidade que ganha cada vez maior terreno.

Nada obstante, sucede facilmente que este conhecimento da verdadeira natureza da vida desaparece com as circunstâncias que o produziram e que o querer-viver ressuscita, conduzindo consigo o caráter primitivo. Assim é que vemos Benvenuto Ceilini, dotado de paixões ardentes, converter-se duas vezes, a primeira na prisão e a segunda durante grave enfermidade, para recair no seu modo habitual de viver, apenas as suas desgraças se acabavam. Falando em termos gerais, a negação da vontade não resulta por necessidade da dor, como o efeito da causa: a vontade permanece livre. Porquanto é precisamente este o único ponto em que o livre-arbítrio aparece diretamente no fenômeno. Donde esse estupor que vimos expresso com tanta energia por Asmus (Matias Claudius), a propósito da metamorfose transcendental. Em face de qualquer dor pode-se admitir uma vontade superior em energia e, portanto, indomável. A tal respeito narra Platão, no Fédon, que homens condenados ao suplício tinham passado seus últimos momentos na orgia e na lascívia, perseverando, assim, até à morte na afirmação da vida. Shakespeare nos pinta no cardeal de Beaufort o fim espantoso dum celerado que morre na agonia do desespero, porque nem a morte nem os sofrimentos puderam despedaçar uma vontade dilatada até a extrema perversidade.

Quanto mais é a vontade impetuosa, tanto mais é o fenômeno do seu conflito fortemente caracterizado, e portanto, maior a dor. Um mundo que fosse o fenômeno dum querer-viver inconfrontavelmente mais violento que aquele em que nos encontramos, tornar-se-ia, também, o teatro de sofrimentos outro tanto maiores: seria o Inferno.

Pois o que o sofrer, enquanto mortifica a vontade e leva à resignação, possui virtualmente uma força santificante, facilmente se explica com uma grande desventura ou uma dor profunda, de per si mesmas inspiram certo respeito. Mas o homem desgraçado é inteiramente respeitável somente quando, contemplando os males cuja sucessão lhe cobriu o curso da existência, ou chorando alguma grande e incurável dor, fixa a atenção, não sobre a série de acontecimentos que lhe imergiram a vida na tristeza, nem sobre a desventura por que foi atingido individualmente — porque até aqui o conhecimento lhe está sempre dominado pelo princípio de razão e circunscrito ao fenômeno particular; ele deseja ainda a vida, mas não a quer nas condições atuais; não se tornará plenamente respeitável senão quando o seu panorama visual se estender do particular ao geral, quando considerar o seu querer individual como exemplo da dor universal; erguer-se-á, assim, até ao gênio da perfeição moral e um caso único representar-lhe-a milhares de casos (Goethe); e então somente, é que a contemplação da vida em geral, que ele compreenderá ter a dor por essência, o conduzirá à resignação. Eis porque no Torquato Tasso, de Goethe, a princesa induz ao respeito: narrando os cuidados e angústias da sua vida e da vida dos seus, neles não vê senão a imagem da dor universal.

Um caráter muito nobre se apresenta sempre ao pensamento velado de tranquila melancolia, a qual não é o fastio constante pelas contrariedades de cada dia (que esta seria uma atitude pouco digna e demonstraria antes maus sentimentos); é uma tristeza nascida, fora de qualquer consideração egoísta, da consciência de que neste mundo todos os bens não são mais que vaidade e toda existência não é mais do que dor. Todavia, tal consciência pode despertar-se a princípio em consequência de desventuras puramente pessoais, especialmente quando provêm duma dor única e excessiva. Assim viu Petrarca um amor sem esperança dar-lhe a vida inteira à mercê dessa tristeza resignada cujos acentos nos comovem tão profundamente nas obras suas: a Daphnis que perseguia subtraiu-se a seus braços para, em compensação, deixar-lhe louros imortais. Quando algum destino irrevogável recusa ao ser humano a realização dalguma grande esperança e começa assim a quebrar a vontade, esta acaba por tornar-se mais ou menos indiferente por tudo o mais, e o caráter se volve doce, triste, nobre e resignado. E quando, finalmente, a aflição não tem objeto determinado, quando se refere ao conjunto da vida, então se origina uma espécie de recolhimento, um retirar-se e um desaparecer grau a grau da vontade, movimento que pode chegar até a minar surdamente, mas profundamente, o próprio fenômeno da vontade, o corpo; o homem sente destacarem-se pouco a pouco os seus liames e tem o íntimo pressentimento da morte que se aproxima e que virá bem cedo dissolver-lhe duma só vez o corpo e a vontade; daí vem a alegria secreta que acompanha tal tristeza e é essa, eu creio, que o mais melancólico de todos os povos exprimiu com the joy of grief — a alegria da dor. Mas aqui se levanta um escolho, a sensibilidade, tanto na própria vida, como na sua pintura, a poesia: porquanto chorar e gemer incessantemente, sem ter suficiente virilidade para elevar-se até à resignação, é perder a um tempo o céu e a terra, para conservar apenas lacrimoso sentimentalismo. A dor é o caminho da salvação e, portanto, respeitável somente se reveste a forma do conhecimento puro, para conduzir depois à verdadeira resignação na qualidade de sedativo da vontade. Sob tal forma, o espetáculo de uma grande desventura nos inspira um respeito que se aproxima do que temos pela virtude e a grandeza d’alma; e ao mesmo tempo a felicidade que provamos nos parece uma repreensão. Não podemos impedir-nos de considerar todo cuidado, nosso ou alheio, como um primeiro passo que conduz, ou pode conduzir, à virtude e à santidade e vice-versa as alegrias e satisfações do mundo como caminho que nos afasta da salvação. Tanto isto é verdadeiro que quando observamos atentamente um homem atassalhado de grande angústia, física ou moral, ou mesmo quando vemos alguém com o suor na fronte, consumir-se em labores corporais que requerem esforços extremos, sem nunca dar demonstração de impaciência e sem proferir um lamento — quando vemos, repito, homens em tais condições, parece-nos tratar-se de doentes que, submetidos a dolorosos tratamentos, aceitam voluntária e alegremente as dores da operação com a certeza de que quanto mais sofrem, tanto mais destroem em si os elementos mórbidos, e de que, portanto, o sofrer do momento é a medida do seu restabelecimento.

De todas estas considerações segue-se que a negação do querer-viver, aliás dita resignação absoluta ou santidade, resulta sempre da quietação da vontade depois que reconheceu o seu conflito consigo mesma e a vaidade das suas aspirações, que se exprimem essencialmente por meio das dores de todos os seres viventes. A diferença, por mim apresentada, sob a imagem de dois caminhos que conduzem a tal conhecimento, consiste em que um conduz a ele por meio da dor simplesmente reconhecida nos outros, dor de que vimos apropriar-nos voluntariamente, depois de haver decifrado o enigma do princípio de individuação, enquanto o outro nos faz atingi-lo por meio da dor sentida e pessoal. Sem negação total da vontade não há verdadeira salvação, libertação real do mundo e das suas misérias. Até que a não tenhamos atingido, outra coisa não seremos senão essa mesma vontade: uma existência sempre instável, uma aspiração sempre vã e sempre desiludida, um mundo de representação sempre repleto de dores, eis os fenômenos dessa vontade, eis o nosso fado comum irrevogável. Porquanto sabemos que uma vida eterna está assegurada ao querer-viver e que a sua verdadeira, a sua única forma é o presente, ao qual, qualquer que seja o modo por que o nascimento e a morte governem o mundo e a despeito de todo o seu poder, ninguém pode ser subtraído. O mito hindu exprime esse pensamento com dizer que esses serão regenerados. A grande diferença moral entre os caracteres deriva de estar o mau infinitamente longe desse conhecimento que induz à negação da vontade. Donde resulta que ele é verdadeiramente e realmente a vítima de todas as dores do mundo, mesmo das que não existem senão como possíveis, visto que o estado pessoal da felicidade que talvez usufrua no momento é um fenômeno, uma ilusão criada por Maya, graças ao princípio de individuação: fortuna sonhada pelo mendigo. O sofrimento que inflige aos outros, arrastado pelos ímpetos desenfreados do seu querer, são a medida dos que, por sua experiência, não podem induzi-lo a romper nem a negar definitivamente a sua vontade. Ao passo que o amor puro e verdadeiro, bem como o sentimento espontâneo da justiça, vêm da penetração do princípio da individuação: quando esta é completa, produz a santidade absoluta e a salvação, de que são fenômenos externos, como vimos, o estado de resignação total, a serenidade indestrutível e a alegria profunda ao aproximar-se da morte.

O SUICÍDIO

Até aqui havemos exposto suficientemente nos limites das nossas considerações, essa negação do querer, que é o único ato de livre-arbítrio que se patenteia no fenômeno humano e que constitui aquilo que Asmus denomina a metamorfose transcendental. Bem diferente de tal aniquilamento da vontade é o aniquilamento do seu fenômeno, o indivíduo, isto é, o suicídio. Longe de negar a vontade, este a afirma energicamente. A negação não consiste em apartar os males da vida e sim as alegrias. O suicida quer a vida; não está descontente senão das contradições em que a vida se lhe oferece. Destruindo o corpo não renuncia ao querer-viver, mas unicamente ao viver. Deseja a vida, aceitaria a existência e a afirmação fácil do seu corpo, e é porque um concurso estranho de circunstâncias não lhas concede que sofre até esse ponto. O próprio querer-viver se encontra de tal modo impedido no fenômeno desse indivíduo isolado que não pode a sua mercê desenvolver nela as suas aspirações. Então toma uma resolução conforme à sua natureza de coisa em si, a qual está fora das categorias do princípio de razão e para a qual o indivíduo é de todo indiferente, pois que ela mesma permanece salva do nascer e do morrer e constitui a essência da vida universal. É nesta certeza íntima e firme que nos permite viver sem temer constantemente a morte, isto é, na certeza de que a vontade não faltará nunca ao fenômeno, apoia-se o ato do suicídio. O querer-viver se manifesta, pois, tanto no fato do suicídio (Çiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishnu) e na vontade da procriação (Brama). Eis o significado íntimo da unidade de Trimurti — o homem é a Trimurti completa; que mostra, entretanto, ora uma ora outra de suas três cabeças. A relação entre o suicídio e a negação da vontade é a mesma que subsiste entre a coisa particular e a ideia. O suicida nega o indivíduo e não a espécie. Repito que, estando a vontade de viver assegurada in aeternum, e sendo a dor a essência da vida, suicidar-se é um ato inútil e insensato; destrói arbitrariamente o fenômeno individual, enquanto a coisa em si permanece intacta. Assim também o arco-íris permanece imóvel, porquanto rápidas se sucedem as gotas d’água que momentaneamente o levam. Mas o suicídio é, ao mesmo tempo, o colpum-magistri de Maya, porquanto nos apresenta a imagem da mais saliente contradição do querer-viver consigo mesmo. Já acentuamos, também, esta contradição nos fenômenos inferiores da vontade, nos quais se mostra na luta incessante das manifestações de todas as forças naturais, bem como de todos os seres organizados entre si, lutando para se arrancarem mutuamente a matéria, o espaço e o tempo. Encontramos o mesmo conflito, cada vez mais claro e terrível, em toda a escala ascendente das objetivações da vontade; e encontramo-lo, finalmente, no grau mais elevado, na Ideia humana, e dotado aqui duma força tão poderosa que já não são apenas os representantes individuais da mesma ideia os que mutuamente se confrangem e atassalham. É o indivíduo que declara guerra a si mesmo; o ardor com que este quer a vida e o ímpeto com que se lhe atira para remover-lhe os obstáculos, isto é, a dor, chegam até a fazer com que se destrua a si mesmo e então sucede que a vontade individual, por ato próprio, prefere suprimir o corpo, que não é senão a vontade mesma em estado visível, a deixar-se lacerar pela dor. Assim, é porque não pode cessar de querer que o suicida cessa de viver. A vontade se afirma nele por meio da supressão do seu fenômeno uma vez que não pode afirmar-se de outro modo. E, contudo, a dor a que se subtrai podia conduzi-lo à renúncia e à salvação. Pode-se compará-lo, sob tal aspecto, ao doente que se recusa a deixar que se termine uma operação dolorosa, já começada, da qual facilmente lhe dependia a saúde, preferindo conservar o próprio mal. Vem-lhe a dor e oferece-lhe a oportunidade de romper com a vontade; mas ele a repele e aniquila o seu fenômeno, o seu corpo, para que a vontade permaneça intacta. Eis o motivo pelo qual quase todos os sistemas de moral, filosóficos ou religiosos, condenam o suicídio, embora não lhe saibam dar senão razões bizarras e sofísticas. Mas é certo que se considerações puramente morais houverem dissuadido um homem do suicídio, em fundo, o senso desta vitória sobre si mesmo (qualquer que fora o conceito com que a razão procurava explicar-lhe) não pode ser senão o seguinte:

Não quero subtrair-me à dor; é preciso que ela me ajude a aniquilar um querer-viver cujo fenômeno é coisa tão deplorável. A dor deve fortificar em mim o conhecimento incipiente da verdadeira natureza do mundo, para que se torne a anuladora da minha vontade e a origem da minha salvação eterna.

É sabido que de tempos a tempos sucedem casos em que o suicídio vai ainda além: vê-se um pai matar os filhos que adora, antes de si. Se considerarmos que a consciência, a religião e todos os conceitos admitidos universalmente lhe mostram o assassínio como o maior dos delitos; se considerarmos ainda quem pratica tal delito justamente na hora da morte, sem que se possa descobrir na sua ação o mínimo motivo egoísta, conviremos com admitir que a única explicação possível é que o indivíduo, reconhecendo diretamente o próprio querer nos filhos, mas desviado pela ilusão que o faz tomar o fenômeno pela coisa em si, e ademais, comovido profundamente pelo conhecimento adquirido acerca das misérias da existência, imagina poder suprimir simultaneamente o fenômeno externo e a sua essência e toma então a resolução de libertar-se para sempre da vida e dos cuidados desta, libertando igualmente a seus filhos, nos quais se vê reviver diretamente.

Erro análogo a este seria acreditar que seja possível atingir por outros meios o resultado procurado pela castidade voluntária. Por exemplo, impedindo as intenções da natureza da fecundação, ou ainda, em consideração aos cuidados da vida, provocando a morte do neonato, em lugar de aplicar-se com todo o esforço a conservar a existência a tudo quanto aspira a viver. Com efeito, quando o querer-viver está presente, força alguma poderá rompê-lo porque somente ele é o elemento metafísico, a coisa em si, e a violência não pode aniquilar senão o seu fenômeno, aparecido num lugar e num tempo determinado. Mas não há nada que possa destruir o próprio querer-viver, exceto a inteligência. O caminho único de salvação é que a vontade apareça livremente a fim de que na própria imagem aprenda a conhecer a sua verdadeira essência. Esclarecida por esse conhecimento, pode suprimir-se a si mesma e simultaneamente a dor, companheira inseparável do seu fenômeno. A violência material, a esterilização dos germes, a destruição dos recém-nascidos, o suicídio são para tanto absolutamente ineficazes. Está precisamente nos desígnios da natureza que a vontade chegue à luz, porquanto somente graças à luz poderá galgar à libertação. Por isto dizia que é preciso favorecer de toda maneira os fins da natureza desde o momento em que o querer-viver, sua íntima essência, se decidiu a aparecer.

Há um gênero de suicídio assaz diferente do comum, mas que não foi ainda suficientemente observado. Entendo falar desses ascetas que, chegados ao grau supremo da renúncia, se deixam morrer pela fome; porém, como uma extrema exaltação religiosa e assim também numerosas superstições acompanham de ordinário o fenômeno, difícil se torna explicá-lo claramente. Parece, contudo, que o completo abandono da vontade pode chegar até à supressão desse resto, que é indispensável para manter com a alimentação o vegetar do organismo. Por longe que esta espécie de suicídio nasça do querer-viver, um asceta tão completamente resignado não cessa, ao oposto, de viver senão porque cessou absolutamente de querer. E não se pode imaginar que escolha para tal fim outro gênero de morte além da inanição (a menos que alguma superstição não lhe sugira outro), porquanto a intenção de abreviar o tormento seria já em realidade um grau de afirmação da vontade, os dogmas, que dirigem a razão de tal penitente, inspiram-lhe a ilusão de que esse jejum a que o conduz uma tendência interna, lhe é ordenado por algum ser de natureza superior. Disto se encontram exemplos antigos nas seguintes obras: Coleção de Fatos Sobre a História Natural e Sobre a Medicina, Breslau, 1799, pág. 365 e segs. — Bayle, Nouvelles de la République des Lettres, 1685, pág. 189 e segs. — Zimmerman, De Solitudine, vol. 1, pág. 182. — Houttuyn, relação inserta na Histoire de l’Académie des Sciences, de 1764, e reproduzida na Sammlungfiur Praktísche Aertze, vol. I, pág.69 — Für Praktische Heilkunde, de Hufeland, vol. 10, pág. 181 e vol. 48, pág. 95 — no Zeztschrift für Physische Aerzte, de Nass, 1809, vol. III, pág. 460; no Edinburg Medical and Surgical Journal, 1809, vol. V, pág. 319. — Em 1833 os jornais noticiaram que em janeiro o historiador inglês Dr. Lingard se havia deixado morrer de fome em Louvres; a notícia foi posteriormente retificada, no sentido de que não se tratava dele mas de um parente seu. Todas essas narrações nos apresentam a maior parte desses indivíduos como loucos, sem que nos seja possível verificar a exatidão dessa asserção. Todavia, quero aqui relatar uma história recente do mesmo gênero, ainda que não fosse mais do que para conservá-la como raridade e como exemplo dum fenômeno surpreendente da natureza humana que vem ao menos na aparência em apoio das minhas explicações e que parece de si mesmo não poder ser doutro modo explicado. O fato é referido pelo Nurnberg Korrespondenten de 29 de julho de 1813, com as seguintes palavras:

Escrevem-nos de Berna que nas proximidades de Thurnen foi descoberto, numa cabana, ao fundo duma espessa floresta, o cadáver dum homem em estado de decomposição tal que se lhe faz remontar a morte para cerca de um mês; as vestes que trazia não fornecem indício algum que permita julgar a que condição pertencia; estavam-lhe perto duas camisas de tecido finíssimo. O objeto mais importante, porém, é uma Bíblia interfolhada, cujas páginas levam anotações em parte provenientes do defunto. Ele marcou a data de sua partida de casa (sem dizer o lugar) e acrescentou que o espírito de Deus o mandou para o deserto a fim de pregar e jejuar, que durante o caminho não comeu pelo espaço de sete dias, depois dos quais tomou algum alimento. Havendo-se estabelecido na cabana recomeçou a jejuar durante certo número de dias. Depois do que, anotou cada dia com um sinal: há cinco sinais e depois, provavelmente, o solitário morreu. Foi também encontrada uma carta a um cura sobre um sermão que o defunto tinha ouvido, mas o endereço faltava.

Entre semelhante morte proveniente dum ascetismo extremo e o suicídio ocasionado pelo desespero, devem, com certeza, existir graus intermediários, conquanto profundezas, obscuridades e complicações tais que esclarecê-las e resolvê-las será sempre coisa árdua até o sumo grau.

LIBERDADE DA VONTADE

Poder-se-ia crer que toda esta exposição finalmente terminada, sobre aquilo que eu chamo a negação da vontade, fosse irreconciliável com as minhas considerações anteriores, em que estabelecia que a motivação é, não menos que todas as outras formas do princípio de razão, sujeita à necessidade; que os motivos, como todas as causas, não são senão causas ocasionais que oferecem meios ao caráter de manifestar a sua essência com todo o rigor duma lei natural; ao passo que, fundando-me em tudo isto, negava a liberdade como liberum arbitrium indifferentiae. Bem longe de anular agora o que antes estabeleci, confirmo-o. A liberdade propriamente dita pertence unicamente à vontade como coisa em si e não como fenômeno, cuja forma essencial é sempre o princípio de razão, elemento de toda necessidade. O único caso em que esta liberdade se torna visível diretamente no mundo real é aquele em que põe termo ao fenômeno; mas como este no quanto é elo do concatenamento causal, isto é, corpo vivente, continua a existir no tempo que não contém senão fenômenos, a vontade que se manifesta em tal corpo se coloca em contradição com ele, porque nega aquilo que afirma. Vemos, por exemplo, as partes genitais, representantes visíveis do instinto sexual, manterem-se em plena saúde e o homem, entretanto, mesmo no mais profundo do seu ser, não querer absolutamente satisfações carnais; e contudo, o corpo lá está, expressão visível do querer-viver e a despeito disso os motivos que favorecem esse querer permanecem ineficazes, e a dissolução do corpo, o fim do indivíduo, isto é, os mais enérgicos impedimentos da vontade natural são desejados e aceitos de bom grado. A contradição entre aquilo que afirmei, por um lado, sobre a necessidade com que a vontade é determinada pelos motivos em razão do caráter, e aquilo que eu dizia sobre a possível supressão total da vontade, tolhendo desse modo toda a eficácia aos motivos, não é, pois, senão a enunciação na linguagem, da razão filosófica, da contradição real que se produz quando a liberdade da vontade em si, dessa vontade que não conhece necessidade, intervém diretamente no próprio fenômeno que é produzido, inteiramente pela necessidade. Para conciliar estas contradições basta refletir que a disposição interna que subtrai o caráter ao império dos motivos não vem diretamente da vontade, mas da inteligência que mudou de natureza. Efetivamente, enquanto o conhecimento estiver sujeito ao princípio de individuação, enquanto se guiar pelo princípio de razão, o poder dos motivos será irresistível; mas apenas o princípio de razão haja sido penetrado, apenas se tenha compreendido diretamente existir uma vontade única, a mesma em todos os lugares, que constituiu a Ideia e a essência da coisa em si, apenas em tal conhecimento haja sido atingida a quietação absoluta do querer, os motivos perdem toda a força, porque aquela forma de inteligência que poderia deixar-se influenciar por eles desapareceu e foi substituída por um conhecimento de diferente espécie; o caráter não pode nunca, é verdade, modificar-se nos pormenores; deve, com os rigores duma lei natural, cumprir as várias ordens da vontade da qual é o fenômeno de conjunto. Mas é precisamente este conjunto, isto é, o próprio caráter, o que pode ser de todo anulado pela conversão da vontade. É esta a modificação que havia tão profundamente perturbado a Asmus, que a qualificava metamorfose radical e transcendental: a igreja cristã a qualifica muito bem a regeneração, denominando graça eficaz ao conhecimento que lhe dá origem. Igualmente, não se tratando aqui de modificação, e sim de supressão completa, compreende-se por que os caracteres que tinham maiores diferenças antes de tal supressão apresentam agora a maior semelhança, ainda que continuando, em razão dos seus conceitos e dos seus dogmas, a sustentar linguagens diversas.

Entendido assim, esse filosofismo do livre-arbítrio, afirmado e contestado a seu turno sem trégua, tem um fundamento; como também não falece em significado, nem e valor, o dogma da Igreja acerca da eficácia da graça e da regeneração. Mas logo, sem que nos apercebamos, vemo-los cedo confundirem-se e podemos, então, compreender estas palavras do Ilustre Malebranche: “La liberté est un mystère”. Efetivamente, aquilo que os místicos cristãos denominam graça eficaz e regeneração, constitui precisamente a única manifestação imediata do livre-arbítrio. Tal manifestação não se produz senão depois que a vontade, reconhecendo a natureza do seu próprio ser, lhe extrai um sedativo que a subtrai ao império dos motivos; estes fazem parte duma esfera de conhecimento positivamente diversa, cujos objetos não são mais que fenômenos. Uma liberdade que pode manifestar-se em semelhantes condições é o maior privilégio do homem; ela falta inteiramente aos animais, porque exige um raciocínio que permita considerar o conjunto da existência independentemente da impressão do momento. O animal é de fato incapaz de liberdade; não há para ele nem a possibilidade duma determinação eletiva propriamente dita, ou seja, meditada e procedida por conflito de motivos, os quais não poderiam ser, para tanto, senão representações abstratas. Com essa mesma necessidade com que cai a pedra, o lobo faminto enterra os dentes na carne da presa, sem que sua inteligência possa jamais reconhecer que são idênticos, o caçador e a caça. A necessidade é o domínio da natureza e a liberdade o da graça.

Pois que a renúncia espontânea da vontade deriva do conhecimento, e o conhecimento em si é independente do querer espontâneo, segue-se que tal supressão da vontade, tal libertação não se adquire pela força nem por “parti-pris”; ela nasce da relação íntima entre a inteligência e a vontade humanas. Nasce imprevista e como dum solavanco vindo de fora. Por isso a Igreja a denomina efeito da graça; e como na doutrina cristã, para ser eficaz, a graça deve ter sido aceita, assim o efeito da quietação, em última análise, é um ato de livre vontade. Efeito da graça pois que sacode e transforma radicalmente a natureza do homem. Este repele o que até então desejava com tanta ansiedade; realmente um ser de todo diferente substitui agora o homem de antes, resultado da graça que a Igreja indica com uma expressão muito conveniente; chama-a: a regeneração. Por homem natural, a quem recusa qualquer faculdade para o bem, entende ela esse querer-viver, cuja negação é necessária a quem quer resgatar-se duma existência como a deste mundo. Porquanto, sob tal existência, se oculta algo de todo diferente que não podemos, todavia, adquirir senão depois de haver sacudido o jugo do mundo.

Não é do ponto de vista dos indivíduos, ou seja, partindo do princípio de razão, mas sim do ponto de vista da Ideia humana na sua unidade, que as doutrinas cristãs simbolizam por meio de Adão a natureza, a afirmação do querer-viver; o que pôs o mundo à mercê da dor e da morte é o pecado original que passou até nós. Por outras palavras, é a nossa identidade, na Ideia humana, com Adão, identidade que se manifesta no tempo por meio do liame da geração. Inversamente, simboliza a graça, a negação da vontade, a salvação, por meio de Deus feito homem, o qual, isento de todo pecado, isto é, do querer-viver, não pode ser originário da enérgica afirmação da vontade, nem ter um corpo semelhante ao nosso que é somente querer concreto, fenômeno da vontade. Nasceu de virgem imaculada e não tem mais que um simulacro de corpo. Este último ponto era sustentado pelos Docetas, isto é, por Padres da Igreja, que nisto se mostravam perfeitamente consequentes. Apeles, de modo especial, ensinava esta doutrina; contra ele e seus discípulos levantou-se Tertuliano. Mas o próprio Santo Agostinho comentou a controvertida passagem do Novo Testamento: “Deus enviou seu filho em semelhança do pecado da carne” (Rom. VIII, 3). Eis o comentário: Na verdade, não era carne do pecado, pois não nascera do prazer carnal: mas, no entanto, existia a semelhança do pecado da carne, porque era mortal. Diz depois na obra intitulada Opus Imperfectum, 1, 47, que “o pecado original é pecado e punição ao mesmo tempo. Ele existe já na criança recém-nascida, mas não se mostra senão na medida em que ela cresce. Todavia se deve procurar na vontade do pecador a origem do próprio pecado. Este pecador é Adão, mas nele todos nós havemos existido: Adão foi infeliz e com ele somos infelizes também”. — Em realidade o dogma do pecado original (afirmação da vontade) e da redenção (negação da vontade) é a grande verdade que forma a substância essencial do cristianismo; o resto, na maior parte, não é mais que forma e invólucro, ou simples acessório. Assim, deve-se sempre considerar Jesus Cristo do ponto de vista geral, como símbolo ou personificação da negação do querer-viver e não do ponto de vista individual, como no-lo mostra a história alegórica nos Evangelhos, nem como nos é apresentado segundo os dados reais mais verossímeis que serviram de base à lenda das Sagradas Escrituras. Nenhuma dessas duas versões pode satisfazer inteiramente. Não podemos ver-lhes senão o meio destinado a fazer penetrar a outra maneira de compreender o Cristo na mente do vulgo para o qual é sempre necessária alguma coisa de positivo. — Não devemos ocupar-nos aqui com o fato de o cristianismo, perdendo o seu verdadeiro significado, haver degenerado num trivial otimismo.

Há também no cristianismo outro dogma primitivo e evangélico, que Santo Agostinho, de acordo com os chefes da Igreja, defendeu contra as opiniões restritas dos Pelagianos e que Lutero, como o diz ele mesmo formalmente no seu livro De Servo Arbítrio, se havia atribuído por missão principal restabelecer, purgando-o dos erros: é o dogma que ensina que não há livre-arbítrio, que a tendência original da vontade a leva ao mal, que suas obras são sempre culposas e insuficientes, que não podem nunca dar satisfação à justiça; que, portanto, é pela fé somente e não pelas obras que se chega à salvação e que essa fé mesma não nasce em nós duma intenção inconcussa e duma vontade livre, mas por efeito da graça, que se produz sem a nossa participação e como por meio duma influência externa. Este princípio verdadeiramente evangélico, com os que havemos recordado acima, faz parte desses dogmas que o espírito limitado e grosseiro do século rejeita como absurdos ou desfigura. Malgrado Santo Agostinho e malgrado Lutero, a crença de hoje em dia, embebida pelas ideias burguesmente mesquinhas do Pelagianismo, que não é mais do que o moderno racionalismo, repele estas profundas verdades, única essência própria ao cristianismo total, no seu verdadeiro significado, para apoiar-se no velho dogma tradicional judaico, que apenas um liame histórico une às doutrinas cristãs, fazendo disto a pedra fundamental da religião. [24] Mas nós estamos em condições de ver o quanto a verdade contida em tais doutrinas concorda plenamente com o resultado das nossas investigações. Vemos, efetivamente, que a virtude sincera e a santidade da alma têm imediatamente a sua origem não na vontade premeditada (as obras) e sim no conhecimento (a fé), precisamente como o havemos deduzido do nosso princípio fundamental. Se para chegar à bem-aventurança bastassem as obras, que nascem todas de motivos e de projetos premeditados, a virtude não seria mais do que um egoísmo prudente, metódico, uma perspicácia de longo alcance, o que se pode desenvolver como se queira. Quanto à fé, à qual a Igreja promete a salvação, consiste em crer que a queda do primeiro homem nos pôs à mercê do pecado, da morte, da perdição; que a graça do divino intercessor, que toma sobre si a imensidade dos nossos pecados, pode sozinha salvar-nos sem que tenhamos mérito algum (pessoal) porque a conduta pessoal é sempre guiada pela intenção (pelos motivos); e que as obras assim originadas, pela sua essência e natureza, não podem nunca justificar-nos precisamente porque a conduta deriva de intenções e de motivos; não é mais do que opus operatum. O fundamento da fé está, portanto, antes de tudo na convicção de que a condição humana é desde a origem um estado essencialmente de perdição, do qual temos necessidade de ser resgatados; que pertencemos pois ao mal a que estamos estreitamente vinculados; que nossas obras, conformando-se às prescrições da lei, isto é, dos motivos, não podem nunca satisfazer à justiça, nem salvar-nos; que a salvação pode vir somente da fé, ou seja, dum conhecimento transformado, e que a fé mesma não entra em nós senão por meio da graça, isto é, vinda de fora. Por outras palavras, que a salvação é coisa estranha à nossa pessoa, produzindo-se somente depois que o homem chegou à negação e ao abandono de si mesmo. Praticar boas obras, obedecer à lei, porque é lei, são coisas que nunca nos podem justificar por se tratar sempre de ações promovidas por motivos. Lutero (De Libertate Christiana) sustenta que as obras nascem espontaneamente uma vez estabelecida a fé, da qual são os sintomas ou os frutos; diz que, por si mesmas, não têm mérito e que não podem proporcionar a justificação, nem exigir recompensa. É preciso que se produzam espontânea e gratuitamente. Vimos, também, ressaltar de nossas considerações que com a compreensão progressiva do princípio de individuação, nasce primeiramente o sentido espontâneo da justiça, depois o amor que se eleva até à supressão absoluta de qualquer egoísmo e finalmente à resignação ou negação da vontade.

Chamei em meu auxílio todos estes dogmas da religião cristã, conquanto sejam por si mesmos estranhos à filosofia, unicamente para mostrar que se a moral, que deriva do nosso estudo e que está em perfeita harmonia e em perfeita concatenação com toda a série das nossas considerações, resulta nova talvez na aparência e não foi ainda apresentada sob esta forma, é bem antiga quanto ao fundo porque concorda inteiramente com a essência do cristianismo, que lhe contém todos os elementos mais importantes, elementos que também se podem encontrar sob formas muito diversas nas doutrinas e preceitos morais dos livros santos hindus.

Tais dogmas da igreja cristã serviram-nos ao mesmo tempo para interpretar e elucidar a contradição aparente que existe, em primeiro, lugar entre a necessidade que rege as manifestações do caráter quando os motivos são dados (domínio da natureza), e em segundo lugar, entre a vontade em si, livre para negar-se e suprimir-se a si mesma, e o caráter, com a necessidade que sobre ele têm os motivos (domínio da graça).

Assim terminei o meu esboço sobre os fundamentos da moral, que encerra o desenvolvimento completo daquela ideia única que tinha por finalidade expor. Chegado aqui, não quero dissimular a censura que se pode mover contra esta última parte; atenho-me somente a estabelecer que é inerente à essência da coisa, sem que seja possível preveni-lo. A censura consiste no fato de que, tendo as nossas considerações levado a reconhecer na perfeita santidade a negação e a supressão de qualquer querer, com o fim de chegar, assim, a libertar-nos dum mundo essencialmente miserável, tudo isto, em última análise, acaba com precipitar-nos no abismo do Nada.

O NADA

Começo com fazer observar que a noção Nada é essencialmente relativa, referindo-se sempre a um sujeito determinado para negá-lo. Em geral os filósofos (Kant entre outros) aceitam essa relatividade unicamente no tocante àquilo que se chama nihil privatium, com a diferença para nihil negativum. O primeiro designaria tudo quanto vem expresso com o sinal – em oposição ao que se exprime com o sinal + em condições tais, porém, que do ponto de vista contrário, este – poderia tornar-se um +; e reservar-se-ia a expressão nihil negativum para indicar aquilo que fosse um Nada que resultasse tal sob todos os aspectos, e que seria dado como exemplo duma contradição lógica, a qual se aniquilaria por si. Mas, observando mais de perto, vê-se que o nada absoluto, o nihil negativum propriamente dito, não é concebível pela razão; qualquer nulidade deste gênero se volve nihil privativum, um nada relativo, desde o momento em que se faz entrar na extensão dum conceito mais vasto, ou em que se contempla dum ponto de vista mais elevado. O nada não é compreendido como nada, senão na sua relação com alguma coisa. Ele supõe sempre a existência de tal relação e, portanto, também a existência de alguma coisa. A própria contradição lógica é apenas um nada relativo. Ainda que não possa ser pensada pela razão, nem por isso é um nada absoluto. Porquanto é uma simples combinação de palavras, um exemplo de algo impossível de pensar-se, de que se tem necessidade em lógica para mostrar as leis do pensamento. Por isso quando com tal fim se recorre a um exemplo igual, a atenção se dirige ao non sensus como representante da coisa positiva procurada no momento, e passa-se por cima do sensus, que é a coisa atualmente negativa. Vemos, pois, que o nihil negativum, ou nada absoluto, se torna privativum, ou relativo, quando se subordina a um conceito superior e que pode sempre mudar o seu sinal pelo daquilo que nega, fazendo-se este então negativo. Tudo isto concorda inteiramente com o resultado da discussão dialética tão árdua, que Platão nos apresenta no Sofista (pág. 277-287, ed. Bipontina):

Cum enim ostenderemus alterius ipsius naturam esse perque omnia entia divisam atque dispersam invicem; tunc partem eius oppositam et, quod cuiusque ens est, esse ipsum revera non ens asseruimus. (Quando então mostrarmos que a natureza do outro e de si próprio por sua vez se divide e se dispersa por todos os seres; só então afirmaremos que o seu oposto, visto que é o ser de cada um, é realmente o próprio não-ser.)

Aquilo que é universalmente admitido como positivo, aquilo que se diz existente em realidade e cuja negação se exprime com o conceito de nada no seu significado mais extenso, é precisamente o mundo da representação, que eu demonstrei ser a objetividade, o espelho da vontade. Este mundo, esta vontade somos nós mesmos; a representação toda em geral é uma das suas faces; a forma de tal representação é o tempo e o espaço; e sob este ponto de vista tudo aquilo que é, deve ser em qualquer lugar e em qualquer tempo. Negação, supressão, conversão da vontade, implicam supressão e desaparição da sua imagem, o mundo. Desde o momento em que não a vemos mais em tal espelho, perguntamo-nos, porém inutilmente, que destino pode ter tido, e como ela já não possui as qualidades do tempo e do espaço, desolamo-nos e dizemos que se foi perdida para o Nada.

Se nos fosse possível mudar o ponto de vista, os sinais seriam invertidos e então aquilo que existe atualmente sob nossos olhos seria o Nada, e o Nada de hoje, aquilo que existisse. Mas enquanto formos o próprio querer-viver, a outra realidade não poderá nunca ser compreendida e expressa por nós, senão como coisa negativa; porquanto o axioma de Empédocles o símil não e conhecido senão pelo símil nos tolhe qualquer possibilidade de conhecer tal realidade, permitindo-nos, entretanto, o mesmo axioma o conhecimento de toda a nossa realidade atual, isto é, do mundo como representação, ou da objetividade da vontade.

Se todavia se quisesse a todo transe criar um conceito positivo qualquer, para aquilo que a filosofia não pode exprimir senão de modo negativo denominando-o a negação da vontade, seria preciso referir-se àquilo que provam os homens que atingiram a perfeita supressão do querer, àquilo que se designa por estado de êxtase, de arroubo, de iluminação, de absorção em Deus etc., conquanto tal estado não seja um conhecimento propriamente dito, porque não se lhe encontra a forma de separação em sujeito e objeto e porque pertence unicamente à experiência pessoal, sem poder ser comunicado externamente a outrem.

Mas nós, que nos mantemos exclusivamente no domínio da filosofia, devemos contentar-nos com a noção negativa e sentir-nos felizes por haver podido ir até ao limite extremo do conhecimento positivo. Chegamos a reconhecer que a essência do mundo é a vontade e que todos os fenômenos são apenas vontade objetiva. Estudamos a vontade em toda a sua série, desde o mais obscuro impulso inconsciente das forças naturais, até a conduta consciente do homem. Alcançado este limite não queremos agora subtrair-nos à consequência que lhe resulta, isto é, que com a livre negação, com a supressão da vontade, tudo isto simultaneamente se suprime; ficam suprimidos, então, aqueles impulsos e aquelas agitações sem trégua e sem finalidade que constituem o mundo em todos os graus objetivados; suprimidas aquelas formas diversas que se sucedem e se elevam progressivamente; suprimido com o querer, também, o conjunto do seu fenômeno; suprimidas, finalmente, as formas gerais do fenômeno, ou seja, as formas do tempo e do espaço e suprimidas, por fim, a forma fundamental de sujeito e objeto. Não mais vontade, não mais representação, não mais universo.

E então, sem dúvida, não nos fica doravante, senão o Nada. Mas não nos esqueçamos de que aquilo que se revolta em nós contra semelhante aniquilamento é a natureza que outra coisa não é senão o querer-viver, essência do homem e do universo. Este horror pelo Nada é apenas um modo diferente de exprimir que queremos ardentemente a vida, que nós não somos nem conhecemos senão o querer-viver. Todavia, desviemos o olhar por um momento da nossa indigência e do nosso horizonte em demasia limitado; levantemo-lo até aqueles homens que superaram o mundo, até aqueles homens cuja vontade, atingida a perfeita consciência de si, reconheceu-se em tudo o que existe e renunciou-se livremente a si mesma, até aqueles homens que não esperam mais do que ver desaparecer também o débil e derradeiro sopro que lhes anima o corpo; então, em lugar desse tumulto de aspirações sem finalidade, em lugar dessas passagens contínuas do desejo à inquietação, da alegria à dor, em lugar dessas esperanças sempre insatisfeitas e sempre renascentes que fazem da vida humana, até que a vontade a excite, um sonho ininterrupto, então sim, não veremos senão essa paz que é mais preciosa que todos os tesouros da razão, essa calma absoluta do espírito, essa quietude profunda, essa segurança, essa serenidade imperturbável, cujo traço Rafael e Corrégio deixaram na figura de seus santos e cuja irradiação deve ser para nós o mais completo e verídico anúncio da boa nova (Evangelium). A vontade desapareceu, só permanece o conhecimento. Somos tomados duma profunda e dolorosa melancolia quando confrontamos tal condição com a nossa, por isso que o contraste lhe faz ressaltar ainda melhor toda a incurável desolação. E contudo, a única perspectiva suscetível de nos consolar ainda, depois de nos termos convencido de que a dor inexorável e a infinita miséria são a essência desse fenômeno da vontade que se chama o mundo, é ver desvanecer-se o universo e ficar somente o Nada diante de nós, quando a vontade haja conseguido suprimir-se. Por consequência, meditar sobre a vida e os atos dos santos, se não com a observação direta, de raro possível na experiência pessoal, ao menos estudando-os como a história no-los apresenta ou como a arte no-los descreve, como um quid infalível de verdade, é para nós o único meio de dissipar o lúgubre efeito desse Nada que vemos evolar-se, como resultado final, por detrás de toda virtude e toda santidade, desse Nada que nos espanta como a crianças que a escuridão faz tremer; isto vale mais do que querer iludir esse terror, a exemplo dos Hindus, com mitos e palavras ocas de sentido, como a absorção em Brama, ou o Nirvana dos Budistas. Sim, reconhecemo-lo abertamente: o que resta depois da supressão total da vontade, para aqueles a quem, todavia, a vontade ainda anima, efetivamente é o Nada. Mas vice-versa, para aqueles em quem a vontade foi suprimida e convertida, o Nada é este mundo, tão real com os seus sóis e as suas vias-lácteas. [25]

Notas

  • [1] “Sobrevindo a inteligência, ao mesmo tempo do seio das coisas se elevará o amor.” OUPNEKHAT, trad. De Antequil Duperron, II, 216

  • [2] Isto não significa, como observaram vários tradutores de outros idiomas, que para compreender a presente obra seja necessário ter lido as três partes anteriores deste trabalho capital de Schopenhauer. Bem ao contrário, este livro é compreensível por si próprio, que doutro modo não iríamos traduzir um livro ininteligível. Esta parte do “Mundo Como Vontade e Representação” de todas é a mais objetiva e mais útil. (N. do T.)

  • [3] Os títulos dos capítulos, que não se encontram na edição alemã de Leipzig (1919), toram tirados da tradução italiana de Oscar Chilesotti, de 1888. (N. do T.)

  • [4] Os escolásticos ensinaram que a eternidade não é a sucessão sem fim, ou o princípio do tempo, mas a Hora Stante; portanto a Hora Stante ou o agora para nós é o mesmo que era para Adão; portanto, agora não difere de modo algum de então.) Hobbes, Leviathan, c. 46

  • [5] Nas Conversações com Goethe de Eckermann, 2.ª ed. vol. 1, pág. 154, diz Goethe: — O nosso espírito é um ser de natureza indestrutível; é algo que age de eternidade a eternidade. Semelha ao Sol que para nossos olhos terrenos parece morrer enquanto em realidade não morre nunca e brilha sem interrupção.” — É Goethe quem tira de mim esta comparação, e não eu dele. Estou convencido de que a empregou em tal conversação, na data de 1824, em consequência duma reminiscência, talvez inconsciente, da minha passagem supra que se encontra já textualmente na minha primeira edição, pág. 401 e repetida na pág. 528, como aqui no fim do parágrafo 65. Esta primeira edição havia-lhe sido remetida em dezembro de 1818: em março de 1819 ele me comunicou a sua aprovação por meio de minha irmã em Nápoles, onde me encontrava; a sua carta estava anexo um bilhete em que havia anotado as páginas que lhe haviam agradado de modo particular: o que prova que meu livro havia sido lido.

  • [6] N. do A.: — Os Vedas exprimem este pensamento com dizer que quando um homem morre, o seu senso da vida se confunde com o Sol, o seu odor com a terra, o seu gosto com a água, o seu ouvido com o ar, a sua palavra com o fogo, etc. (Oupné Kat V: 1); — o que exprimem também por meio duma cerimônia especial, em que o moribundo lega as próprias faculdades, os próprios sentidos um por um, ao filho, no qual desde tal momento devem continuar a existir, — (Ibidem).

  • [7] Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática.

  • [8] Existe uma tradução no Brasil do “Livre-Arbítrio”, de Schopenhauer.

  • [9] Como a edição que foi usada para digitalização mantém alguns trechos escritos em caracteres gregos, optamos por não grafá-los dado o desconhecimento da grande maioria do alfabeto grego e sobretudo pelo trabalho a mais que isto nos traria, portanto, onde estiver entre parênteses “C. g.” (Caracteres gregos), entenda-se que na edição original estavam grafados caracteres gregos que não reproduzimos. (Nota do digitalizador)

  • [10] Descartes Med. 4 — Spinoza, Ética, P. II, prop. 48 e 49, etc.

  • [11] “Isto é na verdade conquistarmo-nos a nós mesmos, quebrar as cadeias que nos martirizam o coração e acabar de um golpe com o remorso.”

  • [12] “No meio de que perigos e de que trevas se passa este pouco que nos é dado de vida!”

  • [13] “Lembra-te de conservar a tua alma igual a si mesma nos maus passos da vida; e na prosperidade, que permaneça moderada, afastada de uma alegria insolente.”

  • [14] “Enquanto o objeto dos nossos desejos está longe parece-nos acima de tudo; quando o alcançamos é diferente do que desejamos; e a sede de viver que nos mantém de boca aberta é sempre igual a si mesma.”

  • [15] “É agradável, quando o mar está bravo, quando os ventos agitam as ondas, assistir de terra aos esforços dos marinheiros: não que o sofrimento do outro seja para nós uma verdadeira alegria; mas ver de que males estamos livres, eis o que é agradável.”

  • [16] Ta twam asi que também pode dar: O que tu és.

  • [17] N. do A.: — Notemos aqui, de passagem, que o que cria a grande força de qualquer doutrina religiosa, a parte em que ela toma posse firmemente do espírito, é sempre o lado moral, não diretamente como tal, mas no que se prende intimamente a todo o resto do dogma mítico, próprio de cada religião e se confunde com o mito; pelo mito pode ser explicada a moral; de tal modo que, malgrado a impossibilidade absoluta de explicar com o princípio da razão o significado moral da conduta e, conquanto cada mito não proceda senão por virtude desse princípio, os crentes consideram o valor moral da conduta e o mito como inseparáveis, ou antes, inteiramente idênticos e veem em cada ataque direto ao mito, um ataque ao direito e à virtude. Nisto se vai tão longe que, nos povos monoteístas, o ateísmo e a impiedade se tornaram sinônimos de ausência de qualquer moralidade. Os padres veem com bons olhos tais confusões de conceitos, e é assim mesmo que esse monstro espantoso do fanatismo pôde produzir-se e dominar, não só, como se poderia crer, algumas mentes más, mas sim nações inteiras e finalmente personificar-se aqui no ocidente, coisa que para honra da humanidade só pôde suceder uma vez, na Inquisição, a qual, segundo os dados mais recentes, aliás autênticos, fez morrer em Madrid (não contando os outros numerosos covis de assassinos derramados por toda a Espanha), apenas no espaço de 300 anos, 300.000 indivíduos entre os tormentos da fogueira, por causa da fé. Devemos apressar-nos a recordar estes fatos aos zelosos sempre que pretendam levantar a voz.

  • [18] N. do A.: — Os atos são simples opera operata, diria a Igreja, ineficazes até que a graça não lhes haja dado a fé que conduz à regeneração. Disto falaremos mais adiante.

  • [19] N. do A.: — Para o homem, o direito de dispor da vida e das forças dos animais repousa sobre o fato pelo qual a dor aumenta à medida que a consciência se desenvolve e adquire clareza. Por conseguinte, a dor que o trabalho ou a morte provocam no animal é menor do que a que resultaria para o homem, se tivesse de privar-se da carne ou do trabalho dos animais. — Ele pode, pois, chegar na afirmação da sua vida até a negar a dos animais e o sofrimento infligido assim ao querer-viver na sua totalidade é menor nesta ordem de coisas do que seria na ordem inversa. Isto estabelece, ao mesmo tempo, à medida que o homem pode sem injustiça apropriar-se das forças animais. Tal medida é mui frequentemente ultrapassada, em especial no que diz respeito aos animais de carga e aos cães de caça. Contra este abuso é que se dirige a atividade da Sociedade Protetora dos Animais. A meu ver tal direito não chega nem mesmo a autorizar as vivissecções, e sobretudo as que se praticam nos animais superiores. Em compensação, um inseto está bem longe de sofrer com a morte o que sofre um homem pela sua simples mordedura. Eis o que não compreendem os Hindus.

  • [20] “Vou-me pensativo: e neste pensar, invade-me tamanha piedade por mim mesmo, que muitas vezes me leva a chorar alto, coisa a que não estava habituado.”

  • [21] Verdadeira filosofia é a que reproduz fielmente as vozes do mundo mesmo, e é escrita quase que sob o seu império: aquela filosofia que não é mais do que simulacro e reflexo do mundo, que nada lhe junta de seu, mas que unicamente repete e ressoa. — “De argumentis scientiarum, L. 2, O. 13”.

  • [22] Pequenos e grandes mistérios.

  • [23] Vide a propósito. — Floril — vol. II pág. 374.

  • [24] N. do A.: — É tão verdadeiro o que digo que se se faz abstração do dogma fundamental do judaísmo, admitindo-se que o homem não foi criado por outro ser, mas que é obra da sua própria vontade, vê-se logo desaparecer tudo quanto o dogmatismo cristão, qual foi estabelecido sistematicamente por S. Agostinho, encerra ainda de contraditório e incompreensível e que precisamente por isto provocou as diatribes dos Pelagianos. Tudo então se torna claro. Não se torna mais necessário recorrer ao livre-arbítrio nas obras (operari), pois que este existe no ser (esse), onde também se encontra o pecado no quanto é pecado original, mas a graça eficaz de fato nos pertence. Em compensação, muitas outras doutrinas do Novo Testamento, entre elas a predestinação, fundadas na dogmática de S. Agostinho, ficam absolutamente insustentáveis e desgostam-nos, tanto que sejam consideradas segundo o racionalismo hodierno. Rejeitar-se-ia assim a parte essencialmente cristã para voltar ao mais grosseiro judaísmo. Mas o erro de cálculo ou, antes, o vício original da dogmática cristã, está onde não se procura e precisamente no ponto colocado acima de qualquer exame como coisa estabelecida e certa. Sem este ponto todo o corpo das doutrinas cristãs seria racional; com ele é que se gastam a teologia e as outras ciências. Efetivamente, estudando-se a teologia de S. Agostinho na obra “De Civitate Dei”, sucede-nos o que nos sucederia se pretendêssemos manter em equilíbrio um corpo, cujo centro de gravidade lhe estivesse fora: qualquer que seja a maneira por que se volva e se revolva, o objeto há de cair sempre. Aqui, de igual modo, a despeito de todos os cuidados e de todos os sofismas de S. Agostinho, a culpa do mundo e das suas dores recaí sempre sobre Deus, que criou tudo, absolutamente tudo, sabendo bem o que sucederia. S. Agostinho mesmo se dava conta desta dificuldade com a qual muito se embaraçava, como já o disse na minha memória sobre o Livre-Arbítrio (cap. IV). Assim, a contradição entre a bondade de Deus e a miséria do mundo e a contradição entre a liberdade da vontade e a presciência divina forneceram tema inexaurível a uma controvérsia que durou um século entre os Cartesianos, Malebranche, Leibnitz, Bayle, Klarke, Arnoud e outros: controvérsia em que o único ponto posto fora de discussão era a existência de Deus, com todas as suas qualidades; na disputa não se fazia mais do que girar num círculo vicioso, tentando fazer desaparecerem estas contradições, o que nas matemáticas equivaleria a querer resolver um problema insolúvel em que alguma cifra sobra sempre, ora aqui, ora acolá, segundo se vai tentando mascará-la. Mas nenhum deles advertiu, conquanto tal se impusesse manifestamente de per si, que era preciso procurar a origem do embaraço na primeira hipótese aceita por todos. Bayle é o único que faz entrever haver-se de tal apercebido um pouco.

  • [25] N. do A.: — Este Nada é o que constitui também o Pradschna-paramita dos Budistas, o “além do conhecimento”, ou seja, o ponto em que sujeito e objeto não mais existem (vide Isaac Jacob Schmidt, Sobre o Mahayana e o Pradschna-paramita).