Dos valores

Jairo Moura

Olhando para uma fotografia, podemos reconhecer todos os traços peculiares que definem as nossas características físicas em um determinado recorte histórico de nossas vidas. Apontamos para ela e usamos o pronome “eu”, e, de certa forma, aquela representação somos nós, mas não exatamente nós. São referências para nós, mas não se confundem conosco. Assim, não importa o quão boa seja a definição de detalhes, a fotografia nunca passará de uma mera fotografia, enquanto nós somos o verdadeiro “eu”.

O mesmo raciocínio pode ser estendido para outras formas artísticas de representação. A estátua de Davi, esculpida por Michelangelo, por mais bem que retrate o corpo nu de um homem, nunca será realmente um homem. Por analogia, podemos listar vários atributos que o grupo “homem” possui e que não podemos encontrar nessas representações. A mobilidade é um deles, certamente. Contra esse atributo específico, poderíamos, então, citar a representação cinematográfica, mas entenderíamos que há outros traços que escapam à tela.

Pode parecer uma reflexão inócua, mas pensemos em algo mais limítrofe: as novas tecnologias nos permitem ter acesso a pessoas distantes, usando instrumentos de telecomunicações que envolvem, além da transmissão de voz, também a de imagens. Nesse caso, não será difícil dizer que estamos nos comunicando com pessoas “reais”, por mais que a imagem seja simplesmente uma representação em uma tela luminosa. Há, por assim dizer, uma essência que nos permite identificar quando nos relacionamos com humanos e quando observamos apenas uma representação deles.

Escapemos, por ora, da discussão sobre termos acesso às pessoas em si ou somente à sua representação em nossas mentes. Continuemos, então, com a seguinte pergunta: com essa distinção em mente, qual das duas julgamos mais importante? A representação ou a pessoa representada? É de se imaginar que, ao menos majoritariamente, a resposta seja a segunda opção. Até porque, por mais que achemos, com a maior sinceridade, que a representação vale mais, dificilmente tiraríamos dela tanto proveito quanto tiramos do que é representado, em nossas relações diárias.

Podemos abstrair ainda mais e tentar imaginar um mundo em que não precisamos mais de outras pessoas para sobreviver. Dessa forma, talvez, representação e representado pudessem competir de forma mais equânime. Mas, ao que parece, tudo o que a abstração nos traria como resposta é que nenhuma das opções tem qualquer valor senão o que lhes damos. No fundo, são os mesmos átomos, apesar de agrupados de formas diferentes. O fato de ganharem valores diferentes diz respeito apenas ao modo como encaramos os diferentes arranjos, de acordo, é claro, com nossos próprios interesses.

Mas não há um desprezo total pelo que não é real. Nossa capacidade de imaginação, isto é, de visualizar imagens em nossas cabeças, parece ser a mãe de todas as representações. É com base nela que criamos arte, e essa arte não necessariamente segue as regras físicas que encontramos no mundo — apesar de Wittgenstein ter corretamente encontrado um limite geométrico para nossa abstração, conforme a Proposição 3.0321 de seu Tractatus Logico-Philosophicus. De fato, empenhamos boa parte de nossos recursos e de nosso tempo para promover a criação e a circulação de representações, sejam artísticas ou não.

As obras artísticas, contudo, possuem um valor econômico consideravelmente alto, a depender de quem as tenha criado. Um quadro de Pablo Picasso, por exemplo, pode ser facilmente leiloado na cifra dos milhões em qualquer sistema monetário. São belíssimos, certamente, mas não são poucas as pessoas que não se perguntariam o porquê desse valor estar contido em poucos metros quadrado de tela com desenhos peculiares a óleo. Se falarmos com algum entendido do assunto, certamente teremos respostas, senão satisfatórias, mas, ao menos, teremos um mínimo de critérios sobre o qual refletir.

E se, depois de investirmos uma boa quantia em uma obra de arte famosa, descobríssemos que se trata de uma falsificação? Ficaríamos furiosos — e não sem motivos! Mas a obra em si perderia algum traço? Deixaria de ser idêntica à original? Por que, então, o seu valor será tão depreciado? Por ser uma simulação, talvez? O valor da obra, nesses casos, parece escapar a simples representação, atingindo, não raramente, o valor intrínseco do artista. Até mesmo Picasso deve ter tido problemas em vender suas obras, no início de sua carreira. Uma boa explicação para isso poderia advir de sua técnica limitada ou de sua formação incompleta, mas tais obras, hoje em dia, também não são vendidas por valores exorbitantes?

Por mais semelhantes que sejam, o Picasso original e o Picasso falsificado não comungam da mesma origem, da mesma essência. E isso, para nós, parece ter profunda significância. Tendemos a valorizar a história das pessoas e dos objetos para muito além do que poder-se-ia considerar razoável. E o padrão que vimos na arte funciona exatamente da mesma forma com produtos industrializados e o seu valor de mercado diferenciado entre uma grande marca e uma marca de menor expressão, por mais que a qualidade seja rigorosamente semelhante, em casos mais frequentes do que se pensa.

O status é, indubitavelmente, uma das razões para que nos esforcemos tanto para obter produtos originais, mas o status em si já é uma consequência de algo anterior. Para que separemos as coisas entre mais ou menos valiosas, para muito além de sua utilidade primordial, é necessário que creiamos em uma doutrina essencialista, como se as coisas tivessem uma natureza diferente entre si. Ao que tudo indica, é uma habilidade que a seleção natural moldou em nós — e maiores aprofundamentos podem ser alcançados com a literatura da psicologia evolutiva sobre o caso.

Outro exemplo que o nosso estado atual nos trouxe diz respeito à sexualidade. A modificação voluntária do corpo chegou a estágios em que é possível ter, para todos os efeitos, uma mudança de gênero. Podemos simplesmente tomar hormônios para mudar traços característicos de nossa sexualidade e complementar tudo com uma intervenção cirúrgica de mudança de sexo. Imaginemos, agora, que tenhamos passado um bom tempo admirando o rosto e o corpo de um belo espécime do sexo oposto somente para descobrir que se trata de um desses casos de mudança. Não é necessário sequer ser homofóbico para sentir na pele a mudança drástica de valor.

Não é que as curvas do corpo, ou os seus músculos, ou qualquer outro traço físico atraente tenha perdido o seu valor, mas sentimos profundamente que há algo de errado com a essência daquilo que estávamos contemplando até bem pouco tempo. Como se tivéssemos sido, em semelhança ao caso da pintura, enganados por algum tipo de falsificação. Sem termos essa informação, dificilmente faria alguma diferença para nós apreciar um corpo “natural” ou “modificado”. Assim como não parece fazer diferença se nossos músculos vêm de boa formação genética ou de anos de anabolizantes e longos períodos de exercícios, mas sentimos que há.

Tendo isso em vista, o que podemos dizer sobre a religião? Se nos perguntarmos sobre a existência de deus(es), desde que tenhamos um conceito definido em mente, a resposta será invariavelmente pela falta de evidências a favor, deixando a descrença como posição padrão. Mas essa é apenas uma das maneiras de enxergar a questão. Com esse entendimento sobre a nossa capacidade de representação e de valoração delas, podemos ver como algo aparentemente sem evidências pode gerar todos os fatos sociais aos quais já estamos bem acostumados presenciar.

Mas como ateus reagem a essas manifestações? Em geral, com asco ou repulsa. Por discordarem da posição central que as gera, muitas vezes seu julgamento independe de qualquer beleza intrínseca que possa existir. A forma e o conteúdo, tão importantes para o julgamento de uma obra de arte, perdem espaço para a origem e a intenção por trás dela. Se isso não ocorre de forma tal a inviabilizar completamente a apreciação dos produtos, dificilmente deixará de ter seu peso na sua avaliação final. E o mesmo parece servir para manifestações culturais: uma procissão ou peregrinação de fé soa mais idiota do que bela, aos olhos de quem não crê nos seus benefícios.

Como era de se esperar, tudo funciona como uma via dupla: grande parte dos religiosos tende a desprezar a ciência e a filosofia, especialmente porque, na grande maioria das vezes, são duas fontes de críticas às suas crenças. Assim, por mais que entendam o valor de utilidade desses estudos humanos, dificilmente concederão o argumento sem adicionar um “mas” que inclui as ressalvas sobre sua falibilidade e insignificância perante um conhecimento maior, representado na figura de suas divindades favoritas. A separação é arbitrária, mas faz todo sentido na cabeça do crente que a faz: “a ciência é boa para x, mas, quando se trata de y, ela não tem nada a dizer”.

E que fique claro que isso independe do assunto em voga, pois está arraigado em nossos sistemas de comportamento. Falando sobre música, poucos são aqueles que preferem uma versão de uma canção que não a executada por seus artistas favoritos. E assim será nas mais diversas áreas de divergência por valoração. Na verdade, tendemos a aceitar, até certo ponto, os grupos que pensam diferente, mas isso também depende de nossa relação de afeto com os participantes desses grupos. No fundo, a imparcialidade continua sendo uma meta austera e valiosa, mas precisamos de ferramentas — muitas vezes externas a nós — para pô-la em prática.

Uma saída para a tolerância pode ser encarar todas as posições como válidas, mas se, e somente se, não tivermos um objetivo em mente — descartando, é claro, todos os casos de desonestidade intelectual em favor da “falta de opinião sobre o assunto”. Todas as respostas para operações matemáticas serão válidas se não buscarmos as relações entre os numerais, mas somente algumas poucas — quando não somente uma — darão por satisfeitas um problema posto. Da mesma forma, uma opinião mais branda e menos tendente à segregação parece ser mais adequada à harmonia social, desde que seja esse o nosso objetivo.

É nesse momento que os valores arbitrários podem se tornar perigosos. A aversão ao diferente pode ter consequências catastróficas, como bem mostram os conflitos religiosos e a exclusão de minorias. Contudo, antes de uniformizar o pensamento, tarefa hercúlea por natureza, parece ser necessário criar uma cultura de tolerância e de debate sobre as mesmas bases: de nada adianta discutir qual fruta tem o melhor gosto, mas podemos discutir qual delas possui maior quantidade de certa vitamina em nossa dieta. O conhecimento, assim, tem uma função apaziguadora muitas vezes ignorada, mas tão eficaz quanto sua capacidade de produzir progresso técnico-científico.

Conhecer as razões para que tenhamos tal ou qual comportamento pode ser o ponto de partida para que mudemos a forma como ele se manifesta. O essencialismo pode ser natural, mas não dependemos tão-somente de nossa configuração biológica. Na verdade, grande parte de nosso sucesso evolutivo está na capacidade de usar tais configurações iniciais para nos adaptarmos a diversas situações sem depender de mecanismos puramente naturais. As discussões desse tipo passam pelas ciências sociais e políticas, mas ganham qualitativamente quando incorporam as descobertas científicas relacionadas em seu seio.


Leituras recomendadas:

HARRIS, Sam. The moral landscape: how science can determine human values. Nova Iorque: Free Press, 2010. [em inglês]

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.

WITTEGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. 3. ed. São Paulo: EdUSP, 2001.


Vídeo recomendado:

BLOOM, Paul. The origins of pleasure. Disponível online em: <http://www.ted.com/talks/paul_bloom_the_origins_of_pleasure.html>. Último acesso em 28 ago. 2011. [em inglês com opção de legendas em português]