O argumento do desígnio: uma discussão

Miguel Moutinho

Introdução

Neste ensaio, apresento, analiso e discuto um dos argumentos mais utilizados pelos teístas para defender a existência de Deus — o argumento do desígnio.

Apresento logo no início deste trabalho uma citação bíblica que mostra que o argumento do desígnio tem um forte fundamento bíblico. Para a análise do argumento, considerarei o argumento do desígnio conforme foi formulado pelo filósofo empirista David Hume, no séc. XVIII. Para a discussão do argumento, considerarei as objeções que lhe foram levantadas pelo próprio David Hume. Devo dizer que, na discussão do argumento, guiar-me-ei também pela análise dos filósofos contemporâneos John L. Mackie e Simon Blackburn, e terei em séria consideração as objeções científicas que o biólogo darwinista Richard Dawkins apresenta contra o argumento do desígnio.

Com este trabalho, pretendo demonstrar que o argumento do desígnio não é logicamente válido e que é refutado pela ciência, nomeadamente pela teoria darwinista da evolução das espécies pela seleção natural.

O Argumento do Desígnio

“Depois disso o Senhor respondeu a Jó de um redemoinho, dizendo: Quem é este que escurece o conselho com palavras sem conhecimento? Agora cinge os teus lombos, como homem; porque te perguntarei, e tu me responderás. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faz-mo saber, se tens entendimento. Quem lhe fixou as medidas, se é que o sabes? ou quem a mediu com o cordel? Sobre que foram firmadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra de esquina, quando juntas cantavam as estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?” (Jó 38, 1-7)

A partir desta passagem do “Livro de Jó”, do Antigo Testamento, podemos inferir que a concepção de Deus que nela está presente é a de um Deus Criador, que lançou as fundações do mundo, que lhe deu forma e regularidade — enfim que o construiu. A ideia de Deus como Criador e construtor do mundo, da sua complexidade e perfeição, é, em termos gerais, a ideia defendida pelo argumento do desígnio.

O argumento do desígnio é um dos argumentos mais usados pelos teístas para defender a existência de Deus. De acordo com este argumento, o modo regular, ordenado e complexo como o universo está organizado revelam o desígnio de um ser divino criador do universo. Mais concretamente, os “sinais do desígnio” (do original “marks of design”, expressão utilizada em Mackie 1982 para designar os fenômenos e objetos naturais como provas do desígnio) são os seguintes:

  1. Todos aqueles objetos naturais que se assemelham a máquinas feitas pelo homem;
  2. O modo como as partes na natureza se juntam e se combinam entre si; e
  3. A adaptação dos meios aos fins.

Destes “sinais do desígnio”, estabelecendo uma analogia entre os desígnios e as obras humanas e os desígnios e obras divinas, os teístas inferem a existência de um autor divino cuja inteligência e planeamento sejam de algum modo análogos às dos humanos. Esse autor é Deus, o suposto criador do universo.

Do argumento do desígnio, destacam-se as seguintes características: é um argumento

  1. A posteriori;
  2. Teleológico;
  3. Por analogia; e
  4. Probabilístico.

É a posteriori, porque parte de dados empíricos — a observação empírica do modo complexo e regular como o universo está ordenado e, mais concretamente, dos “sinais do desígnio” — para deles inferir a existência de Deus; é teleológico, uma vez que pressupõe que o universo existe segundo um fim, e que esse fim é um desígnio de Deus; é por analogia, porque é muitas vezes formulado e sustentado com analogias, sendo exemplo disso o clássico argumento por analogia do relojoeiro (que apresentarei e discutirei mais adiante); e é probabilístico, porque a argumentação baseia-se sempre em (e depende de) probabilidades, nomeadamente a probabilidade de que

  1. A ordem, a complexidade e a regularidade do universo resultem de um desígnio;
  2. De que certos objetos e acontecimentos naturais sejam sinais desse desígnio;
  3. E de que, por último, dada a evidência desse desígnio, Deus exista de fato, pois só Deus o poderia planear e realizar.

Ao analisar e discutir o argumento do desígnio, demonstrarei que, seja qual for o modo como for formulado, é um argumento inválido, com muitas fragilidades e incorreções, que não serve para provar a existência de Deus.

O Argumento do Desígnio Apresentado e Discutido por Hume

Eis como, nos Diálogos sobre a Religião Natural, de David Hume, o personagem Cleantes apresenta o argumento do desígnio:

“Observa o mundo em redor; contempla a sua totalidade e todas as suas partes; verás que não é senão uma grande máquina, subdividida num número infinito de máquinas mais pequenas, que admitem uma vez mais subdivisões que ultrapassam o que os sentidos e as faculdades humanas conseguem registrar e explicar. Todas estas várias máquinas, e mesmo as suas partes mais ínfimas, se ajustam entre si com uma precisão que impõe admiração a todos os homens que as contemplaram. A curiosa adaptação de meios a fins, em toda a natureza, assemelha-se exatamente, apesar de exceder em muito, aos produtos do artifício humano: ao desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência humanos. Portanto, uma vez que os efeitos se assemelham entre si, somos conduzidos a inferir, segundo todas as regras da analogia, que as causas também são semelhantes: e que o Autor da Natureza é de algum modo análogo ao espírito humano, apesar de estar dotado de faculdades muito maiores, proporcionais à grandiosidade da obra que executou. Demonstramos imediatamente por este argumento a posteriori, e só por ele, a existência de uma divindade e a sua semelhança ao espírito e inteligência humanos.” (Hume 1776:15)

O modo como o argumento do desígnio está aqui apresentado é uma das formulações clássicas deste argumento, muito conhecida como a analogia do relojoeiro. Podemos formular este argumento da seguinte maneira:

  1. O relógio, pela sua complexidade e pelo modo como está ordenado, é uma máquina que tem que ter um autor e construtor inteligente, com capacidades proporcionais à sua obra — o relojoeiro humano.
  2. O mundo, pela sua complexidade e pelo modo como está ordenado, é como um relógio.
  3. Logo, o mundo também tem que ter um autor e construtor inteligente, com capacidades proporcionais à sua obra — o relojoeiro divino (Deus).

Basicamente, este argumento defende que, do mesmo modo que, perante um relógio, podemos pressupor a existência de um ser inteligente que o tenha construído segundo um determinado fim, também perante o mundo podemos pressupor igualmente a existência de um ser inteligente que o tenha construído segundo um determinado fim, dadas as semelhanças entre um relógio e o mundo. Enquanto no primeiro caso a hipótese mais plausível para o construtor do relógio seria um relojoeiro humano, no segundo caso a hipótese mais plausível para o construtor do mundo seria um “relojoeiro divino”, pois só este poderia ser capaz de uma tal obra.

Este argumento é uma analogia, mas, como veremos seguidamente, levanta vários problemas. Vejamos: é óbvio que o mundo é complexo, tem uma ordem e os acontecimentos naturais têm uma regularidade; ainda assim, a analogia com o relógio é frágil, remota e redutora. Em primeiro lugar, é frágil, pois enquanto o relógio é uma máquina perfeita, já o mundo é uma “máquina” cheia de imperfeições e irregularidades que fogem à sua ordem ou regularidade normal. Em segundo lugar, é remota, porque as eventuais semelhanças entre o relógio e o mundo só poderão ser consideradas como semelhanças muito distantes, apenas em alguns aspectos — não se pode dizer, com segurança, que a ordem do mundo é semelhante à ordem do relógio, pois enquanto temos a certeza, pela experiência, de que o relógio e a sua ordem foram criados segundo um fim, não temos certeza nenhuma, por não termos tido qualquer experiência disso, de que o mundo e a sua ordem foram sequer criados, muito menos de que existem também segundo um fim (que seria divino) e não apenas pelo acaso natural (esta última explicação é, de resto, a explicação científica). Em terceiro lugar, é uma analogia redutora, porque, enquanto o relógio é uma máquina com uma complexidade limitada às suas pequenas dimensões, já o mundo é uma “máquina” de dimensões não comparáveis às do relógio, pelo que a sua complexidade também não poderá ser comparada à do relógio. Ora, se uma analogia só pode ser estabelecida a partir de um exemplo que seja semelhante num aspecto relevante — no caso da analogia do relógio, o exemplo seria o relógio e o aspecto semelhante seria a complexidade do relógio comparável à complexidade do mundo —, e se acabamos de ver que este argumento por analogia não preenche estas condições, concluímos que a analogia não é válida, logo, o argumento é inválido e não deve ser considerado como uma boa prova da existência de Deus.

É a personagem Fílon, nos Diálogos de Hume, que discute principalmente este argumento que Cleantes apresenta. Fílon começa por apresentar outras analogias que podem ser estabelecidas entre acontecimentos naturais e cujas conclusões são reconhecidamente erradas, acabando por evidenciar a dissimilitude entre os relógios, casas (outro dos exemplos muito usados pelos teístas) e outras obras humanas, e os objetos e acontecimentos naturais, afirmando que só uma conjectura falível poderia pressupor uma causa similar entre objetos e fenômenos de semelhança tão remota. Mas uma das objeções mais fortes que Fílon apresenta a Cleantes e ao seu argumento do desígnio é a seguinte:

“Mas, permitindo que possamos tomar as operações de uma parte da natureza sobre outra como o fundamento do nosso juízo com respeito à origem do todo (o que nunca se pode admitir), por que, todavia, selecionar um princípio tão minúsculo, tão fraco, tão limitado como a razão e o desígnio dos animais que encontramos neste planeta? Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação do cérebro a que chamamos ‘pensamento’ que temos assim de fazer dela o modelo de todo o universo? A nossa parcialidade a nosso próprio favor apresenta-a de fato sempre que pode; mas a filosofia sólida deve proteger-se cuidadosamente de uma ilusão tão natural.” (Op. Cit., p. 19)

É deste modo que Fílon torna evidente a fragilidade da analogia. É que do fato de haver operações mentais como o pensamento e a intenção em algumas partes da natureza, nomeadamente nos humanos e noutros animais, não se segue que essa possa ser a regra do todo que é a natureza, que excede em muito esta parte de que Fílon fala. Chegar à explicação do todo partindo apenas de uma parte, sem mais, torna o argumento muito frágil. Ao mesmo tempo, como diz Fílon, se estamos preparados para admitir (ainda que não o devamos fazer) este método de raciocínio como válido, por que, então, escolher a parte da natureza que mais nos diz respeito, e não outra? Isto leva-nos a outra das objeções contra o argumento do desígnio, que é a arbitrariedade com que os teístas escolhem a hipótese de Deus e do desígnio como a explicação certa, quando muitas outras são possíveis, umas igualmente frágeis (ou mesmo absurdas), outras bastante mais sérias. Eis o que diz Fílon a Cleantes propósito de outras explicações possíveis:

“Se o universo suporta uma maior semelhança com os corpos animais e vegetais do que com as obras da sabedoria humana, é mais provável que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros do que à da última, e a sua origem deva mais propriamente ser atribuída à geração animal ou vegetal do que à razão ou ao desígnio. A tua conclusão, mesmo de acordo com os teus próprios princípios, é portanto fraca e imperfeita. […] O mundo assemelha-se mais a um animal ou a um vegetal do que a um relógio ou tear. É mais provável, portanto, que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros. A causa dos primeiros é a geração animal ou vegetal. Podemos inferir, portanto, que a causa do mundo é algo semelhante ou análogo à geração animal ou vegetal.” (Op. Cit., pp. 44-45)

De fato, esta hipótese de Fílon, para além de ser mais lógica e plausível do que a hipótese teísta de Cleantes, é a que se aproxima mais das teorias darwinistas da evolução das espécies por seleção natural, que surgiriam um século mais tarde (séc. XIX), bem como se aproxima de todas as descobertas científicas posteriores, não só da biologia, como da química, e sobretudo da física, quanto às possíveis certezas que podemos ter sobre a criação do universo. Segundo a ciência, foram os acontecimentos naturais que, numa sucessão de acasos (sem qualquer desígnio especial ou divino), embora de acordo com as “leis da natureza”, deram origem à criação do mundo e à sua existência tal como o conhecemos. Assim, antes ainda de poder sonhar sequer com as teses darwinistas e o modo como estas revolucionaram o conhecimento científico, Hume, através do seu personagem Fílon, já apresentava uma objeção ao argumento do desígnio que nem ele poderia imaginar que viesse a ser uma das bases científicas mais devastadoras para este argumento.

Os teístas poderão objetar que este argumento de Fílon continua a deixar questões em aberto, como a causa da “geração animal ou vegetal”, ou, para ser mais preciso, a reprodução biológica. Mas Fílon tem tanta legitimidade para parar a sua explicação neste argumento como têm os teístas para parar a sua explicação na conclusão da analogia do relojoeiro, isto, é que Deus existe. Afinal, podemos questionar tanto a causa da reprodução biológica — que Fílon não avança — como podemos questionar a causa de Deus — que Cleantes também não avança. A diferença, e Hume não a poderia prever, é que a causa da reprodução biológica viria a ser satisfatoriamente explicada pelo darwinismo; o mesmo não se pode dizer, no entanto, da hipótese teísta, uma vez que, até a atualidade, o mais que os teístas conseguiram avançar sobre a causa de Deus é que ele é causa de si mesmo, autoexplicativo. Ora, esta é uma explicação circular, ou seja, nada explica nem acrescenta ao nosso conhecimento. Mesmo que admitíssemos a existência de Deus e do seu desígnio como explicação para a causa do universo (explicação que a ciência dá como bastante mais simples, pela mera casualidade dos acontecimentos naturais), teríamos uma nova questão, certamente ainda mais difícil de explicar: sendo Deus um ser inteligente e onipotente capaz de conceber o mundo segundo um determinado plano ou desígnio, então a sua causa e existência carecem de uma explicação porventura mais urgente do que a causa do universo. Qual é a causa de Deus e por que é que existe? É certo que os teístas não têm uma resposta para estas novas questões que eles mesmos levantam. Por que, então, admitir a hipótese que apresentam, se nada tem de plausível? Mas vejamos o que diz Fílon ainda sobre a sua escolha da “geração animal ou vegetal” como explicação preferível:

“Se baseio o meu sistema de cosmogonia no primeiro, de preferência ao segundo, é por escolha minha. A questão parece-me completamente arbitrária. E, quando Cleantes me pergunta qual é a causa da minha grandiosa faculdade de geração animal ou vegetal, tenho igualmente o direito de lhe perguntar qual é a causa do seu grande princípio racional. […] A julgar pela nossa experiência, limitada e imperfeita, a geração tem alguns privilégios sobre a razão; pois todos os dias vemos esta última surgir da primeira, mas nunca a primeira da última.” (Op. Cit., p. 47)

Como víamos atrás, a escolha pode ter sido arbitrária para Hume (ou para Fílon, neste caso), mas hoje não podemos dizer o mesmo, uma vez que, enquanto a hipótese teísta já nem de probabilidades se pode sustentar com muita segurança, já a hipótese científica, da qual Hume apresenta, sem saber (mas parece intuitivamente apostar estar certo), um esboço embrionário, está perfeitamente sustentada e merece toda a credibilidade.

Outra das objeções possíveis ao argumento do desígnio, e que voltam a mostrar o quão frágil e remota é a analogia do relojoeiro, assenta no fato de que, enquanto nós temos experiência da construção de relógios, casas, entre outras obras e segundo os mais diversos fins, não temos qualquer experiência da construção de universos, muito menos de qualquer desígnio respeitante a estes. Não tendo esta experiência e a informação crucial que dela resultaria para apoiar a analogia do relojoeiro, este argumento é claramente inválido. Veja-se o que diz Fílon sobre isto:

“Quando duas espécies de objetos foram sempre observadas a combinarem-se juntas, eu posso inferir, pelo hábito, a existência de uma onde quer que veja a existência da outra; e a isto chamo um argumento a partir da experiência. Mas onde este argumento possa ter lugar onde os objetos, como no caso presente [da analogia do relojoeiro], são singulares, individuais, sem paralelo ou semelhança específica, pode ser difícil de explicar. E dir-me-á algum homem com uma tranquilidade séria que um universo ordenado tem que surgir de algum pensamento ou sabedoria como a humana porque nós temos experiência disso? Para estabelecer este raciocínio seria preciso que tivéssemos experiência da origem dos mundos; e não é suficiente, certamente, que tenhamos visto barcos e cidades surgirem da sabedoria e inventividade humanas.” (Op. Cit., p. 20-21)

Realmente, a nossa experiência limitada não nos permite inferir daquilo que, dentro das nossas possibilidades e capacidades, temos experiência, realidades — como a existência de Deus, o seu desígnio e a realização construtiva deste — das quais não temos e não podemos ter qualquer experiência nem informação. Uma tal inferência seria completamente errada, como já vimos.

Há ainda uma última objeção ao argumento do desígnio, que tem a ver com o problema do mal. É pela palavra de Fílon que, uma vez mais, Hume discute os vários pontos do argumento do desígnio, desta vez referindo-se ao problema do mal, com a clara intenção de, ao referi-lo, ridicularizar o argumento inicial:

“Numa palavra, Cleantes, um homem que siga a vossa hipótese é talvez capaz de afirmar ou de conjecturar que o universo surgiu a dado momento de algo como o desígnio; mas, além dessa posição, não poderá asseverar uma circunstância única e pode depois fixar todos os pontos da sua teologia com toda a licença da fantasia e do hipotético. Este mundo, que ele saiba, tem muitas falhas e imperfeições, comparado com um padrão superior; e foi apenas a primeira tentativa rude de uma qualquer divindade infantil, que mais tarde o abandonou, envergonhada com o seu deficiente desempenho; é a obra apenas de uma divindade dependente e inferior, e é objeto de troça dos seus superiores; é o produto da idade avançada e da senilidade de uma qualquer divindade aposentada, e desde a sua morte tem continuado por inércia, a partir do primeiro impulso e força ativa que dele recebeu. […] E, pela minha parte, não posso pensar que um sistema de teologia tão selvagem e instável seja preferível a nenhum.” (Op. Cit., pp. 37-38)

Fílon ridiculariza, de fato, o argumento do desígnio: dado que o mundo é tão cheio de imperfeição e de mal, a ter sido criado segundo o desígnio de uma divindade, essa divindade só poderia ser ou inexperiente ou estar já incapacitada. Obviamente, estas duas hipóteses não se põem com seriedade. Servem apenas para mostrar como o argumento do desígnio acaba por ser a melhor objeção contra si mesmo: se se infere do mundo e da sua ordem, tal como o conhecemos, a existência de Deus que o criou segundo um plano que ele próprio concebeu, isso implica que esse Deus não pode ser perfeitamente bom e sumamente justo, como os teístas normalmente o qualificam. E este é o problema do mal: se Deus existe e se é o criador do mundo, e se entre as suas qualidades se contam a onipotência e a perfeita bondade, então porque é que há mal (e tanto mal, diga-se!) no mundo? Se é certo que há mal no mundo, não é certo que Deus exista sequer, sendo ainda menos certo que seja onipotente e perfeitamente bom. O que é certo é que, exista ou não, ou é onipotente, ou é perfeitamente bom, não podendo ter ambas as qualidades. Os ateístas afirmam que Deus não é nem uma coisa nem outra, pois não existe. E, considerando as objeções tão fortes que são apresentadas contra os tão implausíveis argumentos teístas, será pelo menos mais prudente aceitar as teses ateístas.

Para finalizar, o argumento do desígnio — nomeadamente a analogia do relojoeiro — levanta esta espada de dois gumes aos teístas: se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é grande, para reforçar a sua tese da semelhança entre os desígnios e as obras dos humanos e de Deus, então isso implica que as características de Deus se assemelhem de tal modo às humanas, que a imperfeição, a finitude e as limitações várias terão que estar incluídas neste rol de semelhanças. Ora, daqui segue-se que um Deus tão parecido com os humanos, e, por consequência, tão limitado e imperfeito como estes últimos, não poderia ter construído o mundo. Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações em que precisa de se apoiar. Por outro lado, se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é remota, para não correr este risco que acabamos de apontar, então isso implica reconhecer que a analogia é de fato frágil e remota, e implica também que não podemos, desse modo, saber quais as características de Deus; logo, não sabemos se ele teria ou não sido capaz de conceber e criar o mundo (para além de nem sequer sabermos se existe). Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações que precisa de preservar também para ser mantido. O que descobrimos é que, de uma maneira ou de outra, considerando esta e as objeções que já apresentei e analisei anteriormente, o argumento do desígnio não nos oferece, de fato, uma explicação séria e fiável, sendo, pelo contrário, ilógico porque inconsistente, cientificamente errado e contraditório, e autorrefutante.

Conclusão

Procurei apresentar e discutir o argumento do desígnio na sua formulação tradicional, baseando-me para isso nos célebres Diálogos sobre a Religião Natural de David Hume, em que o autor trata este argumento de uma forma reconhecidamente rigorosa. A todas as objeções que o próprio David Hume apresentou ao argumento do desígnio, juntei alguns pontos críticos meus e baseei-me em alguns pontos críticos de apoio apresentados por John L. Mackie, Simon Blackburn, Richard Dawkins e pelo próprio Richard Popkin, na sua introdução aos Diálogos.

Espero que este trabalho seja elucidativo e que permita perceber como é que o argumento do desígnio é formulado, quais as suas implicações, as objeções que lhe são levantadas, e por que razão, afinal, falha no seu objetivo: não prova a existência de Deus. Espero também que este trabalho possa ser um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões sobre o problema analisado.

Bibliografia

Blackburn, S. (1999) Pense, Trad. A. Infante et al., Gradiva, Lisboa, 2001.

Dawkins, R. (1986) O Relojoeiro Cego, Trad. Isabel Arez, Edições 70, Lisboa, 1988.

Hume, D. (1776) Dialogues Concerning Natural Religion, ed. Richard H. Popkin, Hackett Publishing Company, Indianapolis, 1998 (2.ª Edição).

Mackie, J. L. (1982) The Miracle of Theism: Arguments for and against the existence of God, Oxford University Press, Oxford, 1982.

  • autor: Miguel Moutinho
  • fonte: Crítica